Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano II – nº16 – 5/7/2013 Que túmulo, que nada! Numa noite em que seu amigo Johnny Alf se apresentava numa boate paulistana, o poeta e letrista Vinicius de Moraes teria se envolvido num bate-boca com um grupo de pessoas por causa do barulho que faziam e proferido uma frase que ficaria célebre: “São Paulo é o túmulo do samba”. Os paulistas jamais perdoaram essa declaração, pela qual o “poetinha” é lembrado até hoje, 33 anos após sua morte. E o motivo de não o terem perdoado não foi bairrismo, mas sim o fato de que isso está longe de ser verdade. São muitos os exemplos da pujança da música popular paulista, principalmente o samba. Neste J&Cia Memória da Cultura Popular, Assis Ângelo resgata do acervo do seu Instituto Memó- ria Brasil uma extensa reportagem sobre o tema que publicou na edição de 10 de fevereiro de 1992 do extinto suplemento D. O. Leitura, do Diário Oficial do Estado de São Paulo; além da entrevista, publicada na mesma edição, com um dos mais típicos representantes do samba paulista, Germano Mathias. E, como sempre, acrescenta novas e valiosas informações. Túmulo? Deixar estar! Do lado de lá, Adoniran, Vanzolini e muitos outros devem estar pegando no pé de Vinicius por aquela frase infeliz. Boa leitura! Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli Assis, no acervo do IMB Sim, sinhô, São Paulo tem samba Por Assis Ângelo - Fotos e reproduções fotográficas de Andrea Lago e Darlan Ferreira Muitos sabem que sou nordestino de origem e paulistano por adoção e graça dos vereadores de São Paulo, que me premiaram com um título de Cidadão em agosto de 1988, o que muito me honra, aliás. Pois bem, a mistura de gêneros, todos os gêneros – musicais, inclusive –, sempre me chamou a atenção e me levou a trilhas desconhecidas da história em busca de saberes e esclarecimentos para tantas interrogações que me incomodam. Por isso, até aqui, já foram muitas as reportagens e artigos que publiquei como resultado de pesquisas. Há duas décadas, um dos temas mais interessantes que escolhi para seguir trilhas tem a ver com a origem do samba como gênero musical. O ponto de partida foi o maxixe sambado ou o samba amaxixado Pelo telefone, uma criação coletiva assinada por Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, com- positor, e Mauro de Almeida, jornalista, que iam cantar e batucar – e beber e traçar feijoada – nos fins de semana na casa da baiana, filha de Oxum, Hilária Batista de Almeida (1854-1924), a Tia Ciata. Donga e Mauro eram cariocas. A composição Pelo telefone foi registrada na quarta-feira 27 de dezembro de 1916 na Biblioteca Nacional e lançada pela Odeon no início do ano seguinte, para o carnaval. O sucesso foi imediato, via gravação em disco de 78 rpm (rotações por minuto) da Banda Odeon (nº 121.313, matriz R-204) e via gravação também em disco de 78 rpm de Bahiano (nº 121.322), de batismo Manuel Pedro dos Santos (1887-1944), considerado o primeiro cantor profissional do País. Em São Paulo, o ponto de iniciação do gênero foi Pirapora do Bom Jesus e região – incluindo Campinas e Sorocaba – nos fins da segunda metade do século 19, mas ganhou forma na capital paulista nos primeiros anos do século 20. São vários os tipos de samba: de umbigada, de roda, de bumbo etc., e também de sotaques. Musicalmente falando, o sotaque de São Paulo é bastante diferente do sotaque do samba do Rio de Janeiro e de outras regiões, como Bahia e Minas Gerais, berço, aliás, de grandes compositores como Ary Barroso e intérpretes, como Noite Ilustrada; e do samba de bumbo que lá se praticava desde o século 18. O samba do Rio pode se dizer que é “leve”, pelo uso mais frequente de tamborins e pandeiros. nº 16 6/8/2013 Pág. 2 O samba de São Paulo é “pesado”, por ter parentesco com o jongo, o samba-lenço e o de bumbo. Mário de Andrade chamava o samba paulista de samba rural paulista. No carnaval de 1914, o itirapinense Dionísio Vicente Barbosa (1893-1977), oriundo da primeira leva de negros libertos em São Paulo, juntou amigos e passou a cantar e a pular nas ruas da capital nos dias de carnaval. A partir disso, ele e amigos fundaram o Cordão da Barra Funda, que virou Grupo Carnavalesco da Barra Funda, que virou Camisa Verde, que virou Camisa Verde e Branco. Em 1954, o Camisa participou dos festejos do 4º Centenário de São Paulo já na categoria de escola de samba. Em novembro de 1931, Januário França e Henrique Costa, acompanhados pelo Grupo do Veneno, gravaram para a etiqueta Columbia o antológico disco de 78 rpm (nº 22062-B) com o samba Bambas da Barra Funda, assinado por Januário – a respeito de quem ainda hoje quase nada se sabe – e que fala do movimento que daria forma definitiva e vigor ao samba na capital de São Paulo, que diz assim: Vem ver o samba Que é formado e batucado Pelos bambas da Barra Funda Oi, tem macumba, tem canjerê Quem duvidar do que eu digo Venha ver... Dos antigos – na verdade, o mais antigo (1924-2013), autor de joias do gênero como Ronda e Volta por cima, a primeira lançada por Inezita Barroso em 1953 e a segunda por Noite Ilustrada, em 1962. Disco raro do acervo do IMB que reúne o ator, jornalista e dramaturgo Plínio Marcos e os compositores Zeca da Casa Verde, Geraldo Filme e Toniquinho Batuqueiro, todos já desaparecidos Você sabia? Que o jornalista e estudioso da cultura popular Assis Ângelo é presidente do Instituto Memória Brasil (IMB) e que o escritor e também jornalista Roniwalter Jatobá é o vice-presidente? Individualmente, pode se dizer que o negro Geraldo Filme (1928-1995) foi um dos maiores – e mais conscientes – representantes da raça e