E (NÃO) FORAM FELIZES PARA SEMPRE ...
UM ESTUDO SOBRE A HETEROGENEIDADE NO DISCURSO PARODÍSTICO
DE CONTOS DE FADAS
Susana Bornéo Funck (UCPEL)
Aracy Ernst Pereira (UCPEL)
Palavras-Chave: Heterogeneidade - Paródia - Contos de Fadas
Ao contrário do que geralmente se pensa, os estudos de gênero – originados a partir da
prática feminista e dos estudos sobre a mulher -- vão muito além das relações sociais
explícitas entre mulheres e homens. No bojo das discussões de gênero encontram-se
questões bem mais complexas e abrangentes, como a produção e disseminação do
conhecimento e da prática discursiva que o constitui.
Nessas três ou quatro últimas décadas em que as hierarquias de etnia, classe, nacionalidade
e gênero, entre outras, vêm sendo “desconstruídas” pela agenda acadêmica sob as rubricas
de pós-modernismo, pós-estruturalismo e pós-colonialismo, uma atenção bastante especial
tem sido dedicada ao ímpeto e às estratégias revisionistas. Revisam-se conceitos de
historiografia, com a inclusão de práticas do cotidiano; revisam-se conceitos de ciência,
com o questionamento da separação entre observador e observado; revisam-se os
tradicionais dualismos natureza-cultura, corpo-espírito; enfim, toda uma tradição filosófica,
a própria maneira como pensamos sobre o pensar é posta em xeque.
Em 1971, num ensaio que permanece como um dos clássicos da crítica feminista, a poeta
norte-americana, Adrienne Rich já advogava o revisionismo literário para as mulheres
como “mais do que um capítulo na história cultural”, como “um ato de sobrevivência”.
Precisamos conhecer o passado, nos dizia ela, mas conhecê-lo de forma diferente, crítica,
de modo a quebrar o impacto de uma tradição patriarcal sobre nossas produções culturais e,
em última análise, sobre nossas vidas.
Também na teoria a questão da narrativa é abordada sob a égide do revisionismo. Donna
Haraway (1991) propõe uma escrita cyborg, transgressora e progressista, que ela define
como “histórias recontadas, versões que invertem e deslocam os dualismos hierárquicos
de identidades naturalizadas”. Da mesma forma, Rosemary Hennessy (1993) enfatiza a
importância do discurso no questionamento de práticas sociais. Segundo ela, a questão
crucial do feminismo está nas histórias que contamos, na possibilidade de re-narrar-nos a
nós mesmas.
Como uma das formas mais contundentes e difundidas de narrativa mitologizante (no
sentido de Roland Barthes), os contos de fadas ocupam lugar de destaque neste processo
revisionista. Na crítica literária, estudos como os de Jack Zipes (1983, 1994) e Marina
Warner (1994) procuram desmistificar o valor universalizante que lhes é atribuído,
mostrando a relação entre o componente estético dos contos e sua função histórica de
socialização. Na literatura, o impulso revisionista se manifesta através de alterações
narrativas, geralmente sob a forma de paródia, onde o antagonismo proporcionado pela
sobreposição de um discurso transgressor a um discurso dominante realça a intenção crítica
e contestatória.
Bastante freqüentes nas literaturas de língua inglesa, as inversões parodísticas de contos de
fadas aparecem, por exemplo, na poesia de Anne Sexton e nos contos de Margaret Atwood,
Angela Carter e A. S. Byatt. Figuram também nos Contos de fadas politicamente corretos
de James Finn Garner já traduzidos para o português. No Brasil, embora não tenham um
cunho ostensivamente político e questionador, tais inversões têm sido utilizadas por
escritores como Guimarães Rosa e Marina Colassanti. Entretanto, é na literatura infantil e
no humor que o revisionismo se faz mais presente. Chico Buarque de Holanda, Millôr
Fernandes e Luís Fernando Veríssimo apresentam alterações das principais histórias
infantis, introduzindo, especialmente os dois últimos, uma crítica bastante mordaz aos
costumes e à sociedade contemporânea através da paródia.
