Pulsional Revista de Psicanálise
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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 130, 60-69
O sonho do analista
Como se fala com crianças autistas?
Mira Wajntal
O artigo discute e ilustra a peculiar transferência no atendimento das crianças com
manifestações autísticas. Esta transferência remete o analista para uma sensorialidade de
imagens não humanizadas durante o tratamento, que devem ser reconhecidas como dado
clínico e dotadas de um valor de comunicação. Este reconhecimento é a chave para o
sucesso da clínica com crianças autistas. A autora o denominou o sonho do analista. Consiste em sonhar com uma possibilidade para a criança, mesmo antes de sua constituição.
Palavras chaves: Autismo, transferência, psicanálise, psicanálise de criança
T
he article discusses and ilustrate the peculiar transference during the treatment of children
with autistic manifestations. This tranference takes the psychoanalyst to a non-humanized
sensoriality of images during the treatment, that should be recognized as clinical data and
having a communicational value. This recognition is the key to clinical succes with autistic
children. The author called it the psychoanalyst’s dream. It consists in dreaming of a
possibility for the child, ever before its formation.
Key words: Autism, transference, psychoanalysis, child Psychoanalysis
F
oi em um grupo do setor de Psicoterapia Intensiva do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, de Recife, coordenado pela psicanalista Valéria Aguiar e pela fonoaudióloga Liliane Longman, que tive a oportunidade
de travar contato com Solano, 12
anos. Ele permanecia a maior parte do
tempo ao lado do lixo, gritando e des-
pedaçando seu conteúdo. Depois jogava tudo para cima, fazendo com que
pedaços de papéis e de sacos plásticos
descessem, planando, sobre ele.
A cena era angustiante e de difícil
manejo. Apesar de tentarmos várias
intervenções, nada interrompia Solano,
que se repetia incessantemente. Em
uma das várias tentativas, Liliane lhe
O sonho do analista...
disse: “Eh, Solano! Você não sai deste
cantinho. Cantinho de Solano.”
“Plantio de Solano?”, perguntei, com
espanto, pois assim havia compreendido a fala de Liliane, que logo me corrigiu: “Cantinho de Solano.”
A sala estava uma balbúrdia, cena
típica de um Hospital-Dia Infantil:
crianças gritando, correndo de lá para
cá, atirando coisas, chorando.
Encontrava-me sentada em uma cadeira bem distante de Solano. Resolvi
ino meu comentário: “Que engraçado, eu entendi plantio de Solano. Você
está fazendo um plantio de Solano,
Solano?” Do outro lado da sala, Solano interrompeu sua atividade e começou a me olhar. Convidei-o: “Olha,
Solano, se você quiser conversar sobre plantio de Solano, tem um lugar
aqui.” Puxei uma cadeira para o meu
lado. Ele imediatamente ocupou o lugar. Não permaneceu muito tempo e
logo saiu. Chamei-o de volta, ele veio
e se foi. Estabeleceu-se um verdadeiro jogo. Quando ele permanecia alguns
segundos ao meu lado, mostrava-lhe o
balanço das folhas lá fora, dizia-lhe
serem parecidas com o “plantio de Solano”. Ele ficava muito atento.
No final do grupo, hora de arrumar
tudo para guardar, Valéria retirou a
cadeira que era o lugar de falar sobre
“plantio de Solano”. Ele ficou muito
angustiado, gritou. Eu disse a Valéria
que aquela cadeira não podia sair dali,
pois era o lugar dele. Ele se acalmou
e voltou a ocupar o lugar.
61
*
* *
Quando discuto a clínica do autismo,
freqüentemente sou interpelada por
meus interlocutores com a mesma pergunta: “Como se fala com autistas?”.
É uma questão curiosa, que parece encerrar todos os mistérios desta clínica e trazer em seu âmago a dificuldade de se sustentar a transferência nestes casos.
Considero este diálogo com Solano
particularmente interessante. Uma vez
que apenas fazia um estágio, não sabia nada sobre sua história, não tinha
qualquer informação a seu respeito.
Mesmo assim, nosso diálogo comportava um traço que considero essencial
na minha clínica com crianças autistas: o analista tem que sonhar.
Trata-se de um sonho, baseado em
uma concepção do que venha a ser a
manifestação autística, que aposta na
possibilidade de obter-se uma resposta,
mesmo que a criança sempre sinalize
o contrário.
