Vitimização e fatalidade do crime no discurso polifônico de Ônibus 174 Diogo AZOUBEL1 Universidade Federal do Pará (UFPA) Josiele Sousa da SILVA2 Universidade Federal do Pará – (UFPA) Resumo Quase dez anos depois, o filme documentário Ônibus 174, lançado em 2002 pelo cineasta brasileiro José Padilha, ainda suscita questionamentos em diversas áreas do conhecimento, inclusive na Comunicação. Com duração de 150 minutos, a película retrata o caso do sequestro do Ônibus 174, ocorrido no dia 12 de junho de 2000, no bairro Jardim Botânico, cidade do Rio de Janeiro (RJ). Como protagonista, o menino de origem humilde que, marcado pela sombra do assassinato da própria mãe, viria a ser conhecido como “Mancha” nas ruas da capital fluminense. Sandro Rosa do Nascimento morreu aos 22 anos e ficou conhecido como o assaltante e usuário de entorpecentes responsável pelas horas de terror acompanhadas em tempo real pela TV em todo o Brasil. Vale destacar que Sandro foi um dos sobreviventes da Chacina da Candelária. Este trabalho busca analisar as estratégias discursivas utilizadas na construção de sentidos do documentário Ônibus 174. O filme retrata o sequestro do Ônibus 174. Para esta pesquisa, foram destacados 16 trechos do documentário para a análise do discurso presente na obra cinematográfica que melhor evidenciassem a intencionalidade da direção no uso da polifonia discursiva. O objetivo principal é avaliar de que forma a polifonia e a interdiscursividade constroem a imagem de Sandro Nascimento, o “Mancha”, como vítima da exclusão social e da violência urbana. Uma das justificativas para a realização deste artigo é a necessidade de entendimento dos processos comunicativos de construção discursiva que compõem os documentários, bem como entender as suas relações com a realidade social, em específico, a brasileira. A conclusão é que o documentário recria sentidos a partir dos depoimentos de entrevistados que constroem a imagem do personagem Sandro do Nascimento como vítima da exclusão social e da violência urbana no Brasil, dando voz aos esquecidos pelas lentes das câmeras. Palavras-chave: filme documentário; ônibus 174, análise do discurso; José Padilha. Introdução Quase dez anos depois, o filme documentário Ônibus 174, lançado em 2002 pelo cineasta brasileiro José Padilha3, ainda suscita questionamentos em diversas áreas do conhecimento, inclusive na Comunicação. Com duração de 150 minutos, a película retrata o Diogo Antonio Azoubel Oliveira é graduado em Letras – Português, Inglês e respectivas literaturas, pelo Centro de Ensino Universitário do Maranhão (UniCEUMA); e em Comunicação Social – Rádio e TV, pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA); especialista em Jornalismo Cultural na Contemporaneidade pela mesma instituição; possui MBA em Marketing e Comunicação Integrados pelo Centro de Desenvolvimento de Conhecimentos e Habilidades Ltda. (Cedecon); Graduando Comunicação Social – Jornalismo, também pela UFMA; e discente do Mestrado Acadêmico em Ciências da Comunicação, oferecido pela UFPA, onde pesquisa a história do fotojornalismo no Maranhão. E-mail: [email protected] 2 Josiele Sousa da Silva é bacharel em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e especialista em Comunicação Corporativa pela Universidade Gama Filho (UGF). Trabalha como jornalista profissional desde 2004 e, atualmente, na Associação dos Docentes da UFPA (ADUFPA). É discente do Mestrado Acadêmico em Ciências da Comunicação, oferecido pela UFPA desde 2010. Email: [email protected] 3 José Padilha é considerado um dos novos diretores da nova geração de cineastas do cinema brasileiro, agora na fase denominada como “A Retomada”. Padilha também dirigiu mais dois sucessos: Tropa de Elite I e II. A última película é considerada recorde de bilheteria, tendo atraído quase 11 milhões de espectadores às salas de cinema no país até dezembro de 2010. Para mais informações acessar <www.filmeb.com.br>. 