Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Medicina e Odontologia
BIOÉTICA
COMO ANALISAR CONFLITOS EM BIOÉTICA CLÍNICA
Profa. Jussara de Azambuja Loch
CONSIDERAÇÕES GERAIS:
A Bioética, como as demais ciências, tem procurado desenvolver metodologias adequadas
para discutir e solucionar os conflitos morais que surgem da prática assistencial e da pesquisa
biomédica. A questão fundamental é encontrar e utilizar métodos de análise que possibilitem um
estudo racional, sistemático e objetivo destes problemas, a fim de que a tomada de decisão se
constitua em um ato bom e correto. Para chegar-se a um resultado satisfatório, há condições que
devem estar bem definidas antes de iniciar a discussão:
1. Qualquer deliberação bioética parte de um princípio fundamental de respeito pelo ser humano e
o cumprimento desta condição é indispensável para o agir correto.
2. Para alcançá-la, devem participar do debate todos aqueles que têm interesses envolvidos no
caso, trazendo suas contribuições ativas e essenciais, suas diferentes interpretações do problema,
que enriquecem e se complementam durante a discussão. Médicos, enfermeiros, outros
profissionais que estejam auxiliando no cuidado do doente, o próprio paciente ou um
familiar/representante podem estar presentes, pessoal ou virtualmente, para expor seus
argumentos e defendê-los.
3. Todos os participantes devem ter uma atitude compreensiva e tolerante para com os valores e
posicionamentos divergentes, respeitando a pluralidade ético-cultural da sociedade
contemporânea e todos devem utilizar argumentos racionais para defender seus pontos de vista,
justificando-os moralmente.
METODOLOGIA:
O bioeticista espanhol Diego Gracia, faz uma analogia didática entre o método utilizado para
discutir casos em Bioética com a coleta de uma história clínica, dizendo que a anamnese é uma
excelente maneira de analisar e resolver problemas médicos e que os procedimentos bioéticos nada
mais são do que um prolongamento da estrutura da história clínica, servindo para a análise e
resolução dos problemas morais que os pacientes apresentam ou propõem.” 1
O processo de elaboração diagnóstica começa com uma boa coleta de dados e com um
detalhado exame físico. O médico associa estas informações para formar um conjunto de achados
que possam fazer sentido (quadro clínico ou sindrômico), confronta-os com seus conhecimentos
teóricos prévios para chegar a um diagnóstico, um prognóstico e um tratamento. Portanto, a lógica
da medicina baseia-se em fatos, ou seja, em certos achados que são perceptíveis através dos
sentidos. A inspeção, a palpação, a ausculta e a percussão são maneiras de o médico utilizar os
sentidos para conhecer os fatos.
À medida que os fatos são percebidos, o médico inicia uma estimação do valor de cada sinal
ou sintoma, atribuindo-lhes importância ou não, para a construção de sua hipótese diagnóstica.
Estes juízos clínicos podem ser prognósticos, quando relacionados ao curso da doença;
diagnósticos, quando versam sobre o significado dos achados e sua causa; e terapêuticos, quando
relacionados com a escolha dos exames complementares e dos tratamentos que serão utilizados para
ajudar ou curar o paciente. Além dos juízos clínicos, o profissional faz outra espécie de estimação
de valor, os juízos morais, que consistem em analisar qual é a melhor opção (aquilo que é bom ou
que é correto), entre as alternativas disponíveis, para chegar ao melhor resultado possível, naquela
situação específica e para aquele doente em particular. 2
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Assim como um juízo clínico, um juízo ético também se origina na percepção dos fatos, opiniões
e circunstâncias, porém é na avaliação da importância ética destes achados, em determinada
situação concreta, que eles ganham significado.2 A decisão pode ser alcançada através de duas
perspectivas distintas, mas não necessariamente excludentes: de um lado, opinião da medicina,
avaliando aquilo que a ciência acha que é o melhor para a pessoa, de outro, a ótica do paciente,
levando em consideração sua vontade, aquilo que ele acha que é melhor para si mesmo.
Em Bioética, o procedimento para análise de casos é muito semelhante: é necessário
organizar as informações importantes, centrar-se nas questões fundamentais, descartar aquelas que
são alheias ao problema, examinar com atenção os prós e os contras de cada alternativa, com o
objetivo de tomar uma decisão ética prática.2 A finalidade de todos os métodos até hoje propostos
em Bioética é articular as dimensões técnica e ética do ato médico.1 Isto significa que, para discutir
um problema ético, é necessário aclarar primeiro todas as dúvidas técnicas (juízos clínicos) para, só
então, analisar os conflitos de valores (juízos éticos).
