DA ESTILÍSTICA AOS GÊNEROS DO DISCURSO NO ENSINO DE LÍNGUAS Helena Hathsue Nagamine Brandão1 1 Universidade de São Paulo (USP) Vou delinear, de início, a estrutura geral da minha fala. Ela terá três partes: 1) considerações em torno das concepções de Mattoso Câmara Jr. sobre o estilo e o objeto da estilística; 2) considerações sobre as concepções de estilo em Bakhtin; 3) algumas considerações sobre a relação: gênero – estilo - ensino de língua. 1. O estilo em Mattoso Câmara Jr. Por que inicio com Mattoso Câmara? Por duas razões: inicialmente, porque Mattoso é o grande homenageado nesse 52o. Seminários do GEL e depois porque Mattoso se destaca pelo seu pioneirismo na área dos estudos lingüísticos no contexto brasileiro. Sobre o estilo, especificamente, há dois textos de Mattoso Câmara: a sua tese de livre-docência Contribuição à estilística portuguesa, publicada em 1953 e um artigo “Considerações sobre o estilo” publicada em 1972 na obra que reúne vários textos seus, sob o título Dispersos. No artigo “Considerações sobre o estilo”, Mattoso inicia criticando Saussure; afirma que, determinado pela sua formação cartesiana racionalista, Saussure elege a langue (e deixa de lado a parole) como objeto da ciência lingúística e ele assim o faz por levar em conta apenas a função representativa da linguagem, de fundo intelectivo, conforme formulação do lingüista Karl Bühler. Lembremos que Bühler propõe uma classificação do ato de comunicação constituído, essencialmente, como um signo triplo que remete: 1) ao conteúdo comunicado, em que se tem a função representativa da linguagem; 2) ao destinatárioem que se tem a função de apelo, a função apelativa ou conativa; 3) ao locutor, cuja atitude psicológica ou moral o enunciado manifesta, é a função expressiva da linguagem. Embora reconheça a existência das funções de apelo e expressiva, para Bühler, entretanto, a função representativa mais que uma função seria “a própria essência da linguagem no homem”. Pois bem, para Mattoso, ao estabelecer a dicotomia língua/fala e ao eleger a língua, em detrimento da fala, como objeto da lingüística, Saussure considera apenas a função representativa da linguagem, de fundo intelectivo, deixando de lado as outras duas, as funções expressiva e de apelo, de fundo emocional. Mattoso expressa da seguinte forma a sua crítica a Saussure: “Saussure, quando conceituou a ‘língua’ em puras bases representativas, ‘mutilou’, por assim dizer a linguagem e obteve um conceito abstrato fora da concreticidade do intercâmbio lingüístico. Foi o que percebeu o seu discípulo Charles Bally, que se dedicou não a repetir o mestre mas a completá-lo, focalizando o estilo em todo fato de língua, e assim estabelecendo a disciplina da estilística.” (1972:136) Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 14 / 27 ] Assim, para Mattoso, a introdução dos elementos emocionais no sistema intelectivo da língua está na base da noção de estilo que é definida da seguinte forma: “um conjunto de processos que fazem da língua representativa um meio de exteriorização psíquica e apelo” (1972:136). Define estilística como “a parte do estudo da linguagem que se opõe à gramática, a qual trata da língua representativa. O papel da estilística é depreender todos os processos lingüísticos que permitem a atuação da manifestação psíquica e do apelo dentro da linguagem intelectiva” (1972:137) Segundo Mattoso. “a língua absorve (...) uma carga afetiva que se infiltra em seus elementos e os transfigura por assim dizer (...) [Em outras palavras], o alcance representativo do termo se desdobra num alcance expressivo, em que se integram as funções da manifestação psíquica e do apelo”. Na minha leitura, a impressão que se tem é a de que, na concepção de Mattoso, embora critique Saussure, a função representativa é ainda a função própria da língua e as funções expressiva e de apelo são aspectos que se infiltram, sobreacrescentam-se a essa função essencial. Essa impressão se confirma quando diz: “o estudo do estilo nos dá a contraparte lingüística que nos faltava” E mais adiante acrescenta “a estilística vem complementar a gramática”(1953/1978:14). Traduzindo: o próprio dos estudos da língua é a gramática (a língua enquanto sistema, entenda-se linguagem intelectiva) da qual a estilística (manifestação psíquica e de apelo) é o complemento. Esse contraste entre o emocional e o intelectivo é que separa o estilo e a gramática de forma que tudo que não é compreensão intelectiva situa-se no nível do estilo. A associação do estilo com o emocional e o apelo levanta a discussão sobre o aspecto coletivo e individual. Para Mattoso, embora o estilo esteja relacionado ao individual “há nele sempre um aspecto coletivo, que decorre de ele ser também, como a ‘langue’ saussuriana, um meio de comunicação social, embora no plano emocional. Mas é indubitável que a personalidade se assinala firmemente no estilo, porque o mundo dos sentimentos é muito mais nosso do que o das idéias” (1972:136-7). No entanto, a individualização no estilo não é “em regra muito nítida e rigorosa. Estamos por demais impregnados na atmosfera social para apresentar a este respeito uma originalidade a cem por cento [...] O estilo individual se esbate, assim, no estilo de uma época, de uma classe, de uma cidade, de um país. E é desta sorte que se pode falar até no estilo de uma língua (....)” (1953/1978:16) Sobre a amplitude do fenômeno estilístico, Mattoso assume a observação de Vossler “de que na linguagem de um vagabundo mendicante há gotinhas estilísticas da mesma natureza que todo o mar expressional de um Shakespeare. O estilo literário tem a vantagem de ser manipulado por pessoas que se especializaram na técnica de carrear a manifestação psíquica e o apelo para a linguagem representativa, mas também tem a desvantagem de ser um tanto consciente e às vezes ‘artificial’, tendo-se então a retórica com todas as implicações negativas que o termo em regra pressupõe”.