Flávia Marques Rosário COMPORTAMENTO DESVIANTE E PADRÕES ESTÉTICOS: um estudo exploratório com mulheres que não pintam o cabelo Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Administração, Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Administração Orientadora: Letícia Moreira Casotti, D.Sc. Rio de Janeiro Março de 2006 i A minha família e grande amigos iii AGRADECIMENTOS À professora Letícia pela confiança e valiosa orientação. À ajuda e aos conselhos inestimáveis de Maribel Suarez e Roberta Campos Aos professores do Coppead, mestres que, para além da competência e conhecimento, transmitem valores humanos essenciais. Aos funcionários do Coppead, pela presteza e bom-humor, diários, um obrigado especial a Cida, Simone, Lucianita, André, Verinha e Sidney. À toda a Turma 2004, que fez o meu dia-a-dia no COPPEAD ainda melhor. Em especial, agradeço aos grandes amigos que fiz aqui dentro, pessoas admiráveis e inesquecíveis: Fernando Saliba, Juliana Yonamine, Luciana Toldo, Gabriela Goulard, Cláudia Woods, Carolina Nobili, Dinia Monge, Isabella Amui, Carlos Roberto Reis, Eduardo Rodrigues, Gustavo Klein, Felipe Rizzo, Jean Caris. Às amigas de anos, Rachel Ribeiro e Danielle Muniz À Janete, José, Gabriel, Lady, Lourdes, Américo, Nathália, Lethícia, Nádia, Fática e Ademário - minha estimada família, sempre me proporcionando os melhores momentos que alguém pode viver: iv RESUMO ROSÁRIO, Flávia Marques. Comportamento desviante e padrões estéticos: um estudo exploratório com mulheres que não pintam o cabelo. Orientadora: Letícia Moreira Casotti. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2004. Dissertação. (Mestrado em Administração). Este estudo de natureza exploratória busca entender como pensam mulheres entre 25 e 55 anos que, na contramão de um padrão estético cada vez mais freqüente entre as mulheres brasileiras, optam por manterem seus cabelos brancos. O interesse foi identificar como elas percebem e reagem à pressão social; que imagens constroem sobre si e sua aparência; qual o impacto de sua história pessoal e que valores motivam essa escolha. A pesquisa qualitativa parece mostrar que o senso estético não desaparece quando se adota uma estética possivelmente desviante. Muito menos a busca por uma aparência física bela e em equilíbrio. Além disso, a simbologia dos fios brancos para as mulheres entrevistadas neste estudo está para além da passagem cronológica do tempo. Valores como “autenticidade”, “reconhecimento social” e “liberdade” ajudam a explicar a decisão e a colocar essas mulheres e seus cabelos grisalhos numa esfera mais ampla que a do senso comum. v ABSTRACT ROSÁRIO, Flávia Marques. Comportamento desviante e padrões estéticos: um estudo exploratório com mulheres que não pintam o cabelo. Orientadora: Letícia Moreira Casotti. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2004. Dissertação. (Mestrado em Administração). This exploratory study aims to understand how women between 25 and 55 years-old that keep their white hair think. They are in the opposite direction of an aesthetic standard – tying the white hair – that has become more and more frequent among Brazilian women. The purpose was to identify how these women perceive and react against social pressure; which images upon themselves and their appearance they have developed; what are the impacts of their personal history and which values motivate that choice. The qualitative research seems to show that neither the aesthetic sense nor the search for a beautiful physical appearance disappear. Moreover, the symbology of white hair for the women in this study is beyond the chronological sense of time. Values such as "authenticity", "social recognition" and "freedom" help to explain the decision and to place these women and their hairs in a sphere wider than the one of the common sense. vi LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Hierarquia de Aprendizagem Padrão................................................09 Figura 2 - Hierarquia Experiencial ou Emocional............................................. 10 Figura 3 - Hierarquia de Baixo Envolvimento................................................... 10 Figura 4 - Hierarquia das Necessidades Humanas de Maslow........................ 12 Figura 5 – Mapa Laddering para a análise da atitude de não pintar o cabelo.. 95 vii “Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos preencher, e nós o preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida pela nossa cultura” (Clifford Geertz) viii 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................10 1.1 ORGANIZAÇÃO DO ESTUDO ........................................................................................................................ 13 2. REVISÃO DA LITERATURA ...........................................................................................................15 2.1 ATITUDES, MOTIVAÇÕES E VALORES NO COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR ........................................... 15 2.1.1 Atitudes ............................................................................................................................................. 15 2.1.2 Motivação ......................................................................................................................................... 18 2.1.3 Valores .............................................................................................................................................. 21 2.2 CONCEITO DE BELEZA ............................................................................................................................... 23 2.2.1 A Beleza e o Corpo ........................................................................................................................... 25 2.2.2 A Beleza e as Mulheres ..................................................................................................................... 29 2.3.3 O Mito de Beleza............................................................................................................................... 32 2.3.4 A Beleza e o Cabelo: a etnografia de Bouzón (2004) ....................................................................... 35 2.3 O COMPORTAMENTO DESVIANTE DO CONSUMIDOR.................................................................................... 39 2.4 A BELEZA E O COMPORTAMENTO DESVIANTE DO CONSUMIDOR: O ESTUDO DE HOLBROOK ET AL. (1996)42 3. METODOLOGIA ..............................................................................................................................47 3.1 PARADIGMA E TIPO DE PESQUISA ADOTADOS ............................................................................................. 47 3.2 PERGUNTAS DE PESQUISA .......................................................................................................................... 49 3.3 FASES DA PESQUISA ................................................................................................................................... 50 3.4 LIMITAÇÕES DO MÉTODO ........................................................................................................................... 65 4. DISCUSSÃO DE RESULTADOS ....................................................................................................67 4.1A PERCEPÇÃO DE VAIDADE ......................................................................................................................... 67 4.2 CUIDADOS COM OS CABELOS: PRODUTOS E SERVIÇOS ................................................................................ 69 4.3 OS CABELOS GRISALHOS: REAÇÕES E QUESTIONAMENTOS ......................................................................... 73 4.3.1 Reações aos cabelos grisalhos.......................................................................................................... 74 4.3.2 Questionamentos pessoais ................................................................................................................ 82 4.3.4. A percepção sobre a mulher que pinta ............................................................................................ 84 4.3 O COMPORTAMENTO DESVIANTE NAS ENTREVISTADAS ............................................................................. 87 4.3.1 Práticas desviantes em outras experiências e no cotidiano.............................................................. 87 4.3.2 Consumo desviante em relação aos cabelos ..................................................................................... 89 4.3.3 Percepção sobre si mesma: Será que os cabelos brancos a colocam em desvio com os padrões? .. 91 4.4 CONSEQÜÊNCIAS E VALORES DA DECISÃO DE NÃO PINTAR OS CABELOS (RESULTADOS DA APLICAÇÃO DA METODOLOGIA LADDERING) ........................................................................................................................... 97 4.4.1 Conseqüências .................................................................................................................................. 99 4.4.1.1 Ser natural ..................................................................................................................................... 99 4.4.1.2 Manter a saúde dos fios ............................................................................................................... 103 4.4.1.3 Ser independente.......................................................................................................................... 103 4.4.2 Valores ............................................................................................................................................ 106 4.4.2.1 Autenticidade ............................................................................................................................... 106 4.4.2.2 Busca de Equilíbrio Interior ........................................................................................................ 108 4.4.2.3 Reconhecimento Social ................................................................................................................ 109 4.4.2.4 Liberdade e Aversão ao Risco ..................................................................................................... 111 5. CONCLUSÃO E SUGESTÕES DE ESTUDOS FUTUROS ..........................................................112 BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................................117 ANEXO 1 - ROTEIRO DE ENTREVISTA ..........................................................................................123 ANEXO 2............................................................................................................................................125 9 1. INTRODUÇÃO Seria verdade que 40% da beleza de uma mulher está em seus cabelos? Esse é apenas um dizer popular, mas o consumo de produtos para os cabelos entre as mulheres brasileiras faz com que esse sub-setor seja o maior no mercado de cosméticos e higiene pessoal. Depois dos condicionadores, são as tinturas de cabelo a categoria de produtos que mais cresce em termos de número e valor de vendas no Brasil (EUROMONITOR, 2005), pois 56% das mulheres brasileiras pintam os cabelos (CLÉBICAR, 2005). O crescimento das vendas de tinturas de cabelo parece ocorrer devido à popularização do produto entre mulheres mais jovens, interessadas menos em esconder os sinais de idade – os cabelos brancos – e mais em ter um visual fashion (EUROMONITOR, 2005). Profissionais ligados à indústria de tinturas afirmam que se a mulher começa a tingir seus cabelos, a chance dela continuar é muito grande. O consumo, que antes era quase restrito a mulheres de 35 anos ou mais, já atinge hoje mulheres de 14 a 29 anos (ABIHPEC, 2004). Desta forma, a popularização do uso de coloração de cabelo faz com que se encontre cada vez mais mulheres com cabelos pintados. E que se torne mais “estranho”, por exemplo, a existência de mulheres ainda jovens que não pintem os cabelos brancos. Esse estudo tem como objetivo entender as motivações e os valores da decisão de algumas dessas mulheres. Optou-se por entrevistar apenas mulheres já que parece existir a percepção de que “Os homens nasceram com o dom de ficarem mais atraentes à medida que os cabelos vão ficando brancos” (MEDEIROS, 2005). Se no campo profissional, as mulheres se aproximam cada vez mais dos homens, na forma de lidar com os sinais do envelhecimento uma diferença permanece: dentro dos padrões estéticos sociais, existe maior aceitação de homens de cabelos brancos. O que é ilustrado nos depoimentos abaixo: 10 “Entre tantas fatias do mundo masculino que a mulher passou a saborear, talvez a mais rejeitada seja justamente esta: a convivência pacífica com a própria imagem, os cabelos brancos, as rugas de expressão e de idade” (BIONDO, 1999, p.22). “Todo mundo comenta que meu marido está ficando lindo com os cabelos grisalhos. Com as mulheres não é assim. Somos obrigadas a estar às voltas com reflexos, hennas e tinturas” (depoimento de Vera Fajardo em LEAL e PROTASIO, 2004). O cabelo branco nas mulheres, em relatos extraídos da mídia, pode ser associado como algo indesejado, aquilo que revela o envelhecimento e, por isso, precisa ser escondido. Não é difícil achar, nas ruas, homens jovens com cabelos brancos. Já mulheres... Ao se considerar que a quantidade de salões de beleza é maior que a de barbearias e que a maioria dos cosméticos e produtos para o cabelo são para as mulheres, pode-se supor que são elas o gênero mais preocupado com os cabelos, com o rejuvenescimento e a beleza. Será essa uma das razões que fazem com que o impacto dos cabelos brancos seja tão maior entre as mulheres que entre os homens? Essa “obrigação” – que poderia ser classificada quase como uma exigência social sugere dificuldade na decisão de assumir ou não os cabelos grisalhos. Para se ter os cabelos brancos, é preciso encarar questionamentos e julgamentos com mais freqüência que elogios. “Mas quando você vai pintar o seu cabelo?” ou “você não pensa em pintar os cabelos?” são mais ouvidas do que “seu cabelo está lindo desse jeito”. (BOUZÓN, 2004) Assim como o vestuário, o cabelo segue tendências – seja de estilos de corte, tratamentos ou cores. É possível mostrar muito sobre si mesmo através deles. Existem formas de se expressar visualmente através das cores e dos penteados. Pode-se comunicar desleixo, vaidade, beleza, seriedade, rebeldia, etc. Tudo 11 depende de como os cabelos são usados. (THE ECONOMIST, 2003; O GLOBO, 2004; GAZETA MERCANTIL, 2004). Os cabelos já foram vistos, por exemplo, como características dos representantes de movimentos de contestação social - os punks são conhecidos pelo penteado no estilo moicano; os rastafaris pelos dreadlocks e os hippies pelos cabelos compridos. O que é hoje visto como proibido e desvalorizado pode, inclusive, se tornar desejado e estimulado no futuro (BOUZÓN, 2004). Por serem uma das partes do corpo mais expostas, os cabelos possuem visibilidade privilegiada, o que faz com que se destaquem visualmente no conjunto do corpo e passem a identificar uma pessoa dentro do meio social do qual ela faz parte. Para algumas pessoas, o cabelo é a fonte primordial de beleza, o que pode gerar um comportamento exagerado de cuidados e preocupações (BOUZÓN, 2004). Cabelos mudam ao longo da vida de uma pessoa e as mudanças podem ser provocadas de forma voluntária ou não. Ainda que se possa intervir nos cabelos, mudando suas cores, texturas e jeitos de usar, em alguns momentos as mudanças vêm do interior do corpo humano – é o caso em que hormônios podem influenciar no aspecto do cabelo e em que o envelhecimento pode provocar a perda de cor dos fios. No entanto, existem mulheres que optam por não pintarem o cabelo, mantendo-os brancos, num movimento contrário ao da maioria. Fazendo isso, elas manipulam diferentemente seu corpo e os cosméticos à disposição, gerando mensagens possivelmente diversas. A escolha deliberada constitui-se, portanto, como atitude oposta ao que parece ser o padrão de cuidado da brasileira com o envelhecimento refletido no cabelo. Uma espécie de “grupo de resistência” que, ao subverter regras e padrões talvez esteja buscando se comunicar diferentemente, recriando padrões de inserção social. É este comportamento, aparentemente desviante, que é objeto do presente estudo. 12 Este estudo exploratório busca, portanto, contribuir para o entendimento de um grupo ou uma cultura minoritária (Beck, 2003). Para Beck (2003), as culturas minoritárias estão em crescimento constante em oposição à visão globalizante de que “vamos todos virar Big Macs” devido às rotas em que se oferecem os produtos homogeneizadores do mundo. Para o autor, ao lado da homogeneização, tem surgido também a multiplicação da diferença justamente a partir das culturas minoritárias. Como encontrar essas diferenças? Os cabelos grisalhos são uma atitude contestatória em relação aos padrões estéticos que predominam ou mais uma busca por diferenciação? Como essas mulheres sentem, percebem e reagem à pressão social relativa aos cuidados padrões para com os cabelos grisalhos no Brasil? Que imagens constroem sobre si e sua aparência? Que valores motivam essa decisão? Qual o impacto de sua história pessoal nessa escolha? E, por fim, qual a intenção por trás dessa atitude em termos de comunicação com o meio em que se encontram? 1.1 Organização do estudo O estudo traz a revisão bibliográfica de temas que colaboraram na definição do roteiro da entrevista e na análise dos resultados. A revisão de literatura começa com a exposição das teorias a respeito de atitudes, motivações e valores dos consumidores. Em seguida, o termo beleza e sua complexidade são apresentadas, com ênfase na associação entre ele e a idéia de corpo e entre ele e a mulher. As colaborações de uma etnografia, feita num salão de cabeleireiro, são escritas ao final do tópico beleza. No terceiro sub-item do capítulo, explora-se o comportamento desviante do consumidor. Por fim, relacionam-se os conceitos de beleza às teorias de comportamento desviante através da tipologia de Holbrook et al (1996). O terceiro capítulo apresenta a metodologia da pesquisa de campo, empregada para descobrir as motivações e os valores envolvidos na decisão de não tingir os 13 cabelos brancos. São apresentadas as técnicas adotadas e é descrito o procedimento de coleta, aspectos do campo, perfil das entrevistadas e análise de dados. O quarto capítulo traz os resultados do trabalho de campo, bem como a análise do discurso das entrevistas em profundidade, organizados nos seguintes assuntos: os cuidados com os cabelos, as significações e as reações aos cabelos grisalhos, o comportamento desviante identificado nas entrevistadas e as conseqüências e valores da atitude de não pintá-los. As considerações finais refletem sobre os principais achados deste estudo e sugerem campos para futuros estudos. Elas se encontram no quinto capítulo. 14 2. REVISÃO DA LITERATURA Este capítulo apresenta a revisão da literatura relacionada aos temas atitude, motivação e valores no comportamento do consumidor; o conceito de beleza: as mulheres e os cabelos; e o comportamento desviante no âmbito do consumo. Num primeiro momento, para que mais à frente possam ser investigadas e entendidas as conseqüências e valores da atitude de manter os cabelos grisalhos, é feita uma apresentação em linhas gerais das teorias de motivação, atitudes e valores dos consumidores. Em seguida, já que o estudo se propõe a analisar a contracultura estética, o termo “beleza” aparece, através de teorizações antigas e modernas. São expostas as discussões sobre o impacto da “beleza” nas mulheres e as práticas e representações da etnografia de Bouzón com freqüentadoras de salão de beleza. Os últimos sub-itens do capítulo apresentam a idéia de comportamento desviante no consumo e expõe a tipologia de Holbrook et al. que discorre sobre como o comportamento desviante é manifestado na aparência de grupos sociais. 2.1 Atitudes, motivações e valores no comportamento do consumidor O estudo das atitudes dos consumidores está diretamente relacionado às suas motivações e valores. Entender motivações e conhecer valores de um indivíduo é entender por que ele tem uma dada atitude. Para estudar o comportamento de mulheres que optam por manterem seus cabelos brancos, não utilizando tintura, parece necessário conhecer mais sobre as teorias de atitude, motivações e valores presentes nos estudos de comportamento do consumidor. 2.1.1 Atitudes Sheth et al.. (2001) apresentam a definição de atitude, que caracterizam como clássica, do psicólogo Gordon Allport: “Atitudes são predisposições aprendidas a 15 responder a um objeto ou a uma classe de objetos de forma consistentemente favorável ou desfavorável” (SHETH ET AL.., p.367). Os autores continuam, dizendo que atitudes são avaliações e opiniões sobre pessoas, lugares, objetos, instituições, em termos de qualidade e desejabilidade. Solomon (2002) apresenta a Teoria Funcional das Atitudes, de Daniel Katz, psicólogo, formulada em 1960 para explicar como as atitudes facilitam o comportamento social. Segundo essa teoria, as atitudes existem porque desempenham alguma função para o indivíduo e, por isso, são determinadas por seus motivos. O autor propõe quatro funções de atitudes: utilitária, expressiva de valor, defensiva do ego e de conhecimento. Uma atitude pode ser caracterizada por mais de uma função, mas normalmente uma delas predomina. De acordo com a função utilitária, uma pessoa desenvolve uma atitude em relação a um objeto baseada na dor ou no prazer que esse objeto pode lhe proporcionar. Essa função tem a ver com benefícios objetivos que uma pessoa pode perceber ou extrair desse objeto. Já a função expressiva de valor diz respeito às atitudes que exprimem as atividades, interesses e opiniões do indivíduo e não os benefícios objetivos de um produto. A função defensiva do ego caracteriza atitudes de auto-proteção das pessoas, enquanto a função do conhecimento está presente em atitudes de indivíduos que buscam informação e estruturação para dúvidas e ambigüidades. Solomon (2002) afirma que grande parte dos pesquisadores concorda que a atitude tem três dimensões: afeto, comportamento e cognição. O livro de Sheth et al.. utiliza os termos sentimento, ação e conhecimento, respectivamente. A primeira dimensão é a forma como a pessoa se sente em relação a um objeto da atitude; a segunda, são as intenções de ação da pessoa a respeito do objeto e; a terceira, as crenças de um indivíduo sobre esse objeto. As três formam o Modelo ABC de Atitudes. Sheth et al.. vão além em relação a Solomon e discorrem sobre a cognição, mencionando que existem três tipo de crença. As descritivas, que 16 caracterizam um objeto pela sua qualidade ou resultado (ex. “Esse creme é muito perfumado”); as avaliativas, que o caracterizam por apreciações, preferências e percepções (ex.: “É fácil utilizar essa tintura em casa”) e; as normativas, que associam o objeto a um juízo de valor ético ou moral (ex.: “As empresas de cosmético não deveriam fazer testes em animais”). Tanto Solomon (2002) quanto Sheth et al. (2001) afirmam que as três dimensões da atitude podem ocorrer em ordens diversas, de acordo com o indivíduo ou o objeto da atitude. A figura 1, a seguir, caracteriza a ordem de ocorrência das dimensões na Hierarquia de Aprendizagem Padrão. Segundo Solomon, o indivíduo que age seguindo essa ordem está motivado a procurar muita informação, ponderá-las e tomar uma decisão racionalmente bem acertada. No caso de um consumidor, primeiro ele busca informações, com esse conhecimento ele forma crenças para em seguida desenvolver um envolvimento afetivo e, somente depois, comprar. A atitude é “baseada no processamento de informações cognitivas” (SOLOMON, 2002, p.167). Crenças Afeto Comportamento Figura 1 - Hierarquia de Aprendizagem Padrão A figura 2 ilustra a Hierarquia Experimental ou Hierarquia Emocional, segundo a qual indivíduos agem de acordo com suas emoções, pensando depois. Assim, as atitudes de um consumidor cujas atitudes seguem a ordem dessa hierarquia podem ser direcionadas por atributos intangíveis de um produto e pelas imagens e mensagens da publicidade. A atitude é “baseada no consumo hedônico” (SOLOMON, 2002, p.167). 