Ruediger.fm Page 1257 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM Governança democrática na era da informação* Marco Aurélio Ruediger** S U M Á R I O : 1. O governo eletrônico como facilitador das relações entre Estado e sociedade civil; 2. O ângulo do Estado e a ONU/Aspa benchmark de portais de governo; 3. A percepção dos gestores; 4. O ângulo da sociedade civil: acessibilidade e exclusão digital; 5. Uma agenda para o governo eletrônico. S U M M A R Y : 1. E-government as a facilitator for State and civil society relations; 2. The State perspective and the UN/Aspa benchmark of governmental portals; 3. The managers perception; 4. The civil society perspective: accessibility and digital divide; 5. An agenda for the e-government. P A L A V R A S - C H A V E : governo eletrônico; Estado; sociedade civil; democracia; custo de informação; reestruturação do Estado; exclusão digital; planejamento estratégico. K E Y W O R D S : e-government; State; civil society; democracy; information costs; State restructuring; digital divide; strategic plan. Este artigo investiga como os mecanismos de governo eletrônico poderiam facilitar a reestruturação da administração pública, em termos de reforçar a eficiência governamental e transparência com o apoio da sociedade civil. O artigo discute especialmente o impacto da tecnologia de informação sobre os custos de agregação de informação, em relação à diminuição de incentivos negativos ao engajamento da sociedade civil na discussão da agenda pública. Argumenta que mecanismos de governo eletrônico poderiam, potencialmente, reforçar a participação cívica, que, por extensão, poderia * Artigo recebido em out. e aceito em dez. 2003. Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no XXVII Enanpad, em Atibaia, SP (2003). Alguns aperfeioçoamentos foram adicionados ao texto original, de forma a expor uma visão mais abrangente dessa temática no Brasil. Entre eles, destaca-se o estudo espacial da exclusão digital, por região e renda, com base no censo de 2000 do IBGE. ** Professor doutor da Ebape/FGV. E-mail: [email protected]. RAP Rio de Janeiro 37(6):1257-80, Nov./Dez. 2003 Ruediger.fm Page 1258 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1258 Marco Aurélio Ruediger dialeticamente facilitar a reestruturação do governo, influenciando mudanças organizacionais no aparato de governo. Em seguida, utiliza o caso brasileiro como proxy, apresentando a comparação de 40 importantes portais nacionais utilizando o critério da ONU/Aspa. Além dessa análise, são exibidos alguns resultados advindos de entrevistas em profundidade e de grupos focais, complementados por uma exploração espacial sobre a exclusão digital. Finalmente, é delineada uma proposta de planejamento estratégico para o governo eletrônico que supere as sérias dificuldades ao seu completo desenvolvimento. Democratic governance in the information era This article investigates how e-government could potentially enhance the political scope of the public sphere, in terms of reinforcing the efficiency and accountability of the State with the support of the civil society. It focuses on discussing the use of information technology in relation to the diminishing costs of incentives toward civil society engagement on the discussion of the public policy agenda. It argues that e-government mechanisms could potentially reinforce civic participation, which, by extension, could dialectically facilitate government restructuring, influencing organizational change in the State apparatus. Next, taking the Brazilian case as a proxy, it presents a comparative analysis of 40 important national web portals using the UN/ Aspa criteria. In addition to this analysis, it presents some results collected from in-depth interviews and focus groups, complemented by results from a spatial survey on digital divide. It concludes by proposing a strategic plan for e-government to overcome the serious hindrances to its full development. 1. O governo eletrônico como facilitador das relações entre Estado e sociedade civil A proposta de construção de governo eletrônico, muito embora esteja marcada na sua fase atual mais avançada pelo desenvolvimento de sistemas relacionados ao provimento de serviços, aponta, ainda que de forma embrionária, para uma possibilidade de extensão da esfera do Estado conjugada a uma maior permeabilidade à cidadania, decorrente de uma possível diminuição do custo da informação. Nesse sentido, pode-se dizer que da mesma forma que não se deve incorrer em um otimismo exagerado sobre as suas possibilidades, seria igualmente uma simplificação considerar o governo eletrônico apenas um mecanismo de oferta de serviços pontuais a clientes, sem considerar que o provimento de serviços pelo Estado é, inexoravelmente, um bem público, relativo ao cidadão, influenciado em seu desenho por percepções também políticas. Ressaltamos de início essa dimensão, justamente por que ela faz com que o governo eletrônico, em teoria, não se limite apenas à con- Ruediger.fm Page 1259 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM Governança Democrática na Era da Informação formação de uma mercadoria reificada pelo mercado, mas, antes, que possa servir de arena cívica, dentro de uma conceituação mais ampla de governance onde o provimento interno e externo de informações é um elemento central. Esse, como veremos, é o eixo central do presente trabalho. Atualmente, a aplicação do conceito de governance ao governo eletrônico está restrita pelo custo de produção, acesso e qualidade da informação, fatores críticos dos processos de escolhas públicas, sobre os quais economistas e cientistas políticos têm se debruçado, e que problematizam tanto a questão da eficiência econômica quanto a das escolhas políticas. Downs (1999), em seu estudo clássico, observa que quanto mais informação obtém aquele que toma decisões, mais confiante sobre a decisão tomada ele se sentirá e, portanto, menos terá de descontar dos ganhos provenientes de sua certeza na alocação geral de seus recursos. Outros autores clássicos também apontaram entre as mesmas razões de imperfeição de mercado a assimetria de informações entre as partes envolvidas. Entretanto, essa constatação na literatura nunca foi categórica no sentido dessa falha de alguma forma não poder ser mitigada. Arrow (1970), tal como observado por Sen (2000), ao apontar para problemas como, por exemplo, o da chamada “falha do governo”, relativa aos custos de obtenção de informações, não demonstrou em seu teorema simplesmente a impossibilidade de escolha social racional, mas antes, e sobretudo, apontou a impossibilidade de uma escolha social eficiente como decorrência de uma base limitada de informações. Assim sendo, voltando ao ponto anterior, não se discute stricto sensu a possibilidade de escolha social, mas sim o uso e disponibilidade de uma base informacional adequada para os juízos e as decisões sociais (Sen, 2000). Essa dificuldade levaria a assimetrias que problematizariam a noção de equilíbrio geral tanto na escolha social, mas, também, na escolha racional, que igualmente tem como