5600 1037
1 2009
Distribuição Gratuita
Nº 009
02 |
Fundamento
Jornal Umbandista Português
2012
Índice
Palavra do Dirigente
Palavra do Dirigente
02
O convidado escreve
02
«Pai Cícero do Maranhão»
03
Sem folha não há Orixá
03
«A Samambaia»
Reportagem
04
«Os Elementos na Umbanda»
(Parte II)
05
Entrevista
06
«Mestre Rivas Neto»
07
Umbanda no Mundo
07
A ATUPO no «XXII Rito de EXU - O Guardião do Axé e do Destino»
II Congresso de Sacerdotes e Sacerdotisas das Religiões Afro-Brasileiras
08
Uma Lenda
«Lendas de Exu»
Jornal Umbandista Português
Propriedade da
Equipa técnica:
Revisão
Mary Nogueira
Director do Jornal
Cláudio Ferreira
Director de Conteúdos
Cláudio Ferreira
Fotografia
Fernando Silva
Mary Nogueira
Miguel Faria
Paulo Fernandes
Director Comercial
Frederico Castro
Edição Gráfica
Paulo Fernandes
Chefe de Redacção
Fernando Silva
Redacção
Cláudio Ferreira
Fernanda Moreira
Leonel Lusquinhos
Mary Nogueira
Vitorino Camelo
Pa i C í c e r o
do Maranhão
N
Ficha Técnica
Fundamento
Saudações a todos os Leitores!
Mais um ano se passou! Quero agradecer a todos os que fizeram parte deste jornal, quero agradecer
às famílias de santo por mais um ano dedicado à Umbanda, religião que continua se expandindo e
acreditando em um mundo melhor. Quero desejar a todos os novos filhos, que adentram nas Falanges de
Luz da Umbanda, seriedade e compreensão. Por vezes, é um caminho duro, quando realmente é
dedicado a levar a verdadeira razão de existir! Sua existência está em levar a coragem de continuar a
quem pensa em desistir, em ensinar a amar! Enfim, levar a cura aos males do espírito, da mente, do físico
e emocional, pois sem isso não há razão para que façamos a Umbanda continuar!
Para aqueles que acreditam que a Umbanda é uma profissão para ganhar dinheiro ou para alimentar
seu Ego e que não partilham o desejo de caridade, da harmonia no Ser, de compreender as diferenças, ou
o princípio da ajuda a todos os nossos irmãos na Terra, sentem no banco da assistência de um Templo de
Umbanda, conversem com o preto velho, caboclo ou baiano que, com certeza, ele lhes mostrará a Luz que
precisam para encontrar o seu caminho.
Que o manto branco de nosso Pai Oxalá nos cubra de Luz, a fim de vermos nossas imperfeições, para
assim podermos corrigi-las!
Pai Claudio
Contacto
[email protected]
asci aos 22 de julho de 1960, na cidade
maranhense de Codó a 300 km da capital
São Luis. Venho de uma tradicional família de
praticantes de religiões Afro-Brasileiras. Meus
avós, tanto paternos como maternos, foram
cultuadores de “Vodunssos”, nome dado às
ancestralidades Africanas, cultuadas na região de
Codó, por se tratarem de etnia diferente dos JegesNagôs, que predominaram aqui em São Luis.
Naquela localidade, foram cultuados os voduns
Cabindas que, por uma questão de linguagem, lá
são conhecidos como “vodunssos”, como já foi
mencionado anteriormente. Os vodunssos foram
entidades cultuadas dentro do Terecô de Codó.
TERECÔ. Religião de matriz africana originária
da cidade de Codó, fundada naquela cidade por
negros escravos de varias etnias (Bantos,
Cabindas, Cacheus, Angolanos, Jejes, Nagôs entre
outras...). Com o processo de urbanização do
Terecô, a exemplo de outras religiões de matriz
africana no Brasil, os referidos vodunssos do
terecô cederam cada vez mais espaços a outras
entidades não africanas, como os encantados,
caboclos, boiadeiros, indígenas etc...