17 Afeto Comportamento Crenças Figura 2 - Hierarquia Experiencial ou Emocional A figura 3, abaixo, ilustra, finalmente, a Hierarquia de Baixo Envolvimento, na qual o indivíduo age com base em um conhecimento limitado sobre o objeto e, somente depois de obter os resultados de sua ação é que ele avalia e desenvolve um sentimento em relação ao objeto. O termo “baixo envolvimento” é utilizado porque não importa muito se ao final do processo o indivíduo se dá conta que tomou a atitude errada. A importância da decisão é relativamente pequena para o indivíduo e, por isso, ele não pensa muito antes de agir. A atitude é “baseada nos processos de aprendizagem de comportamento” (SOLOMON, 2002, p.167). Crenças Comportamento Afeto Figura 3 - Hierarquia de Baixo Envolvimento Segundo Solomon, os indivíduos nem sempre mantém o mesmo nível de comprometimento na atitude em relação a um objeto. O autor cita três níveis. O nível de menor envolvimento é a condescendência, no qual a pessoa mantém uma atitude muito superficial. Um nível mais elevado é a identificação – atitudes de pessoas em conformidade com a postura de outras. O terceiro nível é a internalização, com atitudes enraizadas que fazem parte dos valores das pessoas e são as atitudes menos voláteis. 2.1.2 Motivação Segundo Schiffman e Kanuk (2000), motivação pode ser classificada como uma força interna ao consumidor que o leva a agir. Ela é um estado de tensão produzido por uma necessidade não satisfeita. Solomon (2002) caracteriza esse 18 estado de tensão como um abismo entre o estado presente do consumidor e o estado desejado ou ideal, gerador das necessidades. Essas necessidades, por sua vez, podem ser inatas ou adquiridas. As necessidades inatas são aquelas que precisam ser atendidas para que um indivíduo sobreviva. Já as adquiridas são produzidas pela cultura ou pelo meio ambiente do qual faz parte o indivíduo (SCHIFFMAN, KANUK, 2000). Solomon (2002), por outro lado, caracteriza as necessidades como utilitárias – relacionadas a um desejo por um benefício funcional ou prático – e hedônicas – necessidade por uma experiência, com vistas a satisfazer uma fantasia emocional. Schiffman e Kanuk (2000) ressaltam que a motivação pode ter dois direcionamentos: positivo ou negativo. Quando a força motriz leva o indivíduo na direção de um objeto ou condição, a motivação é positiva. Quando a força afasta do indivíduo do objeto ou condição, ela é negativa. Os mesmos autores destacam que alguns estudiosos diferenciam a motivação como racional e emocional. Os motivos dos consumidores são racionais quando eles consideram todas as alternativas e escolhem a de máxima utilidade. Em marketing, a racionalidade implica, segundo os autores, considerações sobre o preço, o peso, o tamanho, ou seja, critérios objetivos. Os motivos emocionais, por outro lado, envolvem a escolha por critérios subjetivos e envolvem emoções como o medo, o orgulho, a raiva. Os autores destacam que a distinção não é a mesma para todas as pessoas, visto que os motivos racionais são definidos por cada pessoa. Assim, a decisão racional de um indivíduo pode ser considerada irracional por outro que não compartilhe os mesmos valores. Já que a motivação é um estado de tensão produzido por uma necessidade não satisfeita, cabe aqui mencionar os estudos sobre necessidades. Segundo Schiffman e Kanuk (2000), em 1938, Henry Murray, psicólogo, desenvolveu uma listagem de 28 necessidades psicogênicas, que mais tarde foram utilizadas em testes de personalidade. Murray acreditava que as necessidades eram comuns a 19 todos os indivíduos, mas que cada um definia de forma própria sua ordem de prioridade das necessidades. Já a Hierarquia Universal das Necessidades Humanas, criada pelo psicólogo Abraham Maslow (MASLOW, 1970). A teoria postula que existem cinco níveis de necessidades humanas. Para que um indivíduo seja motivado por uma necessidade, é preciso que seja satisfeita a necessidade do nível anterior. É o nível mais baixo da necessidade insatisfeita que motiva o comportamento dele. Maslow propõe que existe uma superposição entre os níveis de necessidades, dado que nenhuma necessidade é totalmente satisfeita. Mesmo que as necessidades de nível inferiores continuem a motivar o indivíduo, existirá uma necessidade, no nível mais elevado que as anteriores, que o motivará mais fortemente. Auto-realização Necessidades do Ego (prestígio, status, auto-respeito) Necessidades Sociais (afeição, amizade, afiliação) Necessidades de Segurança e Proteção (proteção, ordem, estabilidade) Necessidades Fisiológicas (alimento, água, ar, abrigo, sexo) Figura 4 - Hierarquia das Necessidades Humanas de Maslow Mesmo sendo uma teoria criticada, Schiffman e Kanuk (2000) afirmam que os profissionais de marketing recorrem bastante a ela, que é utilizada como base para a segmentação de mercado. Os autores classificam alguns bens de consumo de acordo com algumas necessidades propostas por Maslow. Para eles, “quase todos os produtos de higiene e limpeza (cosméticos, anti-séptico bucal, creme de barbear) são comprados para satisfazer necessidades sociais”, por exemplo. 20 Segundo Schiffman e Kanuk (2000), alguns psicólogos defendem a existência de três necessidades básicas, que apesar de estarem inseridas na Hierarquia de Maslow, têm uma relevância própria para a motivação dos consumidores: são as necessidades de poder, de afiliação e de realização. É a chamada Teoria das Necessidades de McClelland (MCCLELLAND, 1975). Entendê-la permite que as empresas desenvolvam propagandas direcionadas e que possam conhecer o perfil de consumo dos indivíduos. A necessidade de poder tem a ver com o desejo de um indivíduo de controlar outras pessoas, objetos e o ambiente. O indivíduo, motivado por essa necessidade, aumenta sua auto-estima quando exerce poder sobre objetos e pessoas. A de afiliação sugere que alguns consumidores são motivados pelo desejo de relacionamento, amizade e aceitação do outro – pessoas muito motivadas por essa necessidade têm forte dependência social dos outros. Já a necessidade de realização influencia pessoas que precisam da realização para se sentirem mais confiantes. Segundo Schiffman e Kanuk, essas pessoas não gostam de correr riscos, pesquisam bastante o ambiente, buscam feedback e atividades em que possam se auto-avaliar. 2.1.3 Valores Hoyer e McInnis (2000) definem valores como crenças duradouras de que um comportamento ou uma reação é desejável ou boa. Os valores servem como padrões que guiam o comportamento das pessoas durante situações e diferentes momentos de vida. O sistema de valores de cada pessoa é constituído dos seus valores e da importância relativa de cada um deles. A forma como as pessoas se comportam, em dada situação, é frequentemente influenciada por essa importância relativa. Os valores impulsionam, portanto, grande pare do comportamento do consumidor. 21 Os valores são aprendidos através do processo de socialização. A socialização, por sua vez, resulta da exposição das pessoas aos grupos de referência, como família, amigos, colegas de trabalho, artistas (HOYER; McINNIS, 2000). Assim, os valores são expressões da cultura de dada população. E, toda cultura possui um conjunto de valores compartilhados por seus membros de forma que a importância relativa dos valores caracteriza e diferencia uma cultura da outra. É o que se chama de endosso de um sistema de valores (SOLOMON, 2002). Existem metodologias distintas para medir os valores de dada cultura. As mais utilizadas em pesquisas sobre o comportamento do consumidor são a “Escala de Valores de Rokeach”, que é aplicada, pedindo-se ao entrevistado a avaliação de 18 valores terminais e 18, instrumentais (HOYER; McINNIS, 2000); a “Lista de Valores (LOV)”, instrumento que “identifica nove segmentos de consumidores com base em valores que eles endossam e que relaciona cada valor a diferenças no comportamento de consumo” (SOLOMON, 2002, p.107); e a Cadeia Meios-fins (Means-end chain), abordagem que considera que os atributos dos produtos estão ligados aos valores terminais – para acessá-los, o pesquisador deve construir junto ao entrevistado a “escada” de ligações entre essas duas partes (SOLOMON, 2002). Com o objetivo de resumir as inter-relações existentes entre os conceitos apresentados neste capítulo de necessidade, motivação e atitude, contruiu-se um modelo conceitual dos termos aqui explicados: NECESSIDADE NÃO ATENDIDA CULTURA gera gera MOTIVAÇÃO VALORES = CRENÇAS provoca guiam ATITUDES ATITUDES 22 2.2 Conceito de Beleza O termo “beleza” está relacionado a padrões estéticos, sejam eles em relação à arte ou a aparência humana. Diversos autores (ECO, 2004; QUEIROZ e OTTA, 2000; BAUDRILLARD, 1995; NOVAES E VILHENA, 2003; WOLF, 1992; HARGREAVES e KURY, 2000; BOUZÓN, 2004) chamam atenção para o fato de que a concepção de beleza em uma sociedade está ligada a sua cultura. Com relação à arte, a beleza pode ser expressa através de pinturas, esculturas, fotografias, instalações, filmes e obras literárias. A beleza física, por sua vez, é representada pelo corpo humano, suas partes e o que ele apresenta à sociedade (ECO, 2004). Parece ser unânime nas leituras que o conceito de belo é, em princípio, oriundo de padrões estéticos e construído de forma arquetípica, segundo a conjugação tanto de avaliações universais quanto de diferenças culturalmente construídas. Queiroz e Otta (2000) defendem que, apesar de existirem diferenças no conceito de beleza física entre as várias culturas, alguns padrões são universais. Os autores citam estudos que comprovam, por exemplo, que quanto mais simétrico um rosto feminino, mais atraente ele é considerado; traços típicos de bebê (como bochechas arredondadas e rosadas) quando se manifestam nos adultos denotam espontaneidade e inocência; homens barbados são mais masculinos aos olhos das mulheres. Baudrillard (1995) complementa mencionando um dos padrões de beleza atual: “corpo belo é corpo magro”. Nunca a magreza e a beleza estiveram tão diretamente associadas como na atualidade. Aboliu-se, no mundo moderno, a noção grega de harmonia das formas, para se evidenciar o corpo belo como magro e se exigir que as pessoas sejam esbeltas. Novaes e Vilhena (2003) acrescentam que pessoas fora desses padrões estéticos atuais – ou seja, gordos 23 e feios – correm o risco de serem excluídos socialmente e percebidos como negligentes, preguiçosos e descuidados. O fato de hoje existirem formas de mudança na aparência justificaria esse julgamento. A beleza não é mais o simples resultado da genética e da Natureza. Num corpo humano, em princípio considerado esteticamente feio, podem ser feitas intervenções e “melhorias”. Aqueles que não as fazem, assim, podem ser percebidos como desleixados (QUEIROZ E OTTA, 2000). A avaliação sobre a beleza física evoca não somente adjetivos como belo e feio, mas também outras formas de caracterização. As sociedades ocidentais modernas associam os conceitos de beleza corporal à inteligência e ao poder aquisitivo. Espera-se que uma pessoa mais bonita seja mais inteligente e bem-sucedida. Associações opostas acontecem para uma pessoa feia (QUEIROZ E OTTA, 2000). Para Baudrillard (1995), a explicação para o julgamento é de ordem econômica. O capitalismo leva as pessoas a perceberem seus corpos de maneira dicotômica: tanto como um “bem de produção”, de onde provém o sustento do indivíduo, quanto como feitiço, ou objeto de consumo. O corpo não deve ser negado ou omitido; pelo contrário, as pessoas precisam ser convencidas a nele investir – econômica e psicologicamente. Para o autor, a “redescoberta”, no mundo atual – isto é, a queda de tabus e a decorrente valorização do corpo – atribui-lhe funções morais e ideológicas. A libertação física e sexual, a onipresença do corpo na publicidade, na moda e na cultura de massa – no culto pela juventude, nos regimes, cuidados, sacrifícios que ele conecta indicam que hoje o corpo adquire, sobretudo, um poder de salvação do indivíduo. A valorização da beleza física mobiliza, então, mulheres a cuidarem de seus corpos buscando mantê-los jovens e magros. As mulheres teriam se emancipado de antigas dominações, como as sexuais e as da procriação, para ingressarem na servidão da estética (LIPOVESTKY, 2000). 24 Nesta nova concepção de corpo, beleza e erotismo ganharam destaque, cita Baudrillard (1995), ao serem juntos a nova ética da relação com o corpo. Apesar de atingirem homens e mulheres, as conotações são distintas: o modelo feminino prevalece sobre o masculino, sendo um imperativo. O autor observa que, nas mulheres, ser bela deixou de ser um atributo natural ou que advém das qualidades morais. Ser bela é fruto de cuidados com o corpo. Seria esse o corpo bem cuidado, uma recompensa, como as de conotação religiosas? 2.2.1 A Beleza e o Corpo Baudrillard (1995) lembra que durante séculos se faziam esforços no convencimento das pessoas de que elas não possuíam seus corpos. Na era capitalista, o que a propaganda faz é justamente o contrário, tenta convencer as pessoas dos seus próprios corpos. Mas, a evidência de que se possui o corpo não seria o corpo em si, que é visto e sentido? Baudrillard diz que não. O corpo é “um fato de cultura”, isto é, a relação com o corpo é um reflexo do modo como as pessoas se relacionam socialmente e com as coisas que as rodeiam. Hargreaves e Kury (2000) também descrevem o corpo humano como sendo depositário de sua cultura. Cada traço de maquiagem, corte de cabelo, jóias, arrumações estéticas em geral ou atitudes com cuidados pessoais e com a beleza refletem um pouco o que as pessoas são e o que querem ser. O corpo é como um prolongamento do que são. Seriam os ideais de beleza adequados à cultura de cada país? Geralmente esses ideais valorizam o que é raro, exclusivo, único, como uma loura de olhos azuis no Brasil ou uma mulher de cabelos cacheados no Japão. Para destacar características culturais associadas ao corpo, Novaes e Vilhena citam Le Breton (1990). Para ele, desde a modernidade, o corpo humano é uma representação da individualidade, é o que marca a diferença entre um homem e outro, “fruto do individualismo e do descolamento do indivíduo do todo comunitário” (NOVAES e VILHENA, 2003, p.12). Por conta disso, ao ator social, é 25 permitido conceber o seu corpo como sua propriedade. É essa idéia de possessão do corpo, na qual o indivíduo se torna responsável pelo seu corpo, que justificaria a obrigação de ser belo e legitimaria o julgamento de gordos e feios. Os resultados do estudo de Askergaard (2002) reforçam a ligação do corpo com a cultura. O estudo foca na perfeição do corpo, procurando analisar mudanças no comportamento de consumo associado à estética, através de entrevistas com mulheres que se submeteram a cirurgias estéticas como lipoaspiração, prótese mamária e outras. A grande maioria das entrevistadas apresentou o que a autora chama de discurso retórico, cujas falas estavam na linha do “a beleza vem de dentro”. Antes de fazer a cirurgia, no entanto, muitas se questionavam "Por que vou ser eu a única a aparentar a minha própria idade?", como que justificando sua decisão. Isso demonstra que apesar de possuírem o discurso retórico, elas associam o conceito de beleza a atributos físicos, como a idade, por exemplo. Além dessa descoberta, a autora constatou que a participação do contexto social é tão forte que envolve até mesmo a necessidade de se possuir um corpo adequado a um padrão de tamanhos e formas de vestuário (ASKEGAARD, 2002). Queiroz e Otta (2000) lembram que, como o ideal de beleza é relacionado à integridade física do corpo, deformidades evidentes contrariam o ideal estético e podem chegar, até mesmo, a causar a marginalização de seus portadores, estigmatizando-os. Askergaard (2002) utiliza o modelo de Guiddens (1991) para mostrar como o relacionamento entre as pessoas e a formação da individualidade mudou no fim da era moderna. A opção de escolha, que é a chave do mundo pós-moderno, permite que as pessoas passem a ter mais controle sobre a sua vida. As relações passaram a seguir o conceito de "relacionamento puro", que é mantido apenas por laços entre as pessoas e por nenhum outro motivo econômico, político ou moral. É 26 um conceito individualista, que diz que pessoas se relacionam com um objetivo de buscar algum benefício pessoal nas pessoas que as cercam. Em 1987, Nahoum identificou dois fatores históricos fundamentais para a mudança da imagem cultural do corpo na Era Moderna: o uso maciço de espelhos nas classes populares e a educação dos nossos sentidos, a partir do qual a visão assumiu um papel preponderante. Também na modernidade, frisam Novaes e Vilhena (2003), a apreciação da beleza se dá de forma fragmentada, com a valorização dos detalhes, dos recortes. E o controle exercido “por meio de um olhar minucioso sobre a aparência, e com o aval da ciência, contribui para regulamentar diferenças e determinar padrões estéticos em termos daquilo que é próprio ou impróprio, adequado ou inadequado, normal ou anormal” (NOVAES e VILHENA, 2003, p.16). O corpo pode ser gerenciado como se fosse uma unidade processável e customizável? Quanto o “eu” deve ser alterado até que ele seja considerado diferente? O estudo de Askergaard (2002) sugere que esse processo de mudança do corpo não é inteiramente positivo, mas pode estimular auto-estima e bem-estar. É o ponto onde se observa o fim da tirania do destino, onde o corpo era visto como um atributo dado, para a tirania da escolha, onde o indivíduo se vê quase que obrigado a tomar certas atitudes de acordo com padrões estéticos definidos socialmente e culturalmente. Lipovetsky (2000) defende que a busca pela juventude está ligada às mudanças culturais que ocorreram a partir de 1960. Nessa década, a mídia começou a exibir modelos adolescentes; os esportes se desenvolveram; as atividades de praia ganharam muitos adeptos e; a moda seguiu esse movimento – surgiu o short e o biquíni, as saias ficaram mais curtas e as roupas mais justas; o design funcionalista, que elimina os exageros da forma. Todas essas mudanças contribuíram para a valorização do corpo magro, móvel e jovem em detrimento do sedentarismo feminino observado no período do Renascimento. Essas mudanças, 27 no entanto, não tiveram tanta força quanto a mudança social pela qual passaram as mulheres. O reconhecimento do trabalho feminino, os métodos de controle contraceptivo e a valorização de ideais individualistas foram essenciais para que o papel da mulher deixasse de ser o de reprodutora. A criação dos filhos deixou de ser a função da existência das mulheres. De forma que, segundo Askergaard (2002), as relações se tornam mais livres, mas também mais vulneráveis e mais temporárias. Por isso, as pessoas passaram a ter uma necessidade de se “fazerem interessantes” o tempo todo, para poderem estabelecer relacionamentos benéficos para si. Comparando com o início da modernidade, onde a repressão havia gerado um sentimento de culpa que se incorporava no comportamento dos indivíduos, hoje um pensamento narcisista está gerando um sentimento muito mais ligado à identidade própria, capaz de gerar vergonha nas pessoas que não seguem os padrões estéticos definidos. A vergonha aumenta conforme aumenta a distância entre a percepção de si e as aspirações, ou seja, aquilo que se pode vir a ser. Essas sensações, que se positivas podem gerar orgulho e se negativas podem gerar vergonha, são provocadas pelas interações sociais. Segundo Baudrillard (1995) o corpo, a beleza e o erotismo aumentam as vendas e desenvolvem os mercados na medida em que o corpo das pessoas é emancipado. Ao redescobrir o próprio corpo, o indivíduo nele reinveste de forma narcisista – o desejo pela mudança é transformado em procura por objetos e signos manipuláveis racionalmente pelos consumidores, o que move um processo rentável para o mercado (NOVAES e VILHENA, 2003, p.18). Dentro da lógica, denotada também por Barthes (1982) de que embora “tratada como banal, a modelagem da boa aparência na verdade é investida de grande carga ideológica, fazendo com que a lógica do consumo permeie todos os investimentos estéticos”. Nas palavras de Roland Barthes (1982, p. 645): “Meu corpo é para mim mesmo a imagem que eu creio que o outro tem deste corpo”. Novaes e Vilhena (2003) 28 lembram que os cuidados físicos são uma forma de preparo para o enfrentamento do julgamento e das expectativas da sociedade – isto é, o investimento em estética é vinculado à visibilidade social que um indivíduo deseja ter. E a mídia como um todo opera neste jogo de espelhos entre o modelo ideal (as lindas modelos nas revistas), o modelo percebido (auto-imagem e auto-estima dos leitores) e como as pessoas gostariam de ser percebidos pelo outro (na lacuna entre o que são e o que almejam ser). Mas, como se comportam as mulheres diante dessas possibilidades de modelos de beleza? 2.2.2 A Beleza e as Mulheres Lipovetsky (2000) explica que nem sempre, na história da humanidade, as mulheres foram as representantes da beleza. Há indicativos de que, nas sociedades pré-históricas e selvagens, a fecundidade feminina era o atributo mais valorizado. Nestas sociedades, o poder e o prestígio social estavam reservados apenas aos homens – a idolatria das mulheres, que poderia advir da valorização da beleza, era incompatível com a organização social existente. Segundo Lipovetsky (2000), para que a beleza das mulheres passasse a ser valorizada foi preciso que se criasse a divisão do trabalho e da sociedade em classes, formando-se uma camada social privilegiada de mulheres que não trabalhavam. Foram elas que inauguraram a associação entre a mulher e a beleza. Essas mulheres aristocráticas possuíam tempo e recursos para se tornarem mais bonitas. A beleza passava também a se associar a virtudes aristocráticas. Ao remontar à cultura grega, Lipovetsky (2000) afirma que já na antiguidade clássica mulheres de dedicavam ao ato de se embelezar e escritores e autores prestavam homenagem à beleza feminina. Naquele momento, no entanto, ainda que louvada, a beleza feminina era ofuscada pelas formas perfeitas das representações artísticas dos jovens gregos. Entre os gregos – como em outras civilizações – a beleza feminina parecia ocultar a dita astúcia e mentira das 29 mulheres. Considerava-se que as mulheres enganavam, utilizando sua beleza e sedução. Esse pensamento que associa a beleza a aspectos negativos persistiria, segundo Lipovetsky (2000), na cultura judaico-cristã e na Idade Média. A idolatria do sexo feminino se inicia na Renascença nos séculos XV e XVI conjugando as duas lógicas do arcabouço cultural do culto à beleza feminina: o reconhecimento da superioridade estética da mulher e a “glorificação hiperbólica de seus atributos físicos e espirituais” (LIPOVETSKY, 2000, p.113). Neste momento, as mulheres começam a ser associadas a “anjos superiores”, representantes da beleza divina, graças a uma reinterpretação religiosa que nega a distinção entre sagrado e profano no que diz respeito à beleza das mulheres. Antes, apenas a beleza feminina, sagrada e pura da Virgem era retratada. As Vênus de Botticelli e de Ticiano permitem observar como se dá a dissociação da beleza feminina com o pecado, fazendo-a se aproximar da beleza divina da Virgem Maria. Sobre o Nascimento de Vênus, de Botticelli, vale reproduzir Lipovetsky: “Francastel observa que esse quadro nos faz assistir ao nascimento de uma nova divindade, ao triunfo da Beleza, à apoteose da mulher que, nua, ocupa agora, sozinha, a imagem: ‘Vênus substitui a Virgem’” (FRANCASTEL apud LIPOVESTSKY, 2000, p.116). A partir daí, a mulher é elevada à função de representar a beleza e as obras de arte passam a mostrá-la como algo a ser visto e admirado “narcisicamente” tanto por outras mulheres como por homens. Na obra de Baudelaire (2004) há indicações da mudança de perspectiva sobre a beleza feminina. No século XIX, o autor defende a posição da mulher como fonte de inspiração para artistas e escritores, destacando e legitimando o uso de artifícios para ser bela. O autor extrapola a idéia de musa, ao dizer que a mulher teria como dever proporcionar ao homem imagens belas e artificiais, imagens que o afastem do desagradável que advém da natureza. 