Uma questão acerca do espaço lógico no Tractatus Logico-Philosophicus Gustavo Gueraldini Michetti Mestrando em Filosofia pela UFSCar Bolsista CAPES [email protected] Palavras-chave Espaço lógico. Fatos. Lógica Transcendental. Nomes. Objetos Resumo O espaço lógico é um conceito fundamental no Tractatus Logico-Philosophicus. Este espaço é o espaço de todas as possibilidades de concatenação de objetos em estados de coisas, ou seja, é condição de possibilidade do mundo e, além disso, de nossa linguagem. Os objetos constituem a substância do mundo – subsistem independente do que seja o caso – e apresentam uma forma fixa para aquilo que pode ocorrer na realidade. Os estados de coisas são complexos formados por coisas (objetos); os objetos são os elementos mais simples desses complexos. Ora, dizer que um objeto é simples não é dizer que ele possa se apresentar isoladamente. Um objeto só pode ser pensado em uma ligação com outros objetos (2.0121-2.0122), sendo assim, ele não pode ser pensado fora do estado de coisas em que ele possa aparecer ou, em outras palavras, o objeto não pode estar fora do espaço de possibilidades em que ele está inscrito. Porém, Wittgenstein nos diz que “esse espaço, posso concebê-lo vazio, mas não a coisa sem o espaço” (2.013). Com essa afirmação é possível conceber um espaço lógico em que nenhum estado de coisa se apresentasse como possível, ou seja, que haveriam objetos no espaço lógico que não estariam articulados? Mas pensar um espaço lógico vazio não vai de encontro com o aforismo 2.0121 “não podemos pensar nenhum um objeto fora da sua possibilidade de sua ligação com outros”? A nossa comunicação visará uma exposição mais “alargada” dos conceitos que envolvem essa questão, além disso, apresentaremos duas possíveis resposta apresentada por alguns comentadores do Tractatus. 1. Introdução A “tese” de que a lógica é transcendental apresenta-se no aforismo 6.13 do Tractatus: “A lógica não é uma teoria, mas uma imagem especular do mundo. A lógica é transcendental”1. Parece que o aforismo distingue duas coisas. Por um lado, a lógica enquanto transcendental não pode ser considerada como uma teoria, isto é, não pode ser responsável por apresentar um “corpo” de proposições verdadeiras sobre o mundo. Por outro lado, a lógica tem de espelhar (‘imagem especular’) o mundo de alguma maneira e, em certo sentido, manter um vínculo essencial com ele. Dessa maneira, não é do interesse da lógica saber quais estados de coisas existem ou não, em saber como o mundo se encontra efetivamente (atualmente). A lógica se importa com certo tipo de ‘imagem refletida’ do mundo; imagem que de fato ela deve ser e que a caracteriza como 186 1 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philososophicus; Tradução, apresentação e estudos introdutórios de Luiz Henrique Lopes dos Santos; [introdução de Bertand Russell]. – 3ªed. – São Paulo: Edusp, 2010. Aforismo 6.13. Doravante, para fins de citação, TLP e o número dos aforismos em questão. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 transcendental. Mas o que Wittgenstein quer dizer com isso? Se voltarmos alguns passos atrás nos aforismos do Tractatus, talvez, fique mais claro qual o ‘interesse’ da lógica e como ela pode ser entendida como transcendental; vejamos o aforismo 5.552: A experiência de que precisamos para entender a lógica não é a de que algo está assim e assim, mas de que algo é: mas isso não é experiência. A lógica é anterior a toda experiência – de que algo é assim. Ela é anterior ao como, não é anterior ao quê. (TLP, 5.552) Há dois tipos de experiências caracterizadas nesse aforismo, a experiência de que algo é e que, de fato, não é uma experiência; e a experiência do como, de que algo é assim. Parece que essas duas maneiras de se entender o termo ‘experiência’ servem para se compreender o ‘estatuto’ da lógica no Tractatus e como é possível compreender a relação entre lógica e mundo2. A experiência compreende como o mundo se encontra atualmente, quais estados de coisas existem e quais não existem; que as coisas se encontram relacionadas de tal e tal maneira. A lógica não tem interesse pela experiência ou, melhor dizendo, não é possível entender a lógica através da experiência, através de um “olhar para o mundo”, através do conhecimento de quais são os estados existentes de coisas3. Para se entender a lógica é necessário a compreensão desse “que algo é”; nesse momento parece que empacamos no mesmo ponto em que havíamos parado no aforismo 6.13: O que Wittgenstein quer dizer com as passagens “a lógica não pode ser anterior ao quê” e “a lógica tem de ser uma imagem