(1972:138) Dessa forma, critica tanto os estilisticistas que se concentram na língua literária ou escrita quanto aqueles que se dedicam apenas ao oral e língua popular, firmando sua posição: “Há uma escala em que o estilo se intensifica, se matiza e até se transmuda, conforme o tipo de língua em que aparece; mas é inegável que aparece em todas e em todas segue pelas mesmas linhas mestras e deve ser objeto de estudo”(1972:138). Nesse sentido, afirma que o estilo literário culto e a gíria, que é um estilo que se integra na língua popular, constituem os dois pólos da estilística. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 15 / 27 ] “ a socialização diminui e a personalidade se consolida na medida em que se vai da língua popular para a língua literária através de todos os graus intermediários. A gíria é essencialmente coletiva [...] O estilo literário já é muito mais pessoal; mas não tanto como em regra se diz. Personalidade estilística em literatura é, em verdade, rara; o mais recente é certa coletivização, que logo ressalta quando se estudam os literatos de uma dada época ou de uma dada ‘escola’. Nem pode haver um estilo pessoal absoluto, por mais esforço e talento que se dispenda nesse sentido”. (1972:138-9) Aliás, convém ressaltar que Mattoso considera como ponto importantíssimo da estilística o fato de que “não há estilo pessoal absoluto; todo estilo prende-se a uma socialização e mesmo os mais pessoais dos estilistas literários (um Proust, um Joyce) têm um ponto de contato com essa socialização, o que lhes permite produzirem efeito estético com suas ‘extravagâncias’.” (1972:141) Que traços lingüísticos se podem dizer estilísticos? Mattoso (1972:140) responde: “o estilo se caracteriza em regra por um desvio da norma lingüística assente” O recurso “para se fazer da língua da comunicação intelectiva o veículo das funções não intelectivas da manifestação psíquica e do apelo é a deformação dos fatos gramaticais, conceito que vem da escola eslava de crítica literária, ligada ao Círculo Lingüístico de Praga e que se distingue do erro na medida em que o erro, do ponto de vista estilístico, é a deformação que não conduz a nada ou aquela que provoca um efeito negativo” enquanto que a deformação estilística tem uma finalidade estética, “se partirmos da exata compreensão de ‘estilo’ –conjunto de processos para um fim estético.” Observa-se nessa passagem a relação que estabelece entre estilo e finalidade estética. Sintetizando e comentando as idéias de Mattoso em torno do estilo: a) Para colocar a questão do estilo, parte das três funções da linguagem apontadas por Bühler: a função representativa, centrada no objeto do dizer; a função expressiva centrada no locutor; a função de apelo, centrada no alocutário. b) a função representativa é de caráter intelectivo, racional, abstrato e é ela que está na base da gramática que codifica “o sistema, o padrão, a estrutura”, enfim a língua (langue de Saussure). As duas outras funções, expressiva e de apelo são de caráter emocional e constituem objetos da estilística. c) a estilística é complemento da gramática. Surge aqui, parece-me, certa ambigüidade nas considerações de Mattoso para quem o estilo, definido como meio de exteriorização e apelo, é algo que se “infiltra” nos elementos da língua “transfigurando-os” ; essa consideração (que privilegia o aspecto intelectivo) aponta, ao ater-se à dicotomia língua/fala ou discurso, para uma inserção do autor no quadro epistemológico saussuriano que (Mattoso) critica, mas de que não consegue desvencilhar-se de todo; d) seguindo a orientação de Bally, para Mattoso, o estilo está em qualquer tipo de manifestação da linguagem e não apenas no texto literário ou no escrito. Interessante que, apesar de assumir essa posição, elege como corpus para analisar o fenômeno do estilo o texto literário e não a linguagem comum (cf. Estudos Machadianos). e) uma nova ambigüidade: concebe o estilo como desvio e o texto literário como o mais propício à observação dos desvios o que o leva a redefinir estilo como “conjunto de processos [lingüísticos] para um fim estético”, afirmação que vem Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 16 / 27 ] contrariar aquela de que o estilo está em qualquer tipo de manifestação da linguagem. f) O estilo está na interface entre o coletivo e o individual. Como se vê, a concepção de estilo de Mattoso aponta para uma série de elementos que estão presentes na reflexão moderna sobre a questão. Mas seguindo a tradição, Mattoso faz uma estilística da expressão centrada no objeto do discurso e na figura do locutor e, embora tenha colocado a tensão entre o coletivo e o individual que a noção de estilo suscita, não aparece nas suas preocupações a problemática do gênero, questão que tem sido posta de forma central nas discussões atuais sobre o estilo. 