1 caso do sequestro do ônibus 174, ocorrido no dia 12 de junho de 2000, no bairro Jardim Botânico, cidade do Rio de Janeiro (RJ). Como protagonista, o menino de origem humilde que viria a ser conhecido como “Mancha” nas ruas da capital fluminense. Sandro Rosa do Nascimento morreu aos 22 anos e ficou conhecido como o assaltante e usuário de entorpecentes responsável pelas horas de terror acompanhadas em tempo real pela TV em todo o Brasil. Sandro foi um dos sobreviventes da Chacina da Candelária4. O sequestro do ônibus é considerado um dos episódios trágicos da segurança pública do Brasil que culminou com a morte a tiros da professora Geisa Gonçalves, na época com 20 anos, após uma tentativa frustrada de assalto ao coletivo da linha 174. Tomada como refém, a jovem foi atingida por disparos de arma de fogo efetuados por Sandro e por um dos agentes do Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro (Bope/RJ). O sequestrador atirou contra a professora três vezes assim que um policial do Bope tentou atingi-lo com um tiro na cabeça para libertar Geisa de seu domínio. Sandro morreu por asfixia em uma viatura policial, logo depois do baleamento de Geisa. O desfecho final do sequestro foi acompanhado pela mídia e transmitido ao vivo pelas principais emissoras de televisão do país (Globo, TV Bandeirantes e Rede Record). O primeiro filme documentário de José Padilha traz cenas reais do episódio e mostra a trajetória de vida de um jovem vitimado pela pobreza e pela desigualdade social. A reconstrução da história de Sandro e do assalto com tomada de refém foi montada com depoimentos de pessoas próximas ao personagem principal da tragédia, no caso Sandro do Nascimento, entrevistas das vítimas que vivenciaram o sequestro do ônibus 174, somadas as declarações de especialistas em segurança pública e de profissionais de entidades por onde o jovem passou na tentativa de sair da criminalidade. Por conta de sua condição existencial, marcada pela pobreza e pela violência, Sandro do Nascimento acabou se tornando um viciado em drogas e um assaltante fadado a morrer como muitos, não só no Rio de Janeiro, mas em outras partes do Brasil. O filme documentário Ônibus 174 apresenta um discurso no qual Sandro surge como fruto de uma sociedade excludente, ainda que ele tenha se transformado em um criminoso aparentemente cruel e odiado como infrator da lei. O diretor José Padilha faz uso de várias 4 Evento trágico em que policiais militares assassinaram oito crianças que dormiam em frente à Igreja da Candelária, que fica no Centro do Rio de Janeiro, em 1993. Ainda hoje, o motivo da chacina permanece desconhecido. De acordo com o sítio G1, “um dia antes, meninos de rua apedrejaram um carro da polícia porque um traficante que vendia cola de sapateiro tinha sido preso”, o que pode ter motivado o crime. Além disso, o sítio aponta também como possível causa do infanticídio “o atropelamento da mulher de um policial que fugia de um arrastão cometido por menores”. Quatro dos policiais envolvidos na Chacina da Candelária foram presos e hoje apenas dois cumprem pena em regime carcerário. Mais informações em <http://g1.globo.com>. estratégias discursivas, inclusive se apropria das vozes de entrevistados, os quais possibilitam a construção de sentidos que remetem a esta imagem de vítima da carência financeira e da violência presente nos espaços onde vivia. A sociedade brasileira, mesmo sendo responsável pela exclusão de Sandro, ainda o rejeita e comemora a morte dele. Padilha elabora um discurso dotado de fortes vínculos com práticas discursivas anteriores que compõem a realidade social do país. Este artigo tem como objetivo principal avaliar de que forma a polifonia5 e a interdiscursividade6 constroem a imagem de Sandro Nascimento como vítima da exclusão social e da violência urbana. O seguinte estudo visa ainda identificar e compreender as estratégias discursivas que o diretor do filme documentário emprega para recriar a vitimização do personagem principal. Uma das justificativas para a realização deste artigo é a necessidade de entendimento dos processos comunicativos de construção discursiva que compõem os documentários, bem como entender as suas relações com a realidade social, em específico, a brasileira. Os veículos de comunicação, incluindo a produção cinematográfica no gênero documentário, compõem um sistema de dimensão simbólica complexo na qual existe a permanente construção de sentidos7 por meio da veiculação de discursos variados e dotados de diferenciadas ideologias8. Segundo Thompson (1998), a mídia é responsável pela “produção, o armazenamento e a circulação de materiais que são significativos para os indivíduos que os produzem e os recebem” (THOMPSON, 1998, p. 19). A Semiologia, segundo Araújo (2000), é uma área que visualiza os fenômenos sociais como ocorrências de produção de sentidos, cujo foco principal consiste em desvendar o discurso do enunciador e a sua intencionalidade. A Teoria da Enunciação defende o 5 Conceito originariamente elaborado pelo linguista russo Mikhail Bakhtin e explanado por Barros (2003) em Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade em torno de Bakhtin. Para Barros, utiliza-se o termo polifonia para “caracterizar certo tipo de texto, aquele que se deixam entrever muitas vozes, por oposição de textos monofônicos, que escondem os diálogos que os constituem” (BARROS, 2003, p. 5-6). 