especular do mundo”? Se a lógica é anterior a toda e qualquer experiência, como se dá a relação entre lógica e mundo? Como entender essa anterioridade da lógica e como entendê-la como transcendental? A nossa comunicação procurará apresentar dois caminhos possíveis para que se possa dar uma resposta às questões levantadas acima. Para isso, percorreremos de maneira rápida alguns pontos cruciais ao conceito de proposição apresentado no Tractatus para que, depois, possamos investigar a relação entre nomes (elementos mais simples das proposições) e objetos (elementos mais simples da realidade). Percorrer esse caminho nos levará a duas interpretações diferentes para se compreender os objetos do Tractatus e, consequentemente, duas maneiras diferentes de se entender aquilo que Wittgenstein chamou de espaço lógico (a totalidade dos objetos). Será também tarefa de nosso trabalho apresentar essas duas exposições e comparar as questões concernentes ao espaço lógico e à lógica transcendental, uma vez que, em certa medida, essas questões não podem ser apresentadas separadamente. 187 2 Nos termos de Balthazar Barbosa Filho: “Esse é o problema de como a lógica se realiza no mundo”. Wittgenstein e a racionalidade no mundo contemporâneo – debate sobre o livro 'Apresentação do Mundo'. CEBRAP, novos estudos nº43, 12/09/1995. pág. 208 3 TLP 5.551. Toda questão de lógica tem que ser respondida de imediato; se tivermos que olhar o mundo, então, trilhamos um caminho errado. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 188 2. Alguns aspectos sobre a figuração e a análise lógica O que a lógica pode antecipar é a forma essencial da proposição. Em um primeiro momento, através da teoria da figuração, o Tractatus nos revela que proposições e pensamentos são figurações lógicas da realidade. A proposição descreve os fatos por ser um modelo da realidade. É um modelo por ter algo em comum com os fatos: tanto proposições quanto fatos têm a mesma forma lógica. Isso mostra que a proposição vincula seus elementos da mesma maneira que os elementos dos fatos estão vinculados, ou seja, a proposição é uma ligação de elementos que são apresentados como uma possível ligação de elementos na realidade (no fato). Assim, toda proposição tem uma estrutura, a maneira como seus elementos se encontram relacionados e, por isso, a sua forma deve ser a mesma que a da situação que ela representa: “A proposição comunica-nos uma situação; deve, pois, estar essencialmente vinculada à situação. E o vinculo é precisamente ser figuração lógica dela”4. A verdade de uma proposição só pode ser revelada através da realidade, através da experiência. Que a proposição possa representar uma situação de maneira errônea, não altera em nada o seu valor representativo. Ter a mesma forma que a realidade garante que a proposição tenha a possibilidade de ser verdadeira ou de ser falsa, ao “fazer” uma proposição não pode ser dado a sua verdade ou a sua falsidade; o que é de fato “dado” é a possibilidade de sua verdade ou de sua falsidade, esta é a sua capacidade representativa. Mas, dizer que proposições e fatos têm a mesma forma lógica não é dizer que seja possível representar qual seria esta forma. A proposição exibe a forma como os elementos se encontram na realidade, ou seja, ela mostra a forma que é comum tanto ao mundo quanto à linguagem. Esta forma é uma condição necessária para que o mundo seja representado pela proposição, tal forma não se encontra nos fatos, mas é uma relação interna que garante o acesso entre mundo e linguagem. Se fosse possível dizer qual “a forma da linguagem”, tal forma não seria necessária, ela estaria dentro de um campo de possibilidades e poderia ser verdadeira ou falsa, consequentemente, seria necessária uma forma que tornasse possível a enunciação da ‘forma lógica da linguagem’. A linguagem espelha o mundo, a forma do estado de coisas é espelhada pela forma das proposições, mas esta não pode dizer qual seria esse “espelhamento” sem ir além da linguagem e do mundo5. Toda proposição necessária, de fato, não se constituí como uma proposição legitima. Uma proposição legitima tem de ser verdadeira ou falsa e não pode haver uma terceira via. As consequências que podemos tirar da teoria da figuração são: toda e qualquer proposição deve ser complexa e bipolar. É complexa por ter certo número de elementos (os nomes), estes devem estar articulados de alguma maneira, isso mostra a bipolaridade da proposição; ela deve escolher uma entre duas alternativas que se excluem – por. ex. afirmar ou negar. O princípio da bipolaridade mostra a independência do sentido da