2. Estilo e gênero em Bakhtin As reflexões contemporâneas sobre o estilo não podem deixar de levar em conta as contribuições de Bakhtin cujas idéias têm tido atualmente grande influência sobre os estudiosos da linguagem. Mas para fazê-lo é preciso contextualizar a questão do estilo no quadro epistemológico formulado por Bakhtin. Bakhtin concebe a linguagem como forma de interação social cujo objetivo é a comunicação; comunicação entre falante/ouvinte, entre um eu e um tu, o que pressupõe um princípio geral a reger toda palavra: o princípio de que linguagem é diálogo. Toda palavra é dialógica por natureza porque pressupõe sempre o outro; o outro sob a figura do destinatário a quem está voltada toda alocução, a quem o locutor ajusta a sua fala, de quem antecipa reações e mobiliza estratégias. Mas, na concepção bakhtiniana, o outro é ainda o outro discurso ou os outros discursos. A enunciação lingüística, o ato de comunicação, tem, portanto, um caráter social, e o produto dessa interação social é o enunciado. Como produto de trocas sociais, o enunciado está ligado a uma situação material concreta e também a um contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade lingüística. Como os atos sociais vivenciados pelos grupos são diversos, conseqüentemente a produção de linguagem também o será. Para Bakhtin, os discursos são produzidos de acordo com as diferentes esferas de atividade do homem. Por ex., a escola é um lugar em que atuamos em diferentes esferas de atividade, cada esfera nos exige uma forma específica de atuar com a linguagem. Dessa maneira, temos uma esfera de atividade que é a aula, outra que é a reunião de pais e mestres, a reunião dos professores, o encontro dos alunos no recreio etc., cada uma dessas esferas exigindo uma forma específica de uso da linguagem, um gênero diferente de discurso. A diversidade das produções de linguagem são infinitas, mas nada caóticas. Para Bakhtin a competência lingüística dos sujeitos vai além da frase ou da oração, ela estende-se na direção do que ele chama os "tipos relativamente estáveis de enunciados" , "o todo discursivo", isto é, os gêneros do discurso, para os quais os falantes são sensíveis desde o início de suas atividades de linguagem. Portanto, os gêneros do discurso são diferentes formas de uso da linguagem que variam de acordo com as diferentes esferas de atividade do homem e representam uma economia cognitiva e comunicativa nos processos de troca verbal. “Possuímos um rico repertório dos gêneros do discurso orais (e escritos). Na prática, usamo-los com segurança e destreza, mas podemos ignorar totalmente a sua existência teórica [...] Na conversa mais desenvolta, moldamos nossa fala às formas precisas de gêneros, às vezes padronizados e estereotipados, às vezes mais maleáveis, mais plásticos e mais criativos” (1979/1992: 300-302) Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 17 / 27 ] Em cada esfera de atividade social, portanto, os falantes utilizam a língua de acordo com gêneros de discurso específicos. Como as esferas de atividades do homem são muito variadas, os gêneros do discurso também são muito variados, pois incluem desde a curta réplica do diálogo cotidiano até a exposição científica e os modos literários. Para Bakhtin, essa diversidade dos gêneros tem dificultado uma abordagem mais geral da natureza lingüística do enunciado o que vem sendo sistematicamente negligenciado: “Estudaram-se mais que tudo os gêneros literários. Mas estes, tanto na Antigüidade quanto na época contemporânea, sempre foram estudados pelo ângulo artístico-literário de sua especificidade, das distinções diferenciais intergenéricas (nos limites da literatura), e não enquanto tipos particulares de enunciados com os quais contudo têm em comum a natureza verbal (lingüística)”.(Bakhtin,1979/1992:280) Sobre o estudo dos gêneros retóricos, da Antigüidade aos tempos mais modernos, afirma que se “deu maior atenção à natureza verbal do enunciado, a seus princípios constitutivos tais como: a relação com o ouvinte e a influência deste sobre o enunciado etc., mas a especificidade dos gêneros retóricos (jurídicos, políticos) não permitiu que se chegasse a uma abordagem da natureza lingüística do enunciado”. (Idem, ibidem) Da mesma forma, estudaram-se os gêneros do discurso cotidiano, “mas também nesse caso, o estudo não podia conduzir à definição correta da natureza lingüística do enunciado, na medida em que se limitava a pôr em evidência a especificidade do discurso cotidiano oral”(Idem, p.281). A heterogeneidade dos gêneros do discurso tornou difícil a tarefa de definir o caráter genérico do enunciado. E é diante dessa dificuldade que Bakhtin faz uma classificação dos gêneros bastante ampla considerando a diferença essencial existente entre os gêneros do discurso primários (simples), constituídos por aqueles da vida cotidiana, e que mantêm uma relação imediata com as situações nas quais são produzidos e gêneros do discurso secundários (complexos) produzidos em situações de troca cultural “mais complexa e mais evoluída”, constituídos pelos gêneros principalmente da escrita, desenvolvidos nas áreas artística, científica, sócio-política. O autor considera essa distinção de grande importância teórica, pois a partir da análise de ambos ser-se-á capaz de elucidar a natureza complexa e sutil do enunciado. “A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo histórico de formação dos gêneros secundários do outro, [levam ao esclarecimento da] natureza do enunciado ( e, acima de tudo, do difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visões de mundo).”(Idem, p.282). É a partir de uma determinada concepção teórica de enunciado e de gêneros do discurso como enunciados tipicos que Bakhtin analisa o estilo e faz suas críticas à estilística tradicional. Definindo o gênero como “tipos de enunciados relativamente estáveis” quanto ao conteúdo, à construção composicional e ao estilo, para ele, o conceito de estilo está ligado ao de gênero do discurso. Isto é, o estilo é um dos elementos constitutivos da genericidade o que o leva a afirmar: “Quando há estilo há gênero” . O vínculo entre estilo e gênero é indissolúvel, orgânico. E isso se percebe claramente quando se analisa a questão sob a ótica da funcionalidade do gênero em que cada esfera da atividade e da comunicação humana tem seu estilo peculiar. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 18 / 27 ] “Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. O estilo é indissociavelmente vinculado a unidades temáticas determinadas e, o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o discurso do outro, etc.). O estilo entra como elemento na unidade de gênero. de um enunciado [...] [O estudo do estilo] sempre deve partir do fato de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se no estudo prévio dos gêneros em sua diversidade.”(Idem, p.284) Mas para entender melhor o conceito de estilo e a relação gênero-estilo, é preciso entender primeiro a sua concepção de enunciado concreto que resumiremos grosseiramente aqui. Estabelece, antes, uma distinção entre frase/oração e enunciado. A oração, assim como a palavra, é unidade da língua, e enquanto unidade de língua é um recurso lingüístico virtual e não se refere a nenhuma realidade determinada; por ser virtual “não tem autor; não é de ninguém” e conseqüentemente, é um elemento neutro não comportando aspectos expressivos ou emotivo-valorativos. Em contraposição, o enunciado é a unidade real de comunicação que remete a uma situação concreta; é uma “expressão individualizada da instância locutora”, lugar em que o locutor manifesta sua subjetividade, sua atitude emotivo-valorativa em relação ao objeto de seu discurso e ao seu interlocutor. Segundo Bakhtin, o enunciado apresenta as seguintes características: a) A alternância dos sujeitos falantes que compõe o contexto do enunciado, transformando-o numa massa compacta rigorosamente circunscrita em relação aos outros enunciados vinculados a ele. b) O enunciado apresenta um acabamento específico através do qual se percebe “que o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e em condições precisas. E é também pelo acabamento que, ao ouvir ou ao ler um enunciado, sentimos claramente que ele se apresenta como finalizado, concluido. O mais importante dos critérios de acabamento do enunciado é “a possibilidade de responder – mais exatamente, de adotar uma atitude responsiva para com ele” que vai desde uma resposta a uma pergunta banal, a uma posição que se toma frente a uma exposição científica, a um romance. “É necessário o acabamento para tornar possível uma reação ao enunciado. Não basta que o enunciado seja inteligível no nível da língua [...] [ É ] a totalidade acabada do enunciado que proporciona a possibilidade de responder (de compreender de modo responsivo)” (Idem,p.299) c) Um dos fatores que determina o acabamento do enunciado e proporciona uma atitude responsiva é o querer-dizer do locutor. “Em qualquer enunciado, desde a réplica cotidiana monolexemática até as grandes obras complexas científicas ou literárias, captamos, compreendemos, sentimos o intuito discursivo ou o querer-dizer do locutor que determina o todo do enunciado: sua amplitude, suas fronteiras [...] e é em comparação a esse intuito discursivo, a esse querer- dizer que mediremos o acabamento do enunciado [...] O intuito, o elemento subjetivo do enunciado, entra em combinação com o objeto do sentido – objetivo - para formar uma unidade indissolúvel, que ele (o intuito discursivo) limita, vincula à situação concreta (única) da situação verbal, marcadas pelas Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 19 / 27 ] circunstâncias individuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções anteriores”. (Idem, p.300) d) Para concretizar esse querer-dizer, o locutor escolhe uma forma de comunicação adequada à esfera de atividade em que se encontra, isto é, um gênero do discurso. “O querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros etc. Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que. este renuncie à sua individualidade e à sua subjetividade, adapta-se e ajusta-se ao gênero escolhido, compõe-se e desenvolve-se na forma do gênero determinado. (Idem, p.301) e) Outra particularidade constitutiva do enunciado é a relação do enunciado com o próprio locutor e com os outros parceiros da comunicação verbal. “O enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal. Representa a instância ativa do locutor numa ou noutra esfera do objeto do sentido. Por isso, o enunciado se caracteriza acima de tudo pelo conteúdo preciso do objeto do sentido”. Numa primeira fase, a execução desse objeto do sentido vai determinar que o locutor faça a escolha do gênero do discurso apropriado à esfera de atividade em jogo, e a segunda fase, a escolha da composição e do estilo, corresponde à necessidade de expressividade do locutor ante o objeto de seu enunciado. A importância e a intensidade dessa fase expressiva variam de acordo com as esferas da comunicação verbal, mas existe em todo tipo de manifestação discursiva: um enunciado absolutamente neutro é impossível. (Idem, p.308). Para Bakhtin em que consiste essa expressividade e, conseqüentemente, a noção de estilo? 1) O princípio expressivo do discurso não é um fenômeno da língua enquanto sistema, somente o enunciado concreto comporta a expressividade e, portanto, a frase, a oração não. 2) A expressividade se marca pela relação emotivo-valorativa do locutor com o objeto do discurso e “a entonação expressiva ... é um dos recursos para expressar a relação emotivo-valorativa do locutor com o objeto do seu discurso”(Idem, p.309) Essa relação valorativa do locutor define o estilo individual. 