Sempre tive uma participação intensa dentro
dos rituais do Terecô, pois a minha mãe biológica, a
senhora Maria do Caboclo 7 flexas, é sacerdotisa do
Terecô há mais de 50 anos. Ela é a guia do terreiro
do pai de santo Bita do Barão, tendo a sua casa o
nome de “ Tenda Espírita de Umbanda Rainha
Yemanjá”. O carro chefe daquele espaço espiritual
ainda é o tradicional Terecô codoense, no qual se
praticam alguns pontuais ritos característicos do
Tambor de Mina.
A senhora Maria do Caboclo 7 flexas já possui
sua própria casa espiritual, a Casa Kamafeu de
Oxossi, que é a única casa de São Luis com raízes do
Terecô de Codó, da qual eu sou presidente, sendo a
primeira pessoa na hierarquia da mesma. E na
Tenda Espírita de Umbanda Rainha Yemanjá,
tenho um cargo que corresponde aos Ogãs do
Candomblé, onde organizo todos os abatazeiros
(tocadores de tambor) e sou responsável por
puxar os pontos de alguns rituais do Tambor de
Mina naquela casa.
Minha trajetória no Tambor de Mina é recente
para os padrões da maioria dos praticantes dessa
religião, pois totalizando o período do meu ...
- Cividade
lo Pereira, 75
Rua D. Gonça
261 021
aga - Tel. 253
4700-032 Br
www.umbanda.pt
www.atupo.com
Fundamento | 03
Jornal Umbandista Português
009
... envolvimento com o Tambor de Mina faz 15
anos que sou filho da Casa Fanti-Ashanti. Tive a
minha iniciação naquela casa há 5 anos, na
categoria de Vodunsu-Asissohê (iniciado sem
feitura completa, mas com voduns assentados)
Meu vodum ou meu senhor (tratamento
dispensado a essas divindades africanas aqui no
Maranhão) é Obaluayê, como é mais conhecido
popularmente, que pertence à família de Omolu,
Acossi Sapktá, como são conhecidos aqui no
Maranhão. Sou filho de Sapktá (vodun jeje) e Oiá
(vodun Nagô), ou seja, meu senhor e minha
senhora respetivamente, os donos da minha
cabeça.
Dentro do Terecô, dou passagem a outras
entidades conhecidas como katiços, encantados e
outros da família de Toi Boçu Légua, o grande
vodun Cabinda, que se embrenhou nas matas
codoen ses e ficou conhecido por lá como
L é g u a Boji Buá da Trindade.
Aqui em São Luís, além dos exclusivos jejes
que fundaram a grande Casa da Minas
(Querebetam de Zomadônu), o culto aos voduns
Jejes não deu origem a outras casas ou terreiros
dessa etnia. A referida casa já está num processo
de praticamente extinção. A Casa de Nagô
Abioton foi a que deu origem ou formato a todas
as casas de Tambor de Mina no Maranhão e no
Brasil.
Foi muito grande a população de negros
escravizados que vieram para o Maranhão, em
meados de 1855, provenientes da Costa do Ouro,
São Jorge de El Mina, atualmente Gana. Por isso,
genericamente, ficaram conhecidos por aqui
como negros minas, e como todos eles celebram
seus rituais aos sons do tambores, essas novas
religiões de matriz africana receberam o nome de
Tambor de Mina. O Tambor de Mina foi
organizado aqui no Maranhão, em forma de
nações, de acordo com a procedência étnica.
Como já foi citado, os terreiros oriundos de
outras etnias com um número mais reduzido de
adeptos, entraram em extinção, por não terem
Sem folha não há Orixá
praticantes que dessem uma continuidade, entre
eles os Cabindas, Haussas, Gibô, Mataranas,
Felupes, etc.,ficando apenas todos os que tiveram
a influência do Nagô Abioton.
Fonte:
Casa Kamafêu de Oxossi.
Rua Nossa Senhora da Vitória, nº 07
Praia do Araçagy.
São Luis- Maranhão - Brasil
A Samambaia
N
esta edição do nosso jornal vamos falar um pouco sobre uma das plantas mais antigas que existe no nosso planeta a Samambaia. Há milhões de
anos atrás, samambaias gigantes cobriam a Terra de verde e propagando-se por meio de esporos ou pela divisão de seus rizomas. Estas plantas
são mesmo muito antigas, tanto que várias das famílias das samambaias já nem existem mais.