proposição; independente de sua 4 TLP, 4.03 5 TLP, 4.121 Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 189 verdade ou falsidade, a proposição tem um sentido e isso é garantido pela forma lógica compartilhada entre linguagem e realidade. Os elementos mais simples da proposição são chamados de nomes. Wittgenstein chama a proposição que é constituída apenas por nomes de ‘proposição elementar’. Torna-se crucial tentar compreender o que se entende por ‘análise lógica’ de proposições no Tractatus, tal análise mostra mais algumas características essenciais às proposições. Uma das coisas que a análise deve mostrar é que “a proposição é uma função de verdade de proposições elementares”6, isto quer dizer que uma proposição contém o sentido da outra. Tomemos o exemplo da implicação lógica: ‘P implica q’, essa proposição mostra que o sentido da proposição ‘p’ está contido no sentido da proposição ‘q’7. Outro ponto que a análise lógica das proposições mostra é que ela não pode durar para sempre, ela tem que ter um fim. Chega-se a certo ponto onde não se pode tirar o sentido de uma proposição a partir de outra. Uma análise ideal das proposições de nossa linguagem mostra que no fim de tal análise o que se tem são proposições elementares compostas por nomes. Assim, toda proposição generalizada deve ter como base proposições elementares, estas podem descrever completamente aquelas. Se fosse possível saber quais são todas as proposições elementares, seria possível saber quais proposições (mais gerais) se pode construir a partir delas. Os nomes que constituem proposições elementares não têm sentido. Como já foi dito mais acima, só uma proposição tem sentido, pois só ela pode proporcionar um ato de escolha: uma proposição escolhe dizer que certos elementos da realidade estão articulados uns aos outros ou, pelo contrário, escolhe dizer que estes elementos não se encontram articulados; isto mostra a possibilidade da proposição ser verdadeira ou falsa. Um nome não pode vincular um ato de escolha, nada é dito pelo nome “João” quando este aparece isoladamente. Que um nome tenha o significado que tem só é possível através daquilo que Wittgenstein chama de ‘relação afiguradora’; o nome deve ‘espetar’ o objeto designado: “A relação afiguradora consiste nas coordenações entre os elementos da afiguração com as coisas” (TLP 2.1514); “Essas coordenações são como que as antenas da figuração, com as quais ela toca a realidade” (TLP 2.1515). Essa passagem, um tanto quanto obscura, parece sugerir como um nome adquire seu significado e mostra mais uma das condições para que proposições tenham acesso ao real. Um nome tem seu significado garantido por dois motivos: 1) ele tem de estar em uma relação direta com um objeto; 2) e é na proposição que ele se apresenta8. Se a proposição descreve um estado de coisas (uma ligação entre os objetos na realidade), os nomes são os substitutos dessas coisas na proposição. Destarte, o nome tem de se comportar, na proposição, tal como os objetos se comportam na realidade. Por esse motivo, o objeto tem de ser o significado de um nome; p. exp., se um nome tem como seu significado um objeto espacial, tal nome desempe6 TLP 5. 7 Ibid. 5.11-5.124. 8 Ibid. “o nome significa o objeto. O objeto é seu significado” (3.203); “só a proposição tem sentindo; é só no contexto da proposição que um nome tem significa”. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 190 nhará seu papel em uma proposição que descreva objetos relacionados em uma situação espacial. Ao substituir um objeto, o nome terá que desempenhar o mesmo papel que este. A relação afiguradora é uma das condições necessárias para que uma proposição tenha sentido e, por isso, não pode ser descrita. 3. Retomada da Questão Voltemos ao nosso ponto de partida. A lógica pode dizer a priori que todas as proposições são bipolares, complexas, devem representar a realidade e são funções de verdade de proposições elementares. Isso é a única coisa que a lógica pode dizer sobre a forma da proposição. Quais são as formas de todas as proposições depende de quais são as formas de todas as proposições elementares, mas isso só é possível se se sabe quais são os nomes constituintes de todas as proposições elementares e, consequentemente, quais são todos os objetos. Só a aplicação da lógica pode especificar quais são os objetos, objetivo que o Tractatus não tem a pretensão de cumprir. Talvez, o que a lógica do Tractatus pretende fazer é traçar os limites do que pode ser pensado (o que pode ser dito); parece que ela faz isso ao se debruçar sobre as condições de possibilidade para que uma proposição