3) A escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado é feita a partir das intenções que presidem ao todo do enunciado. É esse todo que determina a expressividade de cada uma das escolhas que se contamina, que fica afetada pela expressividade do todo, isto é, pelas especificidades do gênero: “Quando escolhemos uma palavra, durante o processo de elaboração de um enunciado, nem sempre a tiramos do sistema da língua, da neutralidade lexicográfica. Pelo contrário, costumamos tirá-la de outros enunciados e, acima de tudo, de enunciados que são aparentados ao nosso pelo gênero, isto é, pelo tema, composição e estilo: selecionamos as palavras segundo as especificidades de um gênero [...] No gênero a palavra comporta certa expressão típica. Os gêneros correspondem a circunstâncias e a temas típicos da comunicação verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contatos típicos entre as significações da palavra e a realidade concreta.”(Idem, p.311-12) 4) A expressividade não se limita à expressão emotivo-valorativa do locutor com seu objeto do sentido, porque o enunciado sendo um elo na cadeia da comunicação verbal, mantém uma relação dialógica com outros enunciados; a Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 20 / 27 ] expressividade de um enunciado se marca, portanto, por essa relação com outros enunciados. “Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são auto-suficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhe determinam o caráter. O enunciado está repleto de ecos, lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera [...]: refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles.”(Idem, p.316) “A expressividade de um enunciado é sempre, em menor ou maior grau, uma resposta, em outras palavras: manifesta não só sua própria relação com o objeto do enunciado, mas também a relação do locutor com os enunciados do outro. As formas de reações-respostas [...] se diferenciam nitidamente segundo as particularidades das esferas da atividade e da vida cotidiana do homem nas quais se efetua a comunicação verbal... As tonalidades dialógicas preenchem um enunciado e devemos levá-las em conta se quisermos compreender até o fim o estilo do enunciado.”(Idem, p.317) 5) Conseqüentemente, a noção de estilo em Bakhtin não engloba apenas a noção de expressividade enquanto manifestação da valoração do locutor frente seu objeto de discurso. O estilo compreende também as tonalidades dialógicas, ie, a relação do locutor com seu interlocutor: “A quem se dirige o enunciado? Como o locutor (ou o escritor) percebe e imagina seu destinatário? É disso que depende a composição, e sobretudo o estilo, do enunciado. Cada um dos gêneros do discurso, em cada uma das áreas da comunicação verbal, tem sua concepção padrão do destinatário que o determina como gênero”(Idem, p.320) 6) o estilo de um enunciado leva em conta o interlocutor e sua possibilidade de percepção/recepção, fato que determinará a escolha do gênero: “Enquanto falo, sempre levo em conta o fundo aperceptivo sobre o qual minha fala será recebida pelo destinatário: o grau de informação que ele tem da situação, seus conhecimentos especializados na área de determinada comunicação cultural, suas opiniões e convicções, seus preconceitos (de meu ponto de vista), suas simpatias e antipatias etc.; pois é isso que condicionará sua compreensão responsiva de meu enunciado. Esses fatores determinarão a escolha do gênero do enunciado, a escolha dos procedimentos composicionais e, por fim, a escolha dos recursos lingüísticos, ou seja, o estilo do meu enunciado.”(Idem, p.320-21) Bakhtin tece sua crítica à estilística tradicional por não perceber esta o papel determinante do interlocutor no processo da interação verbal, “vê-se como o estilo depende do modo como o locutor percebe e compreende seu destinatário, e do modo como ele presume uma compreensão responsiva ativa. [Essa constatação revela] com muita clareza a estreiteza e os erros da estilística tradicional que tenta compreender e definir o estilo baseando-se unicamente no conteúdo do discurso (no nível do objeto do sentido) e na relação expressiva do locutor com esse conteúdo. Quando se subestima a relação do locutor com o outro e com seus enunciados (existentes ou presumidos), não se pode compreender nem o gênero nem o estilo de um discurso.”(Idem, p.324) continuando ainda com suas palavras: “Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver enunciado. As diversas formas típicas de dirigir-se a alguém e as diversas concepções típicas do destinatário são particularidades constitutivas que determinam a diversidade dos gêneros do discurso. Diferentemente dos enunciados e dos gêneros do discurso, as unidades significantes da língua (a palavra e a oração), por sua natureza, não podem ter um destinatário: elas não pertencem a ninguém assim como não se dirigem a ninguém. Melhor ainda: como tais, carecem de qualquer relação com o enunciado do outro.”(Idem, p.325) Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 21 / 27 ] 7) O estilo é individual e coletivo ao mesmo tempo. É coletivo porque falamos sempre dentro de um gênero e o gênero se caracteriza pela sua tipicidade, por determinados elementos de base que se caracterizam pela permanência. Mas, ao mesmo tempo, os gêneros se concretizam em enunciados que, como unidades reais de comunicação, são assumidos por falantes, por indivíduos marcados por sua singularidade: “As palavras da língua não são de ninguém, porém, ao mesmo tempo, só as ouvimos em forma de enunciados individuais, só as lemos em obras individuais, e elas possuem uma expressividade que deixou de ser apenas típica e tornou-se também individualizada (segundo o gênero a que pertence) em função do contexto individual, irreproduzível, do enunciado”(Idem, p.312) Dessa forma, tendo o dialogismo como princípio básico a reger toda a linguagem, o conceito de estilo delineado por Bakhtin para ser coerente com esse princípio não poderia deixar de lado a questão da alteridade compreendida tanto em relação ao outro-interlocutor