5600 1037 1 2009 Distribuição Gratuita Nº 009 02 | Fundamento Jornal Umbandista Português 2012 Índice Palavra do Dirigente Palavra do Dirigente 02 O convidado escreve 02 «Pai Cícero do Maranhão» 03 Sem folha não há Orixá 03 «A Samambaia» Reportagem 04 «Os Elementos na Umbanda» (Parte II) 05 Entrevista 06 «Mestre Rivas Neto» 07 Umbanda no Mundo 07 A ATUPO no «XXII Rito de EXU - O Guardião do Axé e do Destino» II Congresso de Sacerdotes e Sacerdotisas das Religiões Afro-Brasileiras 08 Uma Lenda «Lendas de Exu» Jornal Umbandista Português Propriedade da Equipa técnica: Revisão Mary Nogueira Director do Jornal Cláudio Ferreira Director de Conteúdos Cláudio Ferreira Fotografia Fernando Silva Mary Nogueira Miguel Faria Paulo Fernandes Director Comercial Frederico Castro Edição Gráfica Paulo Fernandes Chefe de Redacção Fernando Silva Redacção Cláudio Ferreira Fernanda Moreira Leonel Lusquinhos Mary Nogueira Vitorino Camelo Pa i C í c e r o do Maranhão N Ficha Técnica Fundamento Saudações a todos os Leitores! Mais um ano se passou! Quero agradecer a todos os que fizeram parte deste jornal, quero agradecer às famílias de santo por mais um ano dedicado à Umbanda, religião que continua se expandindo e acreditando em um mundo melhor. Quero desejar a todos os novos filhos, que adentram nas Falanges de Luz da Umbanda, seriedade e compreensão. Por vezes, é um caminho duro, quando realmente é dedicado a levar a verdadeira razão de existir! Sua existência está em levar a coragem de continuar a quem pensa em desistir, em ensinar a amar! Enfim, levar a cura aos males do espírito, da mente, do físico e emocional, pois sem isso não há razão para que façamos a Umbanda continuar! Para aqueles que acreditam que a Umbanda é uma profissão para ganhar dinheiro ou para alimentar seu Ego e que não partilham o desejo de caridade, da harmonia no Ser, de compreender as diferenças, ou o princípio da ajuda a todos os nossos irmãos na Terra, sentem no banco da assistência de um Templo de Umbanda, conversem com o preto velho, caboclo ou baiano que, com certeza, ele lhes mostrará a Luz que precisam para encontrar o seu caminho. Que o manto branco de nosso Pai Oxalá nos cubra de Luz, a fim de vermos nossas imperfeições, para assim podermos corrigi-las! Pai Claudio Contacto [email protected] asci aos 22 de julho de 1960, na cidade maranhense de Codó a 300 km da capital São Luis. Venho de uma tradicional família de praticantes de religiões Afro-Brasileiras. Meus avós, tanto paternos como maternos, foram cultuadores de “Vodunssos”, nome dado às ancestralidades Africanas, cultuadas na região de Codó, por se tratarem de etnia diferente dos JegesNagôs, que predominaram aqui em São Luis. Naquela localidade, foram cultuados os voduns Cabindas que, por uma questão de linguagem, lá são conhecidos como “vodunssos”, como já foi mencionado anteriormente. Os vodunssos foram entidades cultuadas dentro do Terecô de Codó. TERECÔ. Religião de matriz africana originária da cidade de Codó, fundada naquela cidade por negros escravos de varias etnias (Bantos, Cabindas, Cacheus, Angolanos, Jejes, Nagôs entre outras...). Com o processo de urbanização do Terecô, a exemplo de outras religiões de matriz africana no Brasil, os referidos vodunssos do terecô cederam cada vez mais espaços a outras entidades não africanas, como os encantados, caboclos, boiadeiros, indígenas etc... Sempre tive uma participação intensa dentro dos rituais do Terecô, pois a minha mãe biológica, a senhora Maria do Caboclo 7 flexas, é sacerdotisa do Terecô há mais de 50 anos. Ela é a guia do terreiro do pai de santo Bita do Barão, tendo a sua casa o nome de “ Tenda Espírita de Umbanda Rainha Yemanjá”. O carro chefe daquele espaço espiritual ainda é o tradicional Terecô codoense, no qual se praticam alguns pontuais ritos característicos do Tambor de Mina. A senhora Maria do Caboclo 7 flexas já possui sua própria casa espiritual, a Casa Kamafeu de Oxossi, que é a única casa de São Luis com raízes do Terecô de Codó, da qual eu sou presidente, sendo a primeira pessoa na hierarquia da mesma. E na Tenda Espírita de Umbanda Rainha Yemanjá, tenho um cargo que corresponde aos Ogãs do Candomblé, onde organizo todos os abatazeiros (tocadores de tambor) e sou responsável por puxar os pontos de alguns rituais do Tambor de Mina naquela casa. Minha trajetória no Tambor de Mina é recente para os padrões da maioria dos praticantes dessa religião, pois totalizando o período do meu ... - Cividade lo Pereira, 75 Rua D. Gonça 261 021 aga - Tel. 253 4700-032 Br www.umbanda.pt www.atupo.com Fundamento | 03 Jornal Umbandista Português 009 ... envolvimento com o Tambor de Mina faz 15 anos que sou filho da Casa Fanti-Ashanti. Tive a minha iniciação naquela casa há 5 anos, na categoria de Vodunsu-Asissohê (iniciado sem feitura completa, mas com voduns assentados) Meu vodum ou meu senhor (tratamento dispensado a essas divindades africanas aqui no Maranhão) é Obaluayê, como é mais conhecido popularmente, que pertence à família de Omolu, Acossi Sapktá, como são conhecidos aqui no Maranhão. Sou filho de Sapktá (vodun jeje) e Oiá (vodun