A análise das representações da infância vem se mostrando campo fértil nos
estudos que interrogam como a posição subjetiva parental imprime-se no
corpo do sujeito e delineia-se como representação. Vemos que esta posição
parental comporta, sempre, uma ambigüidade em relação ao novo ser: se,
por um lado, os pais temem que o filho seja ameaça à sua supremacia, por
outro, apostam nele todas as expectativas de sua continuidade.
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Dito de outra maneira; a entrada deste
novo ser na ordem edípica constitui,
para os pais, verdadeira ameaça mitopoiética de serem substituídos ou superados, mesmo que esta ameaça seja,
como nos ilustra Volich (1996), em
“Olhares de criança”, uma interrogação
diária presente no olhar silencioso, mas
decidido, do filho: “Quem é você?”.
Em geral, a virulência deste temor acaba por ser descentrada pelo próprio
narcisismo parental, pelo desejo de
continuidade e perpetuação.
A clínica do autismo, de saída, instiganos diretamente a pensar o que motiva
a recusa dos antepassados em doar um
lugar de pertinência à criança, mesmo
que clivado pela ambigüidade. Sabemos
que a entrada no mito edípico ou
familiar é dádiva que nos faz pertencer
à ordem humana, incluindo o sujeito
numa história, numa tradição. O temor
dos pais de reingressarem na estrutura
edípica, impede-os de ver o filho como
seu semelhante, como aquele que dará
continuidade à linhagem e, portanto, a
seus anseios. Em outras palavras, o
desejo de perpetuação da linhagem,
para esta criança, não vigora o
necessário para recalcar este temor.
Diferentemente das crianças que se
apropriam dos elementos da cultura
para elaborarem suas novelas familiares
e expressarem suas vivências por jogos
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que podem ser, inclusive, muito
primitivos, a criança autista presentifica
estes elementos e seus respectivos
objetos gerando, em quem a vê, a
nítida sensação de estar, por exemplo,
diante de um noticiário, de um rádio,
de uma televisão, de um cachorro ou
mesmo de uma determinada ação – por
exemplo, o pular.
Tanto no jogo simbólico como na manifestação autística, os discursos e
atributos da cultura têm alguma identidade com a história parental. No entanto, em vez da criança autista ser
agente de seu jogo, ela é apanhada por
este discurso, como que “discursada
por ele”, e privada do espaçamento
imaginário próprio da construção narcísica.
Talvez esta privação seja, justamente,
não se ver enredada em uma narrativa
parental, a partir de uma imagem unificadora, na qual um outro servirá
como laço para a construção identitária restando, para tanto, apenas os discursos disponíveis na cultura.
Mesmo assim, as demandas dos discursos da cultura podem ser recebidas,
pela criança, como excludentes, visto
que, muitas vezes, são uma convocação ao lugar que esta deveria ocupar
na rede do narcisismo familiar, reiterando e repetindo única e exclusivamente esta falta.1 Nestas sutilezas é que
1. Em “Psicose e autismo na infância: uma questão de linguagem”, A. Jerusalinsky ressalta
que, no autismo, “... a ausência de uma inscrição coloca a criança a respeito da demanda
do Outro, a receber essa demanda na posição da repetição da exclusão.” E, mais adiante,
ressalta que, para o autista, “... cada palavra carrega seu próprio apagamento”.
O sonho do analista...
podemos encontrar as vicissitudes da
sintomatologia autística.
Assim, a clínica do autismo é marcada por esta dupla exclusão, que encena a questão do reconhecimento, do
exílio da ordem humana para o sujeito. Resta, como enigma, decifrar que
sorte de desejo gera tal “horror” sob
esta sensação que recusa à criança a
chance de ver-se identificada e, posteriormente, identificar-se como semelhante.
Não é incomum o comportamento de
crianças autistas provocar, nos
profissionais que delas se ocupam, a
desconfortável impressão de estarem
diante de máquinas e animais. Mesmo
os mais habituados são acometidos
por este estranhamento e podem,
inclusive, rejeitar estas imagens como
dado clínico, pelo temor de se verem
identificados com “o horror desta
imagem parental fragilizada”.
Geralmente dotada de conteúdos expurgados da novela mítica familiar, que
não puderam ser absorvidos, via simbólico, na história geracional, esta imagem parental invasora repete-se na
transferência. Veremos que este expurgo ocorre nas constelações familiares em que não se pode suportar o
reconhecimento de privações ou faltas. Assim, estas impressões vividas
na transferência, “repetições induzidas”, como as denomina B. Penot
(1997), são um determinismo repetitivo, do qual o analista se vê capturado, mas também constituem o caminho de acesso aos elementos represen-
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tacionais falhos na construção fantasmática.
