Entrevista: A importância dos hospitais de ensino na formação profissional Ana Manuella Soares No último dia 8 de abril, durante o 11º Encontro Nacional das Entidades Médicas, o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), José Luiz Gomes, disse que a formação médica no país estaria passando por um momento “trágico”. A principal crítica é a quantidade de faculdades privadas de Medicina com autorização do Ministério da Educação para funcionar. Enquanto isso, um curso de alta excelência como o da Faculdade de Medicina da UFRJ tem que conviver com o descaso do MEC em relação ao financiamento do órgão suplementar que garante a qualidade de seus formandos: o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. Para a professora da Faculdade de Medicina e coordenadora da Divisão Médica do HU, Ana Borralho, a formação do profissional médico tem sido discutida há muitos anos pelas entidades da área, mas o ensino médico ainda não se adequou à realidade da sociedade brasileira. “A nossa escola faz 200 anos e já acompanhou várias transformações curriculares, está bem atualizada, mas não conseguimos fazer uma formação adequada às condições de vida da nossa população”. A principal deficiência, segundo a professora, seria o treinamento para o Programa de Saúde da Família, instituído pelo Ministério da Saúde na rede do Sistema Único de Saúde (SUS). “O ministério tem um programa, mas não tem infra-estrutura para absorver esse médico. E na residência médica do HU não há, hoje, um preparo específico para a formação do Médico de Família”, diz. As diretrizes curriculares do MEC para a graduação em Medicina prevêem a formação nos três níveis de atendimento: medicina primária (promoção da saúde), como também na medicina secundária (curativa, propriamente dita, diante de diferentes formas de patologia) e na medicina terciária (programas de reabilitação de pacientes portadores de alguma patologia ou deficiência crônica). A vocação do HUCFF acabou sendo, ao longo, dos últimos anos, assim como a maioria dos hospitais universitários, a do médico especialista, típica da medicina terciária. Um programa de medicina primária, segundo Ana Borralho, promoveria a formação do médico integral, “que pudesse atender desde o bebê, passando por todas as fases de crescimento do indivíduo até o envelhecimento, a geriatria”. Este profissional acompanharia as famílias e teria que ter muito conhecimento das disciplinas das áreas da clínica médica, da pediatria, da ginecologia e obstetrícia e da geriatria. “Esse médico, tão necessário em nossas comunidades, especialmente nos centros urbanos e mesmo nas áreas rurais, não existe. Isso com toda a formação da escola médica. O ensino que temos é muito dentro do ambiente hospitalar, do posto de saúde, do atendimento ao doente. Não conseguimos trabalhar a formação médica para a promoção e prevenção à saúde”, analisa Ana. Um dos motivos da carência do ensino na área básica da Saúde, segundo a professora, é a estrutura de um país como o Brasil, que absorve de fora toda uma tecnologia de ponta na área biomédica. “Não temos uma estrutura para ensinar o básico e ao mesmo tempo precisamos da tecnologia de ponta porque temos que cuidar dos nossos pacientes já muito doentes exatamente porque não receberam o atendimento básico e até preventivo. Vivemos um paradoxo. Nossos médicos atendem à medicina de alta complexidade e não atendem aos casos de vacinação, de acompanhamento do crescimento, do estado nutricional de uma pessoa até a idade adulta, do processo de fertilização, reprodução etc”. Para Ana, assim como as unidades de ensino, os postos de saúde da rede pública também não estão adequados para realizar essa formação. “Temos que começar a caminhar na promoção de uma medicina de família. Isto está nas diretrizes do MEC, mas o governo não nos dá condições e insumos para a realização desta formação”, questiona. Para a docente, os educadores e profissionais da área da Saúde ainda se defrontam com uma cultura equivocada da população em relação ao atendimento médico. Nos locais onde existe uma estrutura de atendimento básico funcionando, com uma cobertura da população em unidades primárias de saúde adequadas, as pessoas só vão ao hospital quando foi verificado que há a necessidade de um atendimento mais complexo. Segundo a coordenadora da Divisão Médica do hospital universitário, na cidade do Rio de Janeiro, a população quase nunca procura um posto de saúde e se dirige, na imensa maioria das vezes, ao hospital geral. “Existe aquela idéia de que o hospital geral tem que atender tudo. Se está com gripe, o cidadão vai à emergência do hospital antes de passar pelo posto. Isso acontece porque ele precisa de um atestado para apresentar no trabalho e considera que, se for ao posto de saúde perto de casa, não terá o atendimento rápido, terá que esperar por uma consulta a ser ainda marcada. Aí fica a emergência com gripe, com baleado, com insuficiência cardíaca, com enfartado e com o cara que caiu da laje. Nessa mistura de casos, os médicos acabam não assistindo nenhum deles com qualidade”. Uma das soluções que a professora aponta para este sistema híbrido seria a manutenção de postos de saúde públicos abertos não somente de segunda a sexta, de oito da manhã às quatro da tarde, mas no período noturno, após o expediente tradicional de trabalho da população. “Seria necessário que o cidadão pudesse, depois que chegasse do seu trabalho, às oito da noite, com febre, ter um local para esse atendimento. Um posto onde fosse medicado para uma gripe, orientado quanto a repouso e até receber um atestado, caso necessário”. Para Ana Borralho, a diretriz ministerial que aponta para a formação em Medicina Básica está correta, os locais de treinamento é que não estariam preparados para formar do atendimento básico até o complexo. “Não há como alocar o estudante para fazer medicina de família nas nossas favelas, por exemplo. Porque o