Nagô), ou seja, meu senhor e minha senhora respetivamente, os donos da minha cabeça. Dentro do Terecô, dou passagem a outras entidades conhecidas como katiços, encantados e outros da família de Toi Boçu Légua, o grande vodun Cabinda, que se embrenhou nas matas codoen ses e ficou conhecido por lá como L é g u a Boji Buá da Trindade. Aqui em São Luís, além dos exclusivos jejes que fundaram a grande Casa da Minas (Querebetam de Zomadônu), o culto aos voduns Jejes não deu origem a outras casas ou terreiros dessa etnia. A referida casa já está num processo de praticamente extinção. A Casa de Nagô Abioton foi a que deu origem ou formato a todas as casas de Tambor de Mina no Maranhão e no Brasil. Foi muito grande a população de negros escravizados que vieram para o Maranhão, em meados de 1855, provenientes da Costa do Ouro, São Jorge de El Mina, atualmente Gana. Por isso, genericamente, ficaram conhecidos por aqui como negros minas, e como todos eles celebram seus rituais aos sons do tambores, essas novas religiões de matriz africana receberam o nome de Tambor de Mina. O Tambor de Mina foi organizado aqui no Maranhão, em forma de nações, de acordo com a procedência étnica. Como já foi citado, os terreiros oriundos de outras etnias com um número mais reduzido de adeptos, entraram em extinção, por não terem Sem folha não há Orixá praticantes que dessem uma continuidade, entre eles os Cabindas, Haussas, Gibô, Mataranas, Felupes, etc.,ficando apenas todos os que tiveram a influência do Nagô Abioton. Fonte: Casa Kamafêu de Oxossi. Rua Nossa Senhora da Vitória, nº 07 Praia do Araçagy. São Luis- Maranhão - Brasil A Samambaia N esta edição do nosso jornal vamos falar um pouco sobre uma das plantas mais antigas que existe no nosso planeta a Samambaia. Há milhões de anos atrás, samambaias gigantes cobriam a Terra de verde e propagando-se por meio de esporos ou pela divisão de seus rizomas. Estas plantas são mesmo muito antigas, tanto que várias das famílias das samambaias já nem existem mais. O nome "samambaia" vem do tupi "ham ã'bae" e significa "aquele que se torce em espiral". São nove as famílias que permanecem na nossa actualidade, reunindo cerca de 10 mil espécies diferentes, existindo por isso uma, variedade de tamanhos e formas, lembrando rendas, chifres, espinhas de peixe, etc. Da enorme quantidade de espécies que existem destaca-se a Dryopteris filix-mas, que é uma das mais comuns e fácil de encontrar. CARACTERÍSTICAS: Planta perene com rizoma subterrâneo e escamoso, dando origem a folhas, de até 90 cm de tamanho, inicialmente enroladas e cobertas de escamas castanhas A samambaia é uma planta assexuada produtora de esporos. Por isso, ela representa a fase chamada esporófito Em certas épocas, na superfície inferior das folhas das samambaias formam-se pontinhos escuros chamados soros. O aparecimento dos soros indica que as samambaias estão em época de reprodução (em cada soro são produzidos inúmeros esporos). Quando os esporos amadurecem, os soros abrem e caiem no solo húmido; cada esporo pode germinar e originar um protalo. CULTIVO: Manter a planta em local sombreado fora do vento (evite trocá-la de lugar); No verão irrigar duas a três vezes por semana; no Inverno irrigar 1 vez por semana; Eliminar ramos secos ou doentes; Adubar uma vez por mês. MEIOS DE UTILIZAÇÃO: Infusões; Banhos INDICAÇÕES TERAPEUTICAS: A samambaia pode ser utilizada em casos de gripe, meningite, pneumonia, sarampo, e vermes. PROPRIEDADES TERAPÊUTICAS: A samambaia tem como propriedades ser: anti-bacteriana, anti-viral, anti-diarreica e anti-helmintica. CONTRA INDICAÇÕES: As contra indicações da samambaia estão relacionadas com a ingestão da infusão. Por isso não deve ser utilizada durante a gravidez e em situações de patologia do coração. Leonel Lusquinhos Fontes: http://www.uesb.br/flower/samambaia.html; http://www.sobiologia.com.br/conteudos/Reinos4/pteridofitas.php; http://www.plantasmedicinaisefitoterapia.com/plantas-medicinais-samambaia.html; http://www.gardensandplants.com/uk/plant.aspx?plant_id=1163; http://plantas-medicinales.servidor-alicante.com/plantas/helecho_comun www.umbanda.pt www.atupo.com 04 | Fundamento Jornal Umbandista Português Reportagem A Umbanda, como religião anímica, encontra bases fundamentais na manifestação religiosa imanente aos Elementos da Natureza, assim como aos fenómenos naturais, e que sustentam a sua teosofia de forma mais ou menos abrangente. Nesta perspetiva, a Terra corresponde à figura da “Grande Mãe”, sentida ao mesmo tempo como fonte de vida e de ameaças à mesma, pois da Terra proveem os seres vivos e é para ela que os mesmos regressam. Não poderíamos existir da forma que somos sem a Terra, e o nosso planeta é uma manifestação divina deste elemento vivo. Sendo que a verdadeira energia da Terra existe também dentro de nós e em todo o universo, ela é representativa também da energia divina atribuída a Orixás como Ogum, Omulú ou Oxóssi. Lembremos, para dar um exemplo, dos poderes curativos presentes nas folhas e ervas medicinais, em infusões ou cataplasmas. A Água é de igual forma associada à vida, à saúde e à