Creio que, no autismo, encontramos
construções ainda mais primitivas,
marcadas por representações nãohumanas, ilustradas brilhantemente no
relato de Frances Tustin em “A
perpetuação de um erro”, sobre a
sensação de uma mãe ser uma “nãopessoa” após o nascimento de seu filho
autista.
Curiosamente, tendemos a desfazer esta
sensação de estar diante de uma coisa
não humana, na medida que somos invadidos por fantasias antropopáticas.
Isto é, mesmo que reconheçamos ser
a unidade conquistada por este sujeito
marcada por representações inumanas,
tendemos a humanizá-las. Será neste
movimento transferencial que poderemos procurar as chaves do sonho, necessárias para promover a escuta analítica com as crianças autistas.
Para tanto, o analista terá que supor
algo para seu analisante sem, com isto,
estar simplesmente inventando, dando
sentidos aleatórios de acordo com as
próprias fantasias, ou interpretando à
luz de conteúdos preestabelecidos, muitas vezes, pela própria cultura analítica. Ou seja, o analista tem que sonhar
que sempre haverá um interlocutor nas
mais bizarras estereotipias, ecolalias ou
mesmo automutilações. Terá que sonhar com um outro antes mesmo de sua
constituição.
Toda dificuldade reside em se poder
lapidar, de todas as imagens e
impressões que a criança autista gera
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em torno de si, o que possa lhe servir
como um mito fundador, que a
enganche numa tradição. Convido-os a
refletir como estas construções foram
possíveis em algumas passagens de
casos atendidos por mim:
*
* *
Logo que entrou na sala, Róbson Francisco, oito anos, dirigiu-se à lousa e ficou desenhando um ônibus. Parecia
alheio a tudo. Não respondia quando
chamado, tinha um constante balanceio
corporal. Quando angustiado, mordiase e estapeava-se. Possuía calos nas
mãos de tanto se morder. Chamava
atenção por apenas repetir o que ouvia, em geral, do rádio ou da TV e, especialmente, por perguntar insistentemente desde as entrevistas iniciais:
“Quem matou Jorge Tadeu?”. Apesar
de seu comportamento repetitivo,
cheio de estereotipias e balanceio corporal, tinha uma habilidade fenomenal
para desenhar, e domínio da linguagem
escrita e oral.
Seu primeiro nome, Róbson, não era
considerado por sua família, pois havia
sido dado por seu pai, Jorge, que
sumira logo em seguida ao seu
nascimento. Francisco, escolha da
família materna, era o que preferiam.
Como sua mãe morrera no parto, ele
fora criado pelas tias e avós maternos,
mas principalmente pela tia Alcione.
Veio de uma família na qual, em duas
gerações anteriores, todos os filhos
haviam morrido e, há três gerações,
todas as mães haviam manifestado
psicose puerperal a partir da quinta
gestação – tanto sua mãe como sua avó
eram as caçulas, isto é, geradas após
estes episódios de suas respectivas
mães. Parecia haver uma linha de “nãolugares” para esta criança. Apesar desta
história tão trágica, a escuta analítica
lhe possibilitou apelar por um
reconhecimento, lançando mão de
elementos da cultura de mídia.
Assim que Róbson nasceu, Alcione,
preocupada com o sobrinho que não
tinha mãe, conseguiu, na vizinhança,
mulheres que se dispuseram a
amamentá-lo durante o dia e a doar
leite para as mamadeiras da noite. Nos
primeiros meses de vida, Róbson teve
episódios de rejeição gástrica ao leite,
que foi substituído por leite de soja.
Ele não falou ou pronunciou uma
palavra até os três anos. Na sua
primeira infância, enquanto tia Alcione
costurava, ele passava o dia ao seu
lado, ao pé da máquina, com balanceios
e estereotipias. Ela jogava as sobras
dos tecidos no chão, cujas bordas
tinham letras impressas, que eram
utilizadas por ele para brincar.
Alfabetizou-se manuseando estas
inscrições dos retalhos deixados pela
tia. Certa vez, durante um passeio de
ônibus, começou a ler todos os
anúncios que via e descobriram que ele
falava e lia. O mesmo se deu com sua
habilidade para desenhar: seu primo
mais novo, V., ganhou uma lousa e ele
começou a copiar tudo que via,
especialmente ônibus.
O sonho do analista...