6 A interdiscursividade mostra-se como “um processo em que se incorporam percursos temáticos e/ou figuras de um discurso em outros” (FIORIN, 2003, p. 32). 7 Sentido “é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais historicamente datadas culturalmente localizadas – constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômeno a sua volta” (SPINK & MEDRADO, 2000, p. 41). 8 Segundo Pompeu (2008), a compreensão do termo ideologia gera controvérsias, podendo ser considerada neutra ou crítica. Para autores como Karl Marx, John Thompson e Norman Fairclough, o conceito de ideologia pode ser definido como um instrumento de dominação da classe dominante com a imposição de ideias e condutas utilizadas para justificar e explicar as relações entre os indivíduos e da própria organização da realidade, sempre marcada pela intencionalidade de esconder as verdadeiras razões da ocorrência do real. Neste artigo, utilizamos o conceito conforme a visão do filósofo argelino Louis Althusser, autor de Os Aparelhos Ideológicos de Estado, citado por Pompeu (2008): “A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (Althusser, 1985, p. 85). “A ideologia tem uma existência material” pressuposto de que o “ato de dizer não é individual, mas um processo social. É impossível ao sujeito desvencilhar-se das coerções, sejam elas históricas, culturais e sociais, porque só há sentido dentro dessa ordem. Nenhuma enunciação ocorre desvinculada do jogo social” (ARAÚJO, 2000, p. 123). A fim de concretizar a análise discursiva do filme documentário, foram selecionados trechos específicos, no total de 16, com a avaliação ideológica da fala dos entrevistados que evidenciassem a construção de uma imagem vitimizada do assaltante e fadada à morte. A partir dos trechos, é possível detectar de que maneira se manifesta tal polifonia e a interdiscursividade como mecanismos atuantes na constituição de sentidos. No primeiro tópico deste artigo, será realizada a contextualização histórico-social responsável pela geração do discurso vitimizador, perceptível no documentário Ônibus 174. Na sequência, expõe-se o perfil do gênero filme documentário, bem como sua natureza peculiar como produtora de sentidos nos processos comunicativos midiáticos. Por último, apresenta-se a análise do discurso da película que evidencia a polifonia e a interdiscursividade como estratégias discursivas. Pobreza, exclusão e violência no Brasil A constituição da atual sociedade brasileira, marcada pela desigualdade social, tem suas raízes históricas alicerçadas na marginalização de negros, índios, mestiços e brancos pobres. Estes grupos sociais podem ser encontrados em condições de pobreza e de criminalidade nas favelas do país na atualidade. A realidade desigual do Brasil é frequentemente reconstruída nos discursos da mídia, inclusive no cinema brasileiro e nos filmes documentários, como um conjunto de reminiscências de um passado sempre presente. No início do século XVI, o Brasil transformou-se em colônia de Portugal. A “nova” terra comportou por mais de três séculos atividades econômicas de cunho exploratório, fundamentadas na divisão do espaço com a formação de latifúndios que reduziram o negro, o indígena, os mestiços e os brancos pobres a condições humanas degradantes que se estendem aos seus descendentes. Moradias insalubres, trabalhos forçados, analfabetismo e pouco alimento foram alguns dos legados obtidos por estas categorias. Segundo Franco (1969 apud Schwartzman, 2004), nem mesmo o fim da escravatura brasileira e a sucessiva industrialização do país foram capazes de eliminar as diferenças de condições de vida entre as distintas etnias, resultando em uma classe operária urbana também distante do ideal de cidadãos. Ao lado do latifúndio, a presença da escravidão freiou a constituição de uma sociedade de classes, não tanto porque excluiu delas os homens livres e pobres e deixou incompleto o processo de sua expropriação. Ficando marginalizada nas realizações essenciais da sociedade e guardando a posse dos meios de produção, a população que poderia ser transformada em mão de obra livre esteve a