abundância, sendo, no entanto, a palavra “fertilidade” que mais desperta o nosso subconsciente. Oxum e Iemanjá são, para dar dois exemplos, representativas da “ânima” (ou vitalidade) desse elemento. O mesmo se passa com o Elemento Fogo, especialmente associado aos Orixás Xangô, Iansã e Exu e no qual encontramos uma estreita relação com os processos de transformação - estejam eles relacionados com a transformação magística externa ou a transformação pessoal. O Ar é comummente associado ao Orixá Oxalá, princípio simbólico de todas as coisas, elemento essencial para a dádiva da Vida. Nas religiões com presença de matriz Africana, o Ar é ainda associado a outros Orixás, como Iansã, tantas vezes considerada a dona do “sopro da vida” no momento em que nascemos. Em todos esses Elementos encontramos representações das forças divinas de vários Orixás, assim como, de igual forma, encontramos Orixás cuja essência está presente em mais que um Elemento da Natureza. Com o exemplo do Orixá Iansã, além da sua presença vibratória nos elementos Ar e Fogo, como já referido, não podemos esquecer a sua www.umbanda.pt 09 | 10 | 2010 2012 Setembro| Outubro | 2010 Os Elemen ligação com o Elemento Terra, tão presente nas suas Lendas de origem Africana, e na associação da linha vibratória ligada ao culto dos antepassados. Perante estas ligações, podemos desenvolver então o conceito dos Elementos como meio de “Transmutação” na Umbanda, por meio da nossa aproximação às próprias energias da Natureza. A Umbanda apresenta como um dos seus princípios fundamentais, dentro da mensagem religiosa que carrega, a prática da caridade e do amor fraternal, a humildade e a paz entre os seres. E é no entanto assim que toma o mote para se propor, por intermédio da magia, transformar a própria existência, na sua condição humana, promovendo modificações existenciais que permitam ao ser humano melhorar-se, e, a partir daí, melhorar a sua vida, numa lógica evolutiva. Essa magia consiste, em grande parte, na aproximação do Homem com a Natureza, manipulando, em comunhão com esta, os elementos que ela própria colocou à nossa disposição. Utilizando variadas ritualísticas, é precisamente através da utilização dos Elementos que consegue a transmutação dos valores energéti- cos necessária, tanto na busca do equilíbrio pessoal, como na prática da própria ritualística da Umbanda. Como os Elementos estão em toda a parte e em todas as coisas, inclusivamente formando o nosso corpo físico, é, de certa forma, bastante fácil compreendê-los e compreender a sua essência e poder contidos não só em si próprios, como – pela conjugação de vários Elementos - na sua transmutação. O Elemento Ar, na sua(s) duplicidade(s), é ao mesmo tempo de atmosfera sensível e volátil. Está intimamente relacionado com quatro conjuntos de ideias: o sopro da criação da vida, a palavra criadora; o vento como ar dinamizado e direcionado, e, finalmente, o próprio espaço como meio onde se produzem os movimentos e de onde emergem os processos de criação e desenvolvimento da vida. Foi já referida em edições anteriores a força mágica da fumaça, entre a www.atupo.com Fundamento | 05 Jornal Umbandista Português 006 009 ntos na Umbanda representação do ato de libertação da forma como imediata dissolução do ar, e a manifestação conjugada de vários elementos, como o Fogo, o Ar, a Terra e a Água. Nesta forma, o Ar atua como intermediário entre o mundo físico e o mundo espiritual envolvente e invisível, tornando-se assim um agente mágico capaz de transformar eficazmente a intenção com que a fumaça é libertada e direcionada. O Elemento Água estende-se a toda a matéria animada e está ligado ao princípio da fertilização e geração. Na sua transmutação enquanto Elemento, desde que “o sol aquece as águas da superfície do mar ou rios q u e eva p oram, sobem em forma de va p o r p a ra formarem as nuvens, até que as massas frias polares entram em contato com as nuvens e a água se condensa precipitando-se para o solo em forma de gotas, e uma vez no solo, que a água penetra na terra e, em seu interior, sofre transformações e é impulsionada para cima pelas forças da pressão causada pela nossa atmosfera, saindo nas fontes para forma os rios que, pela lei da gravidade, correm de volta para o mar”, encontramos um princípio de vitalidade infindável. A Terra, Elemento mágico de transformação, incorpora os segredos da purificação pela transformação. No seio da terra encontra-se o mistério da vida e da morte, onde a semente adquire a força vital para nascer e transformação do corpo se processa na decomposição ou simplesmente, como é mencionado em inúmeras religiões, no regresso da matéria às origens. A sua capacidade é de transformação, conjugada com o Fogo. E no entanto, a pedra também é Terra e representa o símbolo da unidade, da durabilidade e da força estática. Representa a solidificação do ritmo criador, ao contrario do ritmo biológico, submetido às leis de mudança, vida e morte. Quanto ao Elemento Fogo, é considerado o símbolo da própria alma e vidas humanas, desde tempos imemoriais. É ao mesmo tempo visível e invisível, uma chama etérea e