central a questão das informações e coordenação. Nesse caso, o acesso à informação, em ambas as chaves, é uma questão muito mais complexa do que as soluções dos modelos tradicionais de equilíbrio competitivo contemplam, e que, portanto, como observado por Stiglitz (2002), poderiam igualmente levar a escolhas subótimas, se considerarmos apenas as variáveis de oferta e demanda, desconsiderando outras variáveis exógenas. A lógica do mercado, portanto, não seria necessariamente um balizador melhor para o Estado, mas apenas um dos balizadores possíveis. Em outras palavras, a escassez de um provimento amplo desse bem perpetua a assimetria de informações, seja de eleitores ou de outros agentes, aumentando as possibilidades de resultados alocativos subótimos, em especial para grupos menos articulados nas redes de poder. Trata-se, portanto, da inacessibilidade à informação para grupos majoritários de outsiders (Elias, 2001), que são excluídos da afluência às informações de forma sistêmica, sobre os quais, de certa forma, o Estado poderia, supostamente, estabelecer positivamente o “princípio da diferença rawlsiano” (Rawls, 1997). Nesse sentido não poderiam as novas tecnologias da informação concorrer para relativizar esses problemas? 1259 Ruediger.fm Page 1260 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1260 Marco Aurélio Ruediger Queremos ressaltar, entretanto, o ponto de que nas sociedades contemporâneas a informação poderia ser inserida nas discussões sobre a oferta de bens públicos, e seu provimento facilitado pelas novas tecnologias aplicadas na alteração. Nesse caso, a possibilidade de democratização da informação por esses meios levaria a uma diminuição de seu custo de obtenção e, sobretudo, permitiria um aumento da possibilidade de realização de estratégias cooperativas. Em apoio a isso, o governo eletrônico poderia ser considerado — e construído — dentro de uma perspectiva mais ambiciosa, vetor privilegiado para promoção de mecanismos de governança tanto no incremento da capacidade cívica e de capital social, quanto na promoção do desenvolvimento econômico, eficiência governamental e de relações mais democráticas e transpa-rentes entre governo e sociedade civil. Ou seja, tratar-se-ia de estender o acesso ao governo, e no governo, para além dos serviços comuns, alcançando uma outra esfera qualitativa em termos de interação republicana, onde houvesse uma efetiva capacidade de accountability e interlocução entre decisores e cidadãos, bem como de provimento de informações com real valor agregado para discussão da agenda pública. Dessa forma, considerando atores racionais, o provimento amplo de informações, componente fundamental na construção de um Estado virtual, poderia possibilitar a agregação de preferências coletivas que viabilizasse uma escolha social mais eficiente. Há, evidentemente, imensos entraves para o gestor público na promoção de uma transição de uma estrutura institucional, por vezes marcada por processos e rotinas ineficientes, excessivamente burocratizados e avessos à integração, para outros que visem uma maior capacidade de coordenação e comunicação, que incluam padrões claros de eficiência e accountability, e que tenham repercussão não apenas nos serviços prestados, mas também na estrutura que suporta esses serviços, com níveis altos de qualidade na informação provida. Assim, ressalta-se aqui, em termos técnicos, a potencialidade bifronte do uso do governo eletrônico, tanto na ação individual, atomizada, de cidadãos buscando serviços ou informações sobre o governo, bem como, queremos sugerir, numa interação crítica de sujeitos coletivos com o Estado, em termos do que poderia ser considerado um mecanismo circular de policy feedback. A construção do Estado virtual requer essa mudança efetiva, que poderá produzir alterações que propiciem o fortalecimento de mecanismos de governance, tanto no plano real quanto no virtual. Assim, tal como observado por Fountain (2001:203): The structure of the state will change largely to the extent that changes in information infrastructure catalyze modifications in communication, Ruediger.fm Page 1261 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM Governança Democrática na Era da Informação coordination, and control. I use the language of the State to indicate that the Internet signals not simply more efficient, effective government structured largely according to present arrangements, but deeper institutional change. Building the virtual state is about the process and politics of institutional change rather than a set of predictions about the end result. And this process is partially about rethinking the role of the state in relation to the economy and society. Queremos enfatizar essa percepção de que a constituição de um governo eletrônico, em termos de uma perspectiva funcional do Estado e suas relações com a sociedade, deveria apresentar não só serviços e dados socialmente relevantes, de forma a minimizar a questão da falha de governo, como também, e em conseqüência, haver se reestruturado para provê-los, em termos de suas rotinas e processos que inevitavelmente deverão ser revistos, suprimidos ou modificados. Entretanto, justamente esse Estado que passou por mudanças tão dramáticas nas duas últimas décadas (Pereira e Spink, 2001) estaria em condições de avançar nesse sentido? Para alguns teóricos do Estado a resposta seria um rotundo não, sendo que este precisaria primeiramente recuperar sua capacidade de ação frente ao mercado. Para realizar a perspectiva do Estado virtual, promotor de efetivo e-governance, requerer-seia, primeiramente, um resgate do equilíbrio do Estado real em sua capacidade de intervenção, fundamentada em seu tripé constitutivo, nos termos apontados por Evans (2002). Referimo-nos sobre esse ponto, mais especificamente, à discussão feita por este autor em relação às características híbridas da moderna estratégia administrativa e, queremos sugerir, seu reflexo na construção de um modelo virtual de governança. Segundo observado por Evans, a moderna administração pública utilizou desde o início três modos básicos de controle para produzir efetividade no aparato de Estado democrático, que configuram um modelo híbrido de estratégia a ser recuperado: a imposição de normas weberianas de controle, hierarquia e meritocracia; a implementação de mecanismos democráticos para permitir formas de participação no desenho e implementação de políticas públicas; e, por fim, a incorporação de elementos de mercado e em certa extensão parâmetros como eficiência e custo-benefício no balizamento de políticas. Essa estrutura equilibrada de Estado foi, segundo este mesmo autor, afetada nas últimas décadas, principalmente pela ênfase na percepção do Estado como provedor de serviços a clientes sob a égide hipertrofiada de critérios de mercado. Assim, do desequilíbrio desse modelo adviriam diversas inadequações. Em termos gerais esse desequilíbrio, juntamente com o processo intenso de desregulamentação e globalização assistidos nas últimas décadas, possibilitou aos mercados ampliarem sua capacidade de moldar estruturas