A fuga O seu tornozelo direito se torceu sob o seu peso e ela caiu. O vento que vinha do sul, descendo pelo morro, balançando as árvores ao longo da estrada, transformou em um suspiro o seu grito e lhe arrancou o xale para dentro da escuridão. Sentou-se com vagar, com as palmas das mãos apoiadas no cascalho, ajeitando o seu corpo de maneira a libertar a perna que tinha torcido. O pé direito do sapato estava jogado na estrada, perto de onde ela estava. Quando o colocou de volta, percebeu que lhe faltava o salto. Olhou ao seu redor e começou a procurar pelo salto, de gatinhas pelo caminho, morro acima, contra o vento, gemendo baixinho quando o joelho direito tocava o chão. Finalmente desistiu e tentou tirar o salto do outro sapato, mas não conseguiu. Colocou o sapato novamente, levantando-se com o vento pelas costas, vergando-se com a sua violência e com a inclinação da estrada. O vestido colou-se às suas costas, saindo voando pela sua frente. O cabelo se espalhava por sobre o rosto. Caminhando na ponta do pé direito, para compensar o salto perdido, começou a descer o morro. 15 Ao pé do morro, havia uma ponte de madeira e, cem metros mais adiante, uma placa – que não se conseguia ler no escuro – indicava uma bifurcação na estrada. Ela parou naquele lugar, olhando não para a placa, mas à sua volta, tremendo agora, embora o vento aí tivesse menos força que no alto do morro. A folhagem à esquerda se movimentava, deixando entrever uma luz amarelada. Seguiu pela estrada à esquerda. Dentro de pouco tempo, chegou a uma clareira na mata, ao longo da estrada, onde havia luz suficiente para indicar uma trilha, que saía da estrada e atravessava a clareira. A luz vinha de uma janela com uma cortina bem fina, de uma casa no final da trilha. Seguiu pela trilha até lá e bateu à porta. Como não houve resposta, bateu novamente. Uma voz masculina, rouca e desprovida de emoção, respondeu: “Entre” – Ela abriu a porta. O vento estava mais forte, obrigando-a a segurar-se junto à porta, com as duas mãos, para não cair. O vento passou por ela, entrando na casa, levantando as cortinas e espalhando folhas de jornal que estavam sobre uma mesa. Conseguiu fechar a porta com esforço e, ainda apoiada nela, disse: “Desculpe”. Tentava falar claro, apesar do sotaque. O homem, que estava limpando o cachimbo ao lado da lareira, disse: “Está tudo bem”. Os olhos de cobre pareciam tão impessoais quanto a voz rouca. “Termino com isso em um minuto.” Não se levantou da cadeira. A ponta do canivete em sua mão raspava o interior da boca do cachimbo. Ela se afastou da porta e avançou, mancando, olhando-o com os olhos perplexos sob as sobrancelhas ligeiramente franzidas. Era uma mulher alta e se mantinha numa postura altiva, 16 embora estivesse mancando e o vento tivesse desarrumado o cabelo, e o cascalho da estrada, cortado e sujado as mãos e braços nus c o crepe vermelho do vestido. Ela disse, embora ainda tendo de lutar com as palavras: “Preciso ir até a estação. Machuquei o tornozelo na estrada. Hum?” Ele, então, levantou os olhos daquilo que estava fazendo. O rosto bem marcado e pálido, sob cabelos rebeldes da cor dos olhos, não apresentava sinais de amizade ou de hostilidade. Olhou para o rosto da mulher, para a saia rasgada. Não voltou a cabeça para chamar: “Ei, Evelyn”. Uma garota – com um corpo delgado, de roupas esportivas, um rosto fino queimado pelo sol, com grandes e brilhantes olhos negros e cabelo curto e escuro – entrou na sala pela porta que estava às suas costas. O homem não se voltou para olhá-la. Indicou com a cabeça a mulher de vermelho e disse: “Essa”. A mulher o interrompeu: “Eu me chamo Luise Fischer”. O homem disse: “A sua perna não está em ordem”. Os olhos escuros e observadores de Evelyn desviaram a sua atenção da mulher para o homem – não o estava vendo de frente – e novamente para a mulher. Sorriu, falando apressadamente: “já estava de saída. Posso deixá-la em Mile Valley, no caminho para casa.” A mulher parecia querer esboçar um sorriso. De repente, ainda com o olhar contemplativo e curioso, Evelyn enrubesceu, e o rosto assumiu um ar de desafio, enquanto avermelhava. A moça era bonita. Encarando-a, a mulher tornara-se bonita; os olhos eram 17 longos, com longos cílios, bem protegidos por sobrancelhas bem delineadas, a boca não era pequena mas bem traçada e, com o clarão que o fogo na lareira produzia, a superfície do rosto ficava tão bem definida como se fosse matéria esculpida. O homem soprou o cachimbo, formando uma pequena nuvem de pó preto. “Não adianta se apressar”, disse. “Não passa nenhum trem antes das seis.” Olhou para o relógio que estava colocado sobre a lareira. Marcava dez e trinta e três. “Por que você não a ajuda. Com a perna?” A mulher disse: “Não, não precisa. Eu...”