espiritual que se manifesta através de uma chama corpórea e material. É representativo, na sua essência ígnea, do próprio princípio divino e da faculdade de transformação da vida como a imaginamos. Transcende – como os outros elementos – o plano do bem e do mal. O fogo destrói assim como aquece e abranda. Todos estes elementos apresentam, na sua riqueza, princípios activos e passivos. É precisamente pela sua conjugação que a Umbanda faz manifestar a sua Magia. No seio das suas ritualísticas, encontramos trabalhos de manipulação dos Elementos, seja pelas Entidades Espirituais, seja por intermédio de oferendas. As oferendas materializadas aos Orixás tão somente associam os Elementos – através das velas, do charuto da água ou outros líquidos, das folhas, dos frutos, etc. – que conjugados e com a direção dada pela nossa própria “ânima”, abrem verdadeiros portais espirituais, onde se processam trocas energéticas imensuráveis. Como símbolo materializado da própria vida, o “peji” ou altar de um Templo de Umbanda congrega todos os Elementos, em comunhão uns com os outros. Os Elementos, mais do que fazer parte da nossa vida, são aquilo que faz com que seja possível essa dádiva em si e, se assim quisermos, serão um meio para trabalharmos, visando o nosso aperfeiçoamento e alcançar assim o Criador, a essência Divina. Como na história do “menino Zélio”, que, com um simples gesto, direcionando a sua vontade, despoletou à sua volta a manifestação daquilo que hoje consideramos parte intrínseca das nossas vidas, enquanto trabalhadores na Seara Umbandista. Vitorino Reis Camelo Pai Cláudio de Oxalá www.umbanda.pt www.atupo.com 06 | Fundamento Jornal Umbandista Português 2012 Entrevista MESTRE RIVAS NETO Yamunisiddha Arhapiagha (F. Rivas Neto), um dos escritores mais conceituados do meio umbandista na atualidade, mestre-Raiz da Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino, reitor e professor da FTU (Faculdade de Teologia Umbandista), discípulo de W. da Matta e Silva – o Mestre Yapacani – por quase vinte anos, graduado em Medicina e especializado em Cardiologia. Fundamento-Num país onde ainda existe a intolerância religiosa, como se consegue que uma Faculdade de Teologia Umbandista seja autorizada e credenciada pelo MEC? Mestre Rivas Neto - Veja, nós vivemos num país que de 64 a 85 esteve sob o regime da ditadura e nós tivemos muitas sanções, muitas d i f i c u l d a d e s n e s s a é p o c a . M a s m u i to s umbandistas, não todos, talvez, muitos adeptos das religiões afro-brasileiras sempre fizeram uma resistência a esse mau estado de direito e felizmente, em 1985, nós voltamos a um estado democrático. Então, esse estado democrático, ele permite que você tenha isonomia (…), já que o estado é laico(...) então você tem os mesmos direitos de outros processos confessionais. Então nós, pautados nesse direito e tendo tido todos os requisitos que o MEC exigia(…) como professores gabaritados, como professores titulados no grau de mestre p'ra cima, então nós conseguimos (…) mesmo assim a duras penas (…) eles pensavam que (…) fossem encontrar o pai de santo dando passes, o pai de santo com charuto (…) mas nós estávamos falando de teologia que é um pouco diferente de religião. A Teologia, ela procura ver a religião, o senso crítico da religião. Então o que nós fizemos? Quando as pessoas vieram aqui para reconhecer, eles se assustaram porque estavam pensando que iam encontrar tudo aquilo que falei p'ra vocês. E eles viram que não, que tinha realmente sacerdotes, mas que tinha pessoas que além do sacerdócio também se interessavam pela parte académica (…) e eles ficaram muito felizes com o nosso PDI e esse PDI tornou-se referência na época para todas as instituições de teologia, porque no Brasil é há pouco tempo que as teologias estão no quadro do ministério da educação. F-A faculdade ministra apenas cursos e estudos relacionados com a Umbanda ou abrange outras religiões? Que matérias são cursadas? É condição sine qua non que os professores que trabalham na FTU sejam umbandistas? MRN – Não! Não! Embora aqui a maioria sejam umbandistas, mas não todos. Porque então e st a rí a m o s se n do exc lu siv i st a s. E n ó s pretendemos incluir todos e como é uma área académica, então é necessário que você traga outros professores, porque eles mesmo vão conhecendo as nossas coisas (…) e eles mesmo vão levando para outras instituições o que eles vêem. (…) Então não é necessário o sujeito ser umbandista ou das religiões afro-brasileiras. A condição primeira é que ele seja titulado no grau de mestre ou no grau de doutor (…) É isso que o MEC exige. www.umbanda.pt Nós estudamos aqui todas as religiões afrobrasileiras com vários académicos e sacerdotes, nós estudamos todas as religiões comparadas (…) e disciplinas que deem subsídios a isso. Por exemplo, sociologia, teologia, antropologia, epistemologia, hermenêutica, uma língua, no caso o Inglês, pensamos em música, na música sacra (…) Imagina a dificuldade que nós tivemos, porque a academia, ou seja (…) a parte universitária é essencialmente calcada na tradição escrita, como são as tradições do