Os valores envolvidos no caso devem ser hierarquizados, porque a importância dos
argumentos varia de acordo com a decisão: alguns serão decisivos, outros serão importantes e
outros ainda serão pouco considerados, por não terem relevância naquela situação particular. Uma
consideração decisiva é aquela que tem mais peso na decisão, deve ser considerada como um
argumento de necessidade, pois ela obriga o profissional de saúde a optar moral e tecnicamente por
aquele curso de ação. Por exemplo, um paciente politraumatizado, ao chegar a um serviço de
emergência, deve receber um pronto e completo atendimento. Já as considerações relevantes têm
graus variáveis de importância Sendo consideradas como argumentos de conveniência, deverão ser
analisadas em conjunção com todos os outros fatores, para que se possa atribuir-lhes seu lugar
correto na escala de valores. Por exemplo, um paciente ser Testemunha de Jeová pode não ter
importância no que tange ao seu direito à assistência, mas esse fato pode ser muito relevante se ele
necessitar de uma transfusão de sangue.
Após a hierarquização dos valores, é preciso considerar todos os cursos de ação possíveis,
avaliando os benefícios de cada ato, pesando os riscos e custos, justificando-os à luz dos princípios
e normas éticas para, finalmente, poder eleger o mais adequado para a situação.
DEFINIÇÃO DA CONDUTA MAIS ADEQUADA:
A tomada de decisão deve ser um processo compartilhado, construído com mútua
participação e respeito: os médicos - ou equipe - contribuem com seu treinamento, conhecimento e
habilidade para o diagnóstico da condição do doente e com as alternativas técnicas indicadas e
disponíveis. O paciente – e/ou seu representante - contribui com o esclarecimento de seus legítimos
valores e necessidades, através dos quais, os riscos e benefícios de um determinado tratamento
podem ser analisados. Nesta abordagem, selecionar a melhor alternativa terapêutica para um
paciente em particular requer a contribuição de ambas as partes.3 Levando em consideração a
indicação técnica, os valores, os princípios e as conseqüências, optar por uma conduta que respeite
o maior número destes requisitos, diminui as chances de se praticar um ato eticamente incorreto ou
injusto. Para chegar a uma conclusão, duas estratégias são essenciais: primeiro, obter um consenso
dentro da própria equipe e, segundo, analisar a vontade do paciente.
Para obter o consenso na equipe de saúde, várias são as perspectivas que necessitam ser
consideradas. As mais importantes poderiam ser assim descritas:
a) a probabilidade de certeza do prognóstico e do diagnóstico: quanto mais certa a equipe estiver
de um diagnóstico ou prognóstico, mais fácil se torna decidir a conduta a ser tomada e avaliar
suas conseqüências;
b) a conduta padrão da comunidade científica: conhecendo-se o procedimento que é considerado o
melhor para aquele caso, do ponto de vista técnico e científico, fica estabelecido um “padrão-
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c)
d)
e)
f)
ouro”, com o qual se deve comparar as possibilidades concretas de atendimento, decorrentes das
alternativas que a equipe e as instalações existentes podem oferecer ao paciente;
a legalidade da conduta: é necessário que se analise se a proposta da equipe ou do paciente são
juridicamente aceitas pela comunidade, pois não se pode propor ou aceitar uma conduta
contrária à lei;
a autonomia do médico ou da equipe: muitas vezes, durante a discussão, são levantadas
propostas que ferem os valores da equipe e, nestes casos, os profissionais podem alegar objeção
de consciência para levar adiante determinada conduta e é seu direito negar-se a praticá-la;
as normas institucionais: as alternativas propostas devem, ainda, contemplar os valores
institucionais, que representam a comunidade moral em que pacientes e profissionais estão
inseridos;
a expectativa da sociedade: o paciente e as equipe fazem parte de um grupo social mais amplo e,
portanto, é esperado que tomem atitudes condizentes com os valores aceitos como corretos por
esta sociedade.