do gênero, como o são até hoje os paulistanos Germano Mathias, Eduardo Gudin e Osvaldinho da Cuíca, que Osvaldinho da Cuíca e Assis Que é de autoria do presidente do Instituto Memória Brasil, Assis Ângelo, o primeiro livro sobre música e futebol, intitulado A presença do futebol na Música Popular Brasileira? Que entre as milhares de raridades do acervo do IMB há entrevistas com Nélson Gonçalves, Sílvio Caldas, Roberto Fioravanti, Francisco de Assis Bezerra de Menezes e Carmélia Alves? O disco de 78 rpm com os Bambas da Barra Funda é um marco do samba paulista –, o grupo musical Demônios da Garoa passou à história como intérprete de Adoniran Barbosa e do samba tradicional de São Paulo, mesmo gravando obras de compositores de outros Estados, como Noel Rosa, J. B. da Silva, o Sinhô; Lauro Maia e Chico Buarque, entre outros. Nos últimos anos têm surgido muitos cantores e grupos de samba muito bons, principalmente na periferia paulistana. Entre esses grupos, destaque para o Quinteto em Branco e Preto, da zona Leste, e o Samba da Vela, da zona Sul, de que tanto gostava o compositor Paulo Vanzolini é ritmista, cantor, compositor e o 1º Cidadão Samba de São Paulo, escolhido em concurso promovido pela Secretaria de Turismo da cidade, em 1974. Mas são Paulo deu muito mais compositores de sambas, como Oswaldo Gogliano, o Vadico, o principal parceiro de Noel, coautor de Pra que mentir, Feitio de oração, Feitiço da Vila e Conversa de botequim, entre outras; Pedro Caetano, David Nasser, Dênis Brean, Elzo Augusto, Oswaldo Molles, Paulinho Nogueira, Tito Madi e muitos outros. Para escrever a reportagem São Paulo e o “samba mais pesado”, que você ler agora, eu fui a campo e entrevistei bambas como os já referidos Geraldo Filme e Paulo Vanzolini; Inezita Barroso, uma das maiores intérpretes de Noel Rosa, ao lado de Aracy de Almeida; Raul Duarte, Germano Matias, Moraes Sarmento, Juvenal Fernandes; e os maestros Camargo Guarnieri e Mário Albanese, que ao lado de Ciro Pereira criou o ritmo jequibau. Boa leitura! Que o primeiro livro sobre Inezita Barroso, intitulado A menina Inezita, é infanto-juvenil e foi escrito pelo presidente do Instituto Memória Brasil e publicado pela Cortez Editora? Que no acervo do Instituto Memória Brasil há livros de mais de 200 anos, entre os quais uma edição de La Fontaine (Fábulas) em português, impressa em Paris em 1886? Inscreva seus trabalhos no Prêmio Jornalistas&Cia/HSBC de Imprensa e Sustentabilidade! Ou prepare suas pautas e matérias. As inscrições estão abertas no www.premiojornalistasecia.com.br Serão mais de R$ 100 mil em prêmios e um importante upgrade no currículo! nº 16 6/8/2013 Pág. 3 São Paulo e o “samba mais pesado” (íntegra da reportagem publicada na edição n° 117, de 10 de fevereiro de 1992, do D. O. Leitura, extinto suplemento cultural do Diário Oficial do Estado de São Paulo) “A música de São Paulo, mais precisamente o samba, é música pé-no-chão. Não é samba de morro. É samba de rua, sem pompas. De frigideira e lata de graxa.” Por Assis Ângelo – Fotos de Wilma A. Arruda Decididamente, o tema é polêmico. E vai longe, muito longe. Não foi à toa, aliás, que deu no que deu a fala atravessada de Vinícius de Moraes (19/10/1913 – 9/7/1980), segundo a qual São Paulo “é o túmulo do samba” [N. da R.: a propósito, confira em http:// migre.me/fFxT6 uma declaração de amor de Assis a São Paulo]. Palavras o vento leva, mas verdade seja dita: o poetinha-compositor disse o que disse num instante de elevado etílico, como uma vez me garantiu, dando de ombros, o mestre Adoniran Barbosa (6/8/1910 – 22/11/1982), a quem mais diretamente a infeliz frase foi dirigida e, como se sabe, genial e diplomaticamente negada e logo depois rebatida com Bom dia, tristeza (Vinícius/Adoniran), lançado pela maravilhosa Araci de Almeida em 1957. Essa música, um samba, foi feita por “correspondência”, mas essa é outra história... O fato, porém, é que Vinícius disse o que disse e, por isso, foi crucificado e infernizado por paulistas e paulistanos até o fim da vida. Frases de efeito à parte, uma certeza: Sim, São Paulo tem música! E da boa, diga-se de passagem. Muito antes de proferir a infeliz frase, Vinicius de Moraes, que jamais conheceu (pessoalmente) Adoniran, escreveu e musicou, junto com o jornalista e compositor pernambucano Antonio Maria (17/3/1921 – 15/10/1964), um dobrado a que deu o título de Dobrado de amor a São Paulo, de 1953, lançado em 1954 pela mesma Araci. Araci Teles de Almeida (19/8/1914 – 20/6/1988), a mais fiel intérprete de Noel Rosa (11/12/1910 4/5/1937), também sua amante, era carioca do subúrbio do Encantado. Mas isso, certamente, é de menor importância. O dobrado: do com o samba, que vem do semba, do negro e tem compasso binário. Simples, sem mistério. A história é mais ou menos conhecida. A partir dos inícios da primeira década deste século, através de baianos anônimos que se fixaram no Rio, como Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida, 1854 – 1924) e suas quituteiras, o gênero musical samba, registrado como tal num disco de 78 rpm da fábrica Odeon, nº 121.313, em 1917, espalhou-se Brasil afora que nem fogo em palheiro. Estamos, aqui, falando de Pelo Te- lephone, de Donga (Ernesto Joaquim Maia dos Santos, 5/4/1889 – 25/8/1974) e Mauro de Almeida (22/1/1882 – 19/6/1956). Enfim, a música de São Paulo, ou a música que se faz em São Paulo, tem influências várias. De índios, religiosos europeus e imigrantes de todos os quadrantes. Nesse ponto, em particular, a contribuição ou influência dos italianos do Brás e Bexiga, bairros paulistanos de longa e respeitada tradição, têm presença