quanto aos outros enunciados a que todo enunciado remete. Para concluir esta parte, cito suas palavras finais no artigo sobre gêneros: “É sob uma maior ou menor influência do destinatário e da sua presumida resposta que o locutor seleciona todos os recursos lingüísticos de que necessita. Quando se analisa uma oração isolada, tirada de seu contexto, encobrem-se os indícios que revelariam seu caráter de dirigir-se a alguém, a influência da resposta pressuposta, a ressonância dialógica que remete aos enunciados anteriores do outro, as marcas atenuadas da alternância dos sujeitos falantes que sulcaram o enunciado por dentro [...] Esses fenômenos se relacionam com o todo do enunciado e deixam de existir desde que esse todo é perdido de vista [...] Uma análise estilística que queira englobar todos os aspectos do estilo deve obrigatoriamente analisar o todo do enunciado e, obrigatoriamente, analisá-lo dentro da cadeia da comunicação verbal de que o enunciado é apenas um elo inalienável. (Idem, p.326) Antes de passar para o próximo item, um parênteses: o no. 135 da revista Langue Française, setembro de 2002, dedicado à estilística, apresenta um artigo (“La stylistique des genres”) de Dominique Combe que, seguindo a vertente bakhtiniana, faz referência a uma estilística dos gêneros. Tendo como foco o texto literário, o autor assim posiciona a estilística dos gêneros: “A tradição crítica francesa é tributária desde Pierre Guiraud da oposição um pouco maniqueísta entre uma estilística da língua proposta por Bally e uma estilística individual do autor, desenvolvida por seus herdeiros infiéis Cressot, Marouzeau e Spitzer [...] A estilística dos gêneros, na direção de uma ‘translingüística’ bakhtiniana, seria por excelência a disciplina em que convergiria a análise (socio)lingüística e a estética, assegurando uma mediação entre a estilística da língua de Bally e a estilística individual dos autores.” (p.43) “Essa mediação confere à estilística do gênero um estatuto ambivalente “partilhada que é entre a lingúística do discurso, a sociolingüística e a análise literária de obras fortemente individualizadas. Mas é ela que permite compreender o liame profundo entre as obras literárias e o discurso ordinário, dos quais elas procedem [...] Enquanto mediação entre o fenômeno coletivo, social da ‘fala’ ( no sentido saussuriano) e a idiossincrasia do estilo do autor, o gênero aparece com um processo de duplo sentido - de individualização do discurso socializado, ‘estandartizado’ e, reciprocamente, de generalização do estilo individual de cada autor.”(p.45) 3. Gêneros do discurso e ensino de línguas Das reflexões de Bakhtin sobre os gêneros do discurso, três aspectos devem ser destacados: Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 22 / 27 ] a) Embora cada gênero tenha suas características específicas, um gênero não é, necessariamente, uma “fôrma” que se impõe ao falante/escritor. Enquanto conjunto de traços marcados pela regularidade, pela repetibilidade, o gênero é relativamente "estável", mas essa estabilidade é constantemente ameaçada por forças que atuam sobre as restrições genéricas, forças de caráter social, cultural e individual (estilísticas) que determinam ou mudanças num gênero, ou seu apagamento, ou sua revivescência. Essa tensão entre estabilidade x variabilidade se faz marcar de maneira específica nos diferentes gêneros. Por ex., • as cartas comerciais, requerimentos, lista telefônica, textos cartoriais e administrativos são fórmulas e esquemas composicionais pré-estabelecidos sobre os quais há forte controle sendo, portanto, pouco ou nada sujeitos a variações estilísticas; • um jornal televisionado, uma reportagem, um guia de viagem, seguem também esquemas pré-estabelecidos, mas toleram variações, permitindo recurso a estratégias mais originais, a inflexões mais particulares. Um guia de viagem, por ex., pode desviar-se das rotinas do gênero e apresentar-se por meio de uma narrativa de aventuras, ou um diálogo entre amigos; • certos tipos de anúncios publicitários, letras de música, textos literários constituem gêneros que incitam à inovação, provocam rupturas em relação ao esperado, revelando-se inusitados em relação ao gênero original. b) Dentre as forças que atuam como elemento desestabilizador está a necessidade de expressividade do locutor frente ao objeto de seu discurso e de seu interlocutor. Necessidade que se faz determinada não só por um querer-dizer do locutor mas também, pelas injunções do princípio da dialogicidade inerente à linguagem, pela questão da alteridade. De acordo com a esfera de atividade, o objeto do discurso, o alocutário envolvido, o locutor escolhe o gênero adequado, a forma de abordar o objeto, os recursos lingüísticos, imprimindo sua tonalidade apreciativa. E é nesse espaço que ele pode também fazer emergir sua individualidade, seu estilo próprio, tornando sua a palavra alheia. c) Além disso, outro aspecto a se considerar é o fato de haver toda uma dimensão dialogal intra-genérica e inter-genérica que um gênero estabelece com outro no espaço do texto. A dimensão dialogal intra-genérica seria o diálogo intertextual que se estabelece entre diferentes manifestações textuais pertencentes a um mesmo gênero (por ex., os poemas derivados do poema fundador “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias). Por dimensão dialogal inter-genérica entendo que, na prática, em geral, os discursos/textos não se caracterizam por uma pureza, homogeneidade, podendo apresentar diferentes modos de combinação/intersecção de diferentes gêneros discursivos. É comum vermos textos publicitários que incluem na sua composição outros gêneros como a carta, o poema, a receita etc. Na prática, portanto, os gêneros são marcados pela heterogeneidade e pela interdiscursividade, ecos de outros discursos. Roulet (1991) critica uma didática que tende a privilegiar o trabalho apenas sobre gêneros de discurso homogêneos e deixa de lado uma abordagem mais orientada para aquela que leva em conta a heterogeneidade discursiva. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 23 / 27 ] Que implicações didáticas um conceito de gênero concebido dessa forma tem? Se em quaisquer circunstâncias vividas pelo homem desde as mais simples, mais cotidianas até às mais complexas, o uso da linguagem visa sempre à interlocução, ao preenchimento de uma necessidade comunicativa, e diante do fato de que a comunicação verbal supõe a existência de gêneros do discurso, como deve orientar-se a prática pedagógica no ensino de línguas? Do ponto de vista didático, a noção de gênero do discurso constitui ferramenta importante no processo ensino/aprendizagem. Partindo da hipótese de que o gênero é um instrumento para agir em situações de linguagem, Dolz e Schneuwly (“Gêneros e progressão em expressão oral e escrita”) afirmam que “o trabalho escolar [...] faz-se sobre os gêneros, quer se queira ou não. Eles constituem o instrumento de mediação de toda estratégia de ensino e o material de trabalho, necessário e inesgotável, para o ensino da textualidade. A análise de suas características fornece uma primeira base de modelização instrumental para organizar as atividades de ensino que estes objetos de aprendizagem requerem.” Aproximando essa visão instrumental do gênero à concepção de gênero de Bakhtin, o lingüista suiço Schneuwly(1993) reflete sobre como se dá a articulação do gênero a uma situação concreta e como se dá o processo de transformação profunda no desenvolvimento da linguagem com a entrada da criança na escola e que vai se estender por toda a escolaridade. Resumidamente o que ele diz é o seguinte: a) “os gêneros primários nascem na troca verbal espontânea. Estão fortemente ligados à experiência pessoal da criança. Eles se aplicam a uma situação, à qual estão ligados de maneira quase indissociável, por assim dizer automática, sem real possibilidade de escolha [...] é uma relação inconsciente e involuntária” b) “os gêneros secundários não são espontâneos. Seu desenvolvimento, sua apropriação implica um outro tipo de intervenção nos processos de desenvolvimento, diferente do necessário para o desenvolvimento dos gêneros primários” Eles introduzem uma ruptura importante na medida em que não estão mais ligados de maneira imediata a uma situação de comunicação; “sua forma é freqüentemente uma construção complexa de vários gêneros cotidianos [...] tratados como sendo relativamente independentes do contexto imediato”. Em decorrência disso sua apropriação não pode se fazer diretamente partindo de situações de comunicação concretas e precisas. Os gêneros secundários não resultam “direta e necessariamente da esfera de motivações já dadas do aprendiz, da esfera de suas experiências pessoais, mas de um mundo outro que tem motivações mais complexas”. c) “A aparição de um novo sistema – o dos gêneros secundários, no caso - não faz tábula rasa do que já existe. O novo sistema não anula o precedente, nem o substitui [...] mesmo sendo diferente, o novo sistema apóia-se sobre o antigo em sua elaboração, mas assim fazendo, transforma-o profundamente.” d) Dessa forma, os gêneros primários são os instrumentos de criação dos gêneros secundários numa passagem que se dá num processo, ao mesmo tempo, de continuidade e ruptura. Continuidade porque a passagem para um novo sistema pressupõe toda a experiência vivida na apreensão do sistema anterior e ruptura porque as condições de produção dos gêneros de um e de outro sistema são Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 24 / 27 ] diferentes: os gêneros primários se desenvolvem no ambiente natural das relações quotidianas e estão diretamente ligados à situação de enunciação, e os gêneros secundários são autônomos em relação à situação imediata de enunciação e, por isso, são, em geral, adquiridos em ambiente formal, a escola. A escola é, portanto, o lugar institucional em que se opera a passagem de um sistema para outro. Na operacionalização dessa passagem, o trabalho com a noção de gênero é uma ferramenta didática interessante na medida em que os aprendizes já carregam um conhecimento sobre os gêneros, incorporado “ao menos como representação difusa ou confusa, às vezes, antes mesmo de sua entrada na escola”. Ao longo do processo de escolarização, um trabalho que aproveite a relativa proximidade com os gêneros vivenciados no quotidiano e a metalinguagem espontânea que se vai adquirindo nas experiências de leitura e produção escrita pode mostrar-se bastante produtivo enquanto estratégia didática. O gênero e as atividades de leitura e produção escrita A noção de gênero se mostra também duplamente interessante para entender a dimensão interativa entre leitura e escritura. Assim, por um lado, a escritura implica a leitura na medida em que o ato de escrever um texto “leva a uma metaleitura reflexiva que visa a comparar o estado do texto escrito com a representação do gênero visado e a avaliar sua conformidade ou desvio (e, eventualmente, a reescrever tudo ou parte do texto) em relação a critérios que foram construídos na leitura”. Por outro lado, a leitura implica a escritura na medida em que “o gênero exerce uma função de reservatório de possíveis do qual o escritor pode retirar esquemas, fórmulas, estereótipos que ele integrará em sua própria produção, acarretando a ativação da memória de leituras antigas”, já realizadas (Canvat, 1993). A leitura coloca em ação modelos estruturais e temáticos