Após a montagem da sua história familiar frente à notada pergunta: “Quem
matou Jorge Tadeu?”, questionamos
Róbson se ele queria saber de que havia morrido sua mãe e se teria ou não
culpa da morte dela. Pela primeira vez,
Róbson parou com suas estereotipias
e olhou fixamente para as terapeutas.2
Perguntar “quem matou” parecia o
equivalente a enlaçar sua angustiante
dúvida sobre as causas de todas estas mortes na família. Seria ele culpado da morte de sua mãe? Afinal, nunca se havia comemorado seu nascimento e sucessivos aniversários. Esta
parada permitiu-nos explicitar que na
família dele todos os varões morriam.
Imediatamente, a tia associou esta fala
ao fato da mãe de Róbson saber que
teria um filho homem. “Teria ela,
então, preferido morrer a vê-lo morto?”, perguntamos.
O tema das sucessivas mortes na família, que o angustiava profundamente, acabou por levá-lo a fazer um apelo: “Deus me livre desta Linha Direta!” e, depois, a solicitar que eu o ajudasse, dizendo: “Vai cair tudo, Mira.
Ajuda!”
A pergunta sobre a sua possível culpa
pela morte da mãe enganchou Róbson,
pela primeira vez, explicitamente, na
sua história familiar, abrindo-lhe uma
clareira, um espaço que lhe configurou
uma imagem de identidade, oculta até
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então, a qual ele, mais que
rapidamente, repudiou, clamando para
que Deus o livrasse daquela linha
direta. Neste caso, ao sonho do
analista, que mais se parecia com um
pesadelo, cabia reconhecer o analisante
como portador de um nome e de uma
narrativa negados até então. A partir da
construção desta imagem de horror,
Róbson passou a criar com desenhos,
slogans e músicas, o seu mundo.
Destaco a evolução de seu grafismo:
os ônibus antes desenhados como que
vistos de frente e sem rodas (Fig. 1),
Fig. 1
Fig. 2
2. Co-terapia com a psicanalista Tânia Mara B. Parro iniciada em 27.4.92. Forma de
atendimento adotada por orientação do supervisor da instituição.
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como se o espectador estivesse debaixo, muito próximo ao seu pára-choque, mudaram de posição. Passaram a
ser desenhados lateralmente, adquiriram
rodas e perspectivas. (Figs. 2 e 3)
Fig. 5
Fig. 3
Então ele começou a desenhar roupas
soltas, depois a primeira figura humana,
a qual chamou de espelho ao colocá-la
diante de si. Por fim, os ônibus
começaram a ter motorista, cobrador e
passageiros.
Fig. 4
Paralelamente, começou a referir-se
como um terceiro e a expressar seus
sentimentos: “Dói!” Quando lhe
perguntávamos o que, apontava o que
doía ou, por vezes, ia mais além e
respondia: “O coração”.
Até hoje não sei da narrativa de Solano, mas ambos diálogos comportam
este movimento em comum, tão essencial à clínica do autismo, no qual
um analista se vê acometido por imagens/idéias que, quando comunicadas
ao analisante, têm um efeito surpreendente.
De colorido distinto foi o atendimento
de Karem3, nove anos, apaixonada por
lâmpadas. Desde que a vi, esta paixão
se impôs como enigma. Veio encaminhada ao Hospital-Dia, por uma unidade especializada em avaliação audiológica, com a queixa de ser impossível
estabelecer contato com ela. Transformava qualquer objeto em lâmpada.
3. Caso publicado em “O eu e as formações patológicas: um exemplo à luz do fascínio pela
o
imagem”, in Boletim de Novidades da Livraria Pulsional, n 91, nov/96, São Paulo.
O sonho do analista...
Criava, sem palavras, imagens a partir
das quais conduzi seu processo analítico. Apesar de sua aparente surdez,
quando eu lhe falava com admiração
sobre suas lâmpadas, do meu interesse em saber mais sobre elas, respondia prontamente. Situação completamente oposta de quando fazia qualquer
pergunta sobre sua história ou família.
Na ocasião, ela residia em uma casa
especializada no abrigo de crianças
abandonadas e vítimas de maus-tratos.
Nos seus primeiros dias no HospitalDia, ela fazia qualquer peripécia para
obter uma lâmpada. Providenciada uma
para compor sua caixa de brinquedos,
ficou estabelecido que esta só poderia
ser utilizada dentro da sala. Com este
arranjo, a lâmpada foi incorporada à
análise.
Neste dia, Karem deitou-se, encolhida
em posição fetal, abraçada à lâmpada,
sobre uma trava de sustentação debaixo
da mesa (2cm x 80cm), e ficou
girando em torno de si, parecendo
flutuar com a lâmpada, como se fosse
um bebê dentro de uma barriga. Esta
imagem, assim como todas as outras
que surgiram durante seu atendimento,
eram expressas, por mim, em voz alta,
em gestos e construções plásticas. Foi
impossível separá-la de seu bebêlâmpada e ela o levou.