marcante, sem dúvida. O mesmo se pode dizer dos nordestinos de diversos estados que escolheram São Paulo, quatrocentos anos E eu, coitada Quatrocentos desenganos de amor Conjunto Demônios da Garoa é marca de tradição do samba paulista, mesmo gravando obras de autores de outros estados, como Chico Buarque Eu daqui não saio mais, São Paulo Isto aqui está bom demais, São Paulo Ai, que bem isto me faz Se o frio me aperta eu pego o cobertor Abraço mais o meu amor E vou até de manhã, em São Paulo Isto aqui está bom demais, São Paulo Eu daqui não saio mais... Chuva, garoa,ventania Troco a noite pelo dia O tempo passa devagar Sinto um bem-estar no coração Vem o dia E o Sol me encontra Na avenida São João. A música de São Paulo é resultado de uma enorme mistura de ritmos, sons, coisas, como de resto é a música feita na Bahia, Paraíba e Rio de Janeiro. E na Cochinchina. Por razões que a própria razão desconhece, o Rio é facilmente identificaa cidade de São Paulo como alternativa de vida (1), já que aquela região é costumeira e duramente castigada pela seca e praga de todos os tipos, o que os fazem fugir e procurar meios para uma vida melhor noutros lugares. A toada A triste partida (2), do cearense Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da Silva, 5/3/1909), é exemplo claro do que digo: Setembro passô, com oitubro e novembro Já tamo em dezembro Meu Deus qui é de nóis? Assim fala o pobro do sêco Nordeste Cum medo da peste Da fome feroz (...) Nóis vamo a Sum Palo, qui a coisa tá feia. Por terras alêia Nóis vamo vagá Se o nosso distino num fô tão misquinho Pro mermo cantinho Nós torna a vortá... Não nos alonguemos mais nesta questão. nº 16 6/8/2013 Pág. 4 Há música em São Paulo, eu dizia. E caminhos e obviedades há aos montes neste sentido. Inezita Barroso: – O samba de São Paulo não tem absolutamente nada a ver com o samba carioca, que, aliás, tem outra origem, outra ramificação. O samba paulista, facilmente identificável, é um samba mais pesado, autêntico, afro, folclórico. O samba paulista tem muito a ver com o jongo (3), com o samba de lenço (4) (ou samba-lenço) e com o batuque. O samba de São Paulo ou, como se queira, o samba paulista, é negro e mantém suas origens, ao contrário do samba que se faz no Rio de Janeiro. O “samba mais pesado” a que se refere a intérprete paulistana Inezita Barroso, nascida na Barra Funda em 1925, região tida como berço do mais autêntico samba no Brasil, é o samba em que se introduzem bateria e tambores; ao contrário do chamado “samba leve”, do Rio, caracterizado por instrumentos ”leves”, como tamborim e pandeiro. Inezita, que também é instrumentista e professora de Folclore em duas universidades paulistas – a Capital, no bairro da Mooca; e a de Mogi das Cruzes –, aposta na tese de que o autêntico samba de São Paulo procede da zona rural, mais precisamente da região do Vale do Paraíba, onde historicamente a presença de escravos foi mais marcante no Estado. O certo, mesmo, é que toda cultura tem uma característica própria. Câmara Cascudo (30/12/1898 – 30/7/1986): “Todos os países do mundo, raças, grupos humanos, famílias, classes profissionais, possuem um patrimônio de tradições que se transmite oralmente e é definido e conservado pelo costume. Esse patrimônio é milenar e contemporâneo. Cresce com os conhecimentos diários desde que se integrem nos hábitos grupais, domésticos ou nacionais. Esse patrimônio é o folclórico. Folk, povo, nação, família, parentalha. Lore, instrução, conhecimento, sabedoria, na acepção da consciência individual do saber. Saber que sabe. Contemporaneidade, atualização imediatista do conhecimento (5). Pois bem, aí está a sábia impressão do mestre Cascudo. Inquestionável. Todo povo – e aí entenda-se o conjunto de pessoas, de uma sociedade – tem saber, hábitos, cultu- ra. E é exatamente isso o que mais identifica um povo, uma nação. Musicalmente, pode-se dizer, com toda convicção, que são os compositores quem melhor traduz a vida e o comportamento de uma cidade, de uma sociedade. Seja qual for, pequena ou não. Nesse ponto, concordo plenamente com o mestre e compositor paulistano Mário Albanese, quando diz que“qualquer música tem uma característica local” e que, por isso mesmo, “até o que se entende por folclore sofre uma certa transformação”. Se para pior ou melhor, esta é outra questão. Albanese, criador de um gênero musical, o jequibau, junto com Ciro Pereira, em 1965, tem absoluta certeza da existência de uma música com “cara” paulista. E essa característica deve-se aos compositores locais, segundo ele: Para reforçar o que diz, cita autores do naipe de uma Zica Bergami, Zequinha de Abreu, Tito Madi, Adoniran Barbosa, Geraldo Filme e Paulo Vanzolini. O próprio Paulo Vanzolini também reforça o parecer do maestro, citando como exemplo Victor Dagô, Oswaldo Moles (talvez o principal parceiro de Adoniran), Raul Duarte, Otávio Gabus Mendes e Zelão, um crioulo nascido no Morro do Piolho, Cambuci, São Paulo, “violinista e cantor dos grandes”, na opinião do próprio Vanzolini, autor de Ronda (sam- ba de 1946, gravado em disco pela primeira vez por Inezita Barroso em novembro de 1953, num disco de 78 rpm nº 801217-B, da RCA Victor) e Praça Clóvis (samba de 1957, lançado em 1968 por Chico Buarque de Hollanda, no LP Onze Sambas e uma Capoeira, nº XRLP 5321-B, da RGE). Vanzolini vê “alguma influência” do samba feito no Rio e a moda de viola ou caipira no que se pode chamar de “música paulistana”. A opinião dele é idêntica à opinião de Inezita Barroso, também vista por ele como “uma grande interprete dos sambas de Noel”. Para muita gente boa, como Geraldo Filme, autor