salvo das pressões econômicas que transformariam sua força de trabalho em mercadoria (FRANCO, 1969 apud SCHWARTZMAN, 2004). De acordo com Reis (1990), o Brasil se constituiu como país de forma extremamente conservadora, sem que fossem incorporados os grandes segmentos da população ”aos setores modernos da economia, da sociedade e do sistema político” (REIS, 1990 apud REIS & SCHWARTZMAN, 2004, p.1). Tendo como exemplo a expansão das cidades da região Sudeste, o êxodo rural manifestou-se expressivamente a partir da década de 70 do século XX, sendo isto possível pelo favorecimento do governo à instalação e à expansão de indústrias na região. As autoridades governamentais facilitaram “a migração e a fixação de enormes contingentes de força de trabalho, a fim de atender às exigências impostas pelo sistema industrial em expansão” (RODRIGO; BRAGA; FAVORATTO & TASSINI, 1999). Mesmo sem a certeza de trabalho, muitos interioranos se arriscaram na aventura da migração, indo morar em ambientes não anteriormente preparados para recebê-los, carecendo de condições mínimas de infraestrutura. Lopes (2009), no artigo publicado na revista Carta Maior, comenta a experiência das favelas do Rio de Janeiro, onde o desemprego constitui-se como um dos problemas que mais afeta a população excluída. Jovens sem perspectiva de um futuro como cidadãos acabam sendo facilmente aliciados para a prática de crimes que a força policial tenta sufocar com outro tipo de violência. A repressão não impede o contínuo avanço da marginalização. A cada preso ou morto há uma fila de substitutos, de gente capaz e disposta a arriscar a vida para alguns momentos fugidios de glória e de ascensão. A política de matar, torturar e prender em massa nada muda. Ao contrário, cria heróis e mártires, estimulando novas adesões. Por isto, é difícil crer que se deseje, de fato, acabar com o problema (Carta Maior. Seção Política, 18/12/09). A imagem social elaborada das favelas brasileiras, especialmente as cariocas, é a de serem ambientes onde o que domina é a atuação do tráfico de drogas, entre outros delitos que caracterizam a violência urbana. Ainda que nestes lugares de exclusão vivam pessoas que tentam de alguma forma sobreviver ao processo de exclusão histórica socialmente construído. Filme documentário: uma prática discursiva polifônica A linguagem9 é uma prática social, segundo a visão bakhtiniana defendida por Spink e Medrado (2000), na qual é inevitável a produção de sentidos. Ela é utilizada em todos os processos comunicativos entre os homens, seja na forma verbal, escrita ou falada, empregada 9 A linguagem é “um sistema organizado de signos não apenas verbais e escritos, mas também visuais, fisionômicos, sonoros, gestuais etc. - que possibilita a comunicação. É um recurso utilizado pelo ser humano para se comunicar e estabelecer vínculos de tempo e tipos de relações que mantém” (NERY & TEMER, 2009, p. 124). como instrumento para a expressão do discurso de cada um dos indivíduos. Fiorin (2005) explica o que significa discurso em Linguagem e Ideologia como “combinações de elementos linguísticos (frases ou conjuntos constituídos de muitas frases), usadas pelos falantes com o propósito de exprimir seus pensamentos, de falar ao mundo exterior ou de seu mundo interior, de agir sobre o mundo” (FIORIN, 2005, p.11). Os discursos apresentados nos documentários são produzidos pelos diretores de cinema, mas contêm as vozes de discursos anteriores em suas composições, resultados das práticas discursivas interiorizadas e reconstruídas nos processos comunicativos. Esses enunciados trazem representações da realidade humana, além de proporcionarem aos espectadores variados sentidos. O documentário sempre foi uma forma de representação, e nunca uma janela aberta para a ‘realidade’. O realizador sempre foi uma testemunha participante e fabricante de significados, sempre foi muito mais um produtor de discurso cinemático do que um repórter neutro e onisciente da verdadeira realidade das coisas (NICHOLS,1983 apud FERREIRA, 2004, p. 48). Na visão de Maingueneau (2008), os discursos são compostos por enunciados, a serem considerados como unidades “da comunicação verbal, uma sequência dotada de sentido e sintaticamente completa” (MAINGUENEAU, 2008, p. 56) em um determinado gênero de discursivo. Já o linguísta russo Mikhail Bakthin (1994b apud SPINK & MEDRADO, 2000, p. 46) define enunciados como expressões, tidas como palavras e sentenças, organizadas em momentos específicos