30 A mulher está perfeitamente nos seus direitos e cumpre até uma espécie de dever esforçando-se em parecer mágica e sobrenatural; é preciso que desperte admiração e que fascine; ídolo, deve dourar-se para ser dourada. Deve, pois, colher em todas as artes os meios para elevar-se acima da natureza para melhor subjugar corações e surpreender os espíritos. Pouco importa que a astúcia e o artifício sejam conhecidos de todos, se o sucesso está assegurado e o efeito é sempre irresistível (p.64) Lipovetsky (2000) sublinha como pinturas renascentistas de mulheres deitadas conferiram mais significado ao belo sexo. As pinturas, de mulheres passivas, lânguidas, ociosas, denotam o aspecto da beleza a ser contemplada e totalmente descaracterizada de qualquer esforço ou trabalho. Neste momento, a beleza feminina ganhava significações de três tipos: era decorativa; não advinha de esforço, era natural; era inatingível. Ao avançar na idéia de sentido social atribuído ao culto da beleza feminina, Lipovetsky (2000) expõe as diferenças entre a visão tradicional e a moderna. A tradicional, que dominou até o século XVIII, associa a beleza a virtudes morais; os feios são pessoas com vícios internos. Socialmente, ela tem pouco valor: por exemplo, nos matrimônios da época, o que contava era apenas a condição financeira da mulher. A visão moderna, que se seguiu e prevalece até hoje, desvincula a beleza da moral, ela é puramente física. Sob a ótica de Baudelaire (2004), em Sobre a Modernidade, de 1859, pode-se entender como a imagem da bela burguesa estava ligada aos recursos. O autor defende que os artifícios usados pelas mulheres para se tornarem mais belas – roupas, maquiagem – compunham uma imagem, na mente do homem fascinado, da beleza da “mulher vestida e maquiada”, “ser” formado pela combinação corpoartifício. A beleza era do conjunto e não da suas partes. “Tudo que adorna a mulher, tudo que serve para realçar sua beleza, faz parte dela própria” (p.58). 31 Hoje a beleza também tem dupla concepção social quanto ao gênero. As autoras Novaes e Vilhena (2003) chamam atenção para o fato de que enquanto a imagem de “mulher pública” está ligada à “aparência, apresentação e atração”, o “homem público” é aquele que desempenha seu dever social. “A sociedade mostra-se mais condescendente e tolerante com a feiúra masculina” (p.27). Enquanto o desvio do padrão de beleza aceitável está vinculado a falta de tempo do homem, dada a sua rotina atribulada; entre as mulheres, está vinculado à falta de vaidade, de esforço e de cuidado pessoal. Além disso, o efeito do cuidado em excesso é avaliado de forma diametralmente oposta. Homens que têm muito cuidado com a beleza, são vistos como gays. Entre as mulheres, o excesso reafirma suas identidades sociais, sua feminilidade. Lipovetsky (2000) também acredita que “a beleza não tem o mesmo peso para homens e mulheres”. O autor utiliza, inclusive, o termo o “belo sexo” para identificar o sexo feminino, justamente, graças ao peso que a mídia e a cultura ocidentais atuais atribuem às mulheres. Assim, a pressão ou a exigência moral parece recair muito mais sobre as mulheres, que “se quiserem, podem ser belas” – o que na opinião de Novas e Vilhena (2003) se apresenta como um terrorismo contemporâneo em relação à beleza. A obrigação e a facilidade em se tornar bela reforçam uma a outra e as mulheres se tornam responsáveis por sua beleza. Retomam-se as idéias de Baudrillard (1995), que indicam a passagem da estética para a ética do corpo da mulher. Ética ou mito da beleza? 2.3.3 O Mito de Beleza Para Wolf (1992), o mito da beleza é um tipo de coerção social pós-feminismo – uma ideologia criada para controlar e limitar as mulheres, eliminado a herança deixada pelo feminismo na vida das mulheres ocidentais. O mito é uma ideologia capaz de diminuir a sensação de valorização que o feminismo trouxe à vida das mulheres. 32 “A beleza não é ideal, nem imutável” (WOLF, 1992, p.15). Para Wolf, o mito da beleza não deve ser visto como natural ou histórico, pois é cultural, derivado de um sistema econômico e da estrutura de poder atual, que busca uma contraofensiva contra as mulheres. Segundo a autora, a maioria das hipóteses aponta que o mito, como o é hoje, ganha espaço desde 1830. No momento em que a classe média começa a surgir, as mulheres dessa classe começam a ser alfabetizadas e a sociedade, então, precisa domesticá-las. Wolf (1992) argumenta que a ocupação com a beleza assumiu o lugar das tarefas domésticas, no momento em que a dona-de-casa, “entediada, inquieta e isolada” abandona seu lugar no lar para ocupar posições no mercado de trabalho. Em face da perda do seu principal consumidor, os anunciantes precisaram arrumar formas de fazer com que essa nova mulher, agora ocupada e estimulada, continuasse a consumir nos mesmos níveis de outrora. “Era preciso uma nova ideologia que as levasse ao mesmo consumismo inseguro de antes”. Essa mudança é caracterizada pela autora como a passagem da Mística Feminina 1 para o Mito de Beleza (p.20 e 86). O mito da beleza, como coloca Wolf tem, pelo menos, duas justificativas econômicas. A primeira, é que como o mito baixa a auto-estima das mulheres, de forma que elas não reclamem por receber menores salários. A segunda é “um novo imperativo de consumo” que transforma em virtude social a obrigação das mulheres em serem belas. (p.22 e 23) Wolf (1992, p77-78) observa que mulheres idolatram e se espelham em o que ela classifica como “realmente nada – imagens, recortes de papel”. A resposta está no fato de as mulheres sempre estiveram obcecadas pela imagem “ideal”, justamente porque os homens sempre as levaram a pensar assim, dado que elas não passam 1 Termo de Betty Friedman, retirado do livro A mística feminina, que caracteriza o momento (no pós-guerra) em que revistas femininas estimulavam o consumo de produtos domésticos, retratando’ as mulheres como donas-de-casa inseguras e sem identidade definida. 33 de “beldades” na cultura masculina, como, inclusive, descrevem Lipovetsky (2000) e Baudelaire (2004). Wolf (1992, p. 91-2) também aponta a grande importância que as revistas femininas tiveram na construção e no fortalecimento do mito. Não só refletiram mudanças no papel social das mulheres, como também as provocaram. Para a autora, a mudança do mito da “dona-de-casa” para o de “beleza” começou nas revistas femininas, através de anunciantes. O anúncio que atribui aos produtos valores psicológicos inatingíveis promove o descontentamento nas mulheres e a sensação de insegurança, que as leva ao consumo. Wolf (1992) defende que o mito de beleza pode, ao mesmo tempo, unir e separar as mulheres. Quando estão em grupo, ajudam umas às outras a lidar com a beleza, dando dicas, emprestando produtos, ou reclamando sobre algum padrão ou exigência estética. Esses laços, no entanto, não existem quando a beleza é ameaçadora, quando isola as mulheres umas das outras e as fazem se vigiarem possessivamente e de forma invejosa. Apesar de um tanto radical, a visão de Wolf (1992) parece se articular com a de Baudrillard (1995) que menciona que o mito estético-erótico afeta mais a mulher pelo fato de, graças ao recalcamento do corpo, ter havido uma repressão à mulher, cuja sexualidade foi historicamente reprimida e associada ao mal. Não só no recalcamento, mas na libertação o corpo e as mulheres se ligam. Para Baudrillard (1995), o corpo da modelo, belo e erótico, não é uma representação do que aquela mulher é – de sua interioridade e sexualidade; mas um conjunto de signos publicitários, simulação produzida pela fotografia. Não é um corpo, mas uma forma, que nada tem de erótico. É um objeto assexuado como os outros objetos retratados na publicidade. No entanto, qualquer objeto retratado junto ao corpo dessa modelo, na troca de significações conseguem induzir pessoas a os consumirem. 34 Lipovetsky (2000) parece não concordar com Wolf (1992), sobre a afirmativa de que “ditadura da magreza” é uma opressão dos valores feministas. Para o autor, o corpo magro representa a independência financeira e o cotidiano agitado. Esse corpo firme e esbelto representa o sucesso, o autodomínio, a capacidade de se autogerenciar dessa nova mulher. O autor acredita que a busca por um corpo magro, entre as mulheres, manifesta a vontade de se igualarem aos homens, de serem senhoras de suas próprias vidas. Ainda criticando as colocações de Naomi Wolf, Lipovetsky (2000) discorda do fato de que exista uma “mística de produtos de beleza” (LIPOVETSKY, 2000, p.141). Ele defende que o consumo é voluntário e que há espaço para a “interrogação crítica, o debate coletivo” no mercado de cosméticos – existe o espaço para o consumidor comparar produtos e fazer escolhas voluntárias. A avidez por novos produtos entre as mulheres não caracteriza um hipnotismo das massas; mas, contrariamente ao que prega Wolf, é para Lipovetsky, uma vontade das mulheres de serem protagonistas. Neste sentido, expõe Lipovetsky (2000), o cuidado com o corpo se aproxima dos valores da modernidade: de dominação da natureza, de enaltecimento da razão (no caso, estética), de utilização de tecnologia e da não-aceitação da fatalidade. Enquanto Wolf (1992) critica o “mito da beleza”, Lipovetsky (2000) defende que o “culto à beleza”, já que esse confere motivação para as mulheres conquistarem cada vez mais seus espaços, igualando-se aos homens. No entanto, ele admite que hoje persista a diferença na forma como a sociedade avalia homens e mulheres. A beleza é o elemento de manipulação e conquista de reconhecimento social para as mulheres como a profissão o é para os homens. 2.3.4 A Beleza e o Cabelo: a etnografia de Bouzón (2004) “Os cabelos também refletem valores, significados e comportamentos reveladores de importantes dimensões da vida social” (BOUZÓN, 2004, p.12). 35 Se a cultura ocidental associa feminilidade à beleza, é o cabelo o elemento quase indispensável na construção do feminino. É interessante entender, como nesse cenário teórico, as mulheres lidam com ele. A seguir, são apresentados os principais achados do estudo de Bouzón a cerca de representações e práticas femininas relativas aos cabelos. A etnografia realizada por Bouzón (2004) é uma contribuição no sentido de entender significações sociais por trás dos cabelos. Ela foi feita no ano de 2003 em um salão de beleza da zona sul do Rio de Janeiro, onde foram entrevistados freqüentadores – mulheres brancas de 20 a 60 anos – e profissionais que trabalham no salão. Bouzón (2004) traz uma discussão em torno dos significados associados aos cabelos. Por exemplo, o cabelo arrumado, garante segurança emocional, protegendo a pessoa do julgamento e da exclusão pela aparência; os cabelos compõem uma fachada pessoal e podem até servir para afastar um indivíduo do convívio com outras pessoas. Esse é o caso quando a pessoa tem um corte “cafona”, a cor do cabelo “escandalosa” ou um cabelo “sujo”, “desgrenhado”. Um outro exemplo da avaliação pelas características do cabelo no Brasil, encontrado em Queiroz e Otta (2000), é a desqualificação social dos traços físicos dos negros, através de termos populares, como “cabelo ruim” para caracterizar o cabelo crespo. Os achados da etnografia apontam aspectos com respeito ao hábito de pintar os cabelos e sobre os fios brancos. No salão pesquisado, a presença na sala de coloração era principalmente de mulheres entre 35 e 55 anos – idade, na visão da antropóloga, em que começa a acontecer o branqueamento dos fios. A associação mais forte do cabelo branco é com a velhice. existe uma relação dicotômica entre fios brancos e envelhecimento. Se, por um lado, esconder fios brancos é uma forma de se manter afastada da lembrança do envelhecimento, da finitude da vida; num contexto em que se busca parecer jovem, os fios brancos denunciariam 36 “perdas físicas e simbólicas”. Por outro lado, não pintar os cabelos é visto como uma prova de que a mulher soube encarar o envelhecimento. Essa é uma condição colocada, principalmente, quando as mulheres são mais velhas. Junto às mais novas, no entanto, existe a idéia de que manter os cabelos brancos em uma conotação de “desleixo”. A cor branca, que na esfera da saúde e da medicina, é um símbolo da pureza, acaba por ganhar uma conotação de “sujeira”. Embora a noção de velhice receba diferentes associações positivas como “experiência” e “sabedoria” pois em referências ocidentais, deuses, sacerdotes, cientistas, gênios e magos costumam ter cabelos brancos. O cabelo branco em outras associações se associa à “ansiedade”, “hereditariedade”, pode simbolizar também pessoas estressadas, workaholics. Mulheres reclamam do fato de serem “reféns” da coloração, não conseguindo abandonar o hábito de pintar os cabelos brancos. Para elas, essa atitude é uma “necessidade, uma obrigação moral e não uma opção” (p.86) Por isso, muitas entrevistadas consideram a atitude das mulheres mais jovens, que pintam somente para mudar o visual, quase um pecado. Existe também a percepção de que assumir cabelos brancos é algo muito difícil. A coerção de amigos pode fazer com que uma mulher pinte seus cabelos, mesmo não se incomodando em mantêlos brancos. Assumir os fios brancos, indo contra fortes exigências sociais, é uma atitude considerada corajosa. Mas assumir cabelos brancos poderia ser considerado um comportamento desviante das consumidoras entrevistadas? O momento de retocar os fios brancos é medido pelo tamanho da raiz. À medida que o cabelo cresce, a raiz do fio branco começa a aparecer. Quanto antes for feito o retoque, mais escondida a raiz. Não é bom ter uma raiz branca aparente, muito menos um cabelo cuja raiz é de uma cor e o reto do fio de outra. Quem tem um cabelo assim é considerada descuidada com os cabelos e com a aparência. Essa atitude permite, aos outros, reconhecer que o cabelo é pintado, e não natural. Na etnografia, foi possível perceber uma busca pela “naturalidade” na 37 aparência dos cabelos. O “natural” denotaria a falta de intervenções culturais, a originalidade, aquilo que combina com nós mesmos, com o que somos. É interessante a forma como algumas mulheres associam as cores das tinturas e, assim, dos cabelos a características pessoais da portadora. Os tons loiros estão associados a mulheres ou ricas ou “peruas” ou “vulgares”, que buscam ser atraentes e sexies. Já as mulheres morenas são vistas como clássicas, que não se arriscam; mas que, por outro lado, são muito inteligentes. Como a loira, a mulher ruiva é aquela que quer se destacar, despertando atração sexual nos homens. Independente da cor escolhida para os cabelos, os achados sugerem que é preciso que o cabelo combine com o rosto e o corpo. Também o comprimento dos cabelos traz simbolismos a respeito da aparência de uma mulher: o comprimento do cabelo deve “combinar” com a idade e às mulheres de mais de 50 anos não é recomendado usar cabelos compridos e franjas. “Situações sociais podem pedir tipos de cabelo” (p. 125). Com relação ao ambiente de trabalho, por exemplo, parece existir um código de uso dos cabelos bem definido, ou seja, quanto mais formal a ocupação, mais bem cuidado deve ser o cabelo. Por cuidado, entende-se: cortes e tinturas sóbrias; penteados arrumados. No contexto profissional, aparece também o medo de envelhecer e de perder o emprego que faz com que se disfarcem sinais da idade, como os cabelos brancos. Apesar do “cabelo bem tratado” ser associado às camadas sociais mais ricas, a etnografia identificou muitas pessoas que, mesmo estando em um salão de cabeleireiro de uma área geograficamente mais valorizada, relatavam ter poucos cuidados com os cabelos. Para Bouzón (2004) isso sugere a existência de uma grande “auto-exigência estético-moral” que pode levar à percepção de que os cuidados empregados com os cabelos nunca são suficientes. 38 2.3 O comportamento desviante do consumidor O que significa comportamento desviante do consumidor? O conceito de desviante parece estar associado ao que se costuma denominar de ‘contracultura”. Segundo Pereira (1992), contracultura foi um termo dado pelos jornalistas americanos aos movimentos jovens da década de 60 que criticavam o militarismo americano e os valores da sociedade de então. Esses movimentos de rebelião podem ser exemplificados pelas comunidades hippies, pela produção literária (beat generation) e musical (rock n’roll), pelos protestos nas universidades americanas, pela valorização do Oriente, pelo uso de drogas como o LSD, por atitudes como viajar pelo mundo levando apenas uma mochila. Pereira (1992) descreve a sociedade americana das décadas de 60/70 para explicar quais seriam os valores contra os quais os jovens lutavam: indústria avançada, possibilitando o constante lançamento de novos produtos, renovando o “massificante sistema do consumismo”, “sociedade tecnocrática voltada para a busca de um máximo de modernização, racionalização e planejamento”, “privilégio dos aspectos técnico-racionais sobre os sociais e humanos” (PEREIRA, 1992, p.28). O outro sentido do termo denota uma postura crítica e radical contra uma cultura convencional. A contracultura, nesse caso, seria uma cultura minoritária caracterizada por valores, normas e padrões de comportamento que contrariam aqueles da sociedade dominante (BATZELL apud DESMOND ET AL.., 2001). E não somente contrariam: o termo pode se referir a um sistema coerente que compreende pelo menos uma norma ou valor comprometido com uma mudança cultural da ordem dominante (DESSAUR ET AL. apud DESMOND ET AL., 2001). Desmond et al. (2001) fazem uma análise da evolução dos movimentos de contracultura. Segundo os autores, os primeiros movimentos eram formados por sujeitos cuja resistência se ligava à tomada de consciência. A partir do conhecimento, os indivíduos se davam conta da condição em que viviam e, assim, 39 inauguravam os questionamentos. Eram cidadãos auto-críticos e autênticos, que viviam a resistência em todos os momentos da vida. Hoje nas sociedades ditas pós-modernas, diferentemente, o que Desmond et al. (2001) deslumbram são indivíduos que podem viver uma parte do tempo na contracultura e, outra, na ordem vigente, através da incorporação dos valores pós-modernos aos movimentos de contracultura. Os autores citam como exemplos a descentralização, a espontaneidade, a fluidez, a diversidade e a fragmentação. A separação entre comportamento desviante e padrão parece ter ficado mais tênue. Esse movimento abre espaço para a existência de diferentes vozes e tribos na contracultura, que ganham destaque por meio da Internet e o conseqüente aumento da possibilidade de comunicação e mobilização. Essa mudança parece ser coerente com um momento social em que a vida não é mais vivida como um projeto único; pelo contrário, as pessoas experimentam diferentes sensações, assumem diversas facetas e identidades no mundo de hoje. Um mundo que aceita que um indivíduo seja hoje de uma tribo e amanhã de outra, onde a postura desviante encontra pouca surpresa e o indivíduo parece alternar posturas desviantes e de concordância sem suscitar reações sociais de rejeição. Um mundo que, assim, não se surpreende se hoje você tem uma postura desviante, mas amanhã não (DESMOND ET AL., 2001). Embora a juventude não esteja mais tão mobilizada, como no cenário descrito por Pereira (1992), e o movimento de contracultura seja promovido por pessoas que transitam entre o questionamento e a prática comum, é ainda possível observar movimentos sociais contrários à ordem estabelecida. Foram esses movimentos, por exemplo, os focos do estudo de Kozinets e Handelman (2004). Os autores ouviram ativistas contrários a elementos da sociedade de consumo, como a propaganda e a marca Nike, e aos alimentos geneticamente modificados. Os estudiosos dos movimentos de consumidores assumem que o objetivo por trás dessas iniciativas é promover mudanças nos princípios, práticas e políticas das organizações, negócios, indústrias e governo. 40 Segundo Kozinets e Handelman (2004), os ativistas conhecem as mudanças que buscam na ideologia do consumidor. Eles querem que os consumidores questionem as morais e as éticas da origem de um produto ou serviço e as implicações sociais e ambientais dele. Eles mencionam a autodisciplina e o comedimento na compra e no uso (Kozinets e Handelman, 2004). Kozinets e Handelman (2004) observam que a organização dos movimentos de consumidor se dá contra práticas industriais e de marketing, tais como a venda de produtos que podem prejudicar o consumidor e a publicação de propagandas enganosas. Para os autores, os elementos da contracultura foram e são regularmente incorporados à cultura do consumo e que, por isso, a ameaça dela é bem pequena, o que torna difícil mobilizar as pessoas contra o capitalismo global (Kozinets e Handelman, 2004). Como associar comportamentos desviantes às pressões sociais existentes em relação aos padrões estéticos que predominam? 41 2.4 A Beleza e O Comportamento Desviante do Consumidor: o estudo de Holbrook et al. (1996) A interseção entre o comportamento desviante dos consumidores e a questão da beleza é muito bem representada no estudo de Holbrook et al. (1996). Os autores conseguem identificar comportamentos desviantes com relação a beleza e aparência física das pessoas, ajudando a categorizar tipos diferentes de comportamento social desviantes. Dada a complexidade da relação entre o consumo e a aparência física, foi desenvolvida uma tipologia, obtida através de uma metodologia de análise de filmes, que ajuda a simplificar e analisar grupos de pessoas que seguem os mesmos padrões ao lidar com sua aparência. Apesar de, no final, os autores deixarem claro que as formas de classificação são limitantes, a tipologia proposta ajuda a dar uma idéia mais precisa do panorama que eles se propõem a exibir. Essa tipologia está baseada em duas dimensões chaves: (1) a posição social almejada e (2) posição social atual. Na análise, essas dimensões variam entre a normalidade e o desvio. Os pares posição social almejada versus posição social atual e normal versus desviante caracterizam os quatro principais eixos que foram analisados no estudo. São elas: configuração, transfiguração, refiguração e desfiguração. Para cada um desses tipos, foi apresentada uma análise descritiva, as motivações, atitudes, exemplos e analogias que permitem ao leitor entender cada postura a fundo. O primeiro perfil não se demonstra desviante, mas foi incluído nesta descrição para que o leitor possa ter a visão completa do estudo. (1) Perfil Configuração Consumidores dentro do perfil da configuração têm comportamento que não variam dentro do padrão da normalidade. São indivíduos normais que desejam manter a adequação às normas e convenções da sociedade e têm sucesso nisso. 42 O padrão de consumo desse perfil se baseia na busca por se manter belo e atraente dentro do padrão de estética convencional. Isso implica em sempre buscar vestir as tendências da moda, ter os cabelos cortados de acordo com a sua idade (quanto mais idade, mais curto o cabelo), ter uma alimentação correta (mantendo-se magro), freqüentando lugares onde também estão pessoas bonitas. Apesar da aprovação social que esses consumidores recebem em troca por serem os representantes e mantenedores das convenções sociais, a busca pela beleza física faz deles alvos de críticas, sátiras e rejeição por parte da sociedade. Alguns dos críticos consideram que a postura de configuração aliena a pessoa de sua real identidade. Ela age de acordo com os valores do sistema, negando seus desejos e sua individualidade. (2) Perfil Transfiguração São consumidores desviantes, mas que buscam a normalidade, pela adequação aos cânones sociais tradicionais. Muitas vezes, o consumo dessas pessoas passa pelo embelezamento físico. Esse consumidor é motivado pelo desejo de ser aceito. Ele, que é uma pessoa fora dos padrões estabelecidos, busca se passar por normal; o movimento é da diferenciação para a similaridade, tendo o consumo de produtos e serviços relacionados à beleza como guia. E essa motivação faz com que as significações sociais dêem lugar aos produtos, na lógica do “você é o que você consome”. Nesse ponto se pode observar a força do marketing integrando corpo a consumo. Beleza e atração podem ser encontradas nas prateleiras ou nos salões e clínicas. Quanto mais xampus, condicionadores, maquiagem você consumir, maiores as suas chances de passar da condição de feio (desviante) para a de belo (normalidade). O estudo cita que também as pessoas que se submetem a cirurgias plásticas, e de mudança de sexo, como os hermafroditas, são exemplos desses consumidores na sociedade. 