administrati- 1261 Ruediger.fm Page 1262 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1262 Marco Aurélio Ruediger vas e o desenho de políticas públicas, alterando a composição anteriormente equilibrada do referido tripé, provocando uma reestruturação conservadora do Estado, reduzindo-o em sua dimensão e abrangência, e também insulando-o das relações cívicas que ali encontram seu locus preferencial, transformadas em relações de mercado. Como observado por Evans (2002:1): effective public administration, especially when development is the goal, requires the synergistic integration of these three different modes of — what I am calling here “hibridity”. If this is true, then we must be worried by the extent that a confluence of disparate factors has upset the balance dramatically expanding the role of “market signals” at the expense of the other two factors. Searching for ways to recapture hibridity, within the market constraints imposed by the current global neo-liberal regime, becomes the next challenge of the state reform. Inevitavelmente, transplanta-se também ao Estado virtual o desequilíbrio do Estado real, fazendo do primeiro instrumento de cristalização da desestruturação do segundo. Isso, evidentemente, se reflete na utilização de mecanismos de tecnologia de informação como instrumento de provimento de serviços. Seu uso, entretanto, é feito ainda de forma limitada como avaliado em estudo da OCDE (OECD, 1999). Nesse estudo, observou-se sobre o governo eletrônico que o potencial das novas tecnologias eletrônicas aplicadas aos processos de governo devem acompanhar outras mudanças paralelas, como o advento de uma nova geração de líderes tecnicamente letrados; o aperfeiçoamento de tecnologias de interatividade, feedback e trabalho em grupo; maior prioridade dos tomadores de decisão em utilizar esses recursos extensamente; uma maior exigência da sociedade civil sobre transparência, participação e eficiência. Em conjunto, essas questões dependem mais de resoluções políticas do que de soluções tecnológicas stricto sensu. Verificaremos esses pontos empiricamente mais à frente. Começaremos por verificar essas percepções utilizando critérios do benchmark sobre e-government da ONU/Aspa (2002), referência central para os estudos empíricos que se seguirão. Em síntese, pela análise pelos critérios do referido relatório de portais nacionais escolhidos, acreditamos que ainda não se verifique de forma extensa a existência de mecanismos participativos de governo eletrônico mais efetivos nas esferas de Estado, que não, em alguns casos, no nível federal, utilizado no referido estudo e, suspeitamos, com a ocorrência similar na maioria dos casos internacionais mais avançados. Adiantando algumas de nossas conclusões, pode-se afirmar que, pelas análises que se seguirão, o governo eletrônico como ferramenta de reestruturação de Estado parece ainda uma possibilidade distante, muito embora promissora, de vetor promotor de reestruturação republicana do Estado e das Ruediger.fm Page 1263 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM Governança Democrática na Era da Informação suas relações com a sociedade civil. Essa limitação vinculada em parte com a dificuldade de acesso à web, como veremos, problematiza a questão do custo de informações. De imediato, pode-se dizer que uma ação fundamental para o equacionamento dessa problemática seria pela reestruturação do Estado. Entretanto, como também veremos no decorrer deste artigo, complementando a análise acima, encontramos igualmente dificuldades nesse ponto, retratado nas observações oriundas de percepções culturais e barreiras internas à estrutura do Estado no sentido de uma readequação de suas características híbridas, conforme observado em grupos focais por gestores públicos. Nos próximos segmentos, trataremos dessas questões utilizando o Brasil como caso de análise. Os resultados encontrados, como veremos, matizam aqueles apresentados pela ONU/Aspa, certamente mais otimistas que os nossos. A seguir, após verificarmos os portais de governo em termos de suas funcionalidades vis-à-vis os critérios ONU/Aspa, discutiremos a questão pela percepção dos gerentes responsáveis pela implementação de sistemas de governo eletrônico, apresentando extratos de percepções oriundas de entrevistas por meio de grupos focais. Em seqüência observaremos mais sucintamente a questão da exclusão digital observando dados oriundos do censo de 2000 e especializados por geoprocessamento. Finalmente, apontamos uma alternativa de agenda que visa instituir mecanismos. 2. O ângulo do Estado e a ONU/Aspa benchmark de portais de governo Seguiremos nossa discussão por uma análise crítica do relatório ONU/Aspa aplicada prioritariamente a outras esferas que não somente a federal, comparando diversos portais de governo eletrônico em termos dos critérios do citado benchmark. Sobre a conceituação esboçada pelo referido relatório na análise dos portais de governo e suas funcionalidades, podemos resumidamente dizer que, no agregado, tal classificação posiciona um determinado país em um estágio de desenvolvimento de uso desses mecanismos virtuais de governança. A figura 1 refere-se a esses estágios e ao número de países incluídos em cada um deles; a descrição dos estágios é detalhada no quadro, em seqüência. Esse conjunto é auto-explicativo. No referido relatório, observa-se o Brasil, juntamente com um grupo de outros 16 países, inscrever-se na categoria transacional em termos do estágio avançado de seu sistema de governo eletrônico. Essa categoria seria a mais avançada já alcançada. Não há registro ainda de outro país no último estágio (seamless). Note-se que os demais países do estudo distribuemse pelos demais estágios. 1263 Ruediger.fm Page 1264 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1264 Marco Aurélio Ruediger Figura 1 Desenvolvimento dos estágios do governo eletrônico por país 65 7070 65 55 55 6060 5050 4040 32 32 3030 17 17 2020 1010 00 0 0 Emerging Emerging Enhanced Enhanced Interactive Interactive Transactional Transactional Seamless Seamless Fonte: UN/Aspa (2002). Estágios do serviço de governo eletrônico Situação Descrição Emergente (Emerging) Presença na web com informações básicas, limitadas e estáticas. Informacional avançado (Enhanced) Fornecimento dinâmico de informações, usando meios como georreferenciamento de dados, animação por meio de imagens, entre outros aspectos. Interativo (Interactive) Possibilidade de interação, os usuários podem obter formulários, certidões e outros instrumentos administrativos. Transacional (Transactional) Usuários podem pagar serviços e taxas, ou conduzir transações financeiras online, com interação com o sistema bancário. Virtual/totalmente integrado (Seamless) Total integração dos serviços de e-government por meio de uma agência virtual, sem fronteiras entre organismos governamentais. Fonte: UN/Aspa (2002). Duas questões mereceram aqui um detalhamento especial. A primeira refere-se aos subníveis nacionais, por exemplo, os portais estaduais e aqueles das metrópoles, incluindo alguns portais federais não observados