livro. As religiões do livro, principalmente o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Eles têm livro: o judaísmo tem o Torá, o cristianismo tem a Bíblia, o Evangelho e o islamismo tem o Corão. E nós não, a nossa tradição é no “gógó” (…) é de boca p'ra ouvido. Então nós precisámos aqui na época de adaptar. Então o que faz a teologia? A teologia tem dois braços: um braço dela, através do saber religioso fazemos a conexão com a ciência, através da antropologia, da sociologia e de outras disciplinas, a filosofia de direito (…) que é muito importante, e outro onde nós estudamos as crenças e as religiões para que nós venhamos então a ter contacto com as pessoas, com a fé, não só com a fé institucionalizada, mas com a fé sobrenatural, aquela fé que nasce no íntimo do indivíduo. F-Então na FTU vocês formam sacerdotes ou teólogos? MRN- (…) Aqui eu posso formar o sacerdote da nação, do Jarê, mas eu acho que isso é do terreiro como o pai de santo tem de se preocupar não em fazer teologia mas em fazer filho de santo, porque eu aqui eu poderia fazer quantos filhos de santo? Tenho muitos filhos de santo, mas não da faculdade! (…) Vamos ensinar as religiões afrobrasileira, mas não para fazer sacerdotes. O sacerdote se faz no templo. Eu vim do culto da Nação, que aí vocês chamam de Candomblé. Mas não pode ter uma faculdade do candomblé, uma faculdade do jarê, (…) do babaçuê, do xambá, do toré, da jurema, da umbanda. Isso é feito no terreiro com o pai de santo! F- Em Portugal, a Umbanda é uma religião que vai ganhando cada vez mais “adeptos”. Em Braga, na ATUPO (Associação Templo de Umbanda Pai Oxalá) temos uma comunidade que procura cada vez mais conhecer e estudar a origem e os fundamentos da religião. Estando conscientes da importância de uma formação mais institucionalizada e académica, como poderíamos fazer chegar a essas pessoas os saberes da FTU? MRN- (…) Eu só queria deixar claro uma coisa para vocês: a Faculdade de Teologia não veio para formar sacerdotes, ela veio para formar, para dar formação para teólogos, que nós não tínhamos teólogos com ênfase em religiões afro-brasileiras. A FTU nunca quer ocupar a posição dos sacerdotes (…). O fundamento do sacerdote é fundamental e tenho a certeza que os sacerdotes também estão interessados , quando falo em teologia, de mostrar essa parte mais académica que acontece nas religiões afro-brasileiras, na umbanda mais especificamente e a faculdade se interessa por isso fazendo o quê? Aqui no Brasil nós temos um curso de graduação, um curso de bacherlato (…) é um curso universitário como outro qualquer, todos os dias de 2ª a 6ª feira, das 7 às 11 horas. E é um curso pesado (…) porque é um curso universitário com todas aquelas disciplinas que eu falei p'ra vocês. Como é que a gente vai fazer para aquelas pessoas que não têm formação, que não têm um curso médio? Nós temos um curso que chamamos extensão universitária. É um curso que não exige (…) nenhum nível de escolaridade e dá o mesmo curso de uma forma mais simplificada e dá ênfase à parte prática da nossa religião, não só de uma umbanda, mas das várias umbandas, (…) de forma presencial ou tele presencial. (…) Na questão das pessoas que já são académicas, nós temos agora um curso (…) de especialização (…) com professores como Reginaldo Prandi, Mundicarmo e Sergio Ferreti (enfim, tem uma porção de professores…) onde elas vão ser especialistas em teologia das religiões afro-brasileiras (…) mas isso já a um nível de pósgraduação. Mas e os que não têm o curso universitário? Como vão fazer?(…) o mesmo curso a pessoa pode vir assistir, só que ela não vai receber no final o curso de especialização porque ela (…) fez um curso de extensão universitária (…) você não precisa comprovar a escolaridade. Mas você não vai ter um curso superior…vai ter uma adaptação a isso. Mas é bom, porque os pais de santo (…) vão estar se atualizando… Então a faculdade tem procurado de alguma forma levar a todos uma cultura e um respeito incondicional à cultura (…), à pessoa, fortalecendo a identidade dos adeptos das religiões afro-brasileiras… F-De que outras formas a FTU contribuiu para a divulgação e unificação da Umbanda no Brasil de hoje? MRN- Certo. Eh, a pergunta de vocês é muito inteligente, muto instigante, inclusive. A nossa finalidade era e é demonstrar que as religiões afro-brasileiras (quando eu falo de religiões afrobrasileiras estou falando de uma unidade de religiões que tiveram influências indígenas, africanas e indo-europeias, desde a umbanda branca com influências kardecistas até aquelas que têm uma influência direta do candomblé, Angola (…) e do candomblé da nação (…). Mas então, dessa umbanda branca até essa umbanda traçada (umbanda omolocô) há várias umbandas. (…) Mas o que a faculdade tenta promover? Primeiro dizer que a Umbanda é uma linguagem ou uma ideia que se apresenta de várias linguagens e todas as linguagens são certas, (…) www.atupo.com Fundamento | 07 Jornal Umbandista Português 009 concernentes(…) na medida em que elas procuram demonstrar três coisas principalmente: ela tem uma identidade forte (…), mais do que isso, ela tem