O nome "samambaia" vem do tupi "ham ã'bae" e significa "aquele que se torce em espiral". São nove as famílias que permanecem na nossa actualidade,
reunindo cerca de 10 mil espécies diferentes, existindo por isso uma, variedade de tamanhos e formas, lembrando rendas, chifres, espinhas de peixe, etc.
Da enorme quantidade de espécies que existem destaca-se a Dryopteris filix-mas, que é uma das mais comuns e fácil de encontrar.
CARACTERÍSTICAS: Planta perene com rizoma subterrâneo e escamoso, dando origem a folhas, de até 90 cm de tamanho, inicialmente enroladas e
cobertas de escamas castanhas
A samambaia é uma planta assexuada produtora de esporos. Por isso, ela representa a fase chamada esporófito Em certas épocas, na superfície
inferior das folhas das samambaias formam-se pontinhos escuros chamados soros. O aparecimento dos soros indica que as samambaias estão em época
de reprodução (em cada soro são produzidos inúmeros esporos). Quando os esporos amadurecem, os soros abrem e caiem no solo húmido; cada esporo
pode germinar e originar um protalo.
CULTIVO: Manter a planta em local sombreado fora do vento (evite trocá-la de lugar); No verão irrigar duas a três vezes por semana; no Inverno irrigar 1
vez por semana; Eliminar ramos secos ou doentes; Adubar uma vez por mês.
MEIOS DE UTILIZAÇÃO: Infusões; Banhos
INDICAÇÕES TERAPEUTICAS: A samambaia pode ser utilizada em casos de gripe, meningite, pneumonia, sarampo, e vermes.
PROPRIEDADES TERAPÊUTICAS: A samambaia tem como propriedades ser: anti-bacteriana, anti-viral, anti-diarreica e anti-helmintica.
CONTRA INDICAÇÕES: As contra indicações da samambaia estão relacionadas com a ingestão da infusão. Por isso não deve ser utilizada durante a
gravidez e em situações de patologia do coração. Leonel Lusquinhos
Fontes: http://www.uesb.br/flower/samambaia.html; http://www.sobiologia.com.br/conteudos/Reinos4/pteridofitas.php; http://www.plantasmedicinaisefitoterapia.com/plantas-medicinais-samambaia.html;
http://www.gardensandplants.com/uk/plant.aspx?plant_id=1163; http://plantas-medicinales.servidor-alicante.com/plantas/helecho_comun
www.umbanda.pt
www.atupo.com
04 |
Fundamento
Jornal Umbandista Português
Reportagem
A
Umbanda, como religião anímica,
encontra bases fundamentais na manifestação religiosa imanente aos Elementos da Natureza, assim como aos fenómenos
naturais, e que sustentam a sua teosofia de forma
mais ou menos abrangente. Nesta perspetiva, a
Terra corresponde à figura da “Grande Mãe”,
sentida ao mesmo tempo como fonte de vida e de
ameaças à mesma, pois da Terra proveem os
seres vivos e é para ela que os mesmos regressam. Não poderíamos existir da forma que
somos sem a Terra, e o nosso planeta é uma manifestação divina deste elemento vivo. Sendo que a
verdadeira energia da Terra existe também dentro de nós e em todo o universo, ela é representativa também da energia divina atribuída a Orixás
como Ogum, Omulú ou Oxóssi. Lembremos, para
dar um exemplo, dos poderes curativos presentes nas folhas e ervas medicinais, em infusões ou
cataplasmas. A Água é de igual forma associada à
vida, à saúde e à abundância, sendo, no entanto, a
palavra “fertilidade” que mais desperta o nosso
subconsciente. Oxum e Iemanjá são, para dar
dois exemplos, representativas da “ânima” (ou
vitalidade) desse elemento. O mesmo se passa
com o Elemento Fogo, especialmente associado
aos Orixás Xangô, Iansã e Exu e no qual encontramos uma estreita relação com os processos de
transformação - estejam eles relacionados com a
transformação magística externa ou a transformação pessoal. O Ar é comummente associado
ao Orixá Oxalá, princípio simbólico de todas as
coisas, elemento essencial para a dádiva da Vida.