importantíssimo na história do samba em São Paulo, nascido na Barra Funda, a obra do carioca Noel de Medeiros Rosa completou-se com a indispensável parceria de um paulista, filho de imigrantes italianos, de nome Osvaldo Gagliano (24/6/1910 – 11/6/1962) (6), nascido no mesmo bairro do Brás de famosos personagens, como o compositor e violinista Alberto Marino (23/3/1902 – 11/2/1967), que também era descendente de italianos e autor de algumas pérolas já devida e naturalmente integradas ao cancioneiro paulistano, como Rapaziada do Brás (valsa de 1917, gravada dez anos depois pelos saxofonistas J. Pizarro e O. Pizarro, e pelo próprio autor em solo de violino, escondido no anagrama de Bertorino Alma). Filme, um sambista incomum, é autor de pelo menos três títulos que enaltecem e enobrecem enormemente São Paulo, a cidade, dois dos quais fazem referência explícita ao festivo bairro do Bexiga, Vai no Bexiga pra ver e Silêncio no Bexiga, ambos de 1980, gravados pelo próprio autor em LP homônimo nº 29800358, lançado pelo Estúdio Eldorado, em 1980, com apresentação do teatrólogo Plinio Marcos, que a certa altura escreve: “A obra de Geraldo Filme é uma referência para todos os que quiserem saber da história da cidade de São Paulo”. É verdade. E como Geraldo Filme há outros nomes importantes preocupados , ou que um dia se preocuparam, em deixar registradas suas observações sobre a cidade de São Paulo. Nomes, por exemplo, como Bezerra de Menezes, autor de Perfil de São Paulo, 1954; Dênis Brean, David Nasser (7), Billy Blanco, Lauro Muller, Renato Leite, Silvio Caldas, Mário Zan, J..M. Alves, Paraguaçu e Tom Zé, Tonico e Tinoco e Alvarenga e Ranchinho, além de poetas-letristas sensíveis como Marcelo Tupinambá, não podem ser esquecidos num trabalho que se proponha a falar sobre a vida e a memória musical da cidade de São Paulo, “musa” ou tema direto ou indireto de cerca de 1.400 títulos, desde século XVIII. São Paulo, na verdade, é uma espécie de Babel; uma mistura de raças, credos, povos e formas. Em cada uma de suas esquinas há uma surpresa, um susto, uma beleza, uma novidade enfim. Há tudo em São Paulo, como um dia lembrou inspirada composição o italiano Ambrogio Gaigher: Inezita Barroso (com Assis) consagrou-se com o samba Ronda, que ela mostra no disco que gravou em 1953 Mario Albanese ...Quantos prédios, quantas praças Quanta indústria São Paulo já tem Quanta gente, quantos carros O trabalho não falta à ninguém (...) Em São Paulo nós temos de tudo São Silvestre a corrida maior Toda gente que vem a São Paulo Diz que nada no mundo é melhor Quanta raça de estrangeiros Todo mundo vem aqui pra viver Qualquer um vive em São Paulo Ninguém sabe distinguir quem é... (8) Voltemos à música paulista. Ou paulistana, como se queira. A música de São Paulo, mais precisamente o samba, é música pé-no-chão. Não é samba de morro, é samba de rua, sem pompas, de frigideira e lata de graxa, como, aliás, durante quase 40 anos seguidos tem feito Germano Mathias, um paulistano nascido no bairro do Pari, que diz ser o que faz “um samba malandreado”. Esses, digamos, primitivos instrumentos “musicais” substituíram, de certa forma, os tradicionais tamborins, hoje, definitivamente, marca registrada nas escolas do Rio. Esses instrumentos saíram da cozinha direto para os terreiros da Barra Funda e, de lá, para outros recantos da cidade. Apesar disso, não se pode afirmar que o ritmo que mais caracteriza São Paulo é o samba tradicional, tampouco o samba-lento, a seresta, nº 16 6/8/2013 Pág. 5 o cururu ou a toada. Incorreto, também, seria afirmar que o jequibau, ou jaquibau – um neologismo rítmico criado em 1965 pelos compositores Mário Albanese e Ciro Pereira –, representa São Paulo, embora tenha ele sido criado em São Paulo e por paulistanos. O jequibau, para quem ainda não sabe, é um ritmo desenvolvido em cinco tempos (compasso considerado de identidade mista, por ser de fácil adaptação a qualquer molde musical), amplamente apreciado e divulgado na Europa e Estados Unidos da América por gente como Andy Williams, VicDamone, Percy Faith, Charlie Bird, Norman Luboff, Vicki Carr, Saddao Watanabe, Tira Reys etc., e no Brasil por Geraldo Filme, Miriam Batucada e outros autores e intérpretes paulistanos Hermeto Paschoal, Pedrinho Mattar, Jair Rodrigues, Moacir Franco, Hebe Camargo e Zimbo Trio, entre outros de razoável talento e intimidade com o chamado grande público. Os baianos levaram o samba para o Rio de Janeiro, da mesma forma que os paulistas, paulistanos, mineiros, cearenses e pernambucanos têm-se feito presentes noutras partes do País, inclusive entre os próprios cariocas, como Antônio Maria (17/3/1921 – 15/10/1964), que era de Recife; Ari Barroso (7/11/1903 – 9/2/1964), que era de Ubá-MG; e Ataulfo Alves (2/5/1909 – 20/4/1969), também era mineiro, de Miraí, como Mano Décio, que nasceu em Juíz de Fora. No contraponto, pode-se dizer que o Rio Grande do Sul também deu “paulistas”, como Mateus Nunes, o Caco Velho (12/2/1909 14/9/1971) e, claro, também mineiros como Alberto Alves da Silva, o famoso Nenê da Vila Matilde, fundador da escola de samba do mesmo nome, nascida no dia 31 de dezembro de 1931. Por outro lado, e em relação ao Rio de Vinícius de Mo- raes, não se pode esquecer de modo algum as origens de David Nasser (1/1/1917), que era paulista de Jaú, por exemplo (9). E o que dizer de baianos, como Caetano Veloso e João Gilberto, que deixam definitivamente sua marca poético-musical nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro? O fato é que o Brasil se cruza no céu e na terra com todos os gêneros e tendências musicais. É como se o Brasil