O que nos interessa no presente trabalho é apresentar algumas reflexões sobre possíveis
implicações pedagógicas do funcionamento discursivo da paródia na prática da leitura
escolar, mostrando sua importância como ferramenta crítica através da qual as crianças e
adolescentes podem aprender a constituir-se como mulheres e homens, dotados de poder e
de desejo. Os contos de fadas que alteram a clássica ordenação de gênero constituem-se
num espaço privilegiado para a construção imaginativa de tomadas de posição pelo sujeito
que, ao poder se situar no eixo polissêmico (ou da transformação de sentidos) e não
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parafrástico (da repetição) da linguagem, rompe com as abordagens sexistas apresentadas
em contos tradicionais.
Há uma passagem do livro de Pedro Bandeira, O fantástico mistério da Feiurinha,
publicado em 1986, que diz:
Quase todas as histórias antigas que você leu terminavam dizendo que a princesa
casava-se com o príncipe encantado e pronto. Iam viver felizes para sempre e estava
acabado.
Mas o que significa “viver feliz para sempre”? Significa casar, ter filhos, engordar e
reunir a família no domingo para comer macarronada? Quer dizer que a felicidade é
não viver mais nenhuma aventura? Nada mais de anõezinhos, maçãs envenenadas e
sapatinhos de cristal? Como é possível que heróis e heroínas tão sensacionais
tenham passado o resto da vida assistindo ao tempo passar feito novela de televisão.
É preciso saber o que acontece depois do fim.
Bandeira, nesse fragmento, questiona um saber estabelecido, instaura a dúvida quanto aos
sentidos instituídos ao dizer Mas o que significa “viver feliz para sempre”? Ele toca no real
do sentido, naquilo que normalmente escapa às interpretações, interpretações essas
derivadas de uma concepção de mundo como universo logicamente estabilizado.
Parafraseando Pêcheux (1990), poderíamos formular questões como Quem é feliz para
sempre? Em realidade? Além das aparências? etc., perguntas que normalmente não são
feitas, por não serem consideradas “apropriadas”. Poderíamos dizer metaforicamente que
elas retiram o ponto final da certeza e instauram as reticências da dúvida, da continuidade
dos sentidos, sentidos que são omitidos, mas que teimam em aparecer, por que fazem parte
do real da história.
A obviedade de que, se a princesa encontra seu príncipe encantado, eles serão felizes para
sempre, é uma característica dos espaços discursivos logicamente estabilizados. Segundo
Pêcheux, há um série de evidências lógico-práticas que unificam aparentemente esses
espaços, tais como:
-- um mesmo objeto X não pode estar ao mesmo tempo em duas localizações diferentes;
-- um mesmo objeto X não pode ter a ver ao mesmo tempo com a propriedade P e a
propriedade não P;
-- um mesmo acontecimento A não pode ao mesmo tempo acontecer e não acontecer, etc.
No caso acima focalizado, teríamos, dentro desse quadro, ou se é feliz para sempre ou não
se é feliz para sempre. E a felicidade, para as mulheres, como sabemos normalmente
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depende do aparecimento da figura do príncipe encantado. Bandeira justamente questiona a
estabilidade desse sentido que se cristalizou na sociedade.
O questionamento de tais fatos que desestabilizam os sentidos sedimentados é típico do
discurso parodístico, onde se enquadram as leituras revisionistas dos tradicionais contos de
fadas. Esses contos constituem-se, via de regra, numa prática discursiva inibidora dos
desejos e mantenedora das dualidades características e constitutivas de cada um de nós,
sujeitos pragmáticos, que têm uma imperiosa necessidade de homogeneidade lógica e se
sentem seguros e felizes num mundo semanticamente normal, isto é, normatizado (cf.
Pêcheux).
Todavia, o espectro dos sentidos que escapam à normatização, que não estão sujeitos à
coerção lógico-disjuntiva, materializa-se em determinados processos discursivos. Um
desses processos são as inversões revisionistas dos contos de fadas, discursos parodísticos
que podem produzir uma re-interpretação do papel social desses discursos. O confronto
entre o discurso parodiado e o discurso parodístico possibilita o exercício de uma leitura
que, ao evidenciar os deslocamentos de sentidos operados, pode vir a desvelar o modo pelo
qual tais sentidos se constroem, desnaturalizando, assim, determinadas práticas sociais que
se fundam
no artificialismo das categorizações dualísticas que ainda caracterizam as
crenças culturais da sociedade ocidental. A análise do funcionamento do discurso
parodístico tem pertinência pedagógica e não só acadêmica, uma vez que o uso pode se
opor ao reducionismo da escola que normalmente propõe uma leitura homogênea, baseada
em valores estabilizados ou legitimados socialmente.