tenha o sentido que tem. Resumindo o que foi dito acima: A lógica necessita que nomes e proposições elementares sejam possíveis, que nomes e proposições elementares estejam aí na base das proposições de nossa linguagem; e por que isso é importante? Porque essa base é o que torna possível o sentido de todas as proposições. Porém isso não é tudo o que o Tractatus nos diz. Lembremos que nomes têm de estar intimamente vinculados aos objetos e proposições elementares têm de afirgurar estados de coisas. Sendo assim, a lógica tem que pressupor essas coisas que são fundamentais para que seja possível o significado dos nomes e para que proposições tenham sentido. A teoria da figuração, com o apoio da análise lógica das proposições, revela que a lógica e a linguagem não podem ser independentes de certa ontologia ou, de outro modo, através da concepção de proposições elementares revela-se consequências ontológicas de possibilidade de representação9. Aqui voltamos ao nosso ponto de partida, ao aforismo 5.552. A lógica é anterior aos estados de coisas existentes, anterior “ao como o mundo se encontra”; Ela não pode ser anterior ao ‘quê’, não pode ser anterior à totalidade dos objetos que garantem a possibilidade dos estados de coisas. Ela não pode ser anterior ao espaço lógico. Aqui é que começa o problema: Como compreender o espaço lógico? Como entender o termo ‘objeto’ nos primeiros aforismos do Tractatus? Os comentadores da obra de Wittgenstein têm posições diferentes acerca dos ‘objetos’ e essas diferenças parecem marcar duas maneiras diferentes de se entender o espaço lógico. Consequentemente, há duas visões de como podemos entender os pressupostos da lógica. 9 DOS SANTOS, LHL. A essencia da proposição e a essência do mundo. In.: Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2010. Pág. 78. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 “O mundo é a totalidade dos fatos”10. O mundo é aquilo que todos os fatos apresentam tanto os fatos existentes quanto os fatos inexistentes determinam o mundo; isso parece dizer que mesmo que um fato não exista, faz sentido pensar que ele possa existir. O mundo é um recorte no espaço lógico, certa demarcação apontada pelos fatos. Um fato é a existência de estados de coisas. Um estado de coisas parece ser uma existência mais simples do que um fato, pois um fato parece englobar vários estados de coisas. Sendo assim, um estado de coisas só pode ser uma concatenação imediata de objetos. Proposições mais generalizadas conseguem descrever fatos, estados de coisas são descritos por proposições elementares e os objetos são substituídos por nomes em enunciados mais simples. O objeto não pode ser pensado fora do estado de coisas em que ele possa aparecer; poder ser participante de um estado de coisas já deve estar inscrito no objeto, como se essa inscrição sempre o acompanha-se11. As coisas (os objetos) só são auto-suficientes por poderem estar relacionadas umas com as outras; a coisa é auto-suficiente por poder aparecer em todos os estados de coisas em que ela possa aparecer. Essa auto-suficiência é na verdade uma ‘não auto-suficiência’, pois, de alguma maneira, a coisa tem de poder estar vinculada a um estado de coisas (2.0122). Sendo assim, se um objeto é dado também está dado todos os objetos em que ele possa estar concatenado, todos os possíveis estados de coisas. O objeto só pode ser pensado nesse espaço de possibilidade de concatenação; concebendo esses objetos, é possível conceber também todas essas possibilidades. Wittgenstein entende que esse espaço de possibilidades pode ser pensado como vazio, mas a coisa não pode ser pensada sem esse espaço (2.013). Os objetos são simples (2.02), eles são os últimos elementos da realidade e constituem aquilo que Wittgenstein vai chamar de ‘substância do mundo’ (2.021) e são a forma fixa que reside em todos os mundos possíveis (imagináveis); não se pode pensar um mundo sem eles objetos ou com ‘novos’ objetos. A forma de um objeto é o que garante que este possa estar concatenado em um estado de coisas; por ex., um objeto que tenha a foma espacial só pode estar articulado com outros objetos de mesma forma. A forma fixa dos objetos garante que todos os estados de coisas que possam existir, por isso, ela é o que subsiste independente do que seja o caso, independente do que seja o mundo. *** Os pontos que destacamos acima sobre os objetos do Tractatus apresentam interpretações divergentes nos comentários sobre a obra de Wittgenstein. O problema se encontra ao tentar compreender os aforismos 2.0122 e 2.013: Se um objeto só pode estar vinculado à situação em que ele possa aparecer, a uma situação possível, então, como conceber um espaço de possibilidades vazio? Deve-se deixar claro que esse espaço vazio não pode ser pensado como um espaço sem objetos, uma vez que, os objetos garantem todas as possibilidades de concatenação em estados de coisas, eles garantem 191 10 TLP 1.1. 