. Colocou todo o seu peso sobre a perna machucada e hesitou um pouco, firmando-se com a mão na cadeira. A garota correu em sua direção, gaguejando arrependida: “Eu... eu não pensei. Desculpe.” Colocou o braço em volta da mulher e ajudou-a a sentar-se na cadeira. O homem levantou e colocou o cachimbo sobre a lareira, ao lado do relógio. Tinha estatura mediana, mas a corpulência fazia-o parecer menor. O pescoço, saindo da gola em v do suéter cinzento, era curto e musculoso. Calças largas, também cinzentas, logo abaixo do suéter, encontravam os sapatos de cor marrom, bem pesados. Fechou o canivete, colocando-o no bolso, antes de se voltar para olhar Luise Fischer. Evelyn estava de joelhos em frente à mulher, tirando-lhe a meia da perna direita, conversando nervosamente: “Você cortou o joelho também. Ts-ts-ts! E o tornozelo está inchando. Não deveria ter andado tanto com esses sapatos.” O seu corpo escondia a perna nua da mulher da vista do homem. “Agora, sente-se direito, que vou dar um jeito nisso.” Começou atirar a saia vermelha, rasgada, pela perna nua. O sorriso da 18 mulher era discreto. Disse, de maneira cuidadosa: “Você é muito gentil”. A garota correu para fora do quarto. O homem tinha um maço de cigarros na mão. Sacudiu-o até que três cigarros ficassem mais ou menos um centímetro e meio para fora e ofereceu-os. “Fuma?” “Obrigada.” Pegou um cigarro, colocou-o nos lábios e olhou para a sua mão enquanto ele lhe oferecia o fósforo. As mãos dele eram grossas, musculosas, mas não pareciam ser de alguém que trabalhasse pesado. Observou o seu rosto através dos cílios, enquanto ele acendia o seu cigarro. Era mais jovem do que parecia à primeira vista – talvez não tivesse mais de trinta e dois ou três – e os traços, sob a chama do fósforo, pareciam menos impassíveis que disciplinados. “Machucou-se muito?” O tom era apenas coloquial. “Espero que não.” Levantou a saia e olhou primeiro para o tornozelo, depois para o joelho. O tornozelo estava decididamente inchado, embora não muito; o joelho tinha um corte fundo e mais dois superficiais. Tocou a parte ferida com o dedo. “Não gosto de sentir dor”, disse bastante séria. Evelyn entrou com uma bacia com água fervente, panos, um rolo de gaze e sálvia. Os olhos negros cresceram ao ver o homem e a mulher, mas estavam escondidos pelas pálpebras abaixadas, quando os dois se voltaram em sua direção. “Vou dar um jeito nisso. Em um minuto.” Ajoelhou-se novamente em frente da mulher, a mão nervosa derrubando água pelo chão, o corpo entre a perna de Luise Fischer e o homem. Ele dirigiu-se até a porta e olhou para fora, segurando a porta aberta uns quinze centímetros, con19 tra o vento. A mulher perguntou à garota, que lhe banhava o tornozelo: “Não passa nenhum trem antes do amanhecer?”. Ela franziu os lábios de uma maneira pensativa. “Não.” O homem fechou a porta e disse: “Vai chover dentro de uma hora”. Colocou mais lenha no fogo e ficou em pé – com as pernas abertas, mãos nos bolsos, o cigarro em um canto de sua boca – observando Evelyn cuidar da perna da mulher. O rosto estava tranqüilo. A garota secou o tornozelo e começou a cobri-lo com gaze, sempre com maior velocidade, respirando agora mais rapidamente. Mais uma vez, a mulher parecia que iria abrir um sorriso para a garota, mas em vez disso, falou apenas: “Você é muito gentil”. A garota murmurou: “Não é nada”. Três batidas fortes soaram na porta. Luise Fischer espantou-se, deixou cair o cigarro, olhou rapidamente através do quarto com olhos assustados. A garota não levantou a cabeça, continuando o trabalho. O homem, não dando a perceber, pela expressão do rosto ou por seus modos, que tinha notado o espanto da mulher, voltou o rosto em direção a porta e gritou com a voz rouca: “Pode entrar”. A porta se abriu e um grande dinamarquês malhado entrou, seguido por dois homens vestidos para uma noitada elegante. O cão foi direto até Luise Fischer e lambeu-lhe a mão. Ela estava olhando para os dois homens que haviam acabado de entrar. Não havia calor nem timidez no seu olhar. Um dos homens tirou o quepe – era de tweed cinza, combinando com o casacão – e dirigiu-se a ela, sorrindo. “Então é aqui que você veio parar?” 20