no referido Estado. Como esses se colocariam no esquema analítico de critérios da ONU/ Aspa? Teriam um comportamento assemelhado aos portais nacionais analisados, ou difeririam deles? Uma negativa nesse sentido demonstraria proble- Ruediger.fm Page 1265 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM Governança Democrática na Era da Informação mas em posicionar um país por completo, ou em sua maior parte, em um determinado nível de desenvolvimento de governo eletrônico. Em segundo lugar, o ponto importante a ser notado seria uma inadequação mais genérica ao estágio mais avançado atingido de desenvolvimento de e-government, chamado estágio transacional, pois, como veremos a seguir, indicaria que os processos que sustentam esse nível de sofisticação e interatividade esperados não se apresentam, provavelmente, porque não estariam efetivamente estruturados. Portanto, isso nos fornece indícios de que uma engenharia institucional de reestruturação do Estado nos moldes aqui propostos, e em concordância com os pressupostos dos autores já citados, estaria longe de sua efetivação. Verifiquemos esses pontos a seguir. Para fins desse primeiro exercício empírico, selecionamos 40 sites ou portais governamentais escolhidos entre uma amostra retirada do universo de 130 importantes instituições inscritas, em 2002, no concurso nacional sobre governo eletrônico, patrocinado pela Associação Brasileira de Empresas de Informática Estadual (Abep).1 Esses portais foram analisados de acordo com os critérios ONU/Aspa, em termos do detalhamento que possuem no referido relatório. Evidentemente, tratou-se ainda de um primeiro corte analítico, que será revisto de forma aprofundada na seqüência dos trabalhos de pesquisa. Entretanto, apesar de seu estágio atual ter ainda um caráter exploratório, acreditamos que seus resultados estão bastante próximos do quadro real, os critérios específicos utilizados, além do estado geral (figuras 2 e 3), foram: relevância (figura 4), percebido como presença no site de um ou mais dos seguintes setores críticos educação, saúde, emprego/trabalho, bem-estar e serviços sociais, serviços financeiros e segurança; usabilidade e navegação (figura 5), percebido como facilidade cognitiva, organização e localização; conteúdo (figura 6), percebido como informações sobre a instituição, links etc.; e inovação (figura 7), percebido como características de comunicação ou de serviços efetivamente pioneiras. Por esses critérios, obtivemos a seguinte configuração. Fator de avaliação 1: estágio geral observado Observa-se pelas figuras 2 e 3 um quadro diferente daquele apontado no relatório ONU/Aspa para o Brasil, que situa-se dentro do grupo transacional. Dos portais analisados, entre federais, estaduais e municipais, ou seja, 47% situam-se em um estágio imediatamente anterior ao estágio transacional, no qual o Brasil havia sido posicionado pelo estudo das Nações Unidas. Isso denota um problema no referido estudo, compreensível em termos metodológicos, mas de qualquer forma problemático para um correto entendimento tanto da extensão do desenvolvimento desses mecanismos, quanto, possivel- 1 Ver o universo da amostra em <www.premio-e.gov.br>. 1265 Ruediger.fm Page 1266 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1266 Marco Aurélio Ruediger mente, do nível de estruturação interna existente, relativo ao grau transacional de interação de serviços e organização interna de dados e processos. Some-se a isso que 33% encontram-se no estágio interativo, ainda mais precário, e apenas 20% estão efetivamente no estágio transacional, conforme o referido relatório. Figura 2 Quarenta sites e portais selecionados por critério ONU/Aspa 20 20 18 18 16 16 14 14 12 12 10 10 88 66 44 22 00 Freqüência Freqüência IInformacional n f o r m a c i o n a l a vavançado ançado 113 3 I Interativo nterativo Transacional Transacional 19 19 88 Figura 3 Quarenta sites e portais selecionados por critério ONU/Aspa 20% 33% Informacionalavançado avançado Informacional 32 Interativo Interativo Transacional Transacional 47% 17 Adicionalmente, os outros critérios observados tiveram uma distribuição semelhante à disposição mostrada. Em termos gerais, pode-se dizer que a estrutura e o grau de desenvolvimento alcançados nos sistemas federais Ruediger.fm Page 1267 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1267 Governança Democrática na Era da Informação observados no relatório da ONU não se verificam no conjunto mais amplo das iniciativas de governo das esferas municipal, estadual, em diversos segmentos do plano federal. Devemos supor ainda que esse quadro não seja exclusividade do Brasil, inclusive porque é o país que possui uma das maiores populações de usuários da internet.2 Vemos esses resultados a seguir com uma descrição sumariada das variáveis observadas. Fator de avaliação 2: relevância Presença no site de um ou mais dos seguintes setores críticos: educação, saúde, emprego/trabalho, bem-estar e serviços sociais, serviços financeiros e segurança. Figura 4 Quarenta sites e portais selecionados por critério ONU/Aspa — relevância 30 30 25 25 20 20 15 15 10 10 55 00 Seqüência Sequência Baixo Baixo Baixo/médio Médio Médio/alto Alto Alto 11 55 28 5 1 Fator de avaliação 3: usabilidade e navegação Presença no site de um ou mais dos seguintes setores críticos: uso de linguagem do usuário e minimização de carga cognitiva; agrupamento, organização e detalhamento das informações; navegação e localização no site; consistência informacional, ergonomia e estética. 2 Ver lista completa em <www.nua.ie>. Ruediger.fm Page 1268 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1268 Marco Aurélio Ruediger Figura 5 Quarenta sites e portais selecionados por critério ONU/Aspa — usabilidade e navegação 25 25 20 20 15 15 10 10 5 0 Baixo Baixo 21 21 Seqüência Sequência Médio Médio 15 15 Alto Alto 33 Muitoalto alto Muito 11 Fator de avaliação 4: conteúdo Presença no site de um ou mais dos seguintes setores críticos: caracterização do site e da empresa, foco no usuário, acesso a outros ambientes, temas abordados . Figura 6 Quarenta sites e portais selecionados por critério ONU/Aspa — conteúdo 20 20 18 16 15 14 12 10 10 8 6 5 4 2 00 Seqüência Seqüência Caracterização Caracterização do dosite site edadaempresa empresa Foco no nousuário usuário Foco Acesso Acesso aa outros outros ambientes ambientes Temas Temas 44 14 14 18 18 44 Ruediger.fm Page 1269 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1269 Governança Democrática na Era da Informação Fator de avaliação 5: inovação Presença no site de um ou mais dos seguintes setores críticos: complementam outras mídias, substituem parcialmente a interação física, substituem integralmente a interação física, serviços ou processos novos. Figura 7 Quarenta sites e portais selecionados por critério ONU/Aspa — inovação 2020 1818 1616 1414 1212 1010 8 8 6 6 4 4 2 2 0 0 Seqüência Seqüência Complementam Complementam outras mídias outras mídias 18 18 Substituem a Substituemparcialmente parcialmente interação física a interação física 10 10 Substituem Substituemintegralmente integralmentea