Nas religiões com presença de matriz Africana, o
Ar é ainda associado a outros Orixás, como Iansã,
tantas vezes considerada a dona do “sopro da
vida” no momento em que nascemos. Em todos
esses Elementos encontramos representações
das forças divinas de vários Orixás, assim como,
de igual forma, encontramos Orixás cuja essência está presente em mais que um Elemento da
Natureza. Com o exemplo do Orixá Iansã, além da
sua presença vibratória nos elementos Ar e Fogo,
como já referido, não podemos esquecer a sua
www.umbanda.pt
09 | 10 | 2010
2012
Setembro| Outubro | 2010
Os Elemen
ligação com o Elemento Terra, tão presente nas
suas Lendas de origem Africana, e na associação
da linha vibratória ligada ao culto dos antepassados. Perante estas ligações, podemos desenvolver então o conceito dos Elementos como meio
de “Transmutação” na Umbanda, por meio da
nossa aproximação às próprias energias da Natureza.
A Umbanda apresenta como um dos seus
princípios fundamentais, dentro da mensagem
religiosa que carrega, a prática da caridade e do
amor fraternal, a humildade e a paz entre os
seres. E é no entanto assim que toma o mote para
se propor, por intermédio da magia, transformar
a própria existência, na sua condição humana,
promovendo modificações existenciais que
permitam ao ser humano melhorar-se, e, a partir
daí, melhorar a sua vida, numa lógica evolutiva.
Essa magia consiste, em grande parte, na aproximação do Homem com a Natureza, manipulando,
em comunhão com esta, os elementos que ela
própria colocou à nossa disposição. Utilizando
variadas ritualísticas, é precisamente através da
utilização dos Elementos que consegue a transmutação dos valores energéti-
cos necessária, tanto na busca do equilíbrio
pessoal, como na prática da própria ritualística
da Umbanda.
Como os Elementos estão em toda a parte e
em todas as coisas, inclusivamente formando o
nosso corpo físico, é, de certa forma, bastante
fácil compreendê-los e compreender a sua
essência e poder contidos não só em si próprios,
como – pela conjugação de vários Elementos - na
sua transmutação. O Elemento Ar, na sua(s)
duplicidade(s), é ao mesmo tempo de atmosfera
sensível e volátil. Está intimamente relacionado
com quatro conjuntos de
ideias: o sopro da criação
da vida, a palavra criadora;
o vento como ar dinamizado e direcionado, e, finalmente, o próprio espaço
como meio onde se produzem os movimentos e
de onde emergem os
processos de criação e
desenvolvimento da vida.
Foi já referida em edições
anteriores a força mágica
da fumaça, entre a
www.atupo.com
Fundamento | 05
Jornal Umbandista Português
006
009
ntos na Umbanda
representação do ato de libertação da forma
como imediata dissolução do ar, e a manifestação
conjugada de vários elementos, como o Fogo, o
Ar, a Terra e a Água. Nesta forma, o Ar atua como
intermediário entre o mundo físico e o mundo
espiritual envolvente e invisível, tornando-se
assim um agente mágico capaz de transformar
eficazmente a intenção com que a fumaça é libertada e direcionada.
O Elemento Água estende-se a toda a matéria
animada e está ligado ao princípio da fertilização
e geração. Na sua transmutação enquanto Elemento, desde que “o sol aquece as águas da
superfície do
mar ou rios
q u e eva p oram, sobem
em forma de
va p o r p a ra
formarem as
nuvens, até
que as
massas frias polares entram em contato com as
nuvens e a água se condensa precipitando-se
para o solo em forma de gotas, e uma vez no solo,
que a água penetra na terra e, em seu interior,
sofre transformações e é impulsionada para
cima pelas forças da pressão causada pela nossa
atmosfera, saindo nas fontes para forma os rios
que, pela lei da gravidade, correm de volta para o
mar”, encontramos um princípio de vitalidade
infindável.
A Terra, Elemento mágico de transformação,
incorpora os segredos da purificação pela transformação. No seio da terra encontra-se o mistério da vida e da morte, onde a semente adquire a
força vital para nascer e transformação do corpo
se processa na decomposição ou simplesmente,
como é mencionado em inúmeras religiões, no
regresso da matéria às origens. A sua capacidade
é de transformação, conjugada com o Fogo. E no
entanto, a pedra também é Terra e representa o
símbolo da unidade, da durabilidade e da força
estática. Representa a solidificação do ritmo
criador, ao contrario do ritmo biológico, submetido às leis de mudança, vida e morte.