Para análise dos desejos do paciente, três critérios principais podem ser considerados:
a) critérios objetivos: aqui se trata de avaliar, objetivamente, levando em consideração aspectos
técnicos, a vontade do paciente. Se a equipe aceitar o desejo do paciente, quais serão os riscos e
os benefícios que aquela determinada conduta trará para a saúde e a vida desta pessoa? Há uma
indicação médica para aceitar a proposição do paciente? A conduta é beneficente? O paciente é
verdadeiramente autônomo, não está sendo coagido a tomar esta decisão?
b) critérios subjetivos: trata-se de levar em consideração os valores do paciente: o valor da vida, a
qualidade de vida que o paciente considera adequada para si próprio, suas crenças religiosas, os
argumentos morais com os quais o paciente justifica sua vontade;
c) os melhores interesses: é um balanceamento entre os critérios objetivos e subjetivos, é analisar,
diante dos fatores já citados, qual a melhor alternativa, do ponto de vista do próprio paciente,
visando seu melhor benefício.
Esclarecidas as posições da equipe e do pacientes pode-se, finalmente, deliberar sobre a melhor
solução para o conflito.
MODELOS PARA ANÁLISE DE CASOS EM BIOÉTICA CLÍNICA.
A seguir apresentamos, de forma esquemática, os métodos mais utilizados para analisar
problemas bioéticos. Elaborados por importantes bioeticistas europeus e norte-americanos, qualquer
um deles permite chegar a um resultado satisfatório e muito podem auxiliar os profissionais de
saúde, servindo como ponto de partida para um treinamento na metodologia de discussão de casos.
Sugerimos que, após avaliá-los cuidadosamente, o profissional escolha aquele que mais lhe agrade e
cuja utilização se apresente mais fácil para empregá-lo sistematicamente na prática diária.
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Quadro 1. Método de Diego Gracia1
1. Identificação do problema; verbalizá-lo claramente.
2. Análise dos fatos: quanto mais claros estiverem, mais fácil será a análise ética;
3. Identificação dos valores implicados.
4. Identificação dos valores em conflito: reformulação do problema
5. Identificação do conflito de valor fundamental
6. Deliberação sobre o conflito fundamental:
- deliberar sobre cursos de ação possíveis, reduzindo-os a propostas reais e não
ideais
- deliberar sobre o curso ótimo de ação
7. Tomada de decisão.
8. Critérios de segurança:
- defender a decisão publicamente
- verificar se a decisão é antijurídica
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Quadro 2. Método de Albert R. Jonsen2
I. O Caso (um conjunto de):
1. Fatos: pessoa, tempo, lugar, ações, sintomas e sinais, aparelhagem, etc
2. Opiniões: diagnóstico, prognóstico, opções
3. Máximas: coisas que se deve promover ou evitar
4. Valores: estados que se deve promover ou evitar
II. Apresentação do caso:
1. Indicações médicas: diagnóstico e prognóstico, objetivos terapêuticos, eficácia/
ineficácia, utilidade/futilidade
2. Preferências do paciente: princípio de autonomia: capacidade de eleição,
consentimento informado, decisões de substituição, decisões antecipadas, recusa.
3. Qualidade de vida: avaliação subjetiva de um espectador da experiência
subjetiva de outro: riscos, justificativas de retirada de suporte vital.
4. Fatores sociais e econômicos: família, distribuição de recursos, pesquisa,
confidencialidade, proteção de terceiros, custos.
III. Resolução do Caso
1. Máximas mais importantes e princípios envolvidos
2. Taxonomia: classificar os casos que são similares, ainda que diferentes
3. Soluções prováveis ou razoáveis
Quadro 3. Método Principialista1
I. Princípios prima facie: Não-Maleficência, Beneficência, Autonomia e Justiça
II. Princípios reais e efetivos:
- hierarquizar os princípios prima facie em conflito, considerando a situação
concreta e as conseqüências previsíveis.
- a hierarquia pode variar de pessoa para pessoa, segundo a percepção que
tenham da situação concreta.
- levar em consideração o maior número de perspectivas, para enriquecer a
análise, antes de tomar uma decisão.
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Quadro 4. Método de Thomasma1
1. Descrever todos os fatos do caso. Investigar cada fato médico não-presente no
caso, mas relevante para sua resolução.
2. Descrever os valores relevantes dos médicos, dos pacientes, dos membros da
família e da equipe, da instituição e da sociedade.
3. Determinar o principal valor ameaçado.
4. Determinar os possíveis cursos de ação que podem proteger o maior número
possível de valores, neste caso concreto.
5. Eleger um curso de ação.
6. Defender este curso de ação a partir dos valores que o fundamentam. Por que se
elegeu, neste caso, um valor sobre o outro? Por que o curso de ação X é melhor
que Y?
BIOÉTICA NA PRÁTICA: ANALISANDO UM CASO CLÍNICO.