e que adquirem caráter social. Para Medrado (2000), os discursos são fundamentados na plurivocalidade, configurada por Bakhtin como polifonia. A polifonia é uma característica nata dos filmes documentários por trazer à tona diversos discursos de entrevistados e o do próprio cineasta responsável pela obra, os quais detêm influências de enunciações passadas. “Partindo do pressuposto emprestado de Bakthin, de que o discurso e a linguagem são sempre construções sociais, o filme aqui é entendido como um discurso e sua interpretação ou análise deve levar em consideração todos os atores que participam de seu processo de criação/construção” (PASSARELLI, 2000, p. 274). Conforme a explicação de Spink e Medrado (2000), as vozes em um discurso “compreendem diálogos, negociações que se processam na produção do enunciado”. A vinculação com enunciações anteriores remete à interdiscursividade persistente em todo diálogo do gênero filme documentário. Quando o discurso parece apenas reproduzir ideias, os temas de outros discursos, podemos dizer que houve a citação, conforme definiu Fiorin (2003). A alusão, outra modalidade da interdiscursividade comunicativa, confirma a existência de elos permanentes entre os discursos enunciativos. O que as vozes dizem Um dia que parecia ter começado como outro qualquer, mas o 12 de junho de 2000 entrou para a história da violência no Brasil como sinônimo de intolerância, revolta e impotência. Revolta pelo assassinato da professora Geisa Gonçalves que, a caminho do trabalho, fora feita refém para depois perder a vida; e impotência frente à violência que assola centros urbanos como o Rio de Janeiro e frente ao despreparo de um sistema falho no que tange à garantia da segurança da população, diariamente confrontada pela ação de criminosos, em maior ou menor intensidade. Usando a voz de entrevistados não identificados, o cineasta José Padilha aponta para a infância traumática ao desfecho trágico. Sandro é mostrado como um garoto oriundo de uma favela do Rio de Janeiro e sem oportunidades de mudar o seu destino a ser fatalmente marcado pela pobreza; assombrado pela ausência de um pai desconhecido; pela cena do assassinato da mãe dele, enquanto ainda tinha 7 anos de idade, repetida como um filme na cabeça do adolescente; e pela intolerância de agentes de segurança pública diante de crianças desabrigadas. As declarações da assistente social Yvonne Bezerra de Mello, integrante de um dos projetos engajados em recuperar crianças e adolescentes em situação de risco no Rio, e de uma das reféns no sequestro confirmam que a existência de Sandro foi marcada pela exclusão social e traumatizada pela violência. O assassinato da mãe marcou negativamente a vida de Sandro, violência constantemente presente na polifonia discursiva de Ônibus 174. Ele continuava exatamente como ele sempre foi: introvertido, com a mesma dificuldade de aprendizado. Ele sempre contava a história da mãe dele. Que a mãe dele foi assassinada na frente dele e que ele nunca pode esquecer. O pai dele é desconhecido. Nunca conheceu o pai, não sabia quem era o pai dele (Ônibus 174, 2002, depoimento de Yvonne de Mello, assistente social). Ele estava assim descontrolado, descontrolado! E ele falava muito que iria matar todo mundo. Contava história que a família tinha morrido...Todo mundo tinha morrido e ele não tinha nada a perder. Apavorava muito com essas histórias (Ônibus 174, 2002, depoimento de refém). A Sandro coube na vida o papel do bandido, aquele que passou por instituições de ressocialização e que, por capricho do destino, não foi capaz de reintegrar-se à sociedade responsável pela sua marginalização. Do mesmo jeito que eu cheguei na rua, parecia que ele tinha chegado. (...)Eles se espalharam pela cidade toda. Muitos foram trabalhar para o tráfico. Muitos foram assassinados por causa disso também. E ele teve um período onde eu não o vi. Eu e o “Mancha” e a galera, a gente dormia debaixo de uma ponte, quando fazia frio, dentro de uma ponte (Ônibus 174, 2002, depoimento de amigo da Candelária). Assim como Padilha, a tia de Sandro acreditava talvez que o jovem pudesse retomar o caminho de casa por ser apenas um menino problemático por causa da morte da mãe e da pobreza. O medo de morrer e de não ter como sobreviver o faria recuar, em alguns momentos, na tentativa de reconstruir a sua vida. A tia de Sandro, ao lembrar do sobrinho com tom ingênuo, faz declarações que reforçam este apelo, principalmente ao usar a palavra “tia” e na reprodução da fala do personagem principal do documentário. Ela reproduz frases ingênuas, simples, sem conexão sintática claramente visível por conta dos espaços de tempo entre as declarações, feitas com muitas reticências. “Tia, quando o negócio piora em tal lugar, eu vou para outro lugar. Tia, vai ter uma rebelião aqui e eles... nós vamos fugir...”