43 A geração de inúmeras propagandas que estimulam as pessoas a modificar sua auto-imagem, através do uso do produto anunciado, tem conseqüências sociais. As pessoas com esse perfil tendem a ser menos felizes, com baixa auto-estima e aprovação pessoal, principalmente porque se comparam com as imagens mostradas nas propagandas, que na verdade não são reais, mas, sim, retocadas para dar a impressão de uma realidade melhorada. Bordo (1993, apud HOLBROOK ET AL., 1996, p.40) sugere que os anúncios e a mídia causam desordens alimentares, produzindo uma cultura doente – opressiva, vazia de amor e de moralidade, ou seja, conseqüências sociais ainda maiores. (3) Perfil Refiguração Aqui, são os consumidores que buscam sair do padrão normal para o desviante, como uma forma de crítica aos padrões estabelecidos. A motivação desses consumidores envolve a rebelião, que advém da não-conformidade com o mito de Beleza Ideal. Por não serem representantes do belo, eles são vistos como desvios sociais. Os integrantes preferem se fazer de “feios” (pela concepção convencional), distinguindo-se assim do grupo dos “belos” cujas idéias eles menosprezam. Nos movimentos populares, punks, hippies e skinheads são representantes desse grupo, que se veste e se comporta de forma pouco convencional na tentativa de criar uma forma de expressão alienante e contrária aos valores do status quo. Famosos roqueiros e artistas como Alice Cooper, Mick Jagger e Madonna se transformaram de pessoas relativamente normais em pessoas “estranhas”, engajadas em alguma oposição social ou buscando uma identidade alternativa na subcultura dos desviantes. Pode-se citar como outros exemplos de consumidores com perfil de refiguração pessoas que importam a automutilação das culturas indígenas ou africanas, pessoas que utilizam objetos fetichistas como coletes, botas, chicotes, etc., pessoas tatuadas e usuários de piercings. 44 Os efeitos sociais desse tipo de comportamento são obtidos na medida em que a rebeldia é incorporada à sociedade. O autor menciona a moda como principal meio por onde a rebeldia se estabelece, citando como exemplos o espaço que a tatuagem e o piercing ganham nos ensaios de moda e desfiles; o estilo “grunge”, criado por roqueiros americanos, que estava em alta na época em que o texto foi escrito; e a incorporação recente do jeans, antes uma peça de roupa utilizada pela juventude transviada, nos guarda-roupas de todas as camadas sociais. Quando a rebeldia é incorporada aos padrões convencionais, o grupo busca uma nova maneira de chocar até que esse novo choque seja incorporado pela sociedade. (4) Perfil Desfiguração São consumidores que possuem alguma característica física ou psicológica que os faz serem desviantes e que elegem ou são obrigados a se manterem no padrão contrário ao normal. Muitas vezes, permanecem assim porque não desejam ou não estão aptos a mudar. Essas pessoas podem permanecer com aparência e consumo que os faz serem considerados estranhezas, aberrações, monstros ou bizarrices. A motivação desses consumidores é o desejo por atingir, manter ou aceitar uma condição de unicidade frente aos outros membros da sociedade. Ao invés da conformação, esses indivíduos prezam a ostentação. Eles valorizam suas qualidades desviantes, mostrando aos outros uma aparência chocante, da qual muitas vezes eles tiram os seus sustentos. Seu consumo é marcado por exageros. E a postura deles frente a suas aparência envolve imitação e ilusão – as pessoas são vistas como caricaturas grotescas. Na sociedade, são exemplos desse tipo de consumidor as “aberrações” 2 que vão a público explorar suas diferenças – podem ser artistas circenses, para-normais, 2 Do inglês, freak. 45 pessoas com anomalias físicas. Também citados como exemplos são os artistas travestis e as drag queens. Apesar de parecerem para o resto da sociedade como desvios, a condição de anormalidade traz a essas pessoas benefícios psicológicos e econômicos. Holbrook et al. (1996) sugerem que eles têm orgulho da condição de seres únicos o que os permite a exibição pública e os seus salários. Os efeitos sociais dessa postura não ultrapassam o grupo. A sociedade continua vendo-os como aberrações grotescas. Enquanto isso, eles se resignam em ser o que são, seja porque podem ser “lucrativos” em benefício próprio, seja por não terem opção e, com isso, se tornarem traumatizados. Para explicar o significado que as pessoas atribuem aos perfis Refiguração e Desfiguração, os autores mencionam a existência de uma tendência cultural entre as pessoas em classificarem os outros dicotomicamente: velho/novo, bonito/feio, pobre/rico, preto/branco, homem/mulher, macho/fêmea, correto/deformado. Essa forma de ver os outros pode ser considerada como uma conseqüência do pensamento moderno – racional, objetivo, categórico e capaz de explicar tudo. Sob esse aspecto, quando o outro cruza de uma classificação para a outra, se dá estranhamento por não se poder classificá-lo numa dessas categorias binárias. Essa tendência humana de classificação foi questionada pelo pós-modernismo e pelo feminismo. Ambos compartilham da mesma postura de questionamento. Para esses movimentos, a sociedade deve parar de questionar o porquê de uma pessoa não poder ser classificada categoricamente com um desses rótulos e começar a tolerar as diferenças, aceitar os desvios. 46 3. METODOLOGIA Este capítulo tem por objetivo descrever a metodologia empregada neste estudo. Nos tópicos a seguir, justifica-se a escolha da metodologia qualitativa empregada neste trabalho, através de uma caracterização geral; e retoma-se a delimitacão dos objetivos de pesquisa. Em seguida, são detalhadas as diferentes fases dessa pesquisa: contato com o fenômeno, formação do corpus, coleta de dados e tratamento das entrevistas. 3.1 Paradigma e tipo de pesquisa adotados Nas ciências sociais, em geral, existem dois paradigmas de pesquisa: o positivista e o interpretativista. O primeiro parte do pressuposto de que existe uma visão única e objetiva da realidade. Nos fenômenos sociais, sob esse paradigma, são observadas tendências racionais e regulares de manifestações e fatores que agregam previsibilidade e causalidade. As eventuais visões conflitantes e as ambigüidades são eliminadas na medida em que se repetem relatos conclusivos acerca de um fenômeno (D’ANGELO, 2004; LINCOLN, GUBA, 1985). Já o interpretativismo, pelo contrário, acredita que os fenômenos culturais sejam oriundos de construções múltiplas e complexas, derivadas da interação social. Constrói-se o conhecimento, sob esse paradigma, através da combinação de diferentes visões sobre um tema, ainda que não haja, entre elas, concordância. Não se busca alcançar, pelas pesquisas, previsibilidade ou leis gerais que expliquem um fenômeno – o objetivo é, apenas, descrevê-lo e interpretá-lo (D’ANGELO, 2004; LINCOLN, GUBA, 1985). Bauer et al. (2002) reforçam o ponto de vista interpretativista ao afirmarem que, na pesquisa social, as descobertas dizem respeito ao mundo que se conhece e se experimenta. Por isso, os dados são levantados através de processos de comunicação e podem ser de dois tipos: formais ou informais. Na pesquisa social, o interesse do pesquisador é em como as “pessoas se expressam e falam sobre o 47 que é importante para elas e como elas pensam sobre suas ações e as dos outros”. Busca-se neste trabalho, que tem um fim exploratório, a diversidade de discursos e opiniões acerca do tema pesquisado. Não se trata aqui de indicar causas e explicações para o fenômeno social pesquisado, nem de se estabelecer regras gerais, mas sim buscar a multiplicidade de pontos de vista sobre um tema e, mais especificamente, os fundamentos desses pontos de vista. Alinhando-se os pressupostos da pesquisadora e os desafios inerentes à pergunta de pesquisa, entende-se que uma metodologia de pesquisa qualitativa forneceria um conjunto de recursos adequado para se buscar os objetivos deste trabalho. Segundo Flick (2002), as rápidas mudanças sociais que vêm ocorrendo na atualidade e a resultante diversificação de estilos de vida fazem com que o pesquisador se confronte com novos contextos e perspectivas sociais. Sob esse aspecto, as metodologias tradicionais – que buscam testar hipóteses e teorias – se mostram pouco eficazes. A pesquisa qualitativa, nesse contexto, ganha espaço. Através da pesquisa qualitativa, estudam-se os fenômenos em seus contextos naturais, buscando construir um sentido ou interpretá-los segundo a perspectiva daqueles que falam sobre ele, os pesquisados. Neste processo de pesquisa, enfatiza-se também a relação entre o pesquisador e o objeto do estudo e as peculiaridades e q características que moldam o ambiente de pesquisa (DENZIN E LINCOLN, 2000). Para isso, a pesquisa qualitativa deve envolver o estudo de uma grande variedade de materiais empíricos – estudos de caso, experiências pessoais, introspecção, história de vida, entrevistas, artefatos, textos e produções culturais, textos históricos – capazes de traduzir a rotina, a problematização e a significação da vida de determinado indivíduo (DENZIN e LINCOLN, 2000). 48 Esse tipo de pesquisa possui aspectos essenciais, como a escolha correta dos métodos e teorias oportunas, o reconhecimento e análise de diferentes pontos de vista, a reflexão dos pesquisadores acerca da pesquisa como parte do processo de produção do conhecimento e a variedade de abordagens e métodos (FLICK, 2002). 3.2 Perguntas de pesquisa A pergunta a que se visa responder nesta pesquisa é: “Quais são as principais motivações, atitudes e valores em torno da decisão de mulheres em não tingirem seus cabelos, mantendo-os brancos?”. Para alcançar esse propósito, torna-se fundamental entender essas mulheres num quadro mais amplo, que inclui não apenas seus pontos de vista no momento atual, mas também a relação com seu passado e com o grupo social que está a sua volta. Assim, para se responder à pergunta principal desta pesquisa, foram elaboradas questões secundárias: (a) Quais são os cuidados cotidianos dessas mulheres com relação aos cabelos? (b) Como são suas histórias em relação aos cuidados com o cabelo? (c) Quais são os valores por trás da atitude de manter os cabelos brancos? E como se dá o encadeamento entre essa atitude e esses valores? (d) De que forma as mulheres entrevistadas percebem as mulheres que não pintam o cabelo? Como elas enxergam a reação dos outros a sua atitude? (e) O comportamento dessas mulheres que optam por manterem seus cabelos grisalhos tem características de um comportamento desviante, frente aos padrões estéticos e os hábitos de cuidado pessoal predominantes? 49 3.3 Fases da pesquisa FASE 1 – Contato com o fenômeno social A primeira fase da pesquisa, “de orientação e visão geral” (LINCOLN, GUBA, 1985), abrange a introdução ao tema. Pode-se dizer que isso se deu a partir da participação da autora em uma pesquisa sobre hábitos de consumo de produtos de beleza. Realizada pela Cátedra L’Oréal de Comportamento do Consumidor, um núcleo de pesquisa do Instituto Coppead de Administração, a pesquisa consistiu em entrevistas em profundidade com mulheres entre 17 e 55 anos, moradoras da zona sul do Rio de Janeiro. Para a formação do objeto de pesquisa e desenvolvimento do questionário, o núcleo analisou o conteúdo da Revista Veja sobre o tema, entrevistou estrangeiros, especialistas da área e consumidores, foi a campo observar e coletar informações. A integração da autora na fase de coleta de dados desse estudo, permitiu levantar conhecimentos acerca do tema beleza. Cabe mencionar que outros comportamentos desviantes – como o uso de piercings, de tatuagens e formas de se vestir – foram inicialmente considerados. Optou-se, ao final, pelo estudo de mulheres que não tingem seus cabelos, mantendo-os grisalhos, por vontade própria. Exclui-se desta pesquisa mulheres que não utilizam a tintura por serem alérgicas ao produto e que, ao serem perguntadas, não consideravam que tinham cabelos brancos, ainda que os cabelos brancos fossem visíveis. Além do contato com essa pesquisa qualitativa sobre a Beleza, que serviu inclusive como base na produção do roteiro de entrevistas deste estudo (anexo 1), a pesquisadora buscou levantar informações sobre o tema do estudo através de levantamento bibliográfico e material secundário, como matérias de jornais e revistas. 50 Essa fase de busca por material literário de referência aconteceu entre janeiro e julho de 2005. Foram consultadas as bases de dados internacionais para busca de artigos que, após a seleção, eram lidos e resenhados. Foram estudados livros a respeito de beleza e hábitos de cuidado pessoal. A freqüente leitura de periódicos, como jornais e revistas, permitiu o contato com textos sobre costumes atuais em relação aos cabelos. FASE 2 – Construção do corpus de pesquisa A noção de corpus, presente em Bauer e Aarts, guiou a seleção de entrevistadas desta pesquisa. Barthes (1967: 96) define corpus como “uma coleção finita de materiais, determinada pelo analista, com (inevitável) arbitrariedade, e com a qual ele irá trabalhar”. Ainda na concepção de Barthes, os materiais do corpus devem ser teoricamente relevantes para a pesquisa, isto é, devem ter um foco temático; devem ser tão homogêneos quanto possível, e devem ser de um mesmo momento histórico (apud BAUER, AARTS, 2002). O corpus desta pesquisa qualitativa se constitui pelas informações verbais coletadas a partir de um mesmo foco temático – o entendimento das motivações e valores da atitude de não pintar os cabelos – entre mulheres de mesma classe econômica e área geográfica; e com uma mesma característica – manterem os cabelos brancos sem utilização de tinturas. Além disso, as entrevistas foram realizadas num mesmo período: junho de 2005. Segundo Gaskell (2002), como o objetivo da seleção dos entrevistados deve ser o de descobrir a variedade de pontos de vista, o entrevistador deve buscar a segurança de ter ouvido todos os pontos de vista e, para isso, é preciso entender como o meio social que se deseja pesquisar se segmenta. Com o objetivo de definir qual grupo de mulheres entrevistar, buscou-se observar mulheres antes do início da seleção. 51 A seleção das entrevistadas teve, então, como parâmetros: o sexo (feminino), a classe econômica (classe A), a área geográfica de moradia (zona Sul do Rio de Janeiro) e a idade (25 aos 55 anos). Duas razões explicam a opção por mulheres nesta faixa etária. Primeiro, a dificuldade em se encontrar mulheres mais novas que já tenham cabelos brancos suficientes para adotarem a cor de cabelo “grisalha”. Sabe-se que o aparecimento dos cabelos brancos está ligada, entre outros fatores, ao envelhecimento. Dessa forma, é pouco comum encontrar mulheres muito jovens com muitos cabelos brancos. O segundo motivo é o fato de que, entre mulheres mais velhas, parece ser mais comum a não utilização de tintura. Através da observação de grupos de mulheres na terceira idade, foi possível identificar que, entre as senhoras com mais 60 anos, seria mais freqüente encontrar mulheres que não pintem os cabelos. Pode-se dizer, portanto, que a atitude de manter os cabelos na cor original seria mais incorporada aos padrões sociais nesta faixa etária, o que exclui essas mulheres do corpus desta pesquisa. A opção por moradoras do Rio de Janeiro da classe A e moradoras da Zona Sul se explica pela conveniência em se achar as entrevistadas. Existe a percepção, advinda do senso comum e portanto não cientificamente comprovada, de que esse perfil de mulheres é o perfil de formadoras de opinião, de mulheres que lançam tendência por terem alto nível de formação intelectual, pertencerem a um extrato elevado na classificação econômica e serem moradoras de áreas nobres da cidade. FASE 3 – Coleta de dados O método de coleta de informação escolhido para esse estudo foi a entrevista em profundidade semi-estruturada. 52 A entrevista qualitativa em profundidade é uma técnica de entrevista direta, pessoal e aberta que visa revelar motivações, crenças, atitudes e sentimentos a respeito de uma dada atitude. A utilidade mais característica desse tipo de entrevista é justamente em estudos exploratórios, em pesquisas através das quais se busquem entendimento e insights a cerca de um tema pouco explorado ou desconhecido (MALHOTRA, 1993). Na pesquisa social, a entrevista qualitativa é a forma que o pesquisador possui de obter informações sobre a interação social e, assim, formar uma compreensão mais detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações relacionados ao comportamento das pessoas (GASKELL, 2002). Desenvolvimento do roteiro de entrevista Com base nos objetivos definidos para a pesquisa, na literatura pesquisada e na pesquisa sobre hábitos de beleza da Cátedra L’Oréal de Comportamento do Consumidor, foi elaborado um roteiro semi-estruturado para as entrevistas (anexo 1). Antes de ser aplicado, o roteiro foi pré-testado em uma entrevista. O pré-teste serviu para que se pudesse avaliar se havia dificuldade de compreensão das perguntas por parte da entrevistada e se os temas e objetivos estabelecidos para a pesquisa estavam sendo cobertos. O roteiro de perguntas serviu apenas de guia para as entrevistas: a forma como as questões foram colocadas e a ordem na qual elas apareceram dependia mais do discurso do entrevistado do que do roteiro. Segundo Gaskell (2002), o entrevistador deve incorporar no roteiro questões relevantes que surjam no decorrer das entrevistas e que não estejam no roteiro originalmente definido. No caso desta pesquisa, novos tópicos foram sendo incorporados ao roteiro na medida em que eles surgiam e se mostravam relevantes para os objetivos pretendidos. 53 Uma parte do roteiro incluiu uma adaptação da utilização da técnica laddering (REYNOLD, THOMAS, 1988; OLSON, REYNOLD, 2001), que se mostra como uma ferramenta adequada na busca pelo entendimento das conseqüências e dos valores pessoais envolvidos na decisão de não pintar o cabelo. Desenvolvido a partir da teoria Means-end (meios-fins), o laddering é utilizado apenas como um referencial na descoberta das relações entre a ação de não pintar o cabelo, as conseqüências disso na vida das entrevistadas e os valores pessoais por trás dessa escolha. Neste momento, cabe explica-la de forma mais detalhada, destacando sua relevância e utilização na pesquisa em comportamento do consumidor. A teoria Means-end (Meios-fins) e a técnica do laddering A Teoria do Means-End foca, especificamente, nas relações entre os atributos dos produtos (os “means”), a conseqüência deles do produto para o consumidor, e os seus valores pessoais (os “ends”) (REYNOLD, THOMAS, 1988). A abordagem Means-End considera que os atributos de um produto não são considerados pelo consumidor de forma isolada no momento da tomada de decisão. Os consumidores pensam também na solução de seus problemas ao fazerem suas escolhas, é por isso que as conseqüências das atitudes de consumo são relevantes para eles (OLSON, REYNOLD, 2001). A principal idéia por trás da abordagem Means-End é o fato de que o tomador de decisão escolhe a forma de agir que lhe parece trazer melhores conseqüências. A abordagem permite não somente identificar quais opções de ação o consumidor possui como também entender o porquê da importância de cada uma delas (OLSON, REYNOLD, 2001). Dessa forma, o entendimento do critério de decisão – isto é, das possibilidades de ações do consumidor – e a relevância de cada critério ajudam a entender mais a fundo o processo decisão. Os pesquisadores podem utilizar a abordagem para cinco objetivos diferentes (OLSON, REYNOLD, 2001): (1) entender qual o critério 54 de escolha do consumidor; (2) identificar os aspectos positivos (equities, quando associados por um grande número de consumidores) de um produto, serviço ou marca em comparação a outros; (3) questionar o consumidor sobre os fatores adversos que o afastem do consumo de uma marca ou produto; (4) entender o contexto na qual a decisão é tomada; e (5) entender as relevâncias pessoais atribuídas a cada escolha. Para alcançar esse último objetivo, o pesquisador utiliza a técnica do laddering, que será descrita a seguir. A técnica do laddering, utilizada de forma adaptada, numa parte do roteiro desta pesquisa, consiste numa técnica de entrevista em profundidade cujas perguntas têm o objetivo de fazer com que o respondente crie associações entre os atributos do produto e as características próprias do seu “eu”, neste caso, suas motivações mais pessoais. As perguntas diretas, que são formuladas de forma específica para cada entrevistado, seguem um modelo: “Por que isso é importante para você?” O “isso” são as distinções previamente mencionadas entre as específicas marcas de produtos e serviços (REYNOLD, THOMAS, 1988). Os três diferentes níveis de abstração das respostas são os atributos do produto (A), as conseqüências na vida do consumidor (C) e os valores pessoais que estão por trás da escolha (V). A cadeia A-C-V permite entender como as informações do produto são processadas pelo consumidor no que pode ser chamado de perspectiva motivacional, que revela o que está por trás da escolha de um atributo ou uma conseqüência (REYNOLD, THOMAS, 1988). A técnica foi desenvolvida para aplicação em pesquisas de comportamento do consumidor relacionado à escolha por um produto e, normalmente, a entrevista emprega somente esta técnica. No caso desta pesquisa, precisou-se adaptar a técnica, já que se busca não só a pluralidade de opiniões da atitude em relação a um produto, a tintura de cabelo, mas também a obtenção de outras informações que auxiliassem a compreensão do comportamento das entrevistadas. Dessa forma, não somente o método de aplicação – que se aliou à outros 55 questionamentos – mas também o número de entrevistadas foi uma adaptação para que se aproveitasse da melhor forma essa técnica. Após a aplicação do laddering, o pesquisador está apto a traçar mapas de quantificação e análise dos encadeamentos entre os níveis de abstração. O objetivo, aqui, não foi o de mapear os atributos, conseqüências e valores de forma quantitativa. Pelo contrário, empregaram-se as formas de abordagem do laddering para aprofundar o discurso do consumidor e ampliar o entendimento acerca do fenômeno. Novamente, menciona-se a necessidade de adaptação da técnica para dela extrair o que de mais útil ela teria por oferecer a essa pesquisa. A adaptação segue a metodologia empregada por Zaltman (2003) na pesquisa com latinoamericanos nos EUA. Realização das entrevistas Segundo Gaskell (2002), deve existir um limite máximo para o número de entrevistas, que não deve ultrapassar 25 entrevistas individuais. Para Bauer e Aarts (2002) a limitação do total se baseia tanto na saturação do tema quanto ao tempo hábil para a pesquisa. O tempo disponível para se fazer e analisar as entrevistas é a primeira restrição sobre o tamanho de uma pesquisa. O pesquisador precisa de tempo para fazer uma boa análise, diminuindo o risco de coletar tanto material a ponto de não conseguir aprofundar suas análises. A segunda limitação, a saturação, refere-se ao momento em que uma nova entrevista acrescenta pouco às descobertas já feitas no estrato pesquisado. No total foram realizadas 12 entrevistas que duraram, em média, noventa minutos, totalizando 554 minutos de gravação. Anotações foram feitas ao final de algumas entrevistas, quando as entrevistadas davam depoimentos relevantes ao tema, após o gravador estar desligado. Essas anotações foram incorporadas às transcrições no momento da análise. 56 A seguir é feita uma breve descrição do perfil das entrevistadas, traços marcantes e a descrição dos cabelos. Como cada entrevistada possuía diferentes quantidades de fios brancos, foi feita uma escala (ANEXO 1), a partir da percepção da entrevistadora, a fim de que orientar o leitor em termos dessa diferença entre os tipos de cabelos. Descrição das entrevistadas Alice, 37 anos, casada Formação Letras Português/Inglês Ocupação Comerciante Traços Marcantes Mulher simples, em termos de visual e atividades de lazer Descrição dos Cabelos Cabelo longo, escuro com mechas brancas quantidade média. Tom cinza acobreado. em Aline, 47 anos, casada, 3 filhos Formação Técnica em produções cinematográficas Ocupação Produtora cultural e produtora executiva de um projeto de difusão do Áudio Visual Brasileiro Traços Marcantes Tem dupla nacionalidade (brasileira e americana), gosta de sair com os amigos em dias menos movimentados, freqüenta muitas festas e tem visual moderno Descrição dos Cabelos Cabelo com grandes mechas brancas Predominância dos fios brancos. 