Para exemplificar como se procede a análise de um conflito ético, vamos utilizar
aleatoriamente o modelo proposto por Thomasma,1 e aplicá-lo a um caso pediátrico, fazendo os
comentários pertinentes em cada quesito, que se encontram descritos no Quadro 4, acima.
a) Descrição dos fatos relevantes:
B.I.A. é uma jovem de 15 anos de idade, portadora de um osteossarcoma no terço
proximal da tíbia direita, diagnosticado há mais de um ano no hospital X. Naquela ocasião, o
tumor já era volumoso, com comprometimento dos tecidos moles adjacentes, causando dor e
prejudicando, mas não impedindo a deambulação. A investigação de metástases pulmonares e
ósseas mostrou-se negativa. Fez o primeiro esquema de quimioterapia e recebeu alta hospitalar
para continuar tratamento em regime ambulatorial. Nos controles ambulatoriais iniciais, os
exames de imagens mostravam pouca redução do volume da lesão e foi proposta uma cirurgia de
amputação da perna direita para controle local do tumor. A menina negava-se a aceitar o
procedimento e sua opinião era acatada pelos pais que manifestaram à equipe clínica a vontade
de ouvir outra opinião médica. A partir desta data a paciente não mais retornou ao ambulatório.
Há uma semana a jovem reinterna no hospital X, trazida pelos pais, com importante
hemorragia no local do tumor, cujo volume, ulceração e necrose impossibilitam a flexão do
joelho e a deambulação. Realizados os exames necessários, verifica-se a presença de múltiplos
nódulos metastáticos em ambos os pulmões e a paciente tem uma moderada dificuldade
respiratória, sem necessidade atual de utilização de oxigênio. É transfundida para recuperar-se da
perda sangüínea e, após o procedimento, encontra-se num estado geral razoável para sua
condição. A equipe reúne-se para discutir a conduta a adotar:
•
A equipe clínico-cirúrgica avalia que a amputação do membro, neste momento, estaria indicada
apenas para evitar intercorrências graves como a probabilidade de novo e extenso sangramento
e infecção no local da lesão, sendo portanto um procedimento paliativo e não para controle do
câncer e consideram que a paciente está em estágio terminal.(Paciente terminal é aquele cuja
condição é irreversível, independentemente de ser tratado ou não, e que tem alta probabilidade
de morrer num período relativamente curto de tempo 5)
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•
Os oncologistas opinam que, retirando o tumor, e devido às razoáveis condições clínicas da
paciente, poder-se-ia fazer uma tentativa “heróica” com novo curso de quimioterapia para
controle das lesões metastáticas, apesar do prognóstico muito reservado (menos que 20% de
sobrevida a longo prazo, sabendo-se que a presença de metástases múltiplas em pulmões piora
ainda mais o prognóstico). Com a permanência do tumor primário, neste estágio da doença, a
quimioterapia não teria razão de ser.
•
A paciente recusa veementemente a cirurgia. Quando lhe são explicadas as alternativas, ela
expressa que, se vai morrer, quer morrer “inteira”.
•
Seus pais, extremamente culpados por terem abandonado o tratamento e recorrido a terapias
alternativas, sentem-se ambivalentes entre concordar novamente com o pedido da filha e a
possibilidade de “errar outra vez”.
Como podemos observar, a análise deve iniciar com uma completa exposição do caso clínico,
fazendo um levantamento de todos os fatos relevantes para a discussão. Este procedimento permite
avaliar quão adequada é, do ponto de vista técnico, a indicação de determinada intervenção. Quanto
mais claros e precisos forem o diagnóstico e o prognóstico, mais fácil será justificar a escolha de
determinada conduta, especialmente se ela estiver fundamentada em evidências confiáveis de que,
naquele caso, e tecnicamente, constitui-se na alternativa mais correta. Para justificá-la, devem ser
usados critérios objetivos, como por exemplo, ser a conduta padrão encontrada na literatura e na
prática médica para casos semelhantes ao discutido.
b. Descrever os valores relevantes dos médicos, dos pacientes, dos membros da família e da
equipe, da instituição e da sociedade (se for o caso).
•
A equipe questiona o comportamento anterior dos pais, achando que eles não agiram para o
melhor benefício de sua filha adolescente, negligenciando e abandonando o tratamento proposto
e perguntam se eles seriam os melhores representantes para decidir por ela e se B.I.A., sendo
uma adolescente, tem capacidade, liberdade e compreensão adequadas (os pressupostos de
autonomia) para decidir por si mesma.