Quanto ao Elemento Fogo, é
considerado o símbolo da
própria alma e vidas
humanas,
desde
tempos imemoriais. É ao mesmo tempo visível e
invisível, uma chama etérea e espiritual que se
manifesta através de uma chama corpórea e
material. É representativo, na sua essência ígnea,
do próprio princípio divino e da faculdade de
transformação da vida como a imaginamos.
Transcende – como os outros elementos – o
plano do bem e do mal. O fogo destrói assim
como aquece e abranda.
Todos estes elementos apresentam, na sua
riqueza, princípios activos e passivos. É precisamente pela sua conjugação que a Umbanda faz
manifestar a sua Magia. No seio das suas ritualísticas, encontramos trabalhos de manipulação
dos Elementos, seja pelas Entidades Espirituais,
seja por intermédio de oferendas. As oferendas
materializadas aos Orixás tão somente associam
os Elementos – através das velas, do charuto da
água ou outros líquidos, das folhas, dos frutos,
etc. – que conjugados e com a direção dada pela
nossa própria “ânima”, abrem verdadeiros portais espirituais, onde se processam trocas energéticas imensuráveis. Como símbolo materializado
da própria vida, o “peji” ou altar de um Templo de
Umbanda congrega todos os Elementos, em
comunhão uns com os outros. Os Elementos,
mais do que fazer parte da nossa vida, são aquilo
que faz com que seja possível essa dádiva em si e,
se assim quisermos, serão um meio para trabalharmos, visando o nosso aperfeiçoamento e
alcançar assim o Criador, a essência Divina.
Como na história do “menino Zélio”,
que, com um simples gesto, direcionando a sua vontade, despoletou à sua volta a manifestação
daquilo que hoje consideramos
parte intrínseca das nossas vidas,
enquanto trabalhadores na Seara
Umbandista.
Vitorino Reis Camelo
Pai Cláudio de Oxalá
www.umbanda.pt
www.atupo.com
06 |
Fundamento
Jornal Umbandista Português
2012
Entrevista
MESTRE RIVAS NETO
Yamunisiddha Arhapiagha (F. Rivas Neto),
um dos escritores mais conceituados do meio
umbandista na atualidade, mestre-Raiz da
Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino, reitor e
professor da FTU (Faculdade de Teologia
Umbandista), discípulo de W. da Matta e Silva
– o Mestre Yapacani – por quase vinte anos,
graduado em Medicina e especializado em
Cardiologia.
Fundamento-Num país onde ainda existe a
intolerância religiosa, como se consegue que uma
Faculdade de Teologia Umbandista seja
autorizada e credenciada pelo MEC?
Mestre Rivas Neto - Veja, nós vivemos num
país que de 64 a 85 esteve sob o regime da
ditadura e nós tivemos muitas sanções, muitas
d i f i c u l d a d e s n e s s a é p o c a . M a s m u i to s
umbandistas, não todos, talvez, muitos adeptos
das religiões afro-brasileiras sempre fizeram uma
resistência a esse mau estado de direito e
felizmente, em 1985, nós voltamos a um estado
democrático. Então, esse estado democrático, ele
permite que você tenha isonomia (…), já que o
estado é laico(...) então você tem os mesmos
direitos de outros processos confessionais. Então
nós, pautados nesse direito e tendo tido todos os
requisitos que o MEC exigia(…) como professores
gabaritados, como professores titulados no grau
de mestre p'ra cima, então nós conseguimos (…)
mesmo assim a duras penas (…) eles pensavam
que (…) fossem encontrar o pai de santo dando
passes, o pai de santo com charuto (…) mas nós
estávamos falando de teologia que é um pouco
diferente de religião. A Teologia, ela procura ver a
religião, o senso crítico da religião. Então o que
nós fizemos? Quando as pessoas vieram aqui para
reconhecer, eles se assustaram porque estavam
pensando que iam encontrar tudo aquilo que falei
p'ra vocês. E eles viram que não, que tinha
realmente sacerdotes, mas que tinha pessoas que
além do sacerdócio também se interessavam pela
parte académica (…) e eles ficaram muito felizes
com o nosso PDI e esse PDI tornou-se referência
na época para todas as instituições de teologia,
porque no Brasil é há pouco tempo que as
teologias estão no quadro do ministério da
educação.