57 Amanda, 36 anos, desquitada Formação Direito Ocupação Advogada de uma consultoria de gestão Traços Marcantes Pratica esportes radicais ao ar livre como “catarse” do cotidiano, já foi professora de etiqueta Descrição dos Cabelos Cabelos longos e muito escuros, fios brancos quase imperceptíveis. Ana Maria, 53 anos, 3 filhos Formação incompleta em Arquitetura e Psicologia. Completa em Pedagogia Ocupação Empresária. Trabalha com o marido e os filhos numa produtora pedagógico-editorial. Traços Marcantes É vegetariana, vai para o trabalho de bicicleta, recebe os amigos todos os domingos, tem relação muito próxima com os cabelos – conhece bastante e já foi cabeleireira de amigos. Descrição dos Cabelos Cabelo longo. Mechas acinzentadas, distribuidas de forma homogênea. Tom cinza. Bruna, 38 anos, solteira Formação Jornalismo 58 Ocupação Editora Traços Marcantes Mora sozinha, é vegetariana, valoriza as atividades ao ar livre, lê os rótulos dos produtos para o cabelo antes de comprá-los (preocupada em adquirir produtos sem química). Descrição dos Cabelos Cabelo curto e mesclado de forma homogênea. Tom cinza – predominância dos fios pretos. Cristiana, 49 anos, casada, 2 filhos Formação Arquitetura Ocupação Administra a produtora de vídeo da família Traços Marcantes Passa todas as manhãs na rotina de caminhar até a praia e resolver problemas de casa, a tarde também fica em casa, onde funciona a produtora. Descrição dos Cabelos Cabelos curtos e mesclados de forma homogênea. Predominância dos fios brancos. Tom cinza Lúcia, 31 anos, solteira, mora com os pais Formação Comunicação, pós incompleta em tradução Ocupação Editora Traços Marcantes Gosta de se divertir sozinha, se arruma como se fosse um “projeto gráfico”, por duas vezes quase pintou o cabelo. Descrição dos Cabelos Cabelo de comprimento médio, escuro, fios brancos 59 perceptíveis, em grande quantidade Maria Cristina, 33 anos, casada, 1 filho Formação Psicologia Ocupação Responsável pela Comunicação de um Instituto Traços Marcantes Está em ascensão no trabalho, faz um curso de pósgraduação e cuida da família. Seu lazer se resume a programas com o filho Descrição dos Cabelos Cabelos longos e muito escuros, fios perceptíveis, mas em pouca quantidade. brancos Regina, 31 anos, casada Formação Comunicação, com mestrados em Administração e Sociologia (na França) Ocupação Professora de Marketing e pesquisadora free lancer Traços Marcantes Vestia roupas com toque de modernidade, de “tendência” de moda, usa maquiagem (rímel e batom) todos os dias. Descrição dos Cabelos Cabelo médio, mesclado de forma homogênea, fios brancos e negros. Tom cinza escuro. Rogéria, 28 anos, solteira, mora com os pais Formação Letras e Tradução 60 Ocupação Tradutora free-lancer e Assistente Editorial Traços Marcantes Usa as unhas pintadas de preto “há anos”, vestia roupas bem simples, tem duas rotinas de trabalho – passa os fins-de-semana trabalhando. Descrição dos Cabelos Cabelo médio e mesclado de forma homogênea. Predominância de cabelos brancos. Tom cinza claro Sandra, 54 anos, casada, 1 filha Formação Informática Ocupação Administra cooperativa de Informática Traços Marcantes Quando jovem, morava em uma cidade do interior e fazia coisas como usar a cabeça raspada, dirigir sem habilitação, dirigir um trator. Descrição dos Cabelos Cabelo muito comprido, com mechas acinzentadas, distribuídas de forma heterogênea. Tom cinza. Telma, 51, casada, 3 filhos Formação Biologia Ocupação Professora de biologia e Coordenadora Psicopedagogia de uma escola tradicional Traços Marcantes Lazer é em casa ou com a família. Viaja anualmente ou para Santa Catarina, onde tem família, ou para a Europa, quando tem dinheiro Descrição dos Cabelos Cabelos curtos e mesclados de forma homogênea. de 61 Predominância dos fios brancos. Tom cinza. Dificuldades e peculiaridades no campo Como em todo estudo, a pesquisadora também encontrou dificuldades e peculiaridades na realização das entrevistas. Como auxílio para futuros estudos, faz-se aqui uma descrição desses percalços. Como as entrevistas foram realizadas no local e horário mais conveniente às entrevistadas e por serem elas, em sua maioria, profissionais com a rotina bastante ocupada por compromissos, a pesquisadora precisou estar disponível para ir a diversos bairros como Leblon, Cosme Velho, Centro, Botafogo e em qualquer horários do dia – pela manhã, na hora do almoço ou de noite. Para que a fase de entrevistas não demorasse muito tempo, era preciso estar disponível a qualquer momento. Teve-se o cuidado de ligar no dia anterior ou horas antes para confirmar as entrevistas, quando elas eram agendadas com antecedência. As entrevistas foram feitas em diversos locais e cômodos – salas de reunião, restaurantes, salas de jantar, quartos, salas de trabalho. Era preciso ter atenção para que a gravação não ficasse com muitos ruídos quando a entrevista precisava ser feita em lugares públicos abertos, como restaurantes. Quando realizada no ambiente de trabalho, era comum ocorrerem interrupções, como as do toque do telefone, da entrada de outros funcionários na sala ou pela necessidade de solução de algum problema urgente. Neste momento, a pesquisadora precisava parar a gravação e ter em mente a última frase da entrevistada, para saber de onde retomar a entrevista. 62 Ocorreu, também, a intervenção de um marido quando a entrevista se realizava na mesma sala onde ele estava. A entrevistada e a pesquisadora estavam sentadas no sofá, mas o marido trabalhava na sala de jantar próxima. Ao ouvir um depoimento, o homem se manifestou. Mais tarde, muitos telefones começaram a tocar (a sala da casa era o escritório da empresa do casal), e a pesquisadora perguntou se não haveria outro cômodo onde a entrevista pudesse continuar, sem perturbar a rotina da “casa-empresa”. O estudo continuou no quarto, longe do marido e dos telefonemas. 63 FASE 4 – Tratamento de dados Neste trabalho, a análise dos dados foi feita por meio de duas técnicas: a análise de discurso e a análise dos dados obtidos na aplicação adaptada do laddering. “Análise de discurso é o nome dado a uma variedade de diferentes enfoques no estudo de textos” (GILL, 2002, p.244). Existem diversos estilos de análise de discurso, variando de acordo com tradições teóricas. Todas essas formas rejeitam a noção realista de que a linguagem é uma forma de refletir sobre o mundo. Todas compartilham da idéia de que o discurso tem importância central na construção da vida social (GILL, 2002). O método de trabalho consiste em, primeiramente, procurar por padrões no discurso, o que denota a variabilidade e a consistência entre as narrações. Em seguida, pode-se criar hipóteses sobre as características específicas do discurso, testando-as frente aos dados. A atenção dos analistas de discurso deve ser empregada tanto no exame da linguagem quanto nos silêncios, naquilo que não é dito (GILL, 2002). Foram feitas duas leituras da entrevista antes de serem identificados os padrões e as discrepâncias nas narrações. A análise foi baseada tanto na identificação desses dois pontos, quanto na tentativa de aliar o que se encontrou na revisão da literatura com o que foi dito pelas entrevistadas. A análise do discurso foi feita após ter sido completada a analise dos dados obtidos com o laddering. Na metodologia laddering, a formação da cadeia de três níveis de abstração (atitude, conseqüência e valores), pode ser desdobrada em uma de seis níveis e de quatro, sendo a de quatro a mais comum. A cadeia de seis elos foi escrita por Olson e Reynold em 1983 e é demonstrada a seguir (OLSON, REYNOLD, 2001): 64 Atributos Concretos – Atributos Abstratos – Conseqüências Funcionais – Conseqüências Psicosociais – Valores Instrumentais – Valores Terminais. Por vários estudiosos entenderem que a cadeia de seis elos é muito complexa e não aplicável em vários negócios, adota-se hoje como o padrão a cadeia de quatro elos, descrita abaixo (OLSON, REYNOLD, 2001): Atitudes – Conseqüências Funcionais – Conseqüências Psicosociais – Valores ou Objetivos A análise da informação coletada através da técnica de laddering envolveu, primeiramente, uma análise de conteúdo para identificar os elementos-chaves, isto é, as respostas mais citadas para cada um dos elos. Depois, o pesquisador elaborou uma tabela para representar o número de associações feitas entre cada um dos elementos (REYNOLD, THOMAS, 1988). Essa tabela serviu de base para a formação de um diagrama, onde se pode visualizar melhor as cadeias, cuja análise foi feita em seguida. 3.4 Limitações do método Antes de se apresentar os resultados e as conclusões desta pesquisa, é preciso alertar o leitor para as limitações do tipo de estudo aqui proposto. Deve-se ter em mente que os resultados desta pesquisa não devem ser projetados para outras amostras ou populações, visto que as informações obtidas não se propõem a serem representativas (Aaker et al., 2004). Por se basear nas informações concedidas, isto é, pelo discurso do entrevistado, a pesquisa qualitativa apresenta limitações da seguinte ordem: o entrevistador pode não ser capaz de entender a linguagem do entrevistado; o entrevistado pode não mencionar todos os detalhes importantes; algumas coisas podem ser difíceis de serem ditas em palavras, constrangedoras ou “descortesias”; o entrevistado pode ter um discurso tendencioso – discurso pronto, que não é o seu, mas o do status 65 quo. Tudo isso pode fazer com que o entrevistador tenha falsas inferências a partir da análise dos dados (GASKELL, 2002). Outra limitação é o fato da pouca estruturação do roteiro permitir grande flexibilidade aos resultados (Aaker et al., 2004). Dessa forma, a pesquisa qualitativa está muito suscetível à influência do entrevistador e à lógica do entrevistado. A obtenção de pontos de vista diferentemente abrangentes e a interpretação dos dados dependem fortemente das capacitações do entrevistador (MALHOTRA, 1993). Pelo lado do entrevistado, ele, ainda que guiado, cobre de forma mais profunda os assuntos que mais lhe interessem e vice-versa; além disso, é sua lógica e perspectiva interna que conduz a entrevista (CAMPOS, 2000). 66 4. DISCUSSÃO DE RESULTADOS Neste tópico é feita a discussão do que foi levantado nas entrevistas qualitativas. A discussão é conduzida, principalmente, pelas perguntas que o estudo pretendeu responder. Em meio à apresentação dos resultados, é feita a associação deles com as teorias apresentadas na Revisão da Literatura. Este capítulo se inicia com a apresentação dos tipos de cuidados que as entrevistadas têm com seus cabelos, isto é, que tipo de rituais existem por trás da relação com eles e que produtos são consumidos. No segundo tópico, discute-se os fios brancos em termos das reações que eles despertam no meio social do qual pertencem as entrevistadas, e do que eles representam para as mulheres com base em seus questionamentos – formas de usar e comparação com aquelas que não os tingem. O terceiro item desta análise apresenta e analisa os resultados da aplicação da metodologia laddering, ou seja, que conseqüências e valores foram identificados na atitude de não pintar os cabelos. No último tópico, é analisado o comportamento desviante das entrevistadas em termos de estilo de vida, consumo e relação com o cabelo bem como o levantamento de como elas se vêem frente aos padrões de beleza estabelecidos. 4.1A percepção de vaidade De forma freqüente, as perguntas em relação aos hábitos e cuidados em relação aos cabelos desencadeavam a avaliação de muitas entrevistadas a respeito da sua vaidade, um discurso que contrapõe a descrição de seus hábitos de beleza: “Eu não sou uma pessoa muito vaidosa” (Telma, 51) “É, vamos dizer assim, eu não sou uma pessoa assim muito preocupada”. (Sandra, 54) 67 “Eu sou uma mulher muito, muito pouco vaidosa. É assim, higiene básica mesmo (...) O meu cabelo é uma coisa assim que eu curto muito, agora é um cabelo que não me dá trabalho” (Alice, 37) Na declaração de Alice, a percepção de vaidade parece relacionada com o tempo disponível da mulher, “não me dá trabalho” pode ser lido como “não preciso gastar muito tempo cuidando dele”. Outras entrevistadas também associam a vaidade a sua disponibilidade: “O meu limite de vaidade é até onde ela me dá trabalho. Eu sou uma pessoa vaidosa, mas eu não sou capaz de sacrificar o meu tempo de lazer em benefício da vaidade” (Cristiana, 49) “Eu não sou muito vaidosa. Então eu não gosto de dedicar tempo à essas coisas. E se ele fosse complicado eu ia ter que dedicar. Porque assim, que por menos vaidosa que você seja, você simplesmente não pode sair com o cabelo sujo. Não pode sair com o cabelo parecendo um ninho de pombo. Enfim, então...Tem um mínimo que você tem que fazer”. (Rogéria, 28) Talvez a percepção de vaidade relacionada ao tempo gasto para satisfazê-la possa ser explicada pelo que afirmam Mauss (1972) e Bouzón (2004). A noção de estética é caracterizada pela ausência de utilidade, diferente da técnica, que se relaciona diretamente com a idéia de utilidade. O fato estético é representado sempre sob uma forma de jogo, de desnecessário, de luxo (MARCEL MAUSS, 1972). É como se Cristiana e Rogéria relacionassem a vaidade com algo fútil, desnecessário, quando se existe algo de mais “útil” no qual empregar o tempo. Neste sentido, a explicação de Bouzón (2004) é de que “O cabelo é considerado fútil porque é socialmente localizado dentro do campo da vaidade, da beleza, do corpo físico, do que é externo, superficial e profano” (BOUZÓN, p. 39). 68 Ainda que o tempo pareça ser mais importante do que a vaidade, no discurso de Rogéria, existe “um mínimo” a fazer. Esse mínimo sugere que é preciso cuidar da imagem que você tem frente aos outros, mesmo que você não seja vaidosa, e tenha essa noção de utilitarismo dentro de você. Além dessa possível percepção de pouca utilidade na vaidade com os cabelos, Ana Maria chama a atenção para uma outra maneira de encarar a vaidade. Para ela, parece ser algo inerente às mulheres. “Apesar de ser assim uma pessoa sem hábitos de vaidade muito forte, eu sou uma pessoa muito vaidosa. Eu acho que estou sempre ligada, sabe, em nunca esquecer que eu sou uma mulher” (Ana Maria, 53) De tal forma que ela, cujos hábitos de vaidade são poucos, sugere que a vaidade pode ser algo interno, algo que está na mente dos vaidosos e não somente em suas práticas. Porém, ao mesmo tempo em que esse grupo de entrevistadas parece possuir alguma dificuldade para assumir que são vaidosas, a vaidade começa a se revelar quando falam dos cuidados com os cabelos. 4.2 Cuidados com os cabelos: produtos e serviços Através do relato dos hábitos de beleza em relação aos cabelos é possível identificar a conexão das entrevistadas com suas madeixas. Percebe-se que os cuidados podem até se constituir em rituais. O caso de Aline, 47 anos, é um exemplo. “...eu massageio bem o couro, puxo ele pra lá e pra cá, e também puxo o cabelo, viro a cabeça pra baixo e puxo e esfrego bem as pontas. Aí, seco com a toalha, uso o condicionador e a cera. Depois, eu escovo com uma escova (...). Eu tenho muito cabelo. Então é uma escova meio pente. E aí eu jogo o meu cabelo pra todos os lados. Escovo ele pra 69 frente, pra trás, pro lado. Depois que eu escovo, acerto com a mão e passo o tal creme de pentear” (Aline, 47). Para muitas, os hábitos relacionados aos cabelos parecem se resumir a lavar com xampu e condicionador. A freqüência de lavagens na semana varia, mas muitas relatam que lavam todos os dias. Aquelas que consideram seus cabelos mais secos optam por lavar menos. Como é a relação dessas entrevistadas com seus cabeleireiros? Alguns discursos como os de Aline (47) e Regina (31), mostram um certo desconforto. Elas relatam a impaciência com o Salão de Cabeleireiro – mencionam que não gostam do ambiente e que rapidamente sentem vontade de ir embora. Aline menciona que deixou de continuar um tratamento de hidratação e largou o hábito de pintar graças ao “desgosto em freqüentar esse ambiente”. Hoje, ela corta os cabelos em um lugar que chama de “atelier”. Regina relata que já ganhou hidratações ou escovas, em promoções por cortar o cabelo e, mesmo assim, não quis permanecer no salão para realizar esses serviços “brindes”. No entanto, as entrevistadas foram revelando a importância atribuída aos serviços de cabeleireiro. Aparecem, por exemplo, diferentes freqüências do corte de cabelo. Os relatos daquelas cujos cabelos são curtos – isto é, cabelos na altura ou acima do pescoço – indicam que elas vão ao cabeleireiro mais vezes ao ano. Normalmente, a cada dois ou três meses para manter o corte. Os relatos sugerem que cabelos curtos combinam com os fios gisalhos: “Porque o cabelo grisalho eu acho legal ele mais repicado, acho que aparece mais o grisalho, ele fica mais bonito, e aí eu fui gostando dele” (Cristiana, 49). “Porque eu acho que o cabelo branco grande envelhece. Quando ele começou a ficar mais grisalho, eu fiz essa opção (Telma, 51)” 70 Nesses relatos aparecem opções de escolha e os cabelos são gerenciados como uma unidade customizável (Askergaard, 2002). Como tornar os cabelos brancos interessantes? O relato de Regina (31), também sobre cortes, aponta para significados interessantes. Ela sugere que cabelos brancos não seriam modernos, o que motivaria a vontade pelo contraponto, pelo corte moderno, mais interessante, mais diferente, com intuito declarado de chamar mais atenção. O que não acontecera com ela, talvez porque cabelos brancos combinam com cabelos curtos: “Quando eu voltei da França, eu pensei assim: ’vou fazer um corte de cabelo muito diferente. Muito moderno; que dê um contraponto pro cabelo branco’. Então ao invés de eu ter o cabelo liso comprido, igual a todo mundo, eu vou fazer um corte que seja diferente também. E engraçado, porque parece que o meu cabelo ficou menos branco com o corte. Assim, ele chama menos atenção” (Regina, 31). O que aconteceu? Será que o corte tornou mais discreto os cabelos grisalhos, porque os recolocou em equilíbrio com alguma lógica ou com algum padrão? Mesmo fugindo do padrão ao não pintar os cabelos, Regina demonstra qye está buscando a “harmonia”, o “belo”, o “resultado”, ou seja, a beleza é algo que pode ser melhorada (Queiroz e Otta, 2000). O depoimento de Ana Maria (53) reforça a idéia, presente na declaração de Regina, de que o corte dos cabelos está além da relação tesoura-fio-corte – numa visão similar ao resultado da etnografia de Bouzón (2004), que aponta que é preciso que o cabelo combine com o rosto e o corpo. Um novo corte pode influenciar a vida de uma mulher, por constituir tanto sua aparência quanto sua expressão visual no mundo. E, como lidar com o cabelo, num mundo pósmoderno, em que uma mesma pessoa pode possuir vários estilos? (Cova, 2002) “E o corte eu acho que tem que ser além do estilo. É lógico que você tem muitos estilos, mas você tem o rosto da pessoa. O comportamento 71 que fica. Qual é a relação do peso de seu cabelo na parte de cima do cabelo com a parte debaixo do cabelo? Como é que é a relação desse corte com o seu pescoço? Com o resto do seu corpo?” (Ana Maria, 53). Os testemunhos coletados em relação aos cuidados com os cabelos mostram também preocupação com a escolha dos produtos e marcas? O que, inicialmente, parecia estar associado a algo muito básico: um xampu e um condicionador passa a revelar outras preocupações e cuidados, fato exemplificado pelo relato de Rogéria (28): “Então assim: desde que eu me entendi com o cabelo, eu evito mexer muito com ele. (...) Eu normalmente uso xampu e creme rinse e só; tomo muito cuidado. Eu me acertei com um xampu, que pra mim é muito caro, mas é bom. Eu evito botar qualquer coisa no meu cabelo. É um trauma mesmo de adolescência” (Rogéria, 28). As entrevistadas mostraram diversidade em suas escolhas de produtos e marcas para os cabelos. Algumas pagam mais caro (“de 15 a 20 reais”) por xampus de marcas mais sofisticadas (“Boticário, Payot, Klorane”), enquanto outras compram xampus mais baratos (“de 5 a 10 reais”), de marcas mais populares (“Seda, Aquamarine, Colorama”). Bruna (38) relata que, por ser “natureba de carteirinha”, investe em produtos naturais, com cheiro menos forte. E, não basta que o produto seja vendido como natural: “Eu sou aquela pessoa que lê os rótulos dos produtos pra ver o que tem (...) Então eu gosto de comprar sempre os produtos mais naturais possíveis (...) Têm muitas substâncias que às vezes você não nota. Por exemplo, uma vez eu comprei um xampu numa loja de produtos naturais. (...) Naquele tipo de xampu natural eu tinha quatro tipos de corantes diferentes. E várias substâncias conservantes. (...)Tem alguns 72 tipos de corantes que são absolutamente prejudiciais à saúde. Então eu fui na loja e troquei aquele xampu. Não quis usar aquilo.” (Bruna, 38) A atitude de Bruna remonta ao que Lipovetsky (2000) defende: a idéia de que existe espaço, no mercado de cosméticos, para a escolha crítica, para o consumidor comparar produtos e fazer escolhas voluntárias. Como é o caso também da escolha do xampu mais adequado. Cristiana (49), Aline (48) e Regina (31) relatam especificamente o uso de xampus para cabelos grisalhos. Cristiana (49), por exemplo, faz testes antes de suas escolhas de produto e marcas à procura do tom mais bonito do branco dos cabelos ou de um melhor custo/benefício: “Acho que dá uma tonalidade ao branco, mais brilhante, não fica amarelado. Mantém o branco bonito e um vidro dura mais ou menos um mês (...) Esse do Boticário eu senti realmente que fez uma diferença no branco, inclusive das pessoas comentarem que o cabelo estava diferente“. (Cristiana, 49) A compra de produtos de higiene e limpeza, na maioria dos casos, acontece para satisfazer ao que Maslow chama de necessidade social, em sua Hierarquia das Necessidades Humanas. O depoimento de Cristiana sugere que um dos motivos diretos para a escolha do Boticário tenha sido o reconhecimento das pessoas, um exemplo claro, dentre outros reconhecidos nos depoimentos acima, da teoria das necessidades. 4.3 Os cabelos grisalhos: reações e questionamentos Por que manter os cabelos grisalhos não parece ser uma decisão comum? As mulheres que tomaram essa decisão sugerem possíveis motivos: elas conhecem poucas mulheres na mesma situação - as que dizem conhecer, lembram apenas de duas ou três; as mulheres grisalhas não são assunto de revistas e jornais 73 voltados para o público feminino – as mulheres de cabelos brancos não se sentem representadas pelos meios de comunicação: “lembro de uma matéria que saiu no Caderno Ela [do Jornal O Globo] sobre isso. Nunca mais li nada sobre o cabelo grisalho” (Aline, 47). “Você não vê uma reportagem de tratamento pra cabelo grisalho. Eu já olhei várias revistas de moda. Na Elle, na Cláudia, na Estilo, na Nova, nenhuma dessas revistas nunca trouxe uma reportagem pra cabelo grisalho. Eu até já pensei em escrever, dizendo: ‘puxa, vocês não pensam nessas mulheres moças com cabelo grisalho, por quê?’” (Cristiana, 49) Outro motivo se relaciona com reações que as pessoas têm ao fato delas manterem seus fios brancos. Algumas entrevistadas relatam reações de surpresa, de indagação e até mesmo de tentativas de coerção por parte de amigos e familiares, o que parece estar de acordo com a etnografia de Bouzón (2004) e a teoria de que manter os fios brancos, vai contra fortes exigências sociais, sendo uma atitude muito corajosa. Algumas entrevistadas, entretanto, relatam observações positivas, de aprovação – principalmente, por parte dos homens – à opção por não colorirem os cabelos. 4.3.1 Reações aos cabelos grisalhos Novaes e Vilhena (2003) lembram que o indivíduo é responsável por seu corpo e que desde a modernidade o corpo humano é uma representação da individualidade. A concepção sobre si mesma pode ser diferente dos padrões existentes, que guiam a busca coletiva. No entanto, conceber-se diferente tem conseqüências, como reações e julgamentos. 74 Os depoimentos das entrevistadas sobre reações d grupo social em relação à opção pelos cabelos grisalhos sugerem algumas dificuldades. Elas encaram “por quês”, estranhamentos, indagações – os questionamentos negativos: “Olha, acho que não tem reação boa. Ninguém elogia. A pessoa pode não criticar, mas fala assim: ‘Nossa!’” (Maria Cristina, 33) As pessoas costumam associar os fios brancos até mesmo à falta de dinheiro, de tempo ou de cuidado. “O que eu escuto: ‘o que está faltando? Dinheiro? Perdeu a vaidade? Nossa! Você está parecendo bem mais velha!, É falta de tempo?’ (...) Mas reação positiva eu não vejo ninguém. Muito difícil.” (Alice, 37) “Pra mim, a pior coisa do cabelo branco é agüentar a pressão das outras mulheres. Elas ficam muito incomodadas. Às vezes, cruzo com gente andando na praia: ‘Cristiana, quando é que você vai pintar esse cabelo?” Passa por mim, mal cumprimenta. Mas que já não me vê há muito tempo. “Você não vai pintar nunca esse cabelo?’ (...) a minha mãe, por exemplo, ficava ‘incomodadíssima’ com o meu cabelo. Quando o meu cabelo ficou branco ela falava o tempo todo” (Cristiana, 49). Os depoimentos abaixo ajudam a entender diferenças nas reações das pessoas com muita ou pouca intimidade. Na percepção de Regina (31), quando não se é íntimo, há certo constrangimento na reação. Por outro lado, quando se é muito amigo ou da família, as reações são diferentes. A entrevistada parece não entender o porquê de apenas seus cabelos serem assunto de conversas em jantares de família. Por que outras pessoas não estão “na berlinda” como ela por causa de seus cabelos ou de outras características físicas? 