uma vivência nesse contexto e ela obviamente tem um sentido de unidade com essas coisas, que no momento que você começa a fragmentar (…), vai ficando com feudos, você vai ficando com guetos e o que é que isso parece? Para Umbanda? Por isso é que eu digo, você pode unir a Umbanda (…). Unir é aceitar as diferenças (…), nós temos de ter respeito pelas diferenças. Ao unificar, unificar quer dizer codificar. Se eu codifico, eu vou engessar ela (…), não vou permitir que ela tenha um processo de ser uma unidade aberta, vou fechar ela e isso fere a tradição oral. E se eu vou codificar, vou codificar por qual? Por essa daqui, por essa ou por essa? Então, isso fica muito difícil. Eu acho que foi um mecanismo de auto preservação da espiritualidade. A espiritualidade fez com que nós pudéssemos fazer de várias formas estas religiões afro-brasileiras. religião é fundamental para que haja paz no mundo. Porquê? O religioso deve ser aquele indivíduo que está sempre buscando uma religação com o divino, com o sagrado e esse sagrado, quando colocado no coração (…) das pessoas, ele deve mudar, do ponto de vista institucionalizado de um país, ele deve mudar o aspeto social, as desigualdades sociais ( eu sou a favor das diferenças, não das desigualdades), da mesma maneira que você faz com a política. Eu não quero ser político, mas eu posso fazer política com pressão, como cidadão eu posso fazer pressão social e isso vai mexer na economia, porque hoje, em todos os países, a política é refém da economia, porque quem é que financia os políticos? Então, a gente procura fortemente fazer isso. F-Não posso deixar de perguntar-lhe, enquanto discípulo de um dos maiores escritores e Mestres da Umbanda, qual foi, para si, o maior legado deixado por W.Matta e Silva? MRN- (…) Eu tive uma convivência com o velho F-Segundo as suas palavras, “Hoje a FTU Matta, o Pai Matta, eu já tinha terreiro desde 68. trabalha pela convergência dos povos, das religiões (…) O Mestre que eu conheci em 71, as pessoas e das tradições culturais.” De que modo? perguntam, mas como era esse Matta, ele era MRN- Desse modo, desse modo, procurando diferente? Eu falo para as pessoas o seguinte. respeitar todas as culturas. A FTU ela tem esse Quem conheceu o velho Matta (…) ele era uma diálogo a que nós chamamos diálogo “inter- pessoa … se você ler o livro, você vai achar que ele religioso”; nós procuramos de todas as maneiras era um cara duro (…) um sujeito austero, ele entrar em contacto com as diversas religiões e escreveu para mudar uma série de coisas que ele tentar, obviamente, não ocupar o lugar dessas achava que não eram condizentes e tinha um religiões (olha, você tem que fazer a minha religião modo de ser. Mas era uma pessoa humana, uma ou fazer a sua), mas o respeito incondicional que pessoa essencialmente dócil, uma pessoa temos que ter, na medida em que achamos que a comum(…) mas o maior feiticeiro que eu conheci! (e o pior é que eu conheço muito feiticeiro no Brasil!), o maior curandeiro…Ele foi o primeiro sujeito que trouxe para o Brasil na umbanda o jogo do Ifá (…) No livro “Macumbas e Candomblés na Umbanda” está lá…ele mostra como a umbanda está dentro dessas coisas todas, num processo que ele chama de umbandização (…) O velho Matta mudou a estrutura daquela umbanda popular (algumas pessoas quiseram elitizar…) (…) era um cara simples, humilde que gostava de estar em contacto com as pessoas. Ele até dizia “ Rivas, meu filho, quem precisa da Umbanda são os sofredores e a maioria das pessoas tem problemas sérios, ou problemas espirituais que se refletem na saúde, nas coisas afetivas ou nas coisas financeiras!” (…) Então, por isso que eu falo que ele era um feiticeiro danado (…) Eu tive uma vivência com ele de dezoito anos e se alguém ler o livro dele e achar que aquilo é ele, ele está muito longe daquilo, porque a realidade da pessoa, principalmente nós que somos da tradição oral, muitas vezes o que você sente, você não consegue passar para o papel. É claro que aquilo é um norte para todos nós (…) o velho Matta foi aquele que mais observou as coisas de hoje e do futuro, é muito futurista. (…) Se eu pudesse definir numa coisa só, diria que o maior legado do da Matta e Silva foi o culto ao espírito, à essência das coisas, à essência que transcende toda e qualquer forma (…) Então acho que ele, de uma forma simples, pelo menos para os discípulos, gostava do que ele fazia, ele foi um marco e um exemplo de um cidadão do mundo. Eu tenho orgulho de ter sido filho dele! Mary Nogueira A ATUPO no XXII Rito de Exu Umbanda no Mundo O Guardião do Axé e do Destino | II Congresso de Sacerdotes e Sacerdotisas das Religiões Afro-Brasileiras No passado dia 22 de Outubro, a ATUPO, a convite da FTU (Faculdade de Teologia Umbandista), esteve presente no XXII Rito de Exu – O Guardião do Axé e do Destino / II Congresso de Sacerdotes e Sacerdotisas das Religiões Afro-brasileiras, realizado nas instalações da faculdade, em S.Paulo, Brasil. Casas representadas por dirigentes de vários estados do Brasil – entre outros, de S.Paulo, do Ceará, do Rio Grande do Norte, do Rio de Janeiro, do Mato Grosso - e de outros países, nomeadamente Portugal representado pela ATUPO e Paraguai com a presença de Pai António de Oxalá, manifestaram no Congresso, através de uma convivência pacífica e serena, as suas opiniões e posições no que concerne à diversidade religiosa. Vários foram os que, assumindo a necessidade de acabar com a intransigência religiosa e da premência em reconhecer e respeitar essas diferenças, concordaram com a ideia de que “a unanimidade não leva à união” e “que todos os ritos tenham o olhar de cada sacerdote e sacerdotisa!” Findo o Congresso, os presentes confraternizaram entre si, trocando impressões sobre as ideias partilhadas e sobre a diversidade religiosa. Muitos foram os dirigentes que se mostraram agradavelmente surpreendidos pela Umbanda que se faz em Portugal. www.umbanda.pt De seguida, mais de duas mil pessoas celebraram primeiramente o Orixá Omulu/ Obaluaie, através de um enredo toque-dança, protagonizado pelo Mestre Rivas Neto e seus filhos, O tema do enredo era a neutralização de tudo o que nos faz mal (as doenças, pestes) e a louvação de todos os benefícios trazidos pelo Orixá através dos seus pós de encantamento e de cura. De seguida, foi iniciado o rito de louvação a Exu, através da sua celebração e invocação. Após a chegada dos Exus e Pomba-Giras, todos os pais e mães de Santo passaram pela cabana de Omulu, onde o Exu de Mestre Rivas, S.Capa Preta, os aguardava para os saudar! Depois, a festa foi levada para a rua por todos os Exus e Pomba-Giras, pelo povo da rua, demonstrando que a Umbanda não se cinge às paredes de um templo, mas ela se abre às ruas, ao mundo que é de todos e para todos, independentemente da sua condição social! Aí se festejou, num misto de alegria e ruído, a liberdade religiosa e cultural e o anseio pelo fim da intolerância: dos céus se ouvia o fogo de artíficio e na rua ecoavam as gargalhadas dos Exus! De volta ao templo, a festa de louvação a Exu continuou, tendo sido abrilhantada ainda mais pela voz de Pai Élcio que também esteve presente neste ritual! Mary Nogueira www.atupo.com 08 | Fundamento 2012 Uma Lenda Exú ganha o poder sobre as encruzilhadas Exú não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão, nem artes, nem missão. Exú vagabundeava pelo mundo sem paradeiro. Então um dia, Exú passou a ir à casa de Oxalá. Ia à casa de Oxalá todos os dias. Na casa de Oxalá, Exú se distraía, vendo o velho fabricando os seres humanos. Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá,mas ali ficavam pouco,quatro dias, oito dias e nada aprendiam. Traziam oferendas, viam o velho Orixá,apreciavam sua obra e partiam. Exú ficou na casa de Oxalá dezesseis anos. Exú prestava muita atenção na modelagem e aprendeu como Oxalá fabricava as mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos homens, as mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina das mulheres. Durante dezesseis anos ali ficou ajudando o velho Orixá. Exú não perguntava. Exú observava. Exú prestava atenção. Exú aprendeu tudo. Um dia Oxalá disse a Exú para ir postar-se na encruzilhada por onde passavam os que vinham à sua casa. Para ficar ali e não deixar passar quem não trouxesse uma oferenda para Oxalá. (…) Exú tinha aprendido tudo e agora podia ajudar Oxalá. Exú coletava os ebós para Oxalá. Exú recebia as oferendas e as entregava a Oxalá. Exú fazia bem o seu trabalho e Oxalá decidiu recompensá-lo. Assim, quem viesse à casa de Oxalá teria que pagar também alguma coisa a Exú. Quem estivesse voltando da casa de Oxalá também pagaria alguma coisa a Exú. Exú mantinha-se sempre a postos guardando a casa de Oxalá. Armado de um ogó, poderoso porrete, afastava os indesejáveis e punia quem tentasse burlar sua vigilância. Exú trabalhava demais e fez ali sua casa, ali na encruzilhada. Ganhou uma rendosa profissão, ganhou seu lugar, sua casa. Exú ficou rico e poderoso. Ninguém pode mais passar pela encruzilhada sem pagar alguma coisa a Exú! A s lendas apresentadas foram selecionadas tendo em conta o vasto campo de atuação de Exu: ele é o Guardião das encruzilhadas, aquele que guarda a casa, que nos protege das emboscadas da vida, é a entidade que aconselha, que orienta, é o Exu que cura! A primeira lenda apresenta-nos Exu na Casa de Oxalá onde através do seu esforço e serviço é recompensado, tornando-se o orixá mensageiro, responsável pela comunicação entre o mundo dos Orixás (o “Orun”) e o mundo dos homens (o “Aye”) e portador das orientações e determinações dos Orixás para os humanos. É ele que estabelece a ligação entre os dois mundos, através da qual os homens oferendam os Orixás, para que Estes os ajudem e protejam. Mas a ele deve ser dada a primazia na entrega das oferendas, pois sem ele a comunicação não existe. A segunda lenda refere-se a Exu como responsável em assegurar o equilíbrio entre os dois mundos. A sua natureza é perfeitamente compatível com a natureza de Orunmilá, simbolizando assim a harmonia entre os dois mundos: a existência no mundo material (Aye)- e o nível sobrenatural (Orun). O restabelecimento da ordem, com a ajuda de Exu, pressupõe assim a ação de duas forças www.umbanda.pt Exu