estivesse em constante estado de ebulição. Talvez até seja isso mesmo, e seu símbolo um caldeirão fumegante prestes a explodir. A música de São Paulo é nova, como nova é, de resto, a música brasileira, embora tenha como referencial direto uma missa, A missa a São Paulo, de 1750, composta por Calixto e Anchieta Arzão, A rigor, porém, a nossa música sequer completou o primeiro centenário. Antes de se falar em música no Rio, conta Geraldo Filme, “falava-se em música em São Paulo , Maranhão e Bahia. O samba do Rio, que foi levado pela Tia Ciata e suas companheiras baianas, vem do candomblé; o de São Paulo vem do batuque rural, do batuque “pesado”, que é o batuque da região mogiana. José Jambo Filho, o Chiclé, ritmista e ex-presidente do G.R.E.S. Vai-Vai (hoje presidente do Conselho Deliberativo da Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo), concorda com Geraldo Filme e até vai um pouco mais longe, ao dizer que o “samba paulista é ligeiro e vem dos cordões, tem originalidade e muita percussão, ao contrário do samba que se faz no Rio de Janeiro que, aliás, ensaia uma assimilação tímida do que se faz em São Paulo”. Cliclé é paulista, de Santos, nascido no dia 18 de junho de 1931. O radialista paulistano (do bairro de Santa Cecília) Raul Duarte, autor de uma verdadeira obra-prima chamada No meu Canindé, de 1958, é, aos 80 anos, uma voz discordante na questão sobre se há ou não música própria em São Paulo. Ele entende que todo e qualquer ritmo musical “tem origem não totalmente explicada”, e pergunta: – O fado nasceu em Portugal? O samba nasceu no Rio? O próprio Adoniran Barbosa fazia, de propósito, samba com linguagem errada. Os melhores sambas de Noel são de Vadico, um paulistano nascido no Brás. Na verdade, pra mim, o samba nasce é no coração e não na cidade ou no campo. Ari Barroso e Ataulfo Alves eram mineiros, não eram? No entanto, fizeram o que fizeram e pouca gente sabe, hoje, que ambos não eram cariocas. Engraçado isso, não é? Raul Duarte, autor de cerca de 30 músicas, todas gravadas, foi um grande descobridor de talentos, entre os quais Mário Ramos, o Vassourinha (16/5/1923 – 3/8/1942), e Isaurinha Garcia. Ele diz que o Rio de Janeiro tornou-se o epicentro cultural do Brasil durante um certo tempo, por ser, então, a capital da República, e, por isso mesmo, muito agitada, com seus cassinos fabulosos e outras coisas mais. “Quer dizer, se o Rio não fosse a capital do País num tempo de grandes novidades não teria, certamente, havido essa onda de que foi lá que nasceu o samba, não é mesmo? Agora, me diga, alguém ousaria falar mal do Piauí? Não, não. E sabe por quê? Porque não daria Ibope, ora”. Outro radialista, também paulistano, Clóvis Messias, da Vila Matilde, amigo de Orlando Silva (3/10/1915 – 7/8/1978) e outros cantores de grande destaque nos anos 50, é incisivo quando diz que “a educação musical de São Paulo tem vindo através do rádio carioca”, no que, aliás, concorda Paulo Vanzolini. Para Clóvis, a afirmação de Raul Duarte é procedente no que se refere à agitação e à condição de Capital Federal do Rio de Janeiro: – Sem dúvida, era pra lá que todos os artistas se dirigiam, esperançosos de alcançar o estrelato e ficarem famosos da noite para o dia e com muito dinheiro no bolso. Isso quase sempre dava certo, pelo menos pra quem tinha talento, como Vadico, que encontrou no Rio, através de Noel Rosa, a grande oportunidade de alçar voo alto e ganhar identidade musical própria, mesmo à sombra de Noel. Conheci muito de perto o Vadico, mas nem por isso entendo que o que ele fazia era música paulista. Não, ele era um ótimo pianista, romântico e boêmio e, claro, fazia samba com muita categoria. Moraes Sarmento, também radialista e grande conhecedor da Música Popular Brasileira, com 55 anos de estrada rodada sobre as ondas hertzianas, acha – ao contrário de Clóvis Messias –, que “em São Paulo há música, e da boa”, lembrando, inclusive, que algumas escolas de samba paulistanas, como a Nenê da Vila Matilde, por exemplo, já têm indiscutível tradição, “e qualidade”, ressalta. Para Moraes, além de bons compositores, São Paulo também tem excelentes intérpretes,“como Adoniran Barbosa, Geraldo Filho e Isaurinha Garcia”, entre outros, “sem falar no grupo Demônios da Garoa, que há meio século traduz na música toda a beleza e complexidade que a cidade de São Paulo tem”. Paulo Vanzolini foi um sambista que contrapôs sua obra à de Adoniran Barbosa nº 16 6/8/2013 Pág. 6 O compositor, editor e pesquisador musical Juvenal Fernandes, um paulistano nascido no dia 19 de outubro de 1925, autor de uma dezena de livros e dezenas e dezenas de músicas, algumas dessas em parceria com Osvaldo Guilherme, Dênis Brean, Tonico, J. M. Alves, Capitão Furtado e Nélson Cavaquinho, respondeu afirmativamente numa única palavra a questão sobre se há ou não música na Paulicéia: – Lógico. Instigado, estendeu-se: – São Paulo é uma cidade pioneira em tudo. Em São Paulo tudo está sempre em Assis, com Moraes Sarmento constante transformação. Se não existisse, São Paulo seria criada do dia pra noite. Aliás, é isso mesmo o que acontece: São Paulo está sempre se renovando. É como se a cada dia surgisse uma cidade nova, dentro dessa cidade maior que é a própria São Paulo. A música de São Paulo é o samba, um samba diferente do samba feito no Rio, mas samba. Do bom. Outro compositor, também maestro e professor de formação erudita, paulista de Tietê, chamado Mozart Camargo Guarnieri, autor de riquíssima discografia e famoso no mundo todo, com a humildade e a calma que lhe são peculiares, diz que “pessoalmente em nada contribuiu, sequer musicalmente, para o engrandecimento de São Paulo”, mas “São Paulo tem música, sim, quem disse que não tem?” Camargo Guarnieri, nascido no dia 1º de julho de 1907, em homenagem à cidade de São Paulo, compôs em 1954 uma suíte do Quarto Centenário. Ele lamenta o atual estágio de estagnação musical e o sumiço de Luiz Gonzaga,“que deixou um grande vazio, pois era um dos grandes”, ao mesmo tempo que reconhece a importância da obra do paraibano Geraldo Vandré e do mineiro Milton Nascimento: – Esses dois (Geraldo e Milton) encontraram o caminho certo da música. São Paulo também, ao que tudo indica. No estilo, Adoniran foi único; como Paulo Vanzolini 1 – Números do IBGE indicam que há em São Paulo cerca de 3,5 milhões de nordestinos fixos ou em trânsito. 