75 : “Engraçado que eu acho que as pessoas ficam meio sem graça. Eu acho que não é todo mundo que tem a coragem de vir pra mim e dizer: ‘Por que você não pinta?’ Não é todo mundo que tem essa coragem.” (Regina, 31) “Eu lembro que rolou esse jantar e se instaurou um colóquio se eu deveria pintar o cabelo ou não. E as pessoas discutindo. ‘ah, ela é muito nova pra ter cabelo branco’, ‘ela poderia fazer isso...’ Engraçado porque um deles, que é meu primo, eu acho ele gordo. E ninguém discute se ele tem que fazer dieta. O outro, sei lá, tem um cabelo que eu acho esquisito. Ninguém discute o corte dele, entendeu? (Regina, 31) Existe “felicidade” com os cabelos brancos? Alice (37) reforça a posição de Roberta de que outras características não são tão criticadas ou realçadas como os cabelos grisalhos: “Vou a tudo quanto é festa sem maquiagem, nunca ouvi ninguém falar: ‘Pô, está de cara limpa’. Agora quando você está com o cabelo sem pintar, fatalmente vão falar”. (Alice, 37) A falta da maquiagem, então, seria permitida? Mas a maquiagem, no fim, não teria o mesmo princípio da tintura? Não seria também, sob um ponto de vista, uma forma de esconder as marcas de envelhecimento? Por que, na comparação, a cobrança é maior com a tintura? Bruna (38) lembra que as reações são contraditórias. Apesar de ouvir frequentemente reações de indagações dos outros, ela se surpreendeu quando ouviu, sem querer, uma reação de admiração: “A reação mais comum é perguntar o por quê. Por que você não pinta o cabelo? Em contrapartida, eu tava uma vez no teatro e tava esperando começar a peça e aí eu escutei assim as mulheres detrás comentando: 76 ‘olha só o cabelo dessa mulher aí da frente. Eu me arrependo tanto de ter começado a pintar o meu cabelo... ‘ “. (Bruna, 38) Nesse caso, Bruna parece ter sido uma prova, para essa mulher, de que era possível viver com os cabelos brancos. Isso está de acordo com o que percebe Aline (47): “As mulheres olham. As mulheres ficam assim... Têm um olhar de estranhamento, mas não é um estranhamento negativo. É um estranhamento de curiosidade. De possibilidades” (Aline, 47) É como se as mulheres vislumbrassem a possibilidade de agirem da mesma forma e de serem capazes de, assim, freqüentar lugares públicos, como teatros e festas. E os homens? Como reagem aos cabelos grisalhos dessas mulheres? “Eu já percebi que agrada aos homens. Eu encontro com amigos meus que não vejo há muito tempo: ‘Nossa! Até que enfim uma pessoa autêntica! ’ ‘Que legal! ’ ‘Você está bárbara!’ “ (Cristiana, 49) Vale, neste momento, retomar as idéias de Novaes e Vilhena (2003), segundo as quais o desvio do padrão de beleza aceitável, para o homem, está vinculado à falta de tempo, dada a sua rotina atribulada. Já entre as mulheres, o desvio está vinculado à falta de vaidade, de esforço e de cuidado pessoal. Talvez pelo fato do peso do padrão ser maior entre as mulheres, elas se sintam mais incomodadas com as desviantes, com aquelas que não seguem os mesmos padrões que lhes são estabelecidos. Telma também percebe o apoio masculino. “Os homens em geral apóiam (...) Meu marido, por exemplo, meus filhos, são francamente favoráveis. Dão maior apoio que não pinte” (Telma, 51) Identifica-se, no discurso de algumas entrevistadas, que o salão de cabeleireiro é um local propício para as avaliações e sugestões de mudança: 77 “Quando você vai cortar o cabelo no Salão de Cabeleireiro, tem muita gente que fica olhando” (Bruna, 38). “Qualquer salão novo que eu vou eu tenho realmente que convencer que eu não quero pintar o cabelo. Senão fica uma catequese querendo me mostrar todos os produtos. Os últimos lançamentos. A melhor novidade do mundo pra me convencer a pintar” (Cristiana, 49). Aline chega a comparar as diferentes reações de cabeleireiros. A partir de seu discurso, pode-se perceber a formação de um juízo em relação a um profissional mais “antenado”, que não critica seus cabelos e, em contrapartida, a profissionais mais tradicionais que viviam sugerindo a continuidade do hábito de pintar. Enquanto Regina (31) precisou de um corte moderno para assumir os fios brancos sem dúvidas, Aline (47) precisa de um cabelereiro moderno que respeite sua atitude. “Por exemplo, o Vini [cabeleireiro que atende em ateliê e trabalha, mais especificamente, com produções de moda] nunca falou pra eu pintar. Sempre brincou e transou e trabalhou com o meu cabelo com a questão dele ser grisalho. É claro que as cabeleireiras lá do ‘salãozinho mequetrefe’ queriam que eu continuasse a pintar” (Aline, 47). Talvez o que Aline queira dizer é que não é qualquer pessoa ou profissional que entende a atitude de manter os fios brancos – é preciso estar além do ‘mequetrefe’ para respeitar seus desejos e entender suas atitudes. Ela destaca dois universos de beleza com valores completamente diferentes e se coloca na posição de mulher moderna, à frente do seu tempo. “Nunca recebi qualquer tipo de reprovação por parte de qualquer pessoa, a não ser alguns cabeleireiros que sugeriram de eu pintar o cabelo”. (Lucia, 31) 78 Lucia não é a única que só recebe comentários positivos. “Eu tenho sido muito elogiada (...) Todo mundo fala: ‘Poxa é a primeira vez que eu estou vendo um cabelo ficar grisalho de uma forma bonita”. (Ana Maria, 53) “Eu acho que a maioria gosta. Pelo menos a maioria se manifesta achando que o cabelo é diferente e que é legal eu assumir o cabelo assim; dificilmente alguém não tem uma opinião sobre o meu cabelo” (Rogéria, 28) Além do elogio, o depoimento acima aponta para o porquê dos constantes comentários a cerca dos cabelos brancos. O fato dos cabelos de Rogéria sempre despertarem opiniões não é indicativo de que eles são diferentes? Ainda mais ao se considerar a idade da entrevistada... Segundo Aline (47), a adoção dos cabelos brancos parece ser mais comum hoje em dia que há cinco anos. ”Porque agora eu vejo mais gente com cabelo grisalho, mas quando eu comecei a usar, não tinha ninguém”. Será que isso pode ser explicação para o que aponta Rogéria? Em relação a sua mãe, ela acredita que as críticas eram muito maiores: “Minha mãe tem 52 anos. Vai fazer 53 e ela tem o cabelo grisalho, e ela passou a vida inteira ouvindo as pessoas pedindo pra ela pintar o cabelo, até muito mais do que eu. Não sei se houve alguma mudança. Ela sempre teve mais reações negativas do que positivas, em relação ao cabelo dela” (Rogéria, 28). Se o uso de tintura para cabelos cresce, porque se aceita cada vez mais as mulheres que não a utilizam e, ainda, porque é mais comum encontrar essas mulheres? Será essa uma constatação de que a sociedade está mais acostumada com o diferente? 79 Interessante perceber como algumas entrevistadas percebem a indagação das pessoas quanto a naturalidade de seus cabelos. Parecem existir dúvidas que um cabelo branco bonito seja natural. “Quando as pessoas costumar ser apresentadas pra mim, muitas delas me perguntam se é natural, se não é” (Rogéria, 28) “Recebo muito retorno externo natural das pessoas assim, de eu entrar em loja e vendedor fashion vir me perguntar se o meu cabelo é natural ou se é pintado. Outro dia, a gente entrou na loja da Zoomp, na Oscar Freire, que é a epítome do fashion do Brasil. Do fashion legal. E veio o cara imediatamente falar comigo. Claro que ele podia estar tentando persuadir pra vender, mas eu acho que não foi isso não porque ele foi super-espontâneo, querendo saber se eu pintava, se meu cabelo era natural, porque ele tava louco pra ficar com o cabelo grisalho”. (Aline, 47) Regina parece ter uma explicação para o que está por trás desse questionamento. “Elas falam: ‘É natural?’ Eu falo: ‘É, por quê?’ ‘Não, porque ficou tão bem que parece que você fez’. Quer dizer, porque cabelo branco normalmente quando ele chega, ele é uma praga entendeu? Ele é ruim. Ele é feio de qualquer jeito. Então o cabelo branco ficou bonito, as pessoas perguntam: ‘É natural?’ “(Regina, 31) A percepção de que os cabelos brancos são algo ruim faz com que as pessoas estranhem o fato de uma pessoa de fios brancos ser bonita. Isso merece, inclusive, questionamentos em situações como dentro de lojas, em caixas de supermercado, no escritório de trabalho. Talvez a impressão das pessoas seja tamanha que elas não escondem sua curiosidade. 80 Na opinião de Ana Maria (53), os cabelos mais curtos possivelmente a fazem receber mais elogios hoje. “Agora com ele curto, menos pessoas falam pra eu pintar. As pessoas estão elogiando. ‘Você está bacana, seu cabelo está ficando branco, mas está bonito’. ‘Poxa, está lindo o seu cabelo!’” A mãe de Regina (31), que pinta os cabelos, parece ser uma que elogiaria o cabelo de Ana Maria. Sua reação quando Roberta cortou os cabelos demonstra isso. “’Cabelo comprido, branco. Pelo amor de Deus, né!’ Ela me falou quando eu cortei o cabelo: ‘Até que enfim você cortou esse cabelo!’” Assim que os fios brancos foram ficando mais presentes, Cristiana (49) também cortou o cabelo curto. “O cabelo grisalho eu acho legal mais repicado, acho que aparece mais o grisalho, fica mais bonito”. De onde virá essa percepção de que cabelos brancos ficam melhor quando cortados? O corte parece ser um contraponto à percepção de que os cabelos brancos representam o desleixo de quem os têm. Ele pode demonstrar que, pelo contrário, a mulher se cuida – reforçando a idéia mencionada no item anterior de que mesmo o cabelo grisalho pode (e deve, pela reação dos outros) ser alterado na busca pela “harmonia” e pela “beleza”. Talvez outra justificativa para os elogios seja a distribuição dos fios brancos. Telma (51) justifica, da seguinte maneira, a opção de algumas amigas por terem pintado: “Muitas dizem que começaram a pintar porque o grisalho era um grisalho muito feio, localizado aqui na frente. Realmente, se meu cabelo tivesse ficado grisalho assim eu acho que eu ia pintar”. Sua fala nos permite inferir que talvez o fato do cabelo de Telma ter se tornado grisalho de forma homogênea, sem mechas na frente, tenha colaborado na 81 decisão de manter os fios brancos, justamente por eles serem harmoniosos e bonitos. A mulher, entretanto, não pode interferir no processo de clareamento dos fios, que acontece de forma natural. Aline destaca outro fator “natural” que favorece aquelas que possuem cabelos brancos. Em sua perspectiva, ela acredita que os cabelos brancos combinam melhor com mulheres de olhos claros. Ela acha que fica mais bonito. Dentre as entrevistadas, apenas três possuem olhos claros. Ela é uma delas. “uma das coisas que faz ficar bem é o olho claro. Tanto pessoas negras quanto pessoas de olho azul, tendem a ficar bem de cabelo branco sem ter um aspecto envelhecido”. (Aline, 47) Aline seria, assim, uma mulher privilegiada, cujos olhos azuis lhe protegem do envelhecimento dos cabelos brancos e, consequentemente, podem amenizar algumas reações. 4.3.2 Questionamentos pessoais Nem todos os depoimentos demonstraram convicção em relação à opção de manter os cabelos brancos. Dúvidas? Por quê? Maria Cristina, de 33 anos, lembra que, há oito meses, comprou um xampu colorante para passar nos cabelos. Não usou, porém, não jogou fora nem deu para uma amiga – o que costuma fazer quando compra um produto e não o usa – sugerindo uma intenção de pintar o cabelo no futuro. Outro relato, agora de Lucia (31) também mostra como pode ser difícil tomar essa decisão. “Há um mês, eu marquei o cabeleireiro pra passar tonalizante. Não fui. Desmarquei na véspera, porque a minha chefe falou que tinha que 82 tomar muito cuidado porque às vezes eles não colocam tonalizante. Colocam tintura. Então você é que tem que levar o seu tonalizante. Eu não tinha a menor idéia. Eu não conheço esse produto. Ela me deu uma caixinha, que era um tonalizante e a cor era camurça. Só que eu pensei assim: ‘camurça? Não vai cair bem nos meus cabelos brancos’. Também não vai combinar com os meus cabelos pretos. Ah deixa como tá que é melhor” (Lucia, 31) Lucia continua sem pintar os cabelos. Não confiou no profissional, nem comprou um outro tonalizante, que “combinasse com seus cabelos brancos”. Ainda assim, afirma que pode ser que venha a pintar. “Quando ficar muito branco, talvez, mas por enquanto ainda tá no ‘oitenta vinte’. Eu nunca fecho possibilidades” (Lucia, 31). “Não fechar possibilidades” parece ser a atitude de outras entrevistadas como Regina (31) e Ana Marina (53): “Hoje, eu não tenho mais dúvida, mas se chegar um momento em que eu olhar e falar ‘não tá mais bom’, ‘não está mais bonito’, eu vou pintar” (Regina, 31). Ela sugere que o limite entre pintar ou não os fios brancos é apenas sua vontade. A fala de Ana Maria (53) sugere alinhamento com a opinião de Roberta: “De repente eu fico com mais cabelo branco, e parecendo que estou morta, porque eu sou super-clara. Não tenho quase cor nos lábios. Sou uma pessoa super-devagar. Vou ficar parecendo uma mosca morta. Pode ser, entendeu? Então eu vou ter que usar um artifício. Vou ter que pintar de abóbora, cortar pequeno”. Ainda que reajam aos padrões de beleza, as mulheres parecem conviver com pressões estéticas. Ao não se colocarem numa “bolha”, elas admitem que podem 83 vir a sucumbir às pressões. Quando não se sentirem mais bonitas, elas pintarão os fios brancos. Onde estão as motivações para continuar sem pintar os cabelos? Atitude diferenciada? Comportamento desviante? Senso estético? 4.3.4. A percepção sobre a mulher que pinta Em seus relatos, as entrevistadas falam das diferentes reações de “outros” à atitude de não pintar os cabelos. Mas, como essas mulheres – às vezes decididas, às vezes inseguras – percebem ou julgam as que pintam? É interessante explorar esse caminho inverso; na busca por mais explicações que ajudem na compreensão da ausência do hábito de usar a tintura. Alice (37), por exemplo, caracteriza as mulheres que pintam o cabelo de “mais vaidosas”; porém “inseguras” e “imaturas” na comparação com as que não pintam: “Eu acho que as pessoas que pintam têm uma preocupação maior com a vaidade. E já essas que não têm essa preocupação tão grande, são pessoas mais seguras, estão mais felizes com o que são. Não estão se importando tanto com o que as pessoas vão falar dela. Eu acho que são pessoas até mais maduras”. Sandra (54) tem uma percepção bastante peculiar sobre as usuárias de tintura: “Como eu me sinto bem com a minha cabeça branca. Ele vai se sentir bem com o cabelo dela pintado. Porque ela acha que está rejuvenescendo. Eu acho que não. (risos) Acho que está envelhecendo". Na contramão do senso comum de que tintura rejuvenesce, Sandra parece acreditar que tintura envelhece. Ela olha para suas amigas e o que vê são mulheres com rostos menos jovens do que teriam se optassem, como ela, por não utilizar a tinta de cabelo. 84 Cristiana (49) também concorda que essas mulheres têm uma aparência pior por causa da pintura. Ela não menciona o envelhecimento, mas a dificuldade em obter uma cor adequada (sem ser “demais”): “Eu vejo muita porcaria aí. Muita gente com cabelo pintado muito feio. Ou fica escuro demais, ou fica claro demais. Vermelho demais”. (Cristiana, 49) Para Maria Cristina (33), o motivo passa pela vaidade e pela forma de ser: “uma imagem da mulher que pinta é mais... sofisticada, usaria essa palavra. E a que não pinta, geralmente é uma mulher mais simples”. Mas as comparações de Lucia (31) não se resumem à dicotomia sofisticadosimples, onde o simples parece ser uma característica que ganhe cada vez mais importância na atualidade. Chegam a dizer que “simplicidade é a máxima sofisticação”. Lúcia sugere diferenças mais acentuadas entre os dois grupos; “de espírito”, “de poder”, “intelectual”, “profissional”: “Tem uma diferença muito grande de espírito entre a mulher que faz questão de toda hora pintar o cabelo, que não é necessariamente uma executiva, mas que seria o ícone desse tipo de mulher, e a que não pinta o cabelo e que seria mais intelectualizada, que não estaria nessa lógica do poder, de competitividade, de estar se apresentando, estar sempre bacana (...) Eu acho que 0,00001% das mulheres com o estilo executivo assumiriam os cabelos brancos”. (Lucia, 31) Será que cabelos brancos ajudam a pensar (numa referência à mulher “mais intelectualizada”) e os cabelos pintados ajudam a gerenciar (mulheres “executivas”). Os depoimentos de Aline (47) e Ana Maria (53) parecem, no entanto, abrir uma exceção para a justificativa do cabelo pintado. A intenção da mulher no uso da 85 tinta pode influenciar a sua avaliação. Quando a intenção é brincar com o visual, a opção pela tintura é respeitada: “Tem o lúdico que eu acho legal. Porque aí é... aí é uma brincadeira com a beleza. Não é querer negar uma realidade”. (Aline, 47) “Quando a coisa é lúdica eu acho bacana. Quando não tem lúdico, só tá querendo forçar uma barra...“ (Ana Maria, 53) Então, o objetivo de esconder os fios brancos não seria visto da mesma forma que o de mudar o visual. Na verdade, enquanto esse último é aceito, esperado, por ser uma “brincadeira” e estar no campo do “lúdico”, o primeiro é associado a uma “trapaça”, é a “negação do envelhecimento” e, por isso, uma “forçação de barra” – um artifício para querer ser aquilo que não se é. Interessante como, em princípio, qualquer mulher que pinta o cabelo nega a cor natural do seu cabelo, aquilo que é por natureza. No entanto, aqui, apenas as que pintam os fios brancos estão sendo avaliadas como fora da realidade. Afinal, de qual grupo seria o comportamento desviante? Dos que não pintam? Das que pintam? De ambos ou de nenhum grupo? 86 4.3 O comportamento desviante nas entrevistadas O conceito utilizado neste estudo para comportamento desviante está relacionado ao de contracultura, isto é, uma cultura minoritária caracterizada por valores, normas e padrões de comportamento que contrariam aqueles da sociedade dominante (BATZELL apud DESMOND ET AL., 2001) As entrevistadas ao optarem por não pintarem seus cabelos estariam indo contra o “padrão de comportamento” de esconder os fios brancos (BOUZÓN, 2004). Como elas se vêem com relação a isso? O estilo de vida delas ou suas experiências passadas envolvem situações de questionamento de normas? Existiriam outras manifestações desviantes em relação aos seus cabelos? 4.3.1 Práticas desviantes em outras experiências e no cotidiano Bruna (38), por exemplo, não é do tipo ativista, mas incorpora no seu dia-a-dia algumas práticas dos movimentos pesquisados por Kozinets e Handelman (2004). A organização dos movimentos de consumidores se dá contra a venda de produtos que podem prejudicar o consumidor e a publicação de propagandas enganosas. Bruna, no âmbito individual, preocupa-se com o que consome, ainda que declare não propagar sua preocupação entre amigos e familiares. Ela parece ter um comportamento de consumo peculiar, quando se auto-define como “natureba de carteirinha”. É vegetariana, adepta de produtos naturais, se exercita ao ar livre, tem a preocupação de não comprar produtos que contenham substâncias químicas e sempre lê os rótulos de produtos antes de comprá-los, inclusive os de beleza, como xampus. O que isso nos mostra é que, provavelmente, a atitude com relação aos cabelos não esteja isolada, que sua motivação esteja ligada à forma “natural” como a mulher é ou foi no mundo. Como Bruna, com essas crenças, desconfianças e atitudes poderia usar tintura? 87 “Eu sempre desconfio daquela coisa da tinta (...) Não é só pela comida, que você se contamina. Têm os produtos pra pele. Têm muitas substâncias que às vezes você não está notando” (Bruna, 38). Sandra (54) também não se expressa somente nas atitudes e cuidados com o cabelo. Ela declara ser uma pessoa “a frente de seu tempo”, descrevendo o comportamento que tinha quando era jovem: “eu sou uma pessoa pra frente, eu acho que sou. Por exemplo, nasci numa cidade do interior; com treze anos eu dirigia carro, dirigia trator, Jipe. Sempre fiz coisas que, na época, na minha idade não se fazia. Hoje em dia é uma coisa natural as pessoas saírem e chegarem de manhã. Comigo, por exemplo, quando era nova, 17 ou 18 anos, essa foi a coisa que mais gostei, sempre gostei de chegar de manhã em casa. Eu acho que o amanhecer é a coisa mais linda que tem. Meu pai, a minha mãe eles falavam que não ficava bem, porque os vizinhos... Tem sempre os vizinhos. E eu sempre dizia: ninguém paga as minhas contas. Ninguém pergunta se eu comi. Então eu não tenho que dar satisfação da minha vida. Só que isso, vamos dizer, há 25, 30 anos atrás, não era normal. Eu, por exemplo, eu me casei com 29 anos. Na minha época as mulheres se casavam muito mais novas”. (Sandra, 54) Mas, como é Sandra aos 54 anos? Ela continua com comportamentos que contrariam os padrões sociais dominantes? Se a maioria das mulheres pinta os cabelos brancos, Sandra parece escolher a outra opção: “eu sou do contra. (rindo) Você, por exemplo, se ficar no meu pé, dizendo que eu tenho que fazer um negócio, vou fazer ao contrário. Eu faço ao contrário. Não adianta. Isso é meu, mesmo”. (Sandra, 54) 88 4.3.2 Consumo desviante em relação aos cabelos Da mesma forma que os depoimentos de vida podem ajudar a compreender o possível padrão desviante dessas mulheres, muitas lembranças também podem ajudar a conhecê-las melhor. Quando perguntadas sobre “recordações” que tinham a respeito especificamente de seus cabelos, algumas entrevistadas lembraram de momentos interessantes e atitudes desviantes com relação a eles. Buscou-se compreender se a possível atitude desviante de não pintar o cabelo seria a primeira postura de contestação aos padrões. Alguns testemunhos sugerem que não. É possível identificar comportamentos pouco usuais, como o corte bem curto do cabelo, a adoção do estilo punk, o cabelo indomado num contexto de pessoas arrumadas. Em todos os depoimentos abaixo, pode-se perceber que independente do contexto em que estavam e das pessoas a sua volta, muitas entrevistadas pareciam agir da forma que mais lhe agradava, de maneira considerada autêntica. Ana Maria (53), por exemplo, descreve que quando adolescente utilizava muitos acessórios diferentes no cabelo. Acessórios que ninguém utilizava ou conhecia, como penas, sementes, panos diferentes. “Eu sempre fiz penteados diferentes. Isso eu sempre curti muito. Eu criava muita coisa no cabelo. Eu tinha maneiras de prender, tinha maneiras de emendar tranças, eu fazia muitas coisas que hoje já são normais e naquela época ninguém fazia. Foi nos meus dezessete anos. Eu usava uns panos na cabeça também. Umas faixas. Prendia contas. Eu fazia muitas coisas que eu não tinha visto em nenhum lugar” (Ana Maria, 53) Sandra (54), ao contrário de Ana Maria, não era adepta dos acessórios, mas de um cabelo muito simples, um cabelo quase raspado, que ela só conseguia cortar na barbearia: 89 “Na adolescência eu sempre usei o meu cabelo muito curto. Sempre muito, muito, até a minha irmã mexia comigo, dizia que eu era “Martim Bate Lata” porque era assim maluca, que só eu cortava o meu cabelo assim na navalha. Ficava assim bem baixinho mesmo. E antigamente isso não era uma coisa comum pra mulher usar. Hoje em dia é moda. Isso era uma coisa que chamava a atenção porque eu ficava com o cabelo que só parecia o coquinho da cabeça. Eu cortava no barbeiro de homem”. (Sandra, 54) Outro depoimento interessante é o de Aline (47). Ela remete a uma época da vida em que morava nos Estados Unidos: “Lá, todo mundo é ‘super-comportadinho’, de cabelinhos curtos, as mulheres usam o cabelo curto lá, é raro você ver uma mulher de cabelo comprido, eu tinha um cabelo no meio das costas. Farto. Eu usava rabo de cavalo. Muita trança, muito penteado, mas era sempre contra corrente. Não era nem uma coisa...consciente minha. Eu outro dia, há pouco tempo, vendo foto, falei: ‘caramba, vou pra um país onde todo mundo usa cabelo curto... Fui com o cabelo mais comprido que eu tive.’” (Aline, 47) Lucia (31) conta que a única atitude mais radical que teve com os cabelos foi a de cortá-los num estilo punk, por influência de uma amiga. Como Sandra, ela também precisou ir a um lugar alternativo para conseguir o novo penteado: “Um belo dia, com vinte e um anos, quando entrei pra faculdade, uma amiga chegou, disse: ‘ah, vou ao barbeiro da Praia Vermelha, que é o barbeiro dos militares e vou fazer um corte punk. Vou mandar cortar. Passar a máquina no meu cabelo’. Ela tinha o cabelo super-cacheado, e ele estava grande. Aí ela tirou tudo e só deixou umas mechas assim localizadas. E eu achei o máximo e também pedi pro barbeiro, pra 90 passar a máquina dois no meu cabelo e deixar só uma mecha aqui na frente. Uma coisa super-alternativa”. (Lúcia, 31) Pela tipologia de Holbrook et al. (1996), Lúcia e Aline, naquele momento de vida, poderiam ser a caracterizadas dentro do Perfil Refiguração, do qual fazem parte consumidores que buscam sair do padrão normal para o desviante, como uma forma de crítica aos padrões estabelecidos de uma “Beleza Ideal”, física e que se utiliza da artifícios (BAUDELAIRE, 2004; LIPOVETSKY, 2000; BAUDRILLARD, 1995). Rogéria (28) expressa seu possível comportamento desviante de outra maneira: relata que tentou mudar a aparência, pintando os cabelos de vermelho. Gostou do resultado, mas decidiu aguardar até o cabelo voltar a sua cor natural, o “branco“: “Aí deixei ele crescer normal, ignorando que eu estava com dedos e dedos de cabelo branco e deixei crescer por um tempão, meu cabelo ficando com duas cores. Meu cabelo foi crescendo e foi ficando: branco até a orelha, da orelha pra baixo escuro. Não liguei. Eu sabia que ia demorar, mas queria assumir mesmo” (Lucia, 28). 