a interação interação física física 77 Serviços ou processos Serviços ou processos novos novos 55 Em suma, acreditamos que a discrepância de resultados observados e o referido estado da ONU/Aspa se deve, sobretudo, a uma dicotomia de “vontades políticas” que atuam na gestão desses diferentes órgãos, onde a percepção da impotência da TI como ferramenta de reforma do Estado no âmbito federal, no compromisso dos agentes-chave da administração com o aprofundamento do processo e, finalmente, nas iniciativas normatizadoras e de reestruturação que foram realizadas, em grande parte foram respaldadas na Casa Civil da Presidência da República, como apurado em nossas entrevistas. Nesse aspecto, o governo eletrônico alcançou resultados notáveis, em especial na área de e-procurement (Fernandes, 2003), principalmente porque foi construído dentro de uma estratégia vinculada à reforma do Estado, a qual, obviamente, teve suas limitações, entre as quais destacamos a incapacidade de estender essa estratégia como modelo estruturado às outras esferas, e mesmo a áreas significativas em seu próprio plano. Entretanto, mesmo essa iniciativa federal exitosa esbarrou em problemas críticos de expansão e reestruturação de processos e rotinas, talvez pelo próprio desenho da reforma de Estado implementada, que poderia certamente inserir-se na crítica elaborada por Evans (2002). Ruediger.fm Page 1270 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1270 Marco Aurélio Ruediger Essa discussão reforça a premência de agendas públicas nacionais e multilaterais incluírem a questão de políticas que visem à democratização do acesso aos mecanismos do Estado, pelas TICs, (tecnologias de informação e comunicação), como um patamar de ação pública efetiva, de forma a propiciar um incremento nas possibilidades de participação cívica na agenda do Estado e nas suas relações internas. Tal processo estaria intrinsecamente vinculado à possibilidade de construção de mecanismos de governança virtual. Perguntamonos, portanto, em qual extensão essas novas tecnologias poderiam ser pragmaticamente aplicadas de forma a auferir uma melhor performance para o setor público, seja nos processos de reestruturação da administração, seja no provimento democrático de informações, sistemas de accountability e eficiência da gestão? Quais dificuldades podem estar obstruindo esse processo? Haverá condições culturais entre gestores para produzir de fato mudanças estruturais? Faz-se necessário, portanto, um esforço investigativo final a partir desse ponto, buscando as percepções dos gestores e a extensão do acesso público a esses meios. 3. A percepção dos gestores A descrição que se segue trata de um curto segmento extraído de um longo processo de análise qualitativa com grupos focais realizada nos dias 10 e 11 de junho de 2002. Trata-se de percepções de gestores de tecnologia da informação pertencentes às classes sociais A e B (critério Brasil), que foram selecionados entre gestores do sistema de governo eletrônico em empresas-chave da esfera pública, ou prestadoras de serviços públicos recentemente privatizados no Brasil como os de água, luz e telefonia. Como referência, observe-se que todos no grupo tinham nível superior, com uma formação bastante heterogênea, incluindo engenheiros, economistas, administradores e profissionais de comunicação. Em geral, esse grupo encontra-se em uma faixa etária de 35 a 55 anos. Um fato importante a ser notado é que nenhum era originário estritamente de uma carreira de gestor governamental, tendo, portanto, uma trajetória alternada tanto na esfera pública quanto na esfera privada. Complementarmente, foi feita em Brasília uma série de entrevistas em profundidade, cujas percepções são sintetizadas ao final desse segmento ao lado das externadas pelos membros do grupo focal em questão. O objetivo nesse caso é mitigar determinadas percepções do grupo focal, pelo prisma federal, este último composto de gestores de carreira estritamente da esfera pública. As discussões foram realizadas com máximo rigor técnico, incluindo um profissional de moderação que utilizou um roteiro semi-estruturado previamente definido. A discussão foi assistida pela equipe de pesquisa, isolada em uma sala espelhada ao lado, e que, eventualmente, promoveu interferências em tempo real, através de perguntas endereçadas por escrito ao moderador, com o objetivo de elucidar e aprofundar os rumos da investigação, em uma dialética com o curso das respostas. A seguir, descrevemos de forma co- Ruediger.fm Page 1271 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM Governança Democrática na Era da Informação mentada os principais pontos dessa fase analítica. Inicialmente, as respostas obtidas versam sobre perguntas relativas à percepção do governo eletrônico enquanto serviço provido pelo Estado. Assim: Acho que o governo eletrônico deve ser criado para se aproximar da fatia carente, apesar de ocorrer o contrário. Acho que o governo eletrônico ainda é um serviço. Ainda se vê muito a perspectiva do serviço (e não o serviço em si), acho que hoje temos mais internet banking do que governo eletrônico. Eu tenho muito interesse nesse aspecto, me parece que quando se trata de governo eletrônico, de cidadão no governo eletrônico, a saída que vejo (potencialmente nessa dimensão) é mais do apenas o provimento de serviços eletrônicos. Como parte desse processo de obliteração, os entrevistados apontam para a reprodução das barreiras internas aos órgãos para a criação de novas atitudes, de novos valores e de novos comportamentos condizentes com uma nova postura gerencial, necessária à introdução das novas tecnologias da informação e suas conseqüências para o setor público. Essas barreiras refletem tanto dificuldades culturais, quanto receio de perda de poder e controle hierárquico. Não basta ter vontade política, o ex-presidente (do órgão ao qual o entrevistado esteve vinculado) tinha que vencer as barreiras internas para democratizar as informações principalmente por parte do pessoal de desenvolvimento de serviços pela internet. A gerência tem que ter vontade política, mas também de mudar a cultura interna. O caso do Detran (Departamento de Trânsito do estado), talvez seja o melhor exemplo no estado em que um processo virtuoso, iniciado quando a internet foi implantada, alterou um processo anterior vicioso. Tem órgãos no estado em que a resistência ainda é muito grande (...). Tentamos começar a trabalhar com o geoprocessamento (Geographic Information System). Isso é democratizar o acesso à informação. Mas ainda continua uma estrutura rígida, burocratizada dentro do governo. Planeja quem tem poder. Há tendência em determinadas secretarias de esconder informações. Impedindo a possibilidade de ser um governo com transparência. Tais barreiras foram muito destacadas na entrevista em profundidade (a seguir transcrevemos um outro trecho dos depoimentos), onde percebe-se um aprendizado das limitações impostas por um modelo que não tenha como perspectiva repensar as rotinas de back-office em função do provimento de serviços, em especial daqueles vinculados