. Eu falei: “Você não vai fugir! Você vai ficar aí!”. “Tia, mas se eu não fugir, quando eu voltar...Quando eles voltarem, eles vão me matar aqui dentro” (Ônibus 174, 2002, depoimento da tia de Sandro). Mesmo em casa, tutelado pela tia materna, Sandro não conseguiu se adaptar ao que a sociedade esperava dele: a uma vida honrada, porém humilde, com um “dinheirinho para comprar um tênis” no fim de vários meses de economia, como ela mesma coloca e como é evidenciado pela fala do agente penitenciário responsável por uma das instituições de reabilitação por onde Sandro Rosa passou durante a juventude: “Aqui, ninguém fez visita ao Sandro aqui, nem mesmo amigo, muito menos parente”. Numa alusão ao ser humano esquecido, abandonado à própria sorte para “tentar ser alguém na vida”. Mas ainda assim, no documentário, José Padilha mostra como Sandro seria supostamente um rapaz bom em sua essência. As declarações da mãe adotiva de Sandro também idealizam o jovem como alguém emotivo, que apenas deseja coisas simples, que comemorava por ter “uma casa”, que não acreditava que tinha “um banheiro”, ter um “fogão para fritar batata”. Sandro sonhava em poder colocar uma “televisãozinha”, uma palavra no diminutivo que revela um adolescente que foi uma criança sem infância. Ele contou a vida dele (o que ele já passou). Falou: “A vida é curta, mãe”. Só isso que ele falou para mim. “A vida é curta!”. Ele chegava e entrava. “Eu não acredito que eu tenho uma casa! Eu não acredito que eu tenho um banheiro, que eu tenho um fogão para fritar batata!”. Ele gostava de batata. Ele dizia, e falava assim: “Poxa, mãe, parece que eu estava vivendo um pesadelo! Eu estou...esse quarto é meu?”. Eu falei: “É seu. Isso aqui é seu, só para você!”. “Posso botar uma televisãozinha aqui e fazer o meu larzinho aqui?”(Ônibus 174, 2002, depoimento da mãe adotiva de Sandro). A amiga do jovem define Sandro como “um drogado” e que ainda gostava do vício. Ela repete várias vezes a expressão “só pó, só pó, só pó...” que ratificam a ideia de que Sandro era completamente viciado e que sua vida se resumia ao vício da cocaína, roubando apenas para sustentar o hábito. O normal do Sandro era drogado. Ele gostava. Ele roubava só para cheirar. O Sandro, ele não gostava de vestir roupa de marca, coisa... não. O negócio dele era só pó, só pó, só pó. (…) Ele ficou com medo também. Ele sentiu medo na hora. Foi o lance dele, ali dentro do outro carro (Ônibus 174, 2002, depoimento de amiga do Sandro). Nem mesmo uma casa bem mais harmônica que seu lar original foi capaz de resgatar o “Mancha”, que trocava de estadia com frequência. Força de vontade não faltava ao jovem, segundo a voz de sua mãe adotiva, na verdade iludida por Sandro como se fosse o filho procurado por ela há anos. Ele tinha força de vontade, mas tinha alguma coisa que desviava ele. Não sei se era medo, não sei se era muito tímido, ou se alguém ameaçava ele, não sei, sabe? Ele sempre falava: “Eu tenho que ser alguma coisa na vida! Eu tenho que ser um artista, que tenho que ser alguma coisa na vida!” (Ônibus 174, 2002, depoimento da mãe adotiva de Sandro). A lógica da criminalização parece não perdoar aqueles que, por algum motivo qualquer, se desviam da boa conduta, do caminho do bem, que nasceram para ser bandidos, como explicam os policiais do Bope-RJ entrevistados pela equipe de Padilha Ele (Sandro) não teria chance nenhuma de sair dali vivo. Uma vez que estava sendo vigiado e visto pelos quatro cantos (Ônibus 174, 2002, depoimento de policial). Existia uma preocupação em resolver a situação, em tirar o Sandro de lá, em matar o Sandro ou então acabar com aquela situação (Ônibus 174, 2002, depoimento de policial). Do lado de fora, assistindo a tudo pelas janelas de vidro sujo manchado com o batom de uma das vítimas de Sandro, a multidão de curiosos, repórteres, cinegrafistas e fotógrafos silenciosa já se preparava para a tragédia. Ao “Mancha” cabe toda a responsabilidade pela mancha de sangue deixada no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Mas Sandro volta a ser vítima outra vez no discurso de Ônibus 174 pela incompetência assumida pelos