4.3.3 Percepção sobre si mesma: Será que os cabelos brancos a colocam em desvio com os padrões? Como as entrevistadas reconhecem seu lugar, ou seus cabelos brancos, em meio ao padrão estético estabelecido? Antes de se fazer essa pergunta, elas foram questionadas sobre qual seria o padrão de beleza da atualidade. Com base, nessa comparação provocada, elas externalizaram suas opiniões e parecem ter em autoreconhecimento que estão fora do padrão (Bouzón, 2004) ou que querem se diferenciar dele: 91 “O padrão não me incomoda porque ainda sou jovem ou pareço jovem. Mas eu acho que a exigência de envelhecimento é grande ainda”. (Ana Claúdia, 33) “Hoje as pessoas não podem ter a aparência mais velha, só é bonito quando é jovem. Eu discordo. Acho que tem muita mulher aí mais madura que dá show. O que eu acho que você pode estar uma mulher madura, não tão jovem e ser bonita”. (Telma, 51) “O padrão é a mulher loura, magra, mas gostosa, jovem. Eu querer contrapor esse padrão? Não. Não me passa nem pela cabeça. O que eu acho preocupante é quando você tem um modelo só. Você ter só um tipo de pessoa? Às vezes têm tantas. Aí é que começa quase como um fundamentalismo esse da moda. Quando mais a gente puder mostrar que a diferença é legal, mais a gente está contribuindo pra um mundo menos tacanho. Menos polícia”. (Bruna, 38) Por mais que Bruna não pareça disposta a ir contra a ordem vigente, como ela diz no início de seu depoimento, ela é defensora das diferenças, que se contrapõem ao “fundamentalismo” do padrão, “da moda” (BAUDRILLARD, 1995). Ana Maria parece compartilhar da mesma insatisfação quanto à padronização ao mesmo tempo em que também defende a diferença (BAUMAN, 2003), mas acredita que o problema é mais acentuado localmente: “Eu acho que no Rio de Janeiro está acontecendo uma coisa até de raça pura. Uma coisa... Não é bem raça pura. Estou exagerando, mas tem assim um padrão muito... Padrão de saúde. Padrão músculo. Padrão isso, padrão aquilo. E são umas coisas muito fechadas. Você vai pra São Paulo, isso não existe. Se a pessoa é baixa, alta, vesga. Não existe. Interessa é o conjunto. É o conjunto da pessoa. Como ela é fisicamente junto com que ela é pessoalmente. E de cabeça. Então eu 92 acho uma loucura, porque nós não somos todos iguais e ao mesmo tempo vivam as diferenças”. (Ana Maria, 53) Lembranças passadas ajudam a compreender a contestação de Ana Maria aos padrões estéticos. “Todo Sábado tinha uma festa. E todos os meninos só queriam dançar comigo. Sabe, era fila pra dançar comigo. E eles não conversavam comigo. Era tudo em cima da minha aparência física. Então aquilo era modelo. E aí o que aconteceu? Eu fiquei um ano sem falar com ninguém nas festas. Não importa quem eu sou?” (Ana Maria, 53) O depoimento de Ana Maria sugere que “ser” o padrão de beleza impedia que fosse realçado o que de fato deveria importar. Sua invidividualidade parecia estar escondida dos outros sobre o véu do belo. Apesar da pessoa dentro dos padrões não enfrentar julgamentos sociais com relação a sua beleza (WOLF, 1992; NOVAS E VILHENA, 2003), Ana Maria decidiu abrir mão do convívio social, da valorização da sua beleza. Sandra (54), Aline (47) e Regina (31) observam que, em geral, as pessoas que têm o cabelo branco são vistas como desviantes. “No Brasil, você é estranha por não pintar o cabelo. Você é de esquerda, você é natureba. Você... Tem alguma outra coisa que explica aquela ‘porralouquice’ lá. Você é maluca de alguma forma” (Regina, 31). “O normal pra mim seria se eu tivesse pintado o meu cabelo. Porque é uma coisa que todo mundo faz. Então eu sou do contra porque todo mundo acha que todo mundo tem que pintar e eu não fiz isso” (Sandra, 54). “Não é uma bandeira. Foi uma coisa que surgiu naturalmente. É óbvio que isso me destaca de uma certa forma, de um contexto vigente de 93 massa. Não é a corrente atual. Agora isso, na verdade, não me incomoda nem me desloca, porque isso faz um pouco parte da minha natureza de estar sempre meio fora de sink. Uma coisa que chama a atenção de uma forma diferenciada, agora não é uma coisa proposital. É uma coisa natural da minha pessoa que combina com o resto de mim”. (Aline, 47) Porém “desviante” não está associado apenas à “maluco” (Regina, 31) e sim a uma busca por “destaque” ou “diferenciação da massa” (Aline, 47) como sugere a continuação de seus depoimentos: “É óbvio que eu adoro no meio de uma festa vir alguém falar comigo por causa disso [o cabelo branco]. Então isso nunca me fez sentir uma outsider, uma inadequada. O cabelo nunca me fez sentir uma inadequada. Mesmo no meio de jovens. De garotão, de garotona”. (Aline, 47) Seu cabelo não a exclui do convívio e da aceitação dos outros, pois a diferencia das pessoas, do padrão vigente de cabelos pintados. A partir dele ela conhece pessoas, socializa, interage com o mundo a sua volta. Ao se discutir a diferença padrão normal versus desviante no que tange a beleza, pode-se tentar utilizar a tipologia de Holbrook et al. (1996) para caracterizar essas mulheres. Percebe-se, com a análise dos depoimentos, que talvez não se consiga enquadrá-las inteiramente em nenhum tipo. Primeiro, porque aqui se está analisando apenas um elemento da aparência, o cabelo. A tipologia, como Holbrook et al. (1996) explicam, diz respeito a um conjunto de medidas e interferências em diversas partes do corpo, que possibilitam a passagem das categorias normal/desviantes/momento atual/aspiração. Ao se analisar as intervenções feitas apenas nos cabelos, esta-se 94 limitando o entendimento da tipologia e definir um perfil, com base apenas nas intervenções feitas em uma parte do corpo, pode ser precipitado. Segundo, porque parece ser possível dividir a análise em dois momentos distintos e, assim, dois perfis – na evolução dos fios brancos – apareceriam. O primeiro seria o Perfil Refiguração (de situação normal para a desviante), que acontece à medida que a mulher vai perdendo a coloração natural de seus cabelos. Mas o processo de transição é um processo natural, sobre cuja evolução as entrevistadas não têm controle. A não-intervenção, por sua vez, poderia paradoxalmente ser considerada um tipo de movimento a favor do desviante. No momento, então, no qual elas já estão no padrão desviante, a manutenção dos fios brancos indica a permanência nesse estado. O Perfil Desfiguração (do estado de desviante para desviante), assim, faria mais sentido para a caracterização neste momento. “Eu não faço a menor questão de ser igual. Na verdade o meu cabelo é uma coisa natural. Não fui eu que fiz ele diferente. Eu só mantenho ele diferente. Eu poderia pintar e me tornar igual. Não, mantenho ele do jeito que eu quero. Isso serve pras minhas roupas também. Eu tenho o meu estilo próprio. Eu não sigo moda. Não tenho essa preocupação”. (Rogéria, 28) Rogéria sugere que o “desviante”, na verdade, é o natural e que abre mão do que poderia ser chamado de “normalidade” para ter o cabelo que gosta de ter, usar as roupas que aprecia. Ela não quer ser igual a outras pessoas. Ela admite que busca a diferença nos cabelos, mas essa diferença nada tem de anormal; pelo contrário, é 100% natural. “Eu não me sinto obrigada a agradar as pessoas visualmente. Eu sou muito, muito do meu jeito e se as pessoas entendem, entendem. Se não 95 entendem, paciência. Em geral dá certo. Muitas pessoas me entendem” (Rogéria, 28) A postura de Rogéria parece ir contra as formulações de Askergaard (2002), segundo as quais, o pensamento narcisista está gerando um sentimento muito mais ligado à identidade própria, capaz de gerar vergonha nas pessoas que não seguem os padrões estéticos definidos. Na verdade, Rogéria não segue padrão e não tem vergonha do seu estilo. Talvez por ela não ter aspirações, ou seja, não olhar uma revista e desejar o cabelo e o corpo da modelo, não sinta esse constrangimento. Desmond et al. (2001) afirmam que, ao adquirir conhecimento, os indivíduos se davam conta da condição em que viviam e, assim, inauguravam seus questionamentos rumo ao desviante. Eram cidadãos autocríticos e autênticos, que viviam a resistência em todos os momentos da vida. Os tempos mudaram e o movimento de contracultura é hoje promovido por pessoas que transitam entre o questionamento e a prática comum. São indivíduos que podem viver uma parte do tempo na contracultura e, outra, na ordem vigente. As entrevistadas parecem ter mais esse perfil. “Gosto de tudo o que as pessoas gostam. Por exemplo, gosto de uma boa roupa, entendeu? De uma boa água de colônia. Todo mundo gosta disso. A única coisa diferente é só o cabelo branco” (Sandra, 54) Não é porque Sandra não pinta os cabelos que ela é diferente da maioria das pessoas. Esse hábito não deve ser tomado de forma isolada, afinal, ela gosta de vestir boas roupas, usar perfume, como “todo mundo”. 96 4.4 Conseqüências e valores da decisão de não pintar os cabelos (Resultados da aplicação da metodologia Laddering) Para responder ao terceiro objetivo deste estudo que buscou compreender os valores terminais por trás da atitude de manter os cabelos brancos optou-se por recorrer a uma adaptação da metodologia de entrevista chamada de laddering, que encadeia atributos de uma ação, conseqüências na vida de quem age e valores pessoais por conta da escolha. Considera-se como atributo do laddering, na verdade, a atitude de não pintar o cabelo. A metodologia foi criada para pesquisas com produtos e, por isso, o termo atributo. No entanto, é possível utilizar a técnica para avaliar atitudes dos consumidores (ZALTMAN, 2003). Neste caso, atitudes dos entrevistados podem substituir os atributos de um produto. A figura 4 a seguir traz um mapa de ligações entre a atitude de não pintar o cabelos, conseqüências e valores por trás dessa decisão. Esse mapa serve de guia para a análise – que se inicia pelas conseqüências e prossegue com os valores – das cadeias formadas a partir do atributo “Não pintar o cabelo”. Sugere-se a leitura do mapa da seguinte forma: - À esquerda, na vertical, está a denominação dos seis níveis das cadeias: atributos, conseqüências funcionais, conseqüências psicossociais, e valores; - As linhas da horizontal conectam os diferentes níveis. Os números entre parênteses próximos às linhas indicam quantas conexões existem entre os dois níveis; - Para cada item foi definido um número, que está a esquerda do nome, para facilitar a leitura das cadeias. 97 ATRIBUTO Conseqüência Funcional Conseqüência Funcional (2) Conseqüência Psicossocial Conseqüência Psicossocial(2) VALORES Figura 5 – Mapa Laddering para a análise da atitude de não pintar o cabelo 17. BUSCA DE EQULÍBRIO INTERIOR (3) (2) (2) 16. AVERSÃO AO RISCO 20. LIBERDADE 18. AUTENTICIDADE (5) 19. RECONHECIMENTO SOCIAL (2) (3) (2) (2) (2) 15. Não ser considerado cafona (2) 8. Assumir crenças, valores e defeitos – Ser o que você é 9. Bem-estar (9) 6. Coerência rosto e cabelo 12. Ser 10. Amadurecer e considerada assumir confiável envelhecimento 11. Não ser 13. Manter a (2) caracterizada como beleza (3) descuidada (2) (2) 14. Independência (3) 7. Ter boa saúde (3) 4. Raiz mal pintada não fica aparente 2. Cabelo natural • Está satisfeita hoje 3. Cabelo não estraga (8) (8) 5. Não gastar tempo com o que não gosta (2) • Não corre riscos (12) 1. Não usar tintura 98 As perguntas que desencadearam o uso adaptado do laddering pediam às entrevistadas a razão para o não-uso de tinturas (Anexo 1). Com base nas respostas, outras perguntas eram formuladas, até que se conseguisse acessar conseqüências e valores relacionados ao atributo. Nas páginas a seguir, é feita a descrição e a análise das cadeias formadas com os resultados da aplicação da metodologia. 4.4.1 Conseqüências Reunidas, as conseqüências físicas que advém da atitude de não pintar o cabelo são quatro: manter os cabelos naturais, manter a saúde dos fios, não ter a raiz branca aparecendo e não perder tempo. 4.4.1.1 Ser natural O termo “natural” (figura 4, cadeia 1-2), citado pelas doze entrevistadas, assumiu duas direções: na primeira, “natural” está associado à preservação da saúde, à não-contaminação. Já na segunda direção ele remete à essência da mulher, aquilo que ela é “por natureza” e que se desenvolve até que se chegue na idéia do envelhecimento assumido. O termo “ser o que você é” (figura 4, cadeias 1-2-8-17 e 1-2-7-17) pode ser melhor compreendido no caso de duas entrevistadas naturalistas, que optaram, há muitos anos, por não comer carnes vermelhas. Essa opção não é tomada sozinha, como se vê ela se reflete em outros momentos da vida, como na hora dos cuidados com os cabelos. Elas não querem colocar seus organismos em contato com substâncias que, como a carne vermelha, podem ser prejudiciais. “Desde muito jovem eu comecei a prestar atenção na minha alimentação e ver o que eu estava consumindo. Hoje a gente sabe que não tem contaminação só pela comida. Tem a coisa dos produtos pra pele. Têm muitas substâncias que às vezes você não está notando. (...) 99 Se eu puder preservar de alguma forma a saúde. Esse cuidado pra mim é mais importante do que o creme. O cuidado com o que você está ingerindo. Se você não está se intoxicando”. (Bruna, 38) “Toda minha opção de vida foi natural. Comida natural, de eu ser exatamente o que eu sou, não do jeito que está pré-estabelecido em nenhum ambiente”. (Ana Maria, 53) Em alguns discursos os cabelos “naturais” aparecem ligados ao que as mulheres são “de verdade” e “gostam de ser”. Sugerem reafirmações de crenças, valores e defeitos pessoais; reafirmações legítimas, num momento em que a beleza mostrada pela mídia não parece levar às pessoas a serem originais. As entrevistadas contrapõem, assim, dois tipos de beleza: a “natural” (original e autêntica de cada indivíduo) e a “construída” (das pessoas que seguem padrões midiáticos, virando “personagens”, “modelos”). “Pra mim, tudo natural é mais interessante. Tudo. Eu me sinto assim esquisita quando eu boto uma maquiagem, é como se não fosse eu. Parece que é um personagem. (...) Eu acho que a gente está precisando é disso, da originalidade. Ser você. De assumir seus valores. Assumir suas crenças, assumir seus defeitos. No fundo você tem seus defeitos, mas tem alguma coisa de bonita também. E tem que olhar não só para a aparência, a estética, o físico. A gente é muito mais do que isso. Então as pessoas feias não são valorizadas?” (Alice, 37) “Acho que as pessoas tentam se igualar tanto a parâmetros de beleza. Querem se igualar tanto às modelos, às pessoas na televisão. Copiar os cabelos, as roupas, as modas. E eu não tenho essa preocupação. Eu acho que é importante ser original e acho realmente, meu cabelo ele é diferente. Porque ele é diferente, a cor e tal. Eu assumo. Ele é branco. E eu acho legal. Não teria vontade de imitar o cabelo de alguém.” (Rogéria, 28) 100 “Eu acho assim, que eu não estaria sendo honesta comigo. (...) Você não gosta de um negócio, você não tem que fazer porque as pessoas acham que é bom. Certo? Que é bonito (…) todo mundo diz que o cabelo branco envelhece a pessoa. É uma questão de opinião. Eu acho que não. Não é. Então eu acho que tem que ter a opinião de dizer não. Eu não vou fazer porque os outros querem que eu faça.” (Sandra, 54) A percepção sobre o “natural”, encontrada nos trechos testemunhados acima destacados, está de acordo com descobertas da etnografia de Bouzón (2004). Nela, o “natural” também denota a falta de intervenções culturais e sinaliza a “originalidade”, “aquilo que combina com nós mesmos, com o que somos”. É possível ser natural, pintando o cabelo? A pintura é indicada como artificial no sentido de que não permite às mulheres serem exatamente o que são, não permite a “coerência”, a “verdade”, a beleza do “natural”. “Mas eu, por exemplo, pintar agora o meu cabelo de castanho. Vai ficar o cabelo e a cara da pessoa; duas coisas distintas”. (Ana Maria, 53) “Você olha um cabelo pintado, e não tem a mesma cor de um cabelo. Você vê. A pessoa pinta um cabelo de preto, é preto realmente. Quem tem um cabelo assim? Preto como tintura, certo?” (Sandra, 54) “Raras vezes eu vejo alguém com cabelo pintado, que você não vê que é pintado, que eu ache mais bonito do que um cabelo natural.” (Telma, 51) o cabelo “natural”, “original”, “verdadeiro” vai associar-se a um equilíbrio conquistado com relação ao envelhecimento (figura 4, cadeia 1-2-6-10). O que pode significar a representação de que algumas mulheres aceitam o passar dos anos e lidam bem com isso, sem muitos traumas mais com algum sofrimento. 101 “Eu procurei trabalhar muito a minha cabeça no sentido de que a melhor forma de eu enfrentar a velhice é enfrentar a velhice do jeito que ela venha. Quer dizer, se eu brigar, negar, as mudanças que a velhice vai trazendo na vida, muito mais difícil vai ser eu lidar com ela. Então eu acho que a coisa do não pintar o cabelo passa um pouco por aí. Eu acho que o meu cabelo, o grisalho dele, é compatível com a minha idade.” (Telma, 51) “Eu também percebi que se eu fosse começar a lutar muito contra o meu envelhecimento, eu ia entrar em sofrimento e ia envelhecer mais rápido. Que depois do cabelo vêm as rugas, vem a perda da elasticidade da pele, vem isso aqui, começa a cair, tudo começa a cair. A lei da gravidade é inexorável” (Aline, 47) “Acho que faz parte do amadurecimento da pessoa descobrir quem ela é e como ela quer estar no mundo, independente de como o mundo esteja.” (Bruna, 38) Se por um lado, os fios brancos parecem permitir às mulheres se reconhecerem no real momento da linha de suas vidas; por outro, pode permitir às mais novas, avançar num tempo virtual e ser percebida até como uma pessoa de mais experiência. “É o benefício da dúvida. Normalmente quando a pessoa te olha, e vê que você é ‘pirralha’ a pessoa já nem te ouve. Mas como ela olha e fala: “bom ela tem cara de ‘pirralha’, mas o cabelo é branco, ela não deve ser tão ‘pirralha’ assim”. É uma coisa de deslocar de mim fisicamente o julgamento, pro julgamento do de dentro.” (Regina, 31) 102 4.4.1.2 Manter a saúde dos fios Outra conseqüência citada foi o não-prejuízo aos cabelos (figura 4, cadeia 1-3). Parece existir a idéia de que os cabelos perdem o brilho natural, o viço e a beleza por culpa da tintura. Uma queda freqüente de cabelo, possível resultado do uso continuado de tinturas, pode gerar desconfiança quanto a saúde (figura 4, cadeia 1-3-7). Além disso, mulheres que hoje consideram seus cabelos sedosos e brilhantes não gostariam de pôr em risco sua auto-estima e sua aparência caso algo desse errado (figura 4, cadeia 1-3-9-17). “Eu evito fazer porque estou satisfeita com ele como ele tá. Então eu não tenho vontade de mudar e aí às vezes fazer alguma coisa pode causar uma mudança. Pra melhor ou pra pior. A gente nunca sabe. Na dúvida eu fico como estou.” (Rogéria, 28) A noção de risco associa-se à percepção de que a tintura é algo definitivo (“uma vez que se pinta, vai se continuar pintando”), cujo efeito no longo prazo é desconhecido. Essas percepções se ligam à questão do natural, não-químico. 4.4.1.3 Ser independente Os testemunhos mostraram uma terceira conseqüência funcional de não pintar o cabelo é não ter a raiz do fio branco aparente. Passados alguns dias da aplicação de uma tintura, com o próprio crescimento natural do fio, a raiz do cabelo pintado começa a aparecer. Essa raiz aparente, que compromete a aparência das mulheres, leva-as aos salões de cabeleireiro de tempos em tempos. A valorização da beleza, para Lipovetsky (2000) e Wolf (1996), mobiliza, mulheres a cuidarem de seus corpos buscando mantê-los jovens e magros. As mulheres se emanciparam de antigas dominações, como as sexuais e as da procriação, para ingressarem no compromisso estético, tal como o retoque dos fios brancos, uma quase servidão. 103 “A mulher paga caro pra ela aparecer bonita, você segue um montão de exigências. E pra mim o cabelo branco é a pior delas. Uma vez que você entra, você não tem como sair mais. Uma vez que você começa a pintar... Não é feito a unha, que eu vou passo, não passo, tudo bem. Não vai ser uma coisa grave. Mas meu cabelo, uma vez que eu pintar, vai começar a aparecer aquela raiz branca crescendo. Então eu vou me comprometer.” (Roberta, 31) A declaração de Roberta aponta para uma possível insatisfação com a dependência do retoque que pode aparecer quando uma mulher decide tingir seus cabelos. Bouzón (2004) também identificou reclamações de mulheres quanto ao fato de elas serem, como caracteriza a antropóloga, “reféns” da coloração. A atitude de pintar os fios brancos, a qual não se consegue abandonar, é vista como uma “necessidade, uma obrigação moral e não uma opção” (BOUZON, 2004). As entrevistas realizadas sugerem que a conseqüência funcional origina as conseqüências psicossociais de “não ter a imagem de descuidada” (figura 4, cadeia 1-4-11) e “a independência da tintura” (figura 4, cadeia 1-4-14). Na primeira delas, as mulheres que não fazem o retoque estão mostrando aos outros, através da raiz aparente, uma outra mulher. O desleixo não é ter fios brancos, mas pintálos e não retocar no tempo adequado. “Se você pinta o cabelo de louro é porque você quer parecer loura, então eu fico com ele louro ou quando você quiser deixar de ser loura, você pinta de morena. Agora você é uma loura que está todo mundo vendo que você não é loura, com uma baita raiz preta, eu acho feio, incoerente” (Maria Cristina, 33) “Eu tenho verdadeiro horror de pessoas que pintam o cabelo, eu acho muito feio quando começa nascer a raiz de outra cor. Pra mim, dá um aspecto, uma coisa assim de desleixo” (Telma, 51) 104 “Parece desleixo, um pouco. Acho que passa realmente essa idéia de desleixo. Não é estilo. É desleixo” (Lucia, 31) Outra conseqüência psicossocial que aparece entre as entrevistadas é a insatisfação em ter que retocar a raiz de tempos em tempos. As mulheres já possuem hábitos de beleza que normalmente são introduzidos em suas vidas bem antes do aparecimento dos fios brancos, como o corte dos cabelos periodicamente, a depilação ou o cuidado com as unhas. Ao serem independentes do retoque, a mulher não sacrifica ainda mais seu tempo livre. “Eu sou uma pessoa vaidosa, mas eu não sou capaz de sacrificar o meu tempo de lazer em benefício da vaidade. Não gosto dessa coisa de ficar escrava de uma tintura e ter que ir ao Salão de quinze em quinze dias pra retocar” (Cristiana, 49) “Essa dependência por conta do cabelo branco, por conta da tintura eu não quero ter, porque não me interessa. Não faz sentido pra mim perder tempo pintando o cabelo (...) Se eu gostasse muito, se fosse uma coisa muito importante estaria na minha agenda, mas como não é eu não quero colocar” (Bruna, 38) O investimento em estética é vinculado à visibilidade social que um indivíduo deseja ter (NOVAES e VILHENA, 2003). À medida que as entrevistadas investem em estética, num caminho contrário, dado que elas querem ter uma boa imagem, isto é, não parecerem desleixadas, com as raízes aparecendo; têm cabelos bem tratados e cortados. Será que essas mulheres são, então, mais preocupadas com a sua boa imagem do que aquelas que pintam? Essa preocupação revela uma inversão da norma – quem pinta segue aalgumas normas de beleza, se cuida. Mas, aquele que segue determinadas regras também pode ser visto como desleixado? Elas subvertem algumas regras e, ainda assim, adquirem uma percepção de que se cuidam. A desviante refaz as regras. 