2 – Ler e ouvir Cante lá, que eu canto cá (Filosofia de um Cantador Nordestino), de Patativa do Assaré, Editora Vozes, RJ, 1978; Poemas e Canções nº XSB-2198, CBS-Epic, SP, 1979. 3 – Variante do samba, com presença marcante no interior de São Paulo, Espírito Santo, Minas e até no Rio de Janeiro. 4 – Tipo de dança coreografada, na qual os participantes divertem-se enfileirados; a ver com o batuque e o samba rural propriamente dito. 5 – In Seleta, de Luís da Câmara Cascudo, Livraria José Olympio Editora, RJ/ InstitutoNacional do Livro/MEC, 1972. Notas 6 – Noel Rosa e Oswaldo Gagliano (Valdico) compuseram em parceria, entre outros, Feitio de Oração, Silêncio de um minuto, Pra que mentir e Feitiço da Vila. 7 – Dênis Brean, paulista, é o autor de Bahia com h e de Boog-yoog na favela. entre outras nacionalmente famosas. 8 – Disco compacto duplo Esperanto, CGD-0001-A, Gravadora Gaigher Ltda, DiademaSP, 1987. 9 – David Nasser, um dos maiores jornalistas da história da imprensa brasileira, é autor de sambas como Dominó e Normalista e de marchas ainda executadas durante o carnaval em todo o Brasil, como Chico Viola morreu e Confeti. Germano Mathias Por Assis Ângelo Germano Mathias, com h, é o seu nome completo. É nome artístico também. “Se podemos simplificar a vida, por que não?”, filosofa esse paulistano da Barra Funda, que carrega nas costas um peso muito grande, o de dar continuidade a uma obra que tem muito a ver com a cara de São Paulo e sua música. O nome de Germano Mathias lembra outros nomes que São Paulo aprendeu a respeitar. Adoniran Barbosa, Isaurinha Garcia, Dênis Brean, Oswaldo Moles, Vassourinha, Demônios da Garoa, Zequinha de Abreu, Mário Zan, Geraldo Filme, Oswaldinho da Cuíca e tantos outros. Nesta entrevista a Assis Ângelo, pesquisador da Música Popular Brasileira e autor de vários livros a respeito, o compositor e cantor Germano Mathias fala da sua carreira e da cidade que o viu nascer em 1934. Germano Mathias deixa no samba sincopado a sua grande marca Assis Ângelo – Germano Mathias, sambista paulistano de boa cepa. Germano Mathias – Perfeitamente. Mathias com “h”. AA – Por quê? GM – Porque quando eu nasci, 1934, ainda se escrevia farmácia com “ph”. Por isso, é claro. Mathias tinha que ter um “h” no meio, né? O meu nome de batismo é Germano Mathias. E o nome artístico também. AA – Você nunca usou pseudônimo? GM – Ah, já! Usei vários. Com um deles, “Barra Funda”, assinei o meu primeiro samba que era assim (can- tando): “Na Barra Funda/Nunca mais/Eu voltarei/Cantei meu samba/Nunca mais/ Eu trabalhei/Faz sete anos/Que eu vivo/Na malandragem/Quero trabalhar/Mas me falta coragem/Tenho de tudo/Até anel de doutor/Trabalhar é pra relógio/Eu não sou despertador/Sou malandro bem vestido/ Uso terno, chapéu e sapato/Uma nêga no basquete/Dinheiro comigo é mato”. Compus isso antes de começar no rádio, antes mesmo de servir Exército, em 1952. AA – Esse sambinha foi gravado? GM – Não, não gravei, porque a melodia dele eu roubei de outro samba, intitulado Minha nêga na janela, feito em parceria com Doca, e o primeiro por mim gravado em disco (selo Polydor). AA – Diz o ditado que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Mas, no caso, ladrão que rouba a si próprio deve ter cem vidas perdoadas, não é? GM – Pois é, eu roubei de mim mesmo uma melodia de um samba que era meu mesmo. AA – Quem é, mesmo, Germano Mathias? GM – Um sambista paulistano, como você mesmo falou há pouco. Nasci no bairro da Barra Funda, zona oeste de São Paulo, no dia 2 de junho de 1934. O meu pai, Júlio Mathias, é carioca e está aí, firme que nem numa rocha. A minha mãe, dona Zulmira, é falecida. Ela, como eu, era paulistana da gema. Irmãos? Dois, um por parte de pai. A minha família é toda de origem portuguesa. Quer dizer, embora paulistano, nas minhas veias corre o sangue luso. Sim, até os meus avós eram portugueses. AA – Música. Alguém na família tem ou teve alguma afinidade? Como foi que o samba entrou na tua vida? GM – Ah, meu chapa, eu sou uma personalidade paradoxal! AA – Como assim? GM – Bom começa pela cor. Eu era para ser crioulo e não sou, como se vê. Sou branco, até com pinta de alemão. Lembra do Garita, o famoso Garita da gafieira paulistana? nº 16 6/8/2013 Pág. 7 Toda vez que a gente se via, ele dizia: “Pôxa, eu pensei que você fosse embaixador da Romênia! Com essa pinta, você era pra ser embaixador e não sambista!” O Garita era um gozador inveterado, com uma pontinha de verdade, não é? Agora pra ficar com jeitão de sambista, sabe o que faço? Eu uso chapéu, ó, bem malandreado. Além do chapéu, sapatos bem lustrados e aquelas roupas bem tradicionais de sambista de antigamente. Que tal? AA – Nada mal. Pai carioca, mãe paulistana, avós portugueses... GM – Pois é. AA – ...Não é preto, mas é sambista e faz o diabo com uma tampa de lata de graxa niquelada. Como foi que a música entrou na tua vida? GM – Ah! Eu