Através da paródia, podemos mostrar que a sociedade está sendo constantemente recriada
mediante práticas discursivas e que pode haver poder em tais práticas, um poder que,
apesar da tendência à manutenção de determinados sentidos, também gera novos sentidos,
elementos excluídos de um real que insiste em aparecer, ou seja, o discurso serve tanto para
conservar quanto para alterar práticas sociais. Da mesma forma que utilizamos os contos de
fadas tradicionais, um dos meios mais sensíveis empregados por nós adultos para permitir
às crianças o acesso à ordem instituída do mundo social, podemos utilizar inversões
parodísticas que proponham outras possibilidades de leitura, instaurando sentidos
contraditórios que desafiam os dualismos que sustentam as nossas certezas.
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Uma objeção a tal proposta poderia advir da idéia consensual de que as contradições são
prejudiciais e que devemos apresentar um mundo coerente aos alunos. Todavia, mesmo
respeitando esse ponto de vista, sabemos que o mundo não é coerente nem isento de
contradições, apesar de nos esforçarmos para que pareça unitário e linear. Além disso,
pensamos que quando as contradições são identificadas como tais podem servir para
mostrar a complexidade existente e tornar acessíveis outras posições, obviamente
reconhecidas como legítimas e significativas.
Sugerimos que, similarmente ao gesto do analista que busca desnaturalizar aquilo que foi
produzido historicamente, procuremos ver como são construídas as transparências na
materialidade discursiva, privilegiando, no espaço destinado à leitura escolar, um trabalho
com discursos parodísticos. Ao exporem a precariedade dos sentidos que se apresentam
como transparentes e legítimos, tais discursos apontam para gestos alternativos de
interpretação, talvez mais complexos de se lidar, mas importantes para mudar paradigmas
que têm se constituído em armadilhas para encapsular a liberdade de escolha e a tomada de
posições mais conscientes.
O caráter heterogêneo que constitui o discurso parodístico – pois ele sempre se volta para o
discurso do outro, permitindo reconhecer, paradoxalmente, semelhanças formais na cadeia
significante ao mesmo tempo que torna visível a diferença – possibilita um trabalho de
interpretação de certa maneira singular, uma vez que envolve um fenômeno de dupla leitura
onde a relação que se estabelece entre o plano paródico e o plano parodiado é de
fundamental importância.
A heterogeneidade discursiva presente na paródia deixa-se evidenciar através de
mecanismos lingüísticos que simultaneamente remetem aos sentidos do discurso-outro (o
discurso parodiado) e aos novos sentidos (o discurso parodístico) que desmontam o jogo de
submissão e manipulação engendrado para reforçar e essencializar as hierarquias sociais.
Um exemplo disso é a crônica de Luís FernandoVeríssimo, Psiu, onde a história da
princesa que beija o sapo é recontada em sete versões historicamente situadas, da época
feudal até os nossos dias. Já no parágrafo inicial, onde faz uma narração supostamente
“neutra” do conto original, podem-se notar claras marcas de heterogeneidade discursiva,
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geralmente ausentes nas versões tradicionais – os conectores de contrajunção, os
processos de relativização, as repetições, a negação e comentários que implicam uma
atitude crítica. É o caso, por exemplo, de “a donzela acreditou” (e é portanto ingênua)”,
“que fazia qualquer coisa virar qualquer coisa” (numa clara indicação de ironia) e
“explorando os camponeses” (comentário crítico sobre o sistema sócio-político da época
feudal).
Um dos aspectos que mais chama a atenção e que pontua o texto de Veríssimo como um
todo é o emprego de orações subordinadas reduzidas de gerúndio e particípio que
funcionam como glosas ou comentários no discurso parodístico. Além do exemplo acima,
temos “e os dois viveram felizes para sempre, vendendo a prataria e os móveis”, “era um
príncipe muito feio, deformado por gerações e gerações de casamento consangüíneo” e
“foram morar na cidade, onde o príncipe ganhava a vida explorando seu título para tirar
dinheiro da burguesia nascente”. O uso desse expediente sintático no discurso parodístico
expõe a heterogeneidade que o constitui. Não uma heterogeneidade mostrada que dialoga
com o interdiscurso, a fim de manter ilusoriamente a monologia (ou unidade) do discurso,
mas uma heterogeneidade não-mostrada (no sentido de que não há índices visíveis na
cadeia significante) que denuncia a diferença. Na realidade, enquanto na linguagem
ordinária procuramos, através das glosas, do aspeamento e de outras marcas, a unidade,
movidos pela ilusão da subjetividade (cf. Authier-Revuz, 1990), nas paródias, abrimos
espaço para a dispersão, opondo-nos, assim, à força de coesão que normalmente se faz
presente nos nossos discursos. Portanto, as inversões trabalham na direção da mobilidade
dos sentidos imprevisíveis, daqueles que não fazem parte da “natureza” dos contos de fadas
tradicionais.