11 É uma marca essencial do objeto. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 a forma de como essas concatenações podem se efetivar; assim, a totalidade dos objetos garantem o espaço lógico. Dessa maneira, pode haver no espaço lógico objetos sem nenhuma concatenação, ou seja, um espaço lógico vazio? Balthazar Barbosa Filho no debate sobre o livro ‘Apresentação do mundo’ diz que a alternativa de se pensar o espaço lógico como vazio não pode estar correta. O que se vê no aforismo 2.122 é que um objeto pode aparecer em uma situação possível, mas dizer isso é dizer que o objeto necessariamente tem de estar vinculado a um estado de coisas possível. O objeto espacial tem de estar em algum ponto determinado no espaço infinito, não se sabe qual é esse ponto, mas em algum lugar ele deve estar; a mancha no campo de cores tem de ter uma cor, não importa qual (se é vermelha, azul, verde, etc), mas alguma cor ela deve ter; do mesmo modo um objeto tem de estar vinculado em alguma situação possível, não está determinado de antemão qual situação ele pertence, mas algum lugar ele deve ocupar no espaço lógico:”Em outras palavras, um objeto deve existir em algum ponto determinado no espaço lógico, mas nada sobre o espaço determina uma posição determinada do objeto”.Destarte, os objetos no espaço lógico têm de constituir algum estado de coisa, isto é, algum mundo tem de existir. Se a interpretação de Balthazar é a correta, então, é uma necessidade lógica a existência de um mundo. Não importa qual mundo se apresente no espaço lógico, o importante é que um mundo qualquer deva existir: na minha interpretação, a existência de um mundo seria uma necessidade a priori, uma necessidade de natureza lógica (…) Se algo é constituinte possível de um estado de coisas, necessariamente é um constituinte (possível) de algum estado de coisas existente. E nisso, escreve Wittgenstein no Tratactus, reside a não-autos-uficiência da coisa da qual ele tratou. (Wittgenstein e a racionalidade no mundo contemporâneo p. 209) 192 O problema da interpretação de Balthazar é que ele parece esconder um termo essencial para se compreender o aforismo 2.0122. O que Wittgenstein nos diz é que: “a coisa é auto-suficiente, na medida em que pode aparecer em todas as situações possíveis”. A palavra possível é suprimida pela leitura de Balthazar e, por isso, parece que a consequência que podemos tirar disso é de que os objetos estão necessariamente ligados uns aos outros. Outro problema que pode aparecer é que o aforismo 2.013 não é analisado nessa interpretação. Ora, é nesse aforismo que Wittgenstein diz que o espaço lógico pode ser concebido como vazio e restaria a questão de como reportar a interpretação de Balthazar ao 2.013. A outra interpretação que parece ir de encontro a de Balthazar é a de Luiz Henrique Lopes dos Santos e do Norman Malcolm. O essencial dessa segunda interpretação é que o espaço lógico pode ser considerado como vazio, por esse motivo, os objetos podem estar no espaço lógico sem estarem vinculados a algum estado de coisas. Seria possível conceber um espaço lógico onde nenhum estado de coisas se apresentasse, sem a ocorrência de nenhum fato, sem que um mundo existisse. A existência de um mundo seria algo contingente e a lógica teria como pressuposto apenas a substância do mundo (a totalidade dos objetos, a forma fixa do mundo, o Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 espaço lógico). Essa interpretação é apresentada por Malcolm em Wittgenstein:Nothing is Hiddem: A observação ‘eu posso conceber esse espaço vazio’, certamente quer dizer que nenhum estado de coisas do qual uma coisa pode estar inscrita, pode existir. Se isso é possível para um objeto, pode ser possível para qualquer objeto. Por isso a totalidade do espaço lógico pode ser vazia: pode ser que não exista estados de coisas – isto é, nenhum mundo (p.24) O problema que Balthazar aponta para essa interpretação é que ela não consegue dar conta do aforismo 2.0131. Se for possível a um objeto existir sozinho, ou seja, sem estar concatenado a algum estado de coisas, então, como entender essas frases apresentadas por Wittgenstein: “o objeto espacial deve estar no espaço infinito. (o ponto do espaço é um lugar de argumento. Não é preciso, por certo, que a mancha no campo visual