policiais do Bope-RJ que tentaram justificar a morte de Geisa e do próprio assaltante. Faltava muita coisa, as coisas que a gente vivia pedindo, os equipamentos, os trinamentos, os cursos. Tudo aquilo parece que naquele momento desabou (Ônibus 174, 2002, depoimento de policial). O filme mostra em seu discurso as vozes dos excluídos, os assaltantes e meninos de rua que compartilham da mesma imagem vitimizada de Sandro. A intenção é mostrar o resultado da discriminação construída por séculos na sociedade brasileira: revolta, agressividade e apelo. Um dos amigos de Sandro questiona em tom ameaçador o entrevistador três vezes e com as expressões “pena?”, “tá brincando com nós?”, além das frases “eu jogo alvo em cima”, “eu te incendeio”. Eu sei os pensamentos que ele tinha. A vida dele é a mesma da nossa. [...] Se ele queria roubar o ônibus ele tava mais de vacilação, porque nós não rouba ônibus. Nós gosta de roubar é rico. (...)Pena? Pena? Se não me falar onde tá o dinheiro, o ouro, a pedra preciosa eu jogo é alvo em cima. Não fala não para ver se eu não te incendeio. Vira é tocha. Tá brincando com nós? (Ônibus 174, 2002, depoimento de amigo de Sandro). A menina de rua entrevistada reivindica “sobrevivência”, “oportunidade”, o “abrir a porta”. Ela põe à mostra um passado histórico que coloca os negros, os mestiços, índios em uma desvantagem social que ainda persiste, mas que eles próprios desejam acabar ao fazerem o apelo. A gente quer ter a nossa sobrevivência. Ficar sendo rebaixado...?A gente pede à sociedade que enxergue a gente com outro rosto. Se enxergar a gente com o rosto que põem a imagem da gente, a gente não vai a lugar nenhum. Se eles abrir a porta um dia, para dar uma oportunidade a gente, a gente vai ser alguém (Ônibus 174, 2002, depoimento de menina de rua). É o homem mesmo produto do meio? Na visão das vozes, sim, pois o que poderiam esperar de um menino negro, pobre e órfão, traumatizado pelo assassinato da própria mãe e pelo descaso de um pai desconhecido que não a vida do crime? Construção coletiva, tal qual a imagem do cidadão ideal está a do bandido desleal, que encontra nas intempéries da vida as bases para ser um marginal. É como disse o professor de capoeira que conviveu com o jovem. O Sandro é um exemplo dos meninos invisíveis que eventualmente emergem e nos confrontam com sua violência. Um grito desesperado, um grito impotente. A nossa incapacidade de lidar com nossos dramas, com a exclusão social, com o racismo, com as estigmatizações todas, com todos estes problemas. Nós vivemos, aprendemos a viver tranquilamente com os Sandros, com as tragédias, com os filhos da tragédia. Isso se converteu em parte do nosso cotidiano. A grande luta destes meninos é contra a invisibilidade: nós não somos ninguém ou nada se alguém não nos olha, se não reconhece nosso valor, se não preza nossa existência, se não diz a nós que nós temos valor. Não devolve a nós a nossa imagem com brilho de alguma vitalidade, de algum reconhecimento. Estes meninos estão famintos de existência social, famintos de reconhecimento. O menino negro pobre, qualquer menino, nas grandes cidades brasileiras, transita pelas ruas invisível. Há duas maneiras de se reproduzir esta invisibilidade: este menino é invisível porque nós não o vemos [...] ou porque projetamos sobre ele uma caricatura, um estigma, um preconceito (Ônibus 174, 2002, depoimento do professor de capoeira de Sandro). O menino marginalizado que sonhava aparecer na TV tomou para si a responsabilidade de reger a orquestra composta por policiais militares, agentes do Bope/RJ, autoridades, repórteres e espectadores. Sandro acabou adquirindo voz que, na ânsia por se fazer ouvida, acabou chamando para si, de maneira irresponsável e não planejada, todas as atenções no momento do sequestro. Mais uma vez ele é visualizado como vítima. Tinha uma coisa dupla, uma coisa ambígua no que ele tava fazendo. Ou ele queria que a gente fingisse. Ou realmente ele ia matar. Ai de repente parece que ele se sentiu mal com aquilo. Mal com eu estar buscando consolo nele mesmo, nele que queria me matar ou que tava encenando me matar. Eu não sabia se ele tava fingindo ou se não tava fingindo. Até mesmo se ele tivesse fingindo, nada ia poder garantir que qualquer esbarrão, qualquer pressão a mais na arma, ele poderia atirar. Então mesmo que não fosse a intenção dele atirar, o tiro poderia acontecer (Ônibus 174, 2002, depoimento de refém). Dali em diante o descontrole tático e emocional