tráfico põe as pessoas para correr de lá, tivemos um posto de saúde da universidade na Vila do João, mas tivemos que sair. Não tivemos como garantir a segurança dos profissionais, professores e alunos”, lamenta. Financiamento e crise O impacto da crise de financiamento do HUCFF atingiu em cheio a formação médica, segundo a professora. Com a redução de leitos, os estudantes estão procurando alternativas e, de acordo com a professora, tendo que fazer até simulações de atendimento. O aumento das aulas teóricas em substituição à prática também tem sido outro mecanismo para enfrentar a falta de casos reais para estudo. Ao todo, o hospital conta com cerca 350 residentes, e mais centenas de alunos de graduação de várias áreas. Tanto o estudante interno quanto o da residência trabalham juntos e precisam da formação prática dos procedimentos, da avaliação e discussões sobre as alterações do estado clínico dos doentes. “Este é o ponto diferencial da Faculdade de Medicina - a formação com treinamento de serviço. Mas não podemos manter o doente internado sem insumos para isso”, alerta Ana. Apesar de propagar a excelência de cursos como o de Medicina da UFRJ, o Ministério da Educação se nega a repassar mais recursos para o hospital universitário. Não há sequer uma previsão no orçamento para isso. Os insumos acabam sendo pagos pelos contratos realizados entre a unidade e o SUS. Ao mesmo tempo, o hospital recebe novas tecnologias e equipamentos para procedimentos mais modernos ou especializados, o que gera novas necessidades de formação e, portanto, de mais pagamento de insumos para a realização dos atendimentos aos pacientes pelos docentes, graduandos e residentes. “O Ministério da Educação considera que o local de treinamento dos estudantes e residentes na medicina básica, por exemplo, deveria ser os postos de saúde da rede, para só então os estudantes virem para o hospital. Mas o corpo docente da faculdade está aqui”, lembra a professora. Uma solução seria a universidade construir um prédio no campus para um ambulatórioescola voltado ao atendimento primário. Mas mesmo assim, de acordo com Ana Borralho, uma estrutura como essa não atenderia à formação do médico de família que precisa, necessariamente, estar em contato com a população nos seus ambientes, visitando as casas e moradias, e estudando os problemas da região. “Para atenção básica, sim. Poderíamos juntar as quatro grandes áreas (ginecologia e obstetrícia, pediatria, clínica médica e a cirurgia básica) com a medicina sanitária, epidemiologia e psicologia médica. Com isso, poderíamos formar um futuro médico de família”, anuncia. Gasto ou investimento? Sorvedouro de recursos da universidade. Na opinião de Ana Borralho, é essa a visão que reitores e dirigentes de outras unidades da universidade têm do Hospital Universitário. Isso porque a natureza das atividades do hospital requer a alocação de cerca de 3.000 técnico-adminstrativos, várias contratações externas, o que consome boa parte dos recursos de pessoal. Com apenas 300 docentes e um acúmulo de aposentadorias ao longo dos anos, a Faculdade de Medicina praticamente não tem realizado concursos. “E quando abrem uma vaga, é para professor adjunto que já entra com sua linha de pesquisa própria. Muitos ficam ligados ao ensino e à pesquisa, já outros ao ensino e assistência e poucos fazem as três coisas”, revela a professora. Desconhecimento da realidade do hospital Outro problema acompanha as dificuldades enfrentadas pelo hospital universitário na sua missão de proporcionar a qualidade da formação do profissional de saúde pela universidade. Há um grande estranhamento por parte das comunidades dos demais centros e unidades fora do Centro de Ciências da Saúde quanto às rotinas de trabalho dos docentes e funcionários do hospital, segundo a professora. “Alguns não entendem o que os docentes da Faculdade de Medicina fazem no hospital universitário. Eles não entendem a nossa função docente assistencial. Não entendem como um docente se ocupa de um aluno em quatro horas de aula, por exemplo. É por que temos turnos nos ambulatórios e enfermarias onde ensinamos a um aluno os procedimentos feitos em oito, dez pacientes. Já chegamos a um ponto de um professor do IFCS não entender como eu não posso botar no SIGA (Sistema de Gerenciamento Acadêmico) a localização da minha aula. Ora, hoje estou dentro de uma enfermaria no primeiro andar, amanhã posso estar em outro andar circulando em várias enfermarias ou nas nossas ‘salas de aula’”, esclarece. Esse estranhamento é o motivo pelo qual, para a professora, o financiamento das atividades do HU pelo MEC ainda não virou uma bandeira encampada mais fortemente pelos colegiados superiores e pela própria reitoria. Campo de ensino e pesquisa para toda a universidade Segundo Ana Borralho todo o problema da Saúde no Brasil passa pela Educação. “Se não há uma boa educação desde o início, somente o atendimento à saúde não é suficiente para a melhoria das condições de vida da população”. Por isso, na sua opinião, todas as unidades e cursos da universidade, independente da área de conhecimento, deveriam se envolver com as atividades do hospital. “Temos o Programa Saúde Escolar, uma proposta interdisciplinar, que poderia promover o futuro multiprofissional. As áreas de Fonoaudiologia, Fisioterapia, Odontologia, Nutrição e Serviço Social já têm uma atuação grande no hospital, mas a professora considera que este poderia ser campo de estágio e atividade acadêmica para vários outros cursos, como Engenharia, Direito, Administração, Economia, entre outros. “Temos tantos problemas elétricos, hidráulicos, de administração e economia hospitalar, de situações ligadas à geopolítica da região na qual o hospital está inserido, de segurança e tantos outros que poderiam contar com a parceria de todas as áreas acadêmicas da UFRJ. E com isso, ainda, certamente eliminaríamos muitos de nossos custos”. Fonte: Site da Adufrj