Em termos das representações de gênero, observa-se, ao longo das várias versões
apresentadas, uma crescente subversão do papel da mulher, que passa de ingênua donzela
medieval a companheira de um homem empreendedor dos anos 20 deste século, a mulher
emancipada da década de 60, para culminar numa bem sucedida empresária dos nossos
dias. Essa evolução apresenta a voz feminina que não é ouvida nas versões tradicionais. Por
exemplo, numa das versões apresentadas no texto de Veríssimo, quando o sapo diz que se
transformaria de novo em príncipe, se a donzela lhe desse um beijo, a moça diz:
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“Beijo de língua, não!”. Em outra, a moça “levanta uma questão técnica”: “Precisa ser
donzela?”
Nas versões iniciais, o casamento é uma constante: até o início deste século, “eles foram
felizes para sempre”. Nas paródias mais recentes, a mulher ou literalmente chuta o sapo e
solidariza-se com a bruxa ou, sozinha, explora com sucesso o fato de ter encontrado um
sapo falante: “E ela fez uma fortuna em contratos publicitários, e viveu feliz
para
sempre”. Finalmente, na era da informação, a personagem feminina esquece o sapo (e o que
ele lhe proporcionaria, como amor, casamento, felicidade) e procura a bruxa, já que é esta
que possui a “informação privilegiada” tão valorizada em nossos dias.
Portanto, enquanto que o conto de fadas tradicional conserva o caráter mitológico da
narrativa, que transforma o histórico e contingente em universal e eterno (Barthes, 1956),
as versões parodísticas desmi(s)tificam a história e, ao devolver a heterogeneidade a um
texto predominantemente homogêneo, colocam em movimento algo que fora “congelado” e
ideologicamente fixado em sua significação. Como observa Thompson em seu recente
estudo sobre ideologia e os meios de comunicação (1998), “nas histórias (...) que
preenchem muito de nossas vidas cotidianas, estamos, continuamente, engajados em
recontar a maneira como o mundo se apresenta e em reforçar (...) a ordem aparente das
coisas.” É contra este processo de estabilização ideológica que o discurso parodístico pode
agir, já que a paródia instaura a possibilidade de ler criticamente as marcas sociais deixadas
pelas versões tradicionais dos contos de fadas, tornando visível sua historicidade e
contribuindo politicamente para reconfigurações e deslocamentos de posições que podem
interferir positivamente na constituição de identidades.
Esse tipo de leitura, baseada numa consciência de gênero e guiada pelos conceitos de
reescritura e de heterogeneidade discursiva, pode e deve ser explorado em sala de aula.
Situações que apresentem toda uma gama possível de posicionamentos, além dos
normalmente acessíveis e “apropriados”, podem se revelar uma prática mais produtiva e
libertadora, permitindo (e mesmo incentivando) o acesso a novas formas de relações
sociais, a novos modelos de poder e de desejo.
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Referências Bibliográficas
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Cadernos de Estudos
Lingüísticos. Campinas (19): 25-42, jul./dez., 1990.
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New
York: Routledge, 1991, p. 175.
HENNESSY, Rosemary. Materialist Feminism and the Politics of Discourse. New York:
Routledge, 1993, p. 137.
PÊCHEUX, Michel. O Discurso. Estrutura ou Acontecimento. Campinas, SP: Pontes,
1990.
RICH, Adrienne. When We Dead Awaken: Writing as Re-Vision. In: ___. On Lies, Secrets,
and Silence: Select Prose 1966-1978, New York: Norton, 1979, p. 34-49.
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna. Teoria social crítrica na era dos
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WARNER, Marina. From the Beast to the Blonde: On Fairy Tales and Their Tellers.
London: Vintage, 1994.
ZIPES, Jack. Fairy Tales and the Art of Subversion: The Classical Genre for Children and
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___. Fairy Tale as Myth, Myth as Fairy Tale. Lexington: University of Kentucky Press,
1994.
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