efetivamente a funções de governo. Ou seja, a reestruturação de rotinas teria um impacto justamente na percepção cultural da extensão possível da implementação de modelos de e-governance e reestruturação do Estado, enquanto fundamento de qualquer iniciativa nesse sentido. Entretanto isso não ocorre. Dessa forma: 1271 Ruediger.fm Page 1272 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1272 Marco Aurélio Ruediger Em longo prazo esse atendimento virtual começa cada vez mais a exigir alguma mudança para trás e isso pode ser um impedimento para que esse atendimento avance. No primeiro momento foi jogar o computador na mesa do funcionário. Até hoje em dia tem gente que não consegue usar o correio eletrônico, principalmente por causa da idade da pessoa, daí a absorção da tecnologia ser mais difícil. Já acontece aqui o que acontece com os usuários lá de fora, uns usam bem outros não. A maioria dos projetos fracassaram por falta de experiência gerencial. Tivemos muitas dificuldades no indício devido à cultura do órgão, o corpo técnico do órgão. Em suma, revendo os pontos referentes à construção dos sistemas de governo eletrônico, consideramos por duas chaves distintas nas discussões que se seguiram a percepção que os gestores teriam sobre as possibilidades do governo eletrônico. A primeira, vinculada à questão do provimento de serviços mais eficientes a clientes. A segunda, mais politizada, que envolve referenciais mais intensos de construção de mecanismos de participação na agenda governamental. Note-se que uma parte significativa dos entrevistados promoveu o desenvolvimento desses referidos sistemas no âmbito de uma administração vinculada a partidos de esquerda. Nesse sentido, é interessante notar que a percepção mais conservadora da reforma do Estado, muito embora difusa e mitigada com uma percepção populista de atendimento ao cidadão, foi recursivamente utilizada por esses entrevistados, que operaram em administrações que se opuseram (no discurso) a princípios do New Public Management. Finalmente, devemos ressaltar que um problema de fundo quanto ao papel dos responsáveis pelo governo eletrônico em incorporar como central apenas a produção de serviços ad hoc, e, sobretudo, pela ausência entre eles de uma reflexão mais clara sobre incentivos à participação cívica e promoção de capital social, que se daria além do conceito de direito do consumidor, buscando atingir a esfera política, seja pela construção de redes críticas de possibilidade de ação coletiva, ou pela reestruturação do Estado para esse fim. No caso específico dos gestores federais, as entrevistas em profundidade indicaram um padrão significativamente diferente dos gestores entrevistados das esferas estadual e municipal. Nota-se, sobretudo no plano federal, uma percepção mais clara das dificuldades intrínsecas de reformas estruturais e, ressalte-se, a construção de um planejamento interno com o propósito de integrar elementos sistêmicos críticos e dar maior transparência à gestão. Evidentemente, percebe-se uma hipertrofia em favor de uma abordagem de mercado, mas, sem dúvida, o quadro geral está muito à frente das outras esferas, indo realmente na direção de um patamar transacional, ainda que apenas em determinados segmentos. Falta-nos ainda verificar o provimento de acesso a esses serviços à sociedade civil. Este último passo é dado a seguir. Ruediger.fm Page 1273 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1273 Governança Democrática na Era da Informação 4. O ângulo da sociedade civil: acessibilidade e exclusão digital O problema da acessibilidade física aos sistemas de governo eletrônico é com certeza um complicador das questões já discutidas, denominado extensivamente na literatura como digital divide (Norris, 2001). Dessa forma, o acesso assimétrico a novos meios informacionais tem seu reflexo no local, afetando serviços, infra-estrutura e a qualidade de vida, apontando justamente para o aumento, e não para a diminuição, de disparidades socioeconômicas e espaciais que, no limite, afetam negativamente a própria capacidade competitiva de uma cidade ou até do país, e, com certeza, do governo na provisão de bens de cidadania e accountability. Nesse caso, a questão essencial é que as especificidades de sociedades como a brasileira, levam-nos a um triplo divide, ou seja, vivenciamos não apenas o digital divide e o spatial divide,3 comum aos países desenvolvidos, mas também um social divide. Observando a tabela, seguir temos percepções diferentes dessa mesma realidade. População dos países selecionados e usuários da internet Nações selecionadas População (milhões) Usuários da internet (milhões) 37,4 3,88 a 174,5 16,84a Canadá 31,6 14,2b Chile 15,3 3,1c 5,2 2,69d França 60,0 16,97 e Japão 126,8 51,34 f 59,6 34,0 a 278,0 165,75 a Argentina Brasil Finlândia Inglaterra EUA Fonte: www.nua.ie (acesso em 2002). a Nielsen/NetRatings; b Media Metrix Canada; Japan. c Int’l Telecom. Union; d Taloustukimos Oy. e Mediametrie. f NetRatings/ Assim, pode-se notar mais acuradamente que, a despeito do acesso em termos absolutos ser significativo no Brasil, em termos relativos esse número é abaixo da média dos países desenvolvidos. No caso brasileiro, isso se traduz em menos de 5% da população, enquanto no Canadá, por exemplo, aproxima-se de quase 50%. Ou seja, por essa tabela, fica claro que os 16,84 milhões de 3 Aqui considerado como a alocação espacial preferencial de recursos condicionada pelos status social e político de populações de uma área geográfica determinada. Ruediger.fm Page 1274 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1274 Marco Aurélio Ruediger usuários da web brasileiros formam um grupamento de peso considerável, que coloca o Brasil entre os países com maior população de usuários de internet no mundo. Porém, e esse é um ponto fundamental, ao observarmos comparativamente esses números, não mais pelo prisma dos valores absolutos, mas, dessa feita, pelo ângulo da razão entre usuários web e população geral, observamos que o Brasil possui uma das piores relações entre o grupo selecionado. Adicionalmente, considerando que a democratização do Estado virtual e de suas políticas pelas tecnologias de informação e comunicação inicia-se necessariamente pela possibilidade de uma multiplicidade de grupos de interesse e cidadãos comuns terem acesso a esses meios informacionais, podemos perceber pela figura 8 que há não apenas uma razão entre usuários e população extremamente baixa no caso brasileiro, mas também uma alta correlação entre setores de maior status social com a possibilidade de uso mais intenso de TIC (acesso à telefonia e computador), o que sugere um nível de acessibilidade superior de informações e serviços, justamente os segmentos já sobrecapacitados nesse aspecto em nossa sociedade. Essa discussão adiciona na agenda pública a questão de políticas que visem à democratização do acesso aos mecanismos do Estado, e mesmo aos serviços privados, pelas TICs, como um patamar de ação pública, cada vez mais influente. Apenas como um exercício, se considerarmos que 80% da população brasileira vivem em