seja vermelha, mas uma cor ela deve ter”? A interpretação de Malcolm nos levaria a crer que objetos espaciais poderiam se encontrar fora do espaço; ou que uma mancha no capo visual poderia aparecer sem nenhuma cor, que um objeto colorido poderia existir sem nenhuma cor. 193 4. Conclusão A lógica transcendental do Tractatus parece receber essa titulação por dois motivos: 1) a lógica é anterior ao como, ela não tem interesse em saber quais proposições são verdadeiras ou falsas, isto é, não é de seu interesse saber como o mundo se encontra atualmente; é do interesse da lógica saber qual é a forma essencial comum a todas as proposições e isso se mostra a priori (anterior a qualquer experiência) – todas as proposições são complexas, bipolares, figurativas e função de verdade de proposições mais simples que são compostas por nomes. 2) compreender o que pode ser dito e pensado parece poder ser traduzido por ‘o que pode ser o mundo’, pois tudo o que se pode pensar pode também existir: “O pensamento contém a possibilidade da situação que ele pensa” (TLP 3.02). Se é tarefa da lógica compreender as condições que tornam possível o pensamento e a linguagem, então, através do ‘estudo’ dessas condições, torna-se possível retirar algumas condições concernentes à realidade: “Especificar a essência da proposição significa especificar a essência de toda descrição e, portanto, a essência do mundo” (TLP 5.4711). É nesse sentido que a lógica parece ser um espelho do mundo, ela é o que revela a forma comum tanto à linguagem quanto ao mundo - nada do que pode ser pensado pode ser pensado ilógicamente e nada do que pode acontecer no mundo pode acontecer contrariando as leis da lógica. Ainda que a lógica consiga dizer a priori a forma comum de todas as proposições e o que pode ser um mundo concebido pelo pensamento, ela não pode revelar quais são todas as proposições elementares e quais são todos os nomes que as compõem. Consequentemente, é impossível revelar quais são todos os objetos e quais são todos os possíveis estados de coisas. Há um resíduo que a lógica não pode ultrapassar ou se debruçar sobre, aquilo que se revela como sendo os limites próprios da lógica e do mundo: Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites. Na lógica, portanto, não podemos dizer: há no mundo isso e isso, aquilo não. Isso aparentemente pressuporia que excluímos certas possibilidades, o que não pode ser o caso, pois, do contrário, a lógica deveria ultrapassar os limites do mundo: como se pudesse observar esses limites também do outro lado. (TLP 5.61) Os limites apontados nesse aforismo coincidem com aqueles apresentados nos primeiros aforismos do Tractatus. A lógica não pode revelar a substância do mundo através de proposições com sentido, ela não pode revelar quais são os objetos e as formas que eles apresentam, em outras palavras, é impossível apresentar a constituição intima do espaço lógica (totalidade dos objetos). Não se pode pela lógica excluir ou acrescentar alguma possibilidade intrínseca ao mundo, isto é, não se pode acrescentar ou suprimir nenhum um objeto, uma vez que, os objetos revelam todas as possibilidades do que pode ser pensado e do que pode ser a realidade. A nossa resposta aos comentários da questão que apresentaremos aqui é um tanto quanto desanimadora. Não nos posicionaremos em favor de uma ou outra linha de interpretação e nem mesmo temos a intenção de apresentar uma terceira linha. As duas interpretações revelam, cada uma a seu modo, os limites que a lógica não pode transgredir e que são demarcados pela totalidade dos objetos – sendo estes objetos reveladores de um mundo como uma necessidade a priori ou reveladores da contingência de qualquer mundo. O que nos pareceu mais interessante do que resolver esse problema12, foi tentar problematizar a questão a partir dessas duas interpretações. 194 12 Tarefa que,talvez, não conseguiríamos cumprir. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 195 Bibliografia MALCOLM, Norman. Wittgenstein: nothing is hidden. Cambridge: Basil Blackwell, 1986. DOS SANTOS, LHL. A essência da proposição e a essência do mundo. In.: Tractatus Logico-Philosophicus; Tradução, apresentação e estudos introdutórios de Luiz Henrique Lopes dos Santos; [introdução de Bertand Russell]. – 3ªed. – São Paulo: Edusp, 2010. Wittgenstein e a racionalidade no mundo contemporâneo – debate sobre o livro ‘Apresentação do Mundo’. CEBRAP, novos estudos nº43, 12/09/1995 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philososophicus; Trad. Luiz Henrique Lopes dos Santos; [introdução de Bertand Russell]. São Paulo: Edusp, 2010.