sempre tive verdadeiro fascínio pela música brasileira. Sempre fiquei assim magnetizado pela música regional, de raízes, entende? Quer dizer, sempre gostei de boa música e não só do samba. Coisa brasileira é comigo mesmo, sabe eu sou assim, uma espécie de folclorista. Gosto de côco, baião e chorinho, por exemplo. Gosto do que é tradicional. Mas gosto também do folclore de outras nações. Da música russa, por exemplo. Da balalaica, do fado português, do tango argentino. Gosto da coisa típica, do povão, de tudo que tem cheiro de povo. Não gosto de coisa muito sofisticada, entende? Se é pra ouvir coisa sofisticada, vamos então logo ouvir música erudita, música clássica, que é ponto máximo da música, não é? AA – Apesar desse seu gosto musical bastante variado, até hoje, que eu saiba, você só gravou samba, esse sambinha sincopado danado de safado, correto? GM – Mais ou menos, pois também gravei um samba-canção e algumas poucas marchinhas de carnaval. A minha voz é pequena, invocada. A minha voz tem cinco “f”, ou seja: é fina, feia, fraca, fedegosa e fulêra. Quer dizer, com todos esses “f” não dá para arriscar outro gênero musical, não, além do sambinha aí meio feijão-com-arroz. AA – No dia 26 de outubro de 1955, a Rádio Tupi de São Paulo te contratou como artista exclusivo e assinou a tua Carteira de Trabalho com uma curiosa inscrição: “Can- tor e executante de instrumentos exóticos”. O que vinha a ser isso? GM – É que eu sou um multinstrumentista. Toco campainha, caixa de fósforos, lata de graxa e o que vier! Agora, falando sério: que eu toco muito bem uma tampa de lata de graxa niquelada, ah! isso eu toco. Também sou bom num sambinha com frigideira. AA – Como é isso? GM – Você não sabe? Nos anos 40, por aí, as escolas de samba ainda não dispunham dessa parafernália de hoje. As escolas de samba no início da minha carreira faziam ritmo com frigideiras. Frigideiras niqueladas, não essas que se usa no fogão, entende? Frigideira dá um ritmo bem estridente, bem bonito. De longe ouve-se o som. O samba pra ser bom tem de ser cantado com bossa e muito ritmo. Também tem de ser coreografado. Quer dizer, o sambista não pode só se limitar a cantar. Aliás, o sambista nem precisa ter uma voz forte, bonita. Isso quem precisa é o Pavarotti. O que o sambista precisa ter é muito ritmo e não semitonar além da conta. O sambista tem de saber sambar, tem de saber tocar instrumentos de percussão e cantar com bossa, assim meio malandreado, entende? É disso que o sambista precisa, o resto é bobagem. AA – Você estudou música? GM – Que nada! Nunca entrei numa escola de música. Tudo que sei, e nesse ponto, modéstia à parte, eu sei bastante, aprendi espontaneamente, de orelhada, de tanto observar. AA – O samba mudou nos últimos 40, 50 anos? GM – Que nada, o que muda é o sambista. E, claro, os interesses das gravadoras. Em 1955, quando comecei, a visão do pessoal das gravadoras era outra. Artista, com “a” maiúsculo, sempre tinha vez. Nêgo tinha talento, tinha tudo. Entrava na gravadora e gravava. Não era como hoje, não é? Gravei 17 LPs e vários compactos, além de discos de 78 rpm. Sabe, eu, pessoalmente, nunca fui gravar disco não. Sou melhor de palco. Gosto de brincar, sou gaiato. Sou do samba gaiato. Acho que no palco sou melhor que no disco. AA – Você não grava há quanto tempo? GM – Há uns dois anos eu gravei um disquinho que nem chegou a ser comercializado, com uma musiquinha até bonita, assim ó (cantando): “Vamos ouvir o poeta/ Que conta nos temas/De amor por alguém/ Sua presença na rima/Pinta no clima/De um tempo qualquer/É cantiga nova/Se o nome é mulher...” e por aí vai. Chama-se Costela predileta, de Elzo Augusto. AA – O samba paulista é logo identificado por nomes como Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, Germano Mathias, Talismã, Zeca da Casa Verde e mais alguns cabras bons. Quer dizer, isso contraria completamente a famosa opinião do poetinha Vinícius de Moraes, segundo a qual São Paulo é o túmulo do samba, não é? GM – Eu acho que o Vinícius estava brincando quando disse aquilo. O samba de São Paulo é muito bom. Além dos nomes que você citou, há o Geraldo Filme, o Oswaldinho da Cuíca, e muita gente mais, como Henricão, Vassourinha, Laurinho da Saudade e outros que se foram desta pra melhor. A gente perde um pouco é no setor feminino, que tem poucas sambistas. Isaurinha Garcia, Miriam Batucada. Sim, temos poucas sambistas. Não temos quantidade, temos qualidade. O samba paulista é da melhor qualidade, sim senhor! AA – E na vida paulistana, o que mudou dos anos 50 pra cá? GM – Ah, nesse ponto mudou muito. No meu tempo, no tempo que eu era mais novo, São Paulo era uma cidade muito gostosa, muito bonita. As boates, as mulheres, os cabarés, tudo era melhor, tudo funcionava perfeitamente a todo vapor. No meu tempo havia boemia. Hoje, não. O que há hoje é muita violência. Sou mais São Paulo de ontem. AA – Você não sai à noite? GM – Não. Na verdade, saio muito pouco. É preciso muito cuidado pra sair à noite, pois há muita gente ruim à solta, assaltando, matando por bobagens. No meu tempo não era assim. Os próprios malandros se incumbiam de proteger os frequentadores da noite, porque os malandros de verdade, malandros no bom sentido, sabiam que era dos frequentadores da noite que saía o dinheiro, que era com eles que saíam as mulheres. Dá pra entender? Os malandros viviam de quê? Viviam de expedientes, não é? Viviam de mulheres, de jogo, dessas coisas. Os malandros do meu tempo andavam bem vestidos, bem arrumados, cheirosos, penteados. Essa era a maneira deles viver. Violência, que violência? Mas os malandros acabaram, foram