105 4.4.2 Valores A cadeia do laddering pode ser lida de cima para baixo ou de baixo para cima. No item anterior, a leitura foi feita de forma ascendente, partindo-se do atributo para as conseqüências. Aqui, para se entender o significado dos valores, parte-se deles em direção às conseqüências. Inicialmente, a identificação dos valores seguiu a lista de Rokeach (HOYER; McINNIS, 2000). Com o desenvolvimento da análise foram sendo percebidas outras definições que se mostraram mais apropriadas. Os valores que apareceram referentes ao atributo analisado, “Não pintar o cabelo”, foram: Aversão ao Risco, Busca por Equilíbrio Interior, Autenticidade, Reconhecimento Social e Liberdade. 4.4.2.1 Autenticidade O valor aparece ligado ao “ser o que você é”, ao “amadurecer e assumir envelhecimento” e à “independência”. O depoimento da Roberta (31) ilustra bem a cadeia 1-4-14-19, que relaciona a Autenticidade à Independência pela não necessidade de retocar os cabelos. “E eu lembro assim que eu adolescente, eu era muito reativa a essas coisas que eu tinha que fazer pra ser mulher: ‘por que eu tenho que fazer unha toda semana? Por que eu tenho que fazer depilação?’ (...) Pra mim, pintar o cabelo é uma dessas pequenas prisões, que a mulher vai se submetendo” Da mesma forma que os cuidados com as unhas e a depilação foram percebidos como prisões na adolescência, a tintura de cabelo poderia ser outro “algoz” da entrevistada, agora na vida adulta. No entanto, com a maturidade, parece ter vindo a opção de escolha ou de negação. Ao respeitar a si mesma, ela hoje não se submete a mais uma “escravidão”. A percepção de gestos de beleza como 106 imposições sociais ou obrigações (ASKERGAARD, 2002) pode fazer do não-pintar um gesto de liberação individual O depoimento de Aline (47) caracteriza a cadeia 1-5-14-18 (figura 4) que associa a autenticidade a outra forma de independência, aqui, não mais do ato do retoque, mas da ida ao cabeleireiro e de ter que lidar com profissionais que, muitas vezes, não “olham”, não respeitam as percepções estéticas. “O cabelo ele tem um componente forte na composição de uma pessoa não só física, estética, como da personalidade. Então tem que refletir quem eu sou. O que eu gosto, o que me faz ser confortável. Então é óbvio que eu fico aberta pra propostas, eu posso estar usando o cabelo de uma forma errada, que não me valorize, eu fico aberta pra propostas, mas tem que ser propostas com a qual eu me sinta confortável (...) Cabeleireiro me incomoda porque ele quer o que ele acha que fica bom pra você. E te respeita muito pouco” (Aline, 47). É ainda Aline (47) que ilustra a cadeia 1-2-6-10-18 (figura 4), em que a autenticidade pode se ligar ao entendimento de que você envelheceu. É o reconhecimento de que a vivência pode trazer sabedoria. Ter cabelos brancos não é um problema e, sim, o reconhecimento de que se está envelhecendo com equilíbrio. Constitui-se uma nova relação com o conceito de envelhecimento. Este não seria mais uma força inexorável a ser combatida, mas uma trajetória a ser valorizada, que faz parte da originalidade de algumas mulheres. “Envelhecer vem com o amadurecer. Você acumula uma série de emoções, vivências e experiências; é inevitável que você fique mais confortável com quem você é, com as coisas que você sabe, com as memórias que você tem (...) O envelhecer te traz a sabedoria e o equilíbrio pra lidar com certas coisas, na medida em que você é uma pessoa que se trabalha e que se aceita, e aí essa questão de cabelo grisalho tem a ver com isso também” (Aline, 47). 107 Quando olhados sob esse ponto de vista, os fios brancos podem ganhar status. Eles representam toda a vivência daquela mulher. São marcas de experiências. “Eu não procuro usar o cabelo branco como uma coisa negativa. Eu procuro olhar pra eles como são as coisas que eu passei na minha vida, boas, ruins, muito difíceis, experiência. Estão aqui marcadas. As marcas que a vida deixa na gente” (Telma, 51) A cadeia 1-2-8-18 associa a autenticidade àquilo que você é de fato, por meio da conservação do cabelo natural. Algumas entrevistadas parecem respeitar aquilo que são e, principalmente, aquilo que gostam de ser. Elas não colocam em risco suas identidades, caracterizadas pelos cabelos que possuem hoje e de que tanto se orgulham. “Pintar o cabelo causa uma mudança de personalidade muito grande. Pra quem quer mudar muito a personalidade é ótimo, mas eu acho que eu estou satisfeita com a minha, e então não pretendo fazer isso por esse motivo” (Lucia, 31). 4.4.2.2 Busca de Equilíbrio Interior O valor Busca de Equilíbrio Interior se aproxima do valor Autenticidade quando aparece por meio de duas conseqüências psicossociais: “ser o que você é” e “amadurecer e assumir envelhecimento”. Existe, entretanto, diferenças entre as concepção de ambos os valores. Na cadeia 1-2-8-17 – diferente do exemplo em que Aline mencionava que muitos cabeleireiros não respeitavam as suas características estéticas (figura 4, cadeia 15-14-18) – o que parece evidenciado é o cuidado pessoal, que traz equilíbrio e energias para enfrentar novos problemas. “A rotina é pesada e você já faz muitas coisas por obrigação, porque é compromisso profissional, então o espaço pra você se 108 cuidar é importante e se cuidar é nesse sentido mesmo. Não é só passar o creme, mas fazer aquela coisa que te dá o prazer, o máximo prazer pra você ter aquela reserva pra enfrentar coisas que são naturais do dia-a-dia” (Bruna, 38) A cadeia 1-3-9-17 sugere ser possível relacionar o cabelo sem estragos ao bemestar e, assim, ao equilíbrio interior. Ao evitar problemas como a queda de cabelos, a fragilidade, a falta de brilho e viço dos fios, a mulher parece gostar de se olhar no espelho e ver refletida a imagem de uma mulher “saudável”. Isso lhe traz harmonia interior. Ao invés de brigar com sua imagem, os testemunhos mostram que algumas mulheres grisalhas se fortalecem através dela. 4.4.2.3 Reconhecimento Social Segundo Askergaard (2002), as pessoas passaram a ter uma necessidade de se “fazerem interessantes” o tempo todo, para poderem estabelecer relacionamentos benéficos para si. Essa constatação parece reforçar o valor “Reconhecimento Social”, que se liga a outras seis conseqüências psicossociais: “manter a beleza”, “independência”, “ser o que você é”, não ser considerada “cafona”, “descuidada” e “não-confiável”. A ligação desse valor a essas três últimas conseqüências remonta a necessidade das pessoas de passarem uma boa imagem aos outros, principalmente no trabalho. Entre outras coisas, é através da boa imagem que se constrói uma boa reputação. As declarações a seguir ilustram a cadeia 1-4-11-19 e 1-4-12-19, respectivamente: “Na sua aparência, você tem que corresponder àquilo que foi te cobrado, vamos dizer assim. Se você aparece no trabalho muito desleixada, você fatalmente vai ser chamada a atenção”. (Alice, 37) 109 “Descuido tem a ver com confiança. Uma pessoa que se cuida é uma pessoa que parece uma pessoa responsável, uma pessoa antenada. Agora uma pessoa que está desleixada, você pensa: se ela não cuida nem dela como você vai confiar alguma coisa a ela?” (Maria Cristina, 33) O que Alice (37) diz parece estar de acordo com Askergaard (2002) sobre as conseqüências do reconhecimento social através da interação a cerca da aparência. “Ser chamada atenção” pode provocar vergonha em Alice, por ela não estar atendendo às expectativas nela depositadas. Em seu trabalho, que envolve atendimento ao público, ela precisaria ter uma boa imagem frente aos clientes. Para Askergaard (2002), a vergonha aumenta conforme aumenta a distância entre a percepção de si e as aspirações, ou seja, aquilo que se pode vir a ser. Se, em sua visão, os clientes acreditam que ela pode ter uma imagem melhor com os cabelos pintados, por que não tê-la? E assim, ao invés de vergonha, seu sentimento passa a ser o de orgulho, pela boa reputação. A outra entrevistada Maria Cristina parece compartilhar da noção de que beleza reflete aspectos comportamentais do indivíduo. Com relação, especificamente, ao ambiente de trabalho, Bouzón (2004) diz existir um código de uso dos cabelos bem definido. Quanto mais formal a ocupação, mais bem cuidado deve ser o cabelo. Por cuidado, entende-se: cortes e tinturas sóbrias; penteados arrumados. Parece ser isso, também, que garante na percepção de Maria Cristina a boa imagem de uma pessoa a quem se pode confiar uma responsabilidade. A declaração da Regina (31) sobre “não ser considerada uma pirralha”, uma pessoa jovem demais para desempenhar bem uma função profissional, exposta no sub-item que trata das conseqüências, também denota a preocupação com o Reconhecimento Social. Nesse caso, a cadeia construída pelo discurso da entrevistada seria a 1-2-8-19. Quando se é jovem, os fios brancos podem não 110 denotar envelhecimento, mas sabedoria. Assim, a preocupação que Bouzón (2004) encontrou, nas mulheres de seu estudo, em envelhecer e perder o emprego, o que motivaria o disfarce dos cabelos brancos, parece ainda não existir para Regina. 4.4.2.4 Liberdade e Aversão ao Risco Por trás da conseqüência psicossocial da “independência”, estão o valor “Liberdade”. A cadeia que leva a Liberdade é a 1-4-14-20, é a liberdade que se tem pelo fato de não ter que ir ao salão de tempos em tempos para fazer o retoque das raízes. Cristiana (49) relata que não gostaria de ficar a “mercê” do cabeleireiro em relação a essa obrigação. Existe a percepção de que o cabeleireiro sempre atrasa. Segundo ela, depender dos outros sem saber quando tempo você gastará do seu dia é muito ruim. A aversão ao risco, na cadeia 1-3-9-16 está relacionada ao Bem-estar de se olhar no espelho e se achar bonita, como relata Cristiana (49). A segurança, que advém desse bem-estar, gera satisfação, felicidade em olhar para o espelho e se sentir bonita: “porque é bom a gente estar bonita. Dá um bem estar a gente estar bem. Eu gosto do resultado que eu vejo, eu fico feliz. Por que é bom ficar feliz? Porque dá uma segurança”. Neste sentido, a declaração parece estar de acordo com o que destaca Bouzón (2004): o cabelo, quando arrumado, garante segurança emocional, protegendo a pessoa do julgamento e da exclusão pela aparência. O conceito de arrumação, no entanto, varia de caso a caso. Para Cristiana, com relação aos cabelos, eles precisam ser cortados de três em três semanas. O corte em dia lhe proporciona mais segurança. 111 5. CONCLUSÃO E SUGESTÕES DE ESTUDOS FUTUROS A profundidade pode ocultar-se na superfície das coisas ou em situações silenciosas (Maffesoli, 2000), daí a importância que deve ser dada também às aparências que são um vetor de agregação de tribos, ou seja, a estética faz com que os componentes do grupo sejam reconhecidos. No entanto, a compreensão de pequenos grupos a partir de características estéticas parece ser difícil. O indivíduo pós-moderno pertence a várias tribos e em cada uma delas pode desempenhar um papel diferente, pode usar uma máscara específica (Cova, 1997; Cova e Cova, 2002). O desafio, portanto, neste estudo, foi buscar semelhanças e diferenças nos discursos de um grupo de mulheres que não pintam o cabelo. A escolha dos cabelos grisalhos como um possível elemento da contracultura na estética parece ter sido legitimada pelas entrevistadas – em depoimentos que demonstram que elas se percebem como fora de um padrão de beleza que valoriza o rejuvenescimento; para realização do qual, esconder os fios brancos é uma atitude inexorável. No entanto, o despojamento e a falta de vaidade que também pareciam predominar inicialmente nos relatos, e que fizeram crer que a atitude de não pintar os cabelos era um sinal desviante ou de rebeldia, foram dando lugar a uma demonstração de vaidade e a uma preocupação estética que poderiam estar igualmente no discurso daquelas consideradas reféns, escravas, dependentes e obrigadas a colorir o cabelo de acordo com as amarras dos padrões de beleza predominantes. O cabelo branco parece possuir também fortes amarras. Tem que combinar com o quê? Com olhos claros, com um corte moderno, com cabelos bem cuidados e brilhosos. Para além disso, eles chegam a ser a garantia de que a aparência não será comprometida com tinturas que não combinem ou com a raiz branca aparente. Os cabelos brancos fazem parte de mulheres que, em termos de cuidados com a aparência, parecem ser tão vaidosas quanto as que pintam. Mulheres que também 112 seguem rituais de beleza, que avaliam o que estão consumindo e que estão preocupadas com suas aparências. O senso estético não parece desaparecer quando se adota uma estética possivelmente desviante. Muito menos a busca por uma aparência física bela e em equilíbrio. As “desviantes” entrevistadas são capazes de identificar os padrões estéticos, de reconhecer que estão fora de alguns deles e de questioná-los. Entretanto, e esse é um achados principais deste estudo, seguem outros. Elas optam, sem dúvida, pela não adesão a certas amarras sociais, motivadas por valores como “autenticidade”, “busca por equilíbrio interior”, “liberdade”. Valores que sugerem estratégias de construção de uma individualidade via manipulação das regras sociais. O discurso de algumas entrevistadas demonstra que elas têm margem de manobra, autonomia de escolha. Quando falam do consumo de produtos para seus cabelos, surgem preocupações e vaidades que não parecem diferir das presentes em mulheres que pintam o cabelo: falam de marcas, das diferenças entre as marcas, do preço e da qualidade do xampu, da tonalidade do branco, do branco com mais brilho, do estoque ou do descarte de xampus variados e do comentário “dos outros” sobre como o cabelo estava diferente com aquele xampu. E, afinal, quem são “os outros”? Nos testemunhos aparecem pessoas que as entrevistadas admiram ou criticam, a mídia que nunca faz uma reportagem sobre os cuidados com os cabelos brancos, os cabeleireiros que valorizam a opção com os cortes e que incomodam com as suas propostas; vendedores, amigos, familiares, ou seja, aqueles que devem perceber a diferença. A aparência não é o lugar do individualismo e sim do coletivo, dos outros. “A aparência constrói-se sob e para o olhar do outro” (Maffesoli, 2005, p.119). Alguns relatos sugerem fragilidade e efemeridade. Cabelos brancos podem representar liberdade, mas a liberdade está em constante tensão com a 113 segurança (Bauman, 2003). Os outros parecem ameaçar a individualidade ou diferenciação buscada pela escolha de não pintar os cabelos. Para algumas mulheres, existe um perfil da desviante, que não combina com mulheres cuja rotina profissional seja de uma “executiva” ou “advogada”, por exemplo. O cabelo grisalho não pode ser de todas. Ele, assim, caracterizaria um grupo, como um elemento de ligação. No entanto, através da análise dos achados desse estudo, é possível enxergar as entrevistadas dentro de categorias distintas segundo seus principais motivos para não pintar o cabelo. Isso indica que, mesmo sendo um pequeno grupo social, elas podem apresentar diferenças entre si, ainda que existam casos em que as entrevistadas transitem de um motivo para outro. O primeiro motivo a se destacado é a busca por diferenciação. Algumas entrevistadas marcam sua individualidade através dos seus cabelos. Ao não colorirem o cabelo, algumas mulheres demonstram que buscam propositadamente o desvio, a diferenciação frente à sociedade (NOVAES E VILHENA, 2003). Essa foi uma motivação muito presente nos discursos de Lucia (31), Regina (31), Aline (47), Cristiana (49) e Ana Maria (53). Reações de admiração parecem estimular algumas delas a permanecerem nessa situação, como é o caso de Cristiana (49), chamada de “bárbara e autêntica”. O diferente desperta elogios admirados e curiosidade, em episódios que foram relatados. Essas mulheres, com os cabelos brancos, estão em evidência porque se diferenciam dos padrões, como indica Lucia, ao comentar que o “estilo executiva” não combina com mulheres que não pintam o cabelo, ou seja, as executivas parecem ser vistas por ela como um padrão. Interessante constatar que, para algumas dessas mulheres, o uso da tintura é respeitado quando o que se busca é “brincar com o visual”, o “lúdico”. Elas não 114 são simplesmente contra o produto tintura, mas a maneira como ele é utilizado, o contexto social no qual se insere. Outro motivo que pode ser identificado no grupo das entrevistadas é avaliação do risco de mudar o cabelo pelo uso de tinturas e colocar em risco sua aparência ou saúde. Essas mulheres avaliam a atitude de pintar o cabelo menos sob um ponto de vista de julgamento do contexto social, como analisado anteriormente, e mais com um olhar sobre si mesmas. As mulheres em cujos relatos estão presentes essa motivação são: Rogéria (28), Maria Cristina (33), Lúcia (31), Alice (37) O terceiro e último motivo que se delineia ao final da análise das entrevistas é o das mulheres que não pintam os cabelos por uma questão mais “ideológica”, que transpassa outras esferas da sua vida. É o caso de Bruna (38) e de Ana Maria (53) que levam valores do estilo de vida “natureba”, como não ingestão de produtos químicos, para o consumo de produtos para os cabelos. Esta-se lidando nessas categorias com as razões das entrevistadas para continuarem em desvio. É preciso coragem para ir contra padrões estéticos (Bouzón, 2004). Não é fácil enfrentar o julgamento social para ser desviante, e várias razões foram apresentadas em seus depoimentos. É possível ser desviante frente a um padrão e estar satisfeita consigo mesma? Ou, será preciso estar “em desvio”, para se sentir satisfeita? A atitude de manter os fios brancos é corajosa não somente porque é preciso conviver com a avaliação negativa no convívio social. Mas, especialmente, porque no âmbito pessoal, essa mulher de cabelos brancos precisa conviver diariamente, frente ao espelho, com a imagem do envelhecimento. No entanto, e mais interessante, a simbologia dos fios brancos para as mulheres entrevistadas neste estudo está para além da cronologia da vida. Valores como “autenticidade”, “reconhecimento social” e “liberdade” ajudam a explicar a decisão 115 e a colocar essas mulheres e seus cabelos grisalhos numa esfera mais ampla que a do senso comum. Alguns questionamentos, a serem investigados em estudo futuros, podem ser levantados com os achados deste estudo exploratório. Pode-se sugerir a expansão desta pesquisa para outros tipos de estudos qualitativos que possam avaliar mais mulheres jovens e grisalhas, e de outras regiões do país, ou outros aspectos do seu comportamento e que, talvez, identifique outras motivações e valores na decisão de manter fios brancos. É possível, também, desenvolver uma pesquisa quantitativa que, ao utilizar os valores aqui identificados, teste tipos de mensagens publicitárias que atinjam e persuadam essa categoria de consumidoras – que hoje parece não ser atingida efetivamente pela comunicação dos produtos para coloração dos cabelos. As informações deste estudo podem já ser úteis a empresas que comercializem coloração e produtos para os cabelos. Através do olhar sobre as não usuárias, talvez seja possível extrair insights e novas conclusões sobre a utilização do produto para tingir os cabelos brancos. 116 BIBLIOGRAFIA AAKER, David A.; KUMAR, V.; DAY, George S. Pesquisa de Marketing. Atlas: São Paulo, 2004. 2ª edição. 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Rio de Janeiro: Campus, 2003 122 ANEXO 1 - ROTEIRO DE ENTREVISTA Estudo sobre hábitos de beleza relacionados ao cabelo Introdução Bom dia/tarde/noite. Me chamo Flávia Rosário, sou mestranda do Instituto Coppead de Administração e estou realizando uma pesquisa sobre os hábitos de beleza das mulheres com relação a seus cabelos. Autorização para gravação Para facilitar nosso trabalho, eu gravo esta entrevista. Assim, não se perdem detalhes importantes da nossa conversa. Essa gravação é para uso interno da pesquisa. Você não será identificada em nenhum momento. Tudo bem? Você autoriza a gravação? Objetivo: Identificar perfil da entrevistadora e os cuidados cotidianos com relação aos cabelos Fale um pouco sobre você: - nome completo - idade - estado civil - formação - profissão Qual a sua rotina diária? Quais são seus hábitos de lazer? Quais são seus principais hábitos de beleza e cuidados pessoais na em casa? (rosto, corpo, ...) E fora dela? O que mais? (ginástica, manicure, depilação, dermatologista) E com relação aos seus cabelos? (explorar produtos e serviços: Quais são? Onde compra? Alguém indicou? Freqüência de compra ou uso?) Objetivo: Conhecer o histórico do cuidado com o cabelo e o não-uso da tintura pela entrevistada e por amigos e familiares O nosso cabelo faz parte da nossa história. Ao longo das diferentes fases da sua vida você tem alguma lembrança relacionada ao seu cabelo? Pense, primeiro, na sua infância. Você tem alguma lembrança relacionada ao seu cabelo daquela época? (repetir para adolescência e vida adulta) Você se lembra de algum cuidado com o cabelo que você teve nessas fases e não tem mais? Vamos falar, agora, mais especificamente sobre tintura de cabelo. Você já pintou o cabelo? Se sim, como foi? (quantos anos você tinha, o que você achou, com qual freqüência você pintava os cabelos, que cores você utilizava?) 123 O que fez você mudar (deixar de pintar)? Você teve algum momento de arrependimento? Fale-me sobre ele. Na sua família e entre seus amigos existem mulheres que também não são usuárias de tintura? Objetivo: Descobrir encadeamento dos atributos, das conseqüências e dos valores pessoais que estão por trás do hábito de não pintar o cabelo Agora, eu vou te fazer algumas perguntas a respeito da atitude de não pintar o cabelo. Por favor, tenha em mente que não existem respostas certas ou erradas para essas perguntas, o que importa é o seu ponto de vista, certo? Objetivo: Conhecer como as mulheres percebem as mulheres que pintam o cabelo e reação dos outros a atitude de não pintar O que você acha que mais motiva as mulheres a pintarem o cabelo? Objetivo: Descobrir se essas mulheres consideram a atitude de não pintar o cabelo uma atitude desviante frente aos padrões de beleza que ela percebe. Objetivo: Complementar definição do perfil a Você disse que deixou de pintar o cabelo por causa de ..... Por quê? Por que não é bom pinta o cabelo? Por que (não) é importante......? Por que .... (não) tem importância para você? Quais são os benefícios/malefícios de ....? Por que você não .... algo? O que é melhor de .... em relação a .....? (técnica para lidar com respondente sensível ao tema: conversar em terceira pessoa; inventar um aspecto seu que faça o entrevistado ficar mais a vontade; anotar e voltar em seguida ao tópico) Pense em mulheres que pintem e que não pintem o cabelo. Para você existe diferença entre elas? (estilo de vida, atitude, ...) Você percebe algum tipo de reação das pessoas ao seu redor em relação ao fato de você não pintar os cabelos? Em geral, quais seriam essas reações? Existem reações negativas? Como elas são? Quem as tem? Existem reações positivas? Como elas são? Quem as tem? (familiares, amigos, desconhecidos, cabeleireiros) Em sua opinião, qual o padrão de beleza que predomina hoje? Ao não pintar o cabelo, você acha que está fora desse padrão de beleza? De onde você acha que vem essa sua percepção? Aplicar o Critério Brasil (em anexo) Para encerrar, gostaria de lhe agradecer e perguntar se você conhece outra mulher que não seja usuária de tintura, que tenha entre 25 e 55 anos, para indicar para esta mesma entrevista. 124 ANEXO 2 – Escala de cabelos brancos das entrevistadas AMANDA, 36 MARIA LUCIA, 31 ALICE, 37 REGINA, 31 BRUNA, 38 ANA SANDRA, CRISTIANA ROGÉRIA ALINE, 47 CRISTINA, MARIA, 54 33 53 , 49 , 28 TELMA, 51 Cabelo muito Cabelo Cabelo Cabelo Cabelo Cabelo Mechas Mechas Cabelo Cabelo Cabelo escuro, fios muito escuro, fios escuro com mesclado mesclado acinzenta acinzenta mesclado mesclado com brancos escuro, fios brancos mechas de forma de forma das, das, de forma de forma grandes quase brancos perceptíveis brancas em homogênea, homogênea. distribuida distriuídas homogênea. homogên mechas fios brancos Tom cinza. s de de forma brancas e negros. forma heterogên cia dos fios Predomin Predomin homogên ea. Tom brancos. ância de ância dos ea. Tom cinza. Tom cinza. cabelos fios Cabelos brancos. brancos. curtos. Tom cinza imperceptívei perceptíveis , em grande quantidade s. Cabelos longos. , mas em pouca quantidade. Cabelos longos. quantidade. Cabelo médio média. Tom cinza Tom cinza acobreado. escuro. Cabelo Cabelo longo. médio. Cabelo curto cinza – cabelo longo. Cabelo longo – muito comprido. Predominân ea. claro. Cabelo médio. 125 cxxvi