dos policiais que culminou no desfecho trágico e o que restou foi a imagem de vítima incompreendida retratada no discurso do filme documentário. A voz da tia de Sandro reitera esta afirmativa ao lamentar a morte do sobrinho na viatura, bem como a declaração de uma das vítimas do sequestro. Tudo é violência. Ele não ia matar ninguém ali dentro do ônibus [...] ele nunca matou ninguém, ele nunca ia matar ninguém (Ônibus 174, 2002, depoimento da tia de Sandro). Eu tinha em mente que ele não queria machucar ninguém, que ele só queria fugir... (Ônibus 174, 2002, depoimento de refém). O menino de rua entrevistado no começo do documentário reforça a estigmatização da condição social dos excluídos, estes sempre a perderem tudo e o mínimo, sendo a vida encarada como “assim mesmo: um dia ganha, um dia perde”. Considerações Finais O gênero filme documentário é mais que um produto midiático no qual o diretor responsável é capaz de imprimir seu ponto vista ideológico pessoal. No caso específico da película Ônibus 174, o filme não deixa de ser uma prática discursiva, portanto comunicativa, com a oferta de possibilidades variadas de interpretações, de sentidos quanto às diversas declarações presentes no documentário. Uma prática comunicativa construída por um longo processo histórico-social ocorrido no Brasil e do qual sofre influências nítidas que permitem a construção de sentidos múltiplos quanto às circunstâncias que conduziram Sandro do Nascimento à criminalidade e, sucessivamente, à morte. Um dos sentidos principais contidos no documentário é que Sandro trata-se de uma vítima da exclusão social, elemento constituinte da organização da realidade brasileira. O discurso de José Padilha é notadamente influenciado por uma ideologia que remete como causas da exclusão o processo de formação histórica, social e econômica do Brasil, baseada na marginalização de grupos humanos específicos e que vivem, na maioria, atualmente nas favelas e nas ruas das grandes metrópoles. Tais fatores são apontados também como desencadeantes da violência urbana, o tráfico e o uso de drogas e a mendicância nas cidades brasileiras, inclusive no Rio de Janeiro. É de forma intencional que o diretor de cinema apresenta depoimentos com declarações sobre a trajetória de Sandro, ora violento por causa das drogas e capaz de cometer delitos graves, ora como alguém que pretendia sair do crime, mas que não encontrava meios de fugir do destino. Fado ao qual deveria cumprir em virtude do que já está estabelecido na própria estrutura socioeconômica e histórica do país. Estrutura esta que relega aos excluídos notadamente negros, índios, mestiços e brancos pobres, uma vida de carências de todas as espécies (econômica, educacional e afetiva) e de violência. Enfim, uma existência marcada pela marginalidade. A presença de várias vozes no discurso de Ônibus 174, a chamada polifonia discursiva, é confirmada explicitamente pelo uso intencional das afirmações feitas pela assistente social Yvonne Bezerra de Mello; pelo depoimento da mãe adotiva de Sandro, a Dona Elza; e também do sociólogo Luís Eduardo Soares e do carcereiro Mendonça, na época lotado na 26ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro, onde o Sandro havia passado uma temporada preso. Todos esses personagens que participam do documentário não foram identificados no filme por algum propósito que permanece desconhecido. No interior dessas vozes, a polifonia também é visível, uma propriedade intrínseca dos discursos em manterem ligações permanentes com enunciações passadas. Os discursos, ainda como práticas sociais que formam a realidade perceptível, carregam traços ideológicos de quem os enuncia. A partir da análise do discurso presente no filme documentário Ônibus 174, foi possível averiguar que a vitimização de Sandro ratifica visões pré-constituídas de grupos marginalizados e que se repetem em todos os tipos de produtos midiáticos, seja na televisão, no rádio, nos jornais impressos, incluindo os filmes documentários. Referências Bibliográficas ARAÚJO, Inesita. A reconversão do olhar. São Leopoldo: Editora Unisinus, 2000. BARROS, Diana L. P. de. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In: Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade em torno de Bakhtin. Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin (Orgs.). São Paulo: Edusp, 2003, p. 1-9. FERREIRA, Érika Alves. Ônibus 174 e a Representação do Real. 2004. 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