Quando retornou, encontrou balões
para trabalharmos na sessão. Além de
utilizá-los como lâmpada, iniciou um
jogo de encostá-los, cheios, entre o
seu rosto e o meu, para, em seguida,
esvaziá-los fazendo com que nossas
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faces se encontrassem. Enquanto isso,
eu narrava seus gestos, procurando dar
expressão afetiva ao que ocorria –
“Juntou! Separou!”, “Estou recebendo
um beijo?” – como se dá em uma
brincadeira corriqueira com crianças
muito pequenininhas.
Como ela não havia trazido sua lâmpada de volta, saiu à procura de uma
nova. Dei-lhe e ela a vestiu com a
bexiga, trazendo novamente seu bebêlâmpada para a sessão. Fez uma experiência: encheu o balão com a lâmpada dentro, jogou-o; a lâmpada se
quebrou. Não omiti em nada o meu
susto e preocupação.
Todas estas imagens construídas e
explicitadas nas suas sessões
possibilitaram um espantoso aumento
de repertório. Começou a compor
famílias-lâmpadas, utilizando-se dos
pedaços de bexigas para fazer os
membros menorzinhos.
Uma vez, muito frustrada pelo fato de
eu não compreender que ela queria
passear no parque com as outras crianças do hospital, bateu-se com a lâmpada até espatifá-la, ferindo sua mão.
Com a ajuda da enfermeira Neuza de
Jesus Duque, prestamos-lhe os primeiros socorros. Karem construiu uma
lâmpada, em torno de sua mão machucada, com toalhas de papel, gazes e
esparadrapo, ostentando-a junto a seu
rosto, gesto já conhecido nas nossas
conversas/lâmpadas. Em seguida, passou a chorar, apontando seus dentes e
dando a entender que sentia dor. Fizlhe um bochecho de água com sal e
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Neuza ensinou-a como bochechar.
Após todos estes cuidados, Karem ficou muito satisfeita e tranqüila.
Nos encontros seguintes, a família-lâmpada passou a ser comparada à família de bonecas da caixa lúdica. Até então, era observado e relatado um total
desinteresse de Karem por bonecas e
outros brinquedos, utilizando-os apenas
como mais um material para construir
lâmpadas. Cada vez mais ela foi se socializando e ampliando seus recursos
comunicativos. Por fim, começou a
emitir sons suspirados, que ainda não
podiam ser distinguidos como gemidos
ou falas, parecendo os balões que se
esvaziavam, fazendo com que nossos
rostos se encontrassem.
É muito interessante observarmos,
neste processo de Karem, o destacamento de um atributo que parecia
ser parte de seu corpo, ou rudimentos de representantes deste que foram se duplicando de família-lâmpada
à família de bonecas; da angústia de ter
sido excluída do grupo que iria para o
parque passear à angústia da ferida na
mão – marca corporal. A restauração
destas feridas condensaram-se no curativo-lâmpada-mão, feito no próprio
corpo, contemplando não só seu desamparo, como sua dor; fazendo
emergir um pedido tomado em eu e
endereçado a um outro.
Aliás, todos os deslocamentos
realizados por esta menina ocorreram
após um movimento de duplicação
4. Ver o texto citado.
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entre seu corpo e o meu, sua lâmpada
e meus óculos, resultando numa visível
construção de identidade.4
Vemos, nos dois exemplos, como as
imagens construídas no processo
analítico propiciaram à criança um
lugar de pertinência inaugurado por
edificações de imagens corporais. É
evidente que estas aquisições estão
longe de se equivalerem ao que
deveriam ser os atributos doados pelo
narcisismo parental e inscritos nos
primeiros meses de vida, mas é
inegável que moveram representações
posteriores a estas experiências
precoces, alargando não só as
possibilidades vivenciais como as
representações do sujeito.
Embora o “autismo” de Karem,
diferentemente do apresentado por
Róbson, possa ser considerado apenas
como circunstancial, em ambos, o
sonho do analista vem enlaçá-los
justamente no corpo, fazendo surgir
um apelo de dor, angústia ou
desamparo que estava emudecido.
Podemos pensar num grito que, tendo
encontrado um anteparo, finalmente
ecoou, sem que este som se equivalha
ao seu próprio desaparecimento. „
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Visite a papelaria
da Livraria Pulsional.
Promoção de
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