digital divide, torna-se um forte elemento adicional de assimetria social, com impacto crescente nas áreas urbanas extremamente adensadas e já com uma miríade de problemas (Graham e Marvin, 1997). Nesse sentido, a tecnologia e seus nexos físicos criaram uma nova dinâmica social e econômica no espaço físico, onde o fluxo dos espaços é superposto pelo das informações (Castells, 1997a), sendo influenciado por este. Verifica-se, portanto, que a distribuição do acesso aos meios nos quais as informações públicas estão reunidas, inclusive, e crescentemente, os serviços de Estado que são disponibilizados na rede, é mais expressiva em termos de acesso àqueles segmentos que já têm acesso a canais de informação, rede de contatos, ou ainda proficiência e meios de uso das novas mídias, ou seja, têm maior status social e redes de relações mais próximas à elite política. As figuras 8 e 9 buscam captar essa problemática. Na primeira percebemos uma divisão em termos regionais no Brasil de acesso à internet, que se torna mais aguda tanto em termos regionais quanto renda. Na figura 9 temos uma exploração da questão espacial, onde se observa um estado da Federação, no caso o Rio de Janeiro, recortado por diferentes níveis de acesso possível à internet — residências onde há simultaneamente telefone e computador conforme o censo nacional de 2000. Descendo em termos do detalhe local, temos complementarmente a cidade do Rio de Janeiro também subdividida. Em ambos os casos as áreas representadas com tons mais escuros são aquelas com maior potencial de acesso e, em geral, com maior status social. Ruediger.fm Page 1275 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1275 Governança Democrática na Era da Informação Figura 8 Percentagem de domicílios com acesso potencial à internet (telefone e computador) por renda domiciliar (em unidades de salários mínimos) e regiões — Brasil 45 40 35 30 Norte 25 Nordeste 20 Sudeste 15 Sul 10 Centro-Oeste 5 0 Menos de 2 S.M. De 2 a 4 S.M. De 4 a 6 S.M. De 6 a 10 S.M. Mais de 10 S.M. Fonte: IBGE, Censo 2000. Figura 9 Estado do Rio de Janeiro e cidade do Rio de Janeiro por acesso potencial à internet Internet: Acessopotencial potencial Internet: acesso Estado do do Rio Estado Rio de de Janeiro Janeiro Menor 5% Menor que que 5% De até 12% De 5% 5 a 12% De até 18% De 12% 12 a 18% De até 26% De 18% 18 a 26% Maior que 26% Mais de 26% Rio de Janeiro Cidade do Rio de Janeiro Fonte: IBGE, Censo 2000. Ruediger.fm Page 1276 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1276 Marco Aurélio Ruediger Em suma, mecanismos de governança e transparência, fundamentais para a reversão de um quadro problemático em termos socioeconômicos e do próprio desenvolvimento, poderiam ser impulsionados fortemente pela revolução digital, mas são obstacularizados pelas assimetrias históricas somadas a uma nova assimetria, desta feita relativa ao mundo digital. O relatório na última reunião mundial da agência Habitat (2001), da ONU, definiu governança local como: “a soma das formas pelas quais os indivíduos e instituições (públicas e privadas) planejam e gerenciam seus assuntos comuns. É um processo contínuo que pode levar ao conflito ou à ação cooperativa mutuamente benéfica”. Portanto, pode-se dizer que desenvolver políticas públicas que observem a oportunidade digital é um elemento fundamental de desenvolvimento com justiça, mas pode ser também um vetor de eficiência. Entretanto, qual eficiência seria possível ao restringir a uma parte da população, mesmo que significativa em termos absolutos, o acesso a informações e serviços de Estado? Complementarmente, o quanto tal ausência problematizaria a construção de capital social e a eficiência da estrutura de Estado em sua inter-relação com a sociedade civil? Considerando simultaneamente essa problemática, seria o governo eletrônico um campo para uma construção republicana de Estado? Nesse caso, quais as possibilidades estratégicas para operar pela política a readequação desse instrumento? Buscaremos a seguir, como conclusão, discutir esses aspectos. 5. Uma agenda para o governo eletrônico Objetivamos ao longo deste artigo explorar de forma crítica os elementos que nos parecem centrais a uma reestruturação do Estado, em termos de sua eficiência vinculada a uma promoção da percepção republicana de suas relações com a sociedade civil. Esse ponto, como já discutimos, nos parece central para restabelecermos um equilíbrio nas funções clássicas do Estado, e, amparado nas novas tecnologias da informação, atingir níveis de eficiência e interatividade com a sociedade civil, que possibilitem uma administração pública capaz de enfrentar os desafios postos por um contexto complexo e, crescentemente, interpenetrado por processos simultaneamente globais e locais. Nesse sentido, utilizando como referencial analítico o relatório da ONU/Aspa, procuramos verificar em profundidade os parâmetros e resultados analíticos ali apontados contrapostos a outros exemplos do caso brasileiro, diversos em relação aos observados no referido relatório. Verificamos que muito embora nosso referencial analítico tenha muitas virtudes, carece em alguns aspectos de aprofundamentos. Dessa forma, tratamos aqui de utilizar como proxy um determinado país, o Brasil, enquadrado no grupo mais elevado no desenvolvimento de governo eletrônico. Essa exploração se deu em ter- Ruediger.fm Page 1277 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM Governança Democrática na Era da Informação mos da abrangência dos experimentos de governo eletrônico estudados. Complementamos esse esforço analítico com um estudo sobre acessibilidade. Em conjunto ambas as estratégias buscavam observar a estrutura de Estado, pelo provimento de serviços e informações disponibilizadas, e a acessibilidade a esses serviços. Em termos gerais, podemos concluir que se observa efetivamente um esforço para aumentar a eficiência do Estado pela utilização do governo eletrônico, mas, e de forma condicionada pelo desenho utilizado, há um componente cultural importante, com reflexos tanto no desenho de sistemas, quanto nas possibilidades percebidas pelos gestores de acesso ao Estado, que se fundamenta em uma racionalidade típica de mercado por onde se consolida uma veiculação fundada na subsidiariedade e na especialização de funções, refletida na oferta de serviços ad hoc, limitados ou sem preocupações políticas intensas em termos de uma cidadania engajada, ou sem uma inter-relação cívica de acesso a amplos segmentos da sociedade. Assim, fortalecem-se potencialmente alguns grupos de interesse, e não outros, e, em especial, retardando a possibilidade de maior pressão cívica para uma reestruturação e provimento de informações pelo Estado. Com isso, retarda-se a concretização de uma reforma do Estado mais profunda, tendo o governo eletrônico como um indutor de um processo republicano de reconstrução da administração. Os impedimentos são, portanto, internos e externos, mas, talvez, funcionais a um pensamento hegemônico sobre o que deve ser o Estado. Esse problema, com efeito, parece-nos central para a efetivação de reformas