relativamente fixos (fábulas, histórias policiais, crônicas de viagens, cordel, poema épico, etc) que funcionam como clichês. Isso vai permitir ao leitor fazer com que, a partir das leituras antigas, os modelos integrados e classificados (por impregnação, comparação e estruturação) sejam reinvestidos nas leituras novas, facilitando o processo de compreensão. Assim, estando a leitura fundada sobre processos de antecipação e de inferência, a noção de gênero é um instrumento heurístico que vai permitir ao leitor a construção de critérios de identificação e de reconhecimento de uma obra dentre a diversidade de textos com que teve contato. Uma espécie de pacto liga o texto e o leitor, pois desde que se começa a ler, formulam-se hipóteses relativas ao gênero, que se confirmam ou não à medida que se avança na leitura da obra, estabelecendo as afinidades que ela entretém com outras que utilizam a linguagem da mesma forma. Assim, “o (re)conhecimento das características genéricas favorece uma leitura prospectiva, que requer do aprendiz uma participação ativa na elaboração das hipóteses de leitura”. Além disso, “todo ato de leitura não é possível senão a partir de um certo enquadramento genérico fundado sobre a balizagem de índices que abrem o horizonte de leitura do texto. Este enquadramento dá uma sensação do já-lido, que facilita a leitura e a compreensão dos textos, e que permite reduzir a não legibilidade daqueles que, por sua atipicidade transgridem as leis do gênero” (Canvat, 1993). Em relação à escritura, pode-se afirmar que Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 25 / 27 ] “não há prática escritural que não se situe em função de um sistema genérico preexistente, quer seja para o respeitar quer seja para o transgredir. Mais precisamente, a dimensão relativamente normativo-prescritiva do gênero faz dele uma unidade de estruturação, de organização e de composição que facilita, de forma global ou parcial, o ato de escrever”. (Canvat, 1993) Do ponto de vista didático, a noção de gênero oferece um quadro operatório para o estudo e as práticas de transformação (mudar o final de uma narrativa, mudar o ponto de vista...) e de transposição de textos (por ex, notícias em contos, crônicas ou viceversa,...), construção interdiscursiva de paródias, estilizações, pastiches a partir de textos outros. Cabe à escola cuidar para que os educandos ampliem ao longo dos anos de escolaridade seu contato e sua capacidade de manejar o mais possível a gama heterogênea dos gêneros do discurso (orais e escritos). Como afirma Bakhtin: “É de acordo com nosso domínio dos gêneros que usamos com desembaraço, que descobrimos mais depressa e melhor nossa individualidade neles [...] que refletimos, com maior agilidade, a situação irreproduzível da comunicação verbal, que realizamos, com o máximo de perfeição, o intuito discursivo que livremente concebemos. Portanto, o locutor recebe, além das formas prescritivas da língua comum ( os componentes e as estruturas gramaticais), as formas não menos prescritivas do enunciado, ou seja, os gêneros do discurso, que são tão indispensáveis quanto as formas da língua para um entendimento recíproco entre locutores. Os gêneros do discurso são, em comparação com as formas da língua, muito mais fáceis de combinar, mais ágeis, porém, para o indivíduo falante, não deixam de ter um valor normativo: eles lhe são dados, não é ele que os cria. É por isso que o enunciado, em sua singularidade, apesar de sua individualidade e de sua criatividade, não pode ser considerado como uma combinação absolutamente livre das formas da língua” (304) Assim, proporcionando ao educando todas as possibilidades para que ele se aproprie dos diferentes gêneros do discurso que circulam socialmente e saiba mover-se no espaço intervalar, entre o sistemático e o não-sistemático, entre o canônico e o nãocanônico, entre o novo e o dado que caracteriza a dinâmica do gênero e que é próprio do plano discursivo, o exercício da linguagem será o lugar da sua constituição como sujeito quer como leitor crítico quer como produtor de textos. 4. Bibliografia BAKHTIN, M. (l992) “Gêneros do discurso”. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. CANVAT, K.(1993). “La notion de genre à l’articulation de la lecture et de le’écriture”. In: Les interactions lecture-écriture. Actes du colloque Théodile-Crel réunis et présentés par Yves Reuter. Lille/Peter Lang. COMBE, D.(2002) “La stylistique des genres” In: Langue Française, 135, setembro 2002. Paris:Larousse. COSTE, D. 1991. "Genres de textes et modes discursifs dans l'enseignement/apprentissage des langues". In Études de linguistique appliquée. Didactologie des langues-cultures. Didier erudition. Julho-setembro l99l. DOLZ, J. & SCHNEUWLY, B. "Gêneros e progressão em expressão oral e escrita". (Trad. Roxane H. R. Rojo). Mimeografado. MAINGUENEAU, D. (s/d) “Diversité des genres des discours” (Digitado) MATTOSO CÂMARA JR, J. (1953) Contribuição à Estilística Portuguesa.3a. edição revista. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico. 1978. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 26 / 27 ] ---------(1972) Dispersos de J. Mattoso Câmara JR. Seleção e introdução por Carlos E. Falcão Uchôa. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. ROULET, E. (1991) Une approche discoursive de l’hétérogénéité du discours em Études de Linguistique appliquée (E.L.A.), 83. SCHNEUWLY, B.(1993) “Genres et types de discours: considérations psychologiques et ontogénétiques”. In: Les interactions lecture-écriture. Actes du colloque Théodile-Crel réunis et présentés par Yves Reuter. Lille/Peter Lang. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 14-27, 2005. [ 27 / 27 ]