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FÉ
Para chegar à casa de pedra, sede da estância, se faz necessário
ultrapassar duas porteiras. Uma é a entrada da propriedade, a
outra impede que os animais se aproximem da casa, livrando-a
do odor de seus excrementos. Certa feita alguém plantou hortênsias junto à primeira cerca e elas permaneceram por lá encantando os da casa e as visitas. Que não são muitas, porém todas
costumam trazer crianças.
O barulho do arame jogado ao chão não assusta a coruja,
que sequer abandona seu posto em cima do moirão da cerca, à
esquerda de quem entra. Ela sabe que os homens não a podem
molestar e que o medo do azar os impede de matá-la. Então
abusa. E se mostra. Não dá pra ver, mas se pode escutar um pica-pau em seu ofício. O sol forte do início de tarde é um incentivo ao passeio das lagartixas, verdes e pardas. As rosetas não
conseguem ferir os pés grossos de quem ficou pra trás fechando
a porteira. Galinhas de bico aberto ciscam por puro hábito, vis-
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to que os insetos costumam aparecer nos finais de tarde e aquela não tinha por que ser uma tarde diferente. Descascou uma
ninhada de patos, amarelos em sua desajeitada preguiça. Os cascos dos cavalos e as rodas da charrete castigam a grama seca, estalidos e mais estalidos combinados com o barulho do eixo sem
graxa e o roçar das rédeas nos lombos da parelha, o zaino e o
malacara, não conseguem alterar a sonolência costumeira de
mais uma tarde na fazenda.
As malas retiradas da charrete provisoriamente repousam
no alpendre, o zaino e o malacara, livres dos arreios, são conduzidos para além da primeira porteira; para eles não representa muito, pois, exauridos, se limitam a água e alfafa. Os cavalos
do lugar olham sem se aproximar. Uma brisa morna sacode as
cortinas e as folhas mais leves. Equilibradas nos eucaliptos, as
caturras ensaiam o escarcéu de dali a pouco. Cessou o movimento das lagartixas, apesar do sol. No galinheiro, o galo emite
um cacarejo – quase obrigação. A casa mergulhada na sesta
parece enviar o vento do recôndito de suas entranhas.
Distante da casa principal, não o bastante para se usar
lanterna nas noites mais escuras, fica a casa vazia, destinada às
visitas não aparentadas. Deitado numa das camas se pode ver o
movimento da cobra papa-pinto, no canto alto à esquerda de
quem entra, usurpando os ninhos dos indefesos pardais e andorinhas, em busca de ovos e filhotes, algoz e vítima aconchegados sob a cobertura de capim. À noite, despertam os gambás,
que, confiantes na negligência dos habitantes da casa, visitarão
o galinheiro em busca de ovos.
Contra os mosquitos, queimam-se ervas.
Brincar em torno daquela casa com ares de palácio era para
as crianças mais que diversão, significava um exercício de poder
e paz, se é que esses dois elementos podem conviver em harmonia. Naquela estância eles podiam.
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Aos fundos da casa, onde o sol não costuma esquentar banco, o varal não desfruta folga e a umidade não respeita verão;
racha-se lenha, lava-se roupa e o pilão assimila seus golpes.
Começava sempre naquele lugar uma brincadeira das mais antigas; consistia em levantar as pedras e desalojar os grilos e pequenos sapos que logo virariam banquete das cobras. Ultrapassada a primeira porteira rumo ao arroio, a parada obrigatória é o
bosque de eucaliptos, onde o chão, resguardado pelas folhas secas, não aceita surpresas. Nem mesmo de fantasmas. Grilos e
sapos capturados, bastava pegar sem pedir um pouco de uísque,
cachaça, álcool a ser derramado sobre as folhas mortas para
despertar as serpentes, hora de soltar os indefesos e o sadismo
infantil manter viva mais uma tradição do lugar.
A personalidade de uma fazenda se faz notar no rumor silencioso, que não deve ser triste, das horas. Cavalos balançam o
rabo espantando moscas, pastam e batem os cascos com cuidado para não acertar os vira-bostas. Bem distante, onde o olhar
pampiano costuma inventar dúvidas, ovelhas, em seu silêncio
egoísta de fazer inveja aos peixes, buscam a sombra esquálida
das tramas e arames. O rebanho parece admirar enciumado a
cancha reta onde, fim de semana sim, fim de semana não, as carreiras renovam os sons do lugar. O sossego e a imensidão do
pampa permitem ao gaúcho desconhecer o tédio e compreender
o nada, onde os limites não são físicos e o tempo não passa apenas, mas concede ao filho a capacidade de igualar-se em idade
ao pai. É justamente quando o filho alcança a idade do pai que
eles se tornam grandes amigos. Quando o guri não mais confunde o tempo com o vazio, e, ao olhar bem longe em qualquer
direção, percebe apenas o verde do chão e o azul do céu, isso é
o tempo. Vontade de realizar. Não é pra todos, infelizmente.
Na lavoura de milho, as espigas em época de granar transformam em pragas as caturras e seu alarido; um espantalho aqui,
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outro ali, e logo todos convivem harmoniosamente na certeza da
intimidade dos prejuízos. Nada a fazer.
A casa vive o momento que antecede o chimarrear de final
de tarde, ao som dos tangos trazidos pela rádio El Mundo de
Buenos Aires. Em seguida, as vacas, apartadas dos terneiros para
garantir o leite ao amanhecer, são conduzidas à mangueira. Alguns vaga-lumes invadem a casa.
Na sala da frente, uma cortina branca, de tecido próprio a
não fatigar os ventos, veste o vão que se abre para a sala de jantar, mesa gigantesca, quatorze cadeiras em volta, toalha branca,
de linho, e um vaso com a única flor portadora de personalidade
apesar de branca, copo-de-leite. Um estreito e descabido corredor leva à sala maior, onde, sobre a mesa, descansa fechada uma
caixa escura. Encostado à parede oposta às janelas, um piano
alemão. Não se percebe, nem com as pontas dos dedos, o menor
sinal de pó. São cinco os quartos, todos grandes e arejados, mas
só em dois se pode desfrutar, ou dividir, o espaço farto das camas de casal. Não se vêem imagens de santos, mas todos os dias,
às seis da tarde em ponto, pode-se escutar alguém que reza.
De vez em quando, um morador, dos não aparentados, vai
até as bandas do Uruguai buscar farinha, sal e dois tipos de gajeta. A viagem gasta cinco dias entre ida e volta porque os cavalos são bons, mas é comum demorar de oito pra fora. Na partida, expectativa, o regresso é sempre motivo de comemoração.
Carneia-se um capão. O homem pampiano sabe que a grande
surpresa consiste exatamente na chegada daquele que é esperado com amor e saudade. Para o gaúcho, a fé não admite as cercas das religiões.
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