põe Orunmilá em perigo e depois o salva “(…) Exu colocou obis frescos na beira da estrada e lá os deixou. Exu foi e cumprimentou Orunmilá novamente. Orunmilá disse:- “Exu, meu amigo, estás vindo de Ouô mais uma vez?” Exu respondeu: “Os amigos devem duvidar uns dos outros? O que é, é!” Orunmilá desconfiou da situação. (…) Seguiu adiante e encontrou os obis deixados por Exu. Cansado da longa viagem, pegou os obis e começou a comer para refrescar-se. Nesse momento, um fazendeiro de Ouô apareceu. Trazia na mão um facão e o acusou de estar comendo os obis da sua árvore. Orunmilá argumentou que não tinha visto árvore alguma. Mas o fazendeiro não aceitou a desculpa de Orunmilá. E os dois lutaram. Na briga, o facão do fazendeiro feriu a palma da mão de Orunmilá. (…) Na entrada da cidade encontrou Exu.(…) Orunmilá e Exu entraram juntos em Ouô. O fazendeiro foi até ao rei acusar Orunmilá. (…) Aí Exu falou por Orunmilá perguntando ao fazendeiro como identificar o ladrão. O fazendeiro (…) disse que o ferimento na palma da mão de Orunmilá seria a prova. Exu, defendendo Orunmilá, pediu então que todos os cidadãos abrissem a mão. O rei concordou (…). E constatou-se que todos igualmente tinham um ferimento(…) O rei reconheceu de imediato a inocência de Orunmilá e ordenou que ele fosse indenizado pela falsa acusação. São muitas as tramoias de Exu. Exu pode fazer contra, Exu pode fazer a favor. Exu faz o que faz, é o que é. Exu leva dois amigos a uma luta de morte Certa vez, dois amigos de infância, que jamais discutiam, esqueceram-se, numa segunda-feira, de fazer as oferendas devidas para Exu. Foram para o campo trabalhar, cada um na sua roça. As terras eram vizinhas, separadas apenas por um estreito canteiro. Exu, zangado pela negligência dos dois amigos, decidiu preparar-Ihes um golpe à sua maneira. Ele colocou sobre a cabeça um boné pontudo que era branco do lado direito e vermelho do lado esquerdo. Depois, seguiu o canteiro, chegando antagónicas: mal e bem, céu e terra. A ambiguidade de Exu está também presente quando este aparece colocando Orunmilá em perigo e depois o salva. Esta lenda mostra Exu atuando: da mesma forma que coloca em nosso caminho obstáculos, dificuldades, tentações, de modo a que consigamos resgatar dívidas do passado, também nos defende e protege dos perigos que possam ameaçar a nossa caminhada. Exu, atuando numa vibração muito próxima da vibração do plano físico e sendo grande conhecedor do ser humano, nomeadamente das suas dificuldades, fraquezas, vícios e medos conhecedor de toda a experiência humana, é mestre na resolução de problemas de ordem material ou relacionados com dificuldades nos caminhos da vida, como dinheiro, emprego, disputas ou intrigas. Enquanto executor da Lei Kármica, atua de acordo com o merecimento de cada um, a favor da evolução. É Ele que, segundo a lenda, coloca as duas cores no boné. Ao fazê-lo, mostra que a verdade é relativa, pondo em questão o certo e o errado. Ao mesmo tempo instaura o caos, a dúvida e a instabilidade, que levam à briga e morte dos dois compadres. Mas Ele não é responsável pelo desfecho da trama, o à altura dos dois trabalhadores amigos e, muito educadamente, cumprimentou-os: -"Bom trabalho, meus amigos!" Estes, gentilmente, responderam: -"Bom passeio, nobre estrangeiro!" Assim que Exu afastou-se, o homem que trabalhava no campo à direita, falou para o seu companheiro: -"Quem pode ser este personagem de boné branco?" -"Seu chapéu era vermelho", respondeu o homem do campo a esquerda. -"Não, ele era branco, de um branco de alabastro, o mais belo branco que existe!" -"Ele era vermelho, um vermelho escarlate, de fulgor insustentável!" -"Ele era branco, tratar-me de mentiroso?" -"Ele era vermelho, ou pensas que sou cego?" Cada um dos amigos tinha razão e ambos estavam furioso da desconfiança do outro. Irritados, eles agarraram-se e começaram a bater-se até matarem-se a golpes de enxada.(…) (Lendas 1, 23 e 7 do Livro Mitologia dos Orixás de Reginaldo Prandi) seu desencadeamento foi uma escolha humana. Não culpemos Exu pelas nossas escolhas, atitudes, caminhos. Não façamos dele o Diabo. Muitas vezes, a sua própria manifestação ruidosa, provocante, à espera de uma reação, é uma forma de nos chamar a atenção para os nossos próprios defeitos, uma vez que é para o ser humano é sempre mais fácil ver o cisco no olho do seu irmão! A Exu atribui-se a reflexão especular, a qualidade de refletir o interior de cada um, exteriorizando todas as nossas verdades, desnudando-nos a alma. Ao fazê-lo, põe-nos de frente com o nosso Eu, tal qual ele é, com todas as qualidades e defeitos, permitindo assim que, ao conhecermo-nos de verdade, possamos transformar o nosso interior e conquistar o conhecimento necessário à nossa evolução. Citando Mario César Barcellos, em “Os Orixás e o segredo da vida: lógica, mitologia e ecologia”, “Exu é o nosso interior, é a nossa intimidade, o nosso poder de ser bom ou mau, de acordo com a nossa própria vontade. Exu é o ponto mais obscuro do ser humano e é, ao mesmo tempo, aquilo que existe de mais óbvio e claro!” Salve Exu! Laroiê! Mary Nogueira www.atupo.com