que busquem uma maior eficiência da esfera estatal, estando, como mencionamos, também diretamente vinculado à questão cívica. O que, completamos, dificulta a possibilidade dessa participação nos assuntos do Estado, de forma, como observou Tocqueville (1987), em que as esferas mais imediatas da vida pública 4 servissem de escolas de civismo para as grandes questões de Estado. Entretanto, os sistemas de governo ao estarem dissociados, em termos conceituais, em sua concepção e, em termos práticos, dos processos que os sustentam, de referenciais republicanos e cívicos fundamentais, onde a racionalidade utilitária cedesse à ação coletiva, tal qual a saída ao chamado dilema dos prisioneiros, tornam-se limitadores para o uso dessas tecnologias como instrumento de uma reestruturação democratizadora do Estado, cuja questão central seria a rearticulação entre Estado e sociedade. Essa rearticulação seria vital no estabelecimento de uma estratégia que sobrepujasse as dificuldades levantadas para reestruturação do Estado, esten- 4 Aqui poderíamos atualizar essa observação, referindo-nos ao acesso aos serviços mais críticos ao cidadão, se desenhados com uma maior radicalidade para interferência na agenda pública, supondo a net como um township, ou melhor, uma ágora pós-moderna. 1277 Ruediger.fm Page 1278 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM 1278 Marco Aurélio Ruediger dido à sua versão virtual. Ou seja, as barreiras internas ao Estado poderiam ser tensionadas e, eventualmente, mitigadas, pela pressão da sociedade civil em um processo dialético de demanda crescente por serviços e informações advindas do Estado. Da mesma forma, os gestores poderiam buscar iniciativas que maximizassem essa possibilidade, por meio de mecanismos voltados ao provimento de meios de acesso, como também outros, vinculados à oferta de programas e políticas que digam respeito diretamente a questões de cidadania. Esse processo interessaria, sobretudo, aos que almejam a continuidade de reformas no campo do Estado. Evidentemente, esse ciclo virtuoso requer um ponto de partida que precisa ser politicamente construído. Sugerimos como agenda, mesmo sob o risco de soarmos excessivamente normativos, que esse ponto de partida seja consensuado pelos principais atores estratégicos e representantes da sociedade civil organizada, em torno de um plano estratégico do Estado virtual, onde fossem definidos objetivos e estratégias complementares de reestruturação e integração de processos e funções, além de provimento de informações e acesso. Por outro lado, esse consenso deveria ser transformado em ações de Estado, alterando a estrutura do aparato de governo, incentivando um desenho matricial entre órgãos estratégicos, no que tange a sistemas de informações. Os diversos segmentos de informática desses órgãos atenderiam aos sistemas específicos de seus ministérios, mas de forma articulada com o plano estratégico e as linhas estruturantes do governo eletrônico da administração como um todo. Nesse sentido, complementarmente, as assessorias de informática deveriam ser ocupadas prioritariamente por gestores de carreira e não por tecnólogos. Finalmente, esse arcabouço teria como ponto de confluência uma pequena estrutura na Presidência da República, mais especificamente junto à Casa Civil, onde a coordenação e normatização desses esforços se dariam. O incentivo racional para essa iniciativa seria a constatação social sobre o Estado em termos de sua incapacidade em lidar com a presente problemática por estratégias regulatórias tradicionais, ou seja, em regular e atender a múltiplas demandas em um contexto de globalização, sem uma maior articulação com a miríade de atores coletivos nacionais e os fatores indutores do processo de globalização. Dessa forma, a necessidade de legitimação aponta uma racionalidade na aceitação de um papel com mais ênfase na articulação privilegiada de redes, mitigando, mas não excluindo, a burocracia de Estado como ator vital em termos das políticas desenhadas. O Estado continua central, mas essa centralidade é legitimada e potencializada pela capilaridade e coordenação junto à sociedade civil (Castells, 1997b). O Estado virtual necessita portanto ser construído por consensos justamente para atender a esses requisitos, atendo-se inclusive ao seu desenho no mundo real. A estruturação desse consenso requer por sua vez uma ordenação e coordenação de diversos atores e empreendedores de políticas, públicos e privados. Para isso, queremos crer, um fórum de consenso seria necessário e, Ruediger.fm Page 1279 Tuesday, April 13, 2004 12:28 PM Governança Democrática na Era da Informação nesse caso, poderia tomar do urbanismo as idéias basilares do plano estratégico de cidades. Peguemos o exemplo de Barcelona e seu plano estratégico. Essa experiência foi socialmente pactuada, possibilitando a reestruturação do seu desenvolvimento urbano e aumentando a velocidade com que o governo promoveu reformas estruturais e, recursivamente, verificou e corrigiu rumos dessa implementação, em conjunto com os atores representados na estrutura do plano. Agora, se podemos imaginar a arquitetura e o urbanismo em termos das interrelações cívicas e econômicas que moldaram nossas cidades, e ao mesmo tempo a centralidade das novas tecnologias em moldar as esferas socioeconômicas de nossa sociedade, poderíamos utilizar essa noção do plano estratégico como instrumento de pactuação para a construção desse Estado virtual, redefinido em termos das novas possibilidades de diminuição de custos de informação e accountability. Finalmente, voltando ao campo das tecnologias da informação, ao menos tecnicamente, um provimento melhor e mais democrático de informações seria assim possível, potencialmente diminuindo a ineficiência de escolhas políticas e aumentando a eficiência da burocracia estatal. Em outras palavras, como observou Mitchell (1999), isso importaria pois as estruturas cívicas emergentes da era digital vão afetar profundamente as oportunidades econômicas e serviços públicos e a vida citadina em geral. O plano estratégico teria portanto o papel de não apenas redirecionar o Estado em seus fatores fundamentais, mas também sobrepujar os bloqueios a essas mudanças. Provavelmente, e esse é o ponto central dessa discussão, entendemos que há uma necessidade de promover uma abertura para outros atores da sociedade participarem da discussão sobre o governo eletrônico, ao mesmo tempo em que se utiliza o governo eletrônico como uma janela de oportunidade para reestruturação da administração pública. Nesses termos, a transparência e a interação entre a sociedade civil e a sociedade política torna-se o elemento central desse processo, pois ambas são, efetivamente, o eixo vertebral de possibilidades de reestruturação do Estado em que a dimensão republicana e democrática retome sua centralidade política, apontando necessariamente para uma construção social pactuada do mesmo. Referências bibliográficas ARROW, K. Social choice and individual values. New Haven: Yale University Press, 1970. 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