substituídos por bandidos. Os bandidos são uns coitados, uns ignorantes. Bandido, bandido mesmo, é incapaz de ganhar dinheiro inteligentemente. Sabe, até as mulheres mudaram. Antes eram mais femininas, não disputavam tão ferozmente o mercado nº 16 6/8/2013 Pág. 8 profissional. As mulheres sentiam-se bem protegidas pelos homens. Bom, mas tudo isso acabou. Se sinto saudade? É claro! No meu tempo era mais fácil viver. Tinha mais emprego, mais oportunidade. Não tinha crise, tudo dava certo. Havia mais respeito, mais consideração. Hoje, nêgo que não tem dinheiro, por exemplo, está frito, está perdido. AA – São famosas as batucadas na praça da Sé. GM – Na praça da Sé, na praça Clóvis, na praça da República. A gente unia o lazer ao trabalho. Até os engraxates eram diferentes. Eles disputavam entre si pra saber quem era o melhor num lustre de sapato. Quer saber mais? Enquanto lustrava os sapatos dos fregueses, os engraxates batucavam, cantavam. Era bonito, era folclórico. E hoje? Hoje os engraxates são rápidos, não batucam, não cantam, não conversam como freguês. A ordem entre eles é faturar o mais rapidamente possível. AA – Qual a música que mais identifica São Paulo? GM – Todas, todas as músicas de Adoni- ran. Especialmente aquela que diz (canta): “Silêncio, é madrugada/No morro da Casa Verde/A raça dorme em paz/E lá embaixo/ Meus colegas de maloca/Quando começa o samba/não para mais”. Esse samba é a cara mais bem feita da periferia de São Paulo. Já o centrão da cidade eu vejo naquela música do Bezerra de Menezes, que diz (canta): “Aonde estão teus sobrados/ De negros telhados/E teus lampiões...” É ou não é cara da cidade de antigamente? Tem outra, Lata de graxa, de Mário Vieira e Geraldo Blota, que gravei em 1958, que conta como érea a São Paulo do meu tempo (cantando): “No coração da cidade/ Hoje mora uma saudade/A velha praça da Sé/Nossa tradição/Da praça da batucada/ Agora remodelada/Só ficou recordação/ Até o engraxate/Foi despejado/E teve que se mudar/Com sua caixa/Ai, que saudade/ Da batucada/Feita na lata de graxa”. AA – Bonita, Germano! O samba não muda, você disse. E as escolas de samba? GM – As escolas evoluíram, o desempenho delas nas avenidas é mais bonito. Tudo é mais organizado. AA – É comum às escolas de samba homenagear personalidades. GM – Isso eu acho bom. Lembrar as coisas boas, as pessoas importantes de um país, é um gesto muito bacana. Eu, inclusive, já fui homenageado. Foi em 1988. Fui lembrado pela escola de samba Flor da Penha. Uma escola pequena, modesta, humilde. Era do terceiro grupo, passou para o segundo com o samba-enredo Esquentando a memória do povo, feito em homenagem ao papai aqui, que chegou até a desfilar em carro alegórico. Fiquei emocionadíssimo, porque tudo foi feito de forma muito espontânea. E ouvir o povão cantar em minha homenagem, ah!, a emoção que senti é indescritível. O samba é assim (canta): “Flor da Penha / Muita lenha/Vai queimar/Pra esquentar a memória do povo/Na rua enaltece um artista popular/Que é sambista/Mas não tem bumbum pra lua/O Moleque’Barra Funda’/Bem menino/Nas rodas de samba se encaixa/O que marcou demais/O seu destino/Foi o batuque/Na lata de graxa/ Malandreando, malandreando/É malan- dro de araque/Sempre sambando/O seu samba tem destaque/Vive cantando/Onde quer que ele esteja/A tristeza vai embora/ Quando ele comemora/Faz a festa e festeja/ Viva, viva Germano/Teu Mathias com ‘h’/ Faz agá pro desengano/E tem lenha para queimar”. Que tal? AA – Bonito. Chorou muito? GM – Sim, às pampas. A emoção foi ainda maior quando eu soube que a escola havia ganhado, que passara do terceiro para o segundo grupo. AA – Morro da Casa Verde, samba de Adoniran Barbosa que você cantou há pouco, realmente retrata muito bem um bom pedaço da cidade de São Paulo. E você mesmo, não fez nada pra São Paulo? GM – Fiz, sim. Fiz e gravei algumas, como Figurão, de 1958, composta em parceria com meu amigo Doca. Mas tem uma aí inédita, também do meu parceiro Elzo Augusto, que se chama Samba da periferia. AA – Vamos encerrar esta nossa conversa com ela? GM – Vamos. Essa música é assim (cantando): “Sou samba/Venho da periferia/ Não alugo moradia/Vivo na voz do povão/ Sou pobre/De pobreza absoluta/Marginal filho da luta/De gente sem um tostão/A cores tudo é lindo/Lindo, lindo/Meu endereço é bem vindo/Sou dessa gente/Gente que num ônibus lotado/Vai batalhar um trocado/Pendurado igual pingente/Sou samba do reduto de Itaquera/Brasilândia, Sapopemba e Cachoeirinha/Sou fruto da cabeça da galera/Burilado e batucado/na garrafa de caninha/Sou samba/Venho da periferia/Não algo moradia/Vivo na voz do povão...”. É isso aí. Germano em vídeo Cenas do documentário Ginga no asfalto, produzido e dirigido por Guilherme Vergueiro e André Rosa, em que Germano Mathias canta acompanhado por Guilherme Vergueiro, Raul de Souza, Luizinho 7 cordas, Alex Buck e quinteto Preto e Branco. Gravado em São Paulo em 2007. Samba da periferia (http://migre.me/fFzdF) Guarde a sandália dela / História de um valente / Nega Dina (http://migre.me/fFzj2); a última música desse link, identificada como Quem roubou meu samba, é na realidade Figurão, que Germano compôs com Doca Expediente – Jornalistas&Cia Especial Memórias da Cultura Popular é uma publicação mensal da Jornalistas Editora Ltda. (Tel. 11-38615280) em parceria com o Instituto Memória Brasil • Diretor: Eduardo Ribeiro ([email protected]) • Produção do conteúdo: Assis Ângelo ([email protected]) • Editor-executivo: Wilson Baroncelli ([email protected]) • Diagramação e Programação visual: Paulo Sant’Ana ([email protected]). É permitida a reprodução desde que citada a fonte.