•
A adolescente, em conversa com membros da equipe, expressa coerência e lucidez,
compreendendo a gravidade de sua situação. Pergunta diretamente se a amputação da perna vai
lhe devolver a saúde.
•
Os médicos sentem-se responsáveis pelo bem-estar da paciente e, movidos pelo princípio da
Beneficência, pensam em que alternativas ainda podem oferecer-lhe. Por outro lado, uma
cirurgia radical como é uma amputação, ao ser realizada para evitar possíveis intercorrências e
não para melhorar seu prognóstico, pode ser considerada um tratamento desproporcionado,
acarretando mais dor, desgaste físico e sofrimento à paciente.
c. Determinar o principal valor ameaçado.
Há vários valores ameaçados neste caso. A principal dúvida é saber se a amputação do
membro inferior, para esta paciente, neste momento, é um ato bom e correto ou se configura um
procedimento inadequado. Esta situação pode ser descrita como um conflito entre os princípios de
beneficência x não-maleficência. Poderíamos ainda mencionar que há um segundo problema que
seria o de desrespeito à vontade da paciente (se a paciente fosse adulta, sob o aspecto jurídico, este
conflito seria um desrespeito à autonomia)
É importante notar a diferença de adequação que existe na indicação da amputação nos dois
momentos distintos: na primeira oportunidade, a cirurgia de amputação era o procedimento de
eleição para tentar erradicar o câncer e, portanto, beneficente, constituindo-se em ato técnica e
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eticamente justificado. Na atualidade, pela extensão da doença, pelo caráter radical e mutilante da
cirurgia, por sua indicação apenas paliativa, por não melhorar o prognóstico e por ser contrária aos
desejos da paciente (mesmo que ela não seja totalmente capaz e autônoma) não tem a amputação
uma carga de maleficência muito maior que de beneficência? A avaliação da utilidade do
procedimento (balanceamento entre riscos/benefícios) mostra que existem muitos custos – os
chamados “custos intangíveis”: desproporcionalidade terapêutica, dor, sofrimento, etc. – para muito
pouca ou nenhuma ajuda real.
d. Determinar os possíveis cursos de ação que podem proteger o maior número possível de
valores, neste caso concreto e eleger um curso de ação.
Vejamos que cursos de ação poderíamos tomar:
•
proceder à amputação: esta opção, quando indicada há um ano, sem dúvida, representava a ação
mais correta e beneficente (mesmo contra a vontade da paciente) porque, aliada à quimioterapia,
poderia devolver-lhe a saúde e uma razoável qualidade de vida, apesar da mutilação. Hoje ela
não protege nenhum dos valores envolvidos, ao contrário, é um ato que pode ser considerado
maleficente.
•
não proceder à amputação: esta conduta respeita os princípios de não-maleficência, beneficência
(indiretamente) e a vontade da paciente, devendo ser o procedimento eleito neste caso. Seguir
esta opção, no entanto, não significa abandonar a paciente: ela deve receber apoio clínico
(atendimento às intercorrências, sedação, analgesia), psicológico, familiar e religioso (se for
solicitado) para que possa enfrentar o tempo de vida que lhe resta com mais conforto e
confiança.
e. Defender este curso de ação a partir dos valores que o fundamentam. Ex: Por que, neste caso,
se elegeu um valor sobre o outro? Por que o curso de ação X é melhor que o Y?
A defesa desses valores já está descrita nos quesitos anteriores onde explicamos as razões de
optar por não realizar a amputação.
Quando não é possível chegar a um consenso numa primeira discussão, pode-se ampliá-la,
solicitando a presença de alguns membros do Comitê de Bioética para auxiliar na elucidação das
questões éticas.
BIBLIOGRAFIA:
1. Gracia, D. Ética y Vida - Estudios de Bioética. v.2. Bioética Clínica. Santa Fé de Bogotá, DC:
Editorial El Búho, 1998.
2. Jonsen AR, Siegler M, Winslade WJ. Clinical Ethics: A Practical Approach to Ethical Decisions
in Clinical Medicine. 4 ed. New York: Mc Graw Hill, 1998.
3. Emanuel EJ, Emanuel LL. Four Models of the Physician-Patient Relationship. JAMA, 1992;
267 (16): 2221-2226.
4. Kipper DJ. O problema das decisões médicas envolvendo o fim da vida e propostas para nossa
realidade. Bioética, 1999; 7(1): 59-70.
5. American College of Physicians. Ethics Manual - Part 2: the physician and society, research,
life-sustaining treatments & other issues. Ann Inter Med, 1989;111:327-335.
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