F-A faculdade ministra apenas cursos e
estudos relacionados com a Umbanda ou abrange
outras religiões? Que matérias são cursadas? É
condição sine qua non que os professores que
trabalham na FTU sejam umbandistas?
MRN – Não! Não! Embora aqui a maioria
sejam umbandistas, mas não todos. Porque então
e st a rí a m o s se n do exc lu siv i st a s. E n ó s
pretendemos incluir todos e como é uma área
académica, então é necessário que você traga
outros professores, porque eles mesmo vão
conhecendo as nossas coisas (…) e eles mesmo
vão levando para outras instituições o que eles
vêem. (…) Então não é necessário o sujeito ser
umbandista ou das religiões afro-brasileiras. A
condição primeira é que ele seja titulado no grau
de mestre ou no grau de doutor (…) É isso que o
MEC exige.
www.umbanda.pt
Nós estudamos aqui todas as religiões afrobrasileiras com vários académicos e sacerdotes,
nós estudamos todas as religiões comparadas (…)
e disciplinas que deem subsídios a isso. Por
exemplo, sociologia, teologia, antropologia,
epistemologia, hermenêutica, uma língua, no caso
o Inglês, pensamos em música, na música sacra
(…) Imagina a dificuldade que nós tivemos,
porque a academia, ou seja (…) a parte
universitária é essencialmente calcada na
tradição escrita, como são as tradições do livro. As
religiões do livro, principalmente o judaísmo, o
cristianismo e o islamismo. Eles têm livro: o
judaísmo tem o Torá, o cristianismo tem a Bíblia, o
Evangelho e o islamismo tem o Corão. E nós não, a
nossa tradição é no “gógó” (…) é de boca p'ra
ouvido. Então nós precisámos aqui na época de
adaptar. Então o que faz a teologia? A teologia tem
dois braços: um braço dela, através do saber
religioso fazemos a conexão com a ciência, através
da antropologia, da sociologia e de outras
disciplinas, a filosofia de direito (…) que é muito
importante, e outro onde nós estudamos as
crenças e as religiões para que nós venhamos
então a ter contacto com as pessoas, com a fé, não
só com a fé institucionalizada, mas com a fé
sobrenatural, aquela fé que nasce no íntimo do
indivíduo.
F-Então na FTU vocês formam sacerdotes ou
teólogos?
MRN- (…) Aqui eu posso formar o sacerdote
da nação, do Jarê, mas eu acho que isso é do
terreiro como o pai de santo tem de se preocupar
não em fazer teologia mas em fazer filho de santo,
porque eu aqui eu poderia fazer quantos filhos de
santo? Tenho muitos filhos de santo, mas não da
faculdade! (…) Vamos ensinar as religiões afrobrasileira, mas não para fazer sacerdotes. O
sacerdote se faz no templo. Eu vim do culto da
Nação, que aí vocês chamam de Candomblé. Mas
não pode ter uma faculdade do candomblé, uma
faculdade do jarê, (…) do babaçuê, do xambá, do
toré, da jurema, da umbanda. Isso é feito no
terreiro com o pai de santo!
F- Em Portugal, a Umbanda é uma religião que
vai ganhando cada vez mais “adeptos”. Em Braga,
na ATUPO (Associação Templo de Umbanda Pai
Oxalá) temos uma comunidade que procura cada
vez mais conhecer e estudar a origem e os
fundamentos da religião. Estando conscientes da
importância de uma formação mais
institucionalizada e académica, como poderíamos
fazer chegar a essas pessoas os saberes da FTU?
MRN- (…) Eu só queria deixar claro uma coisa
para vocês: a Faculdade de Teologia não veio para
formar sacerdotes, ela veio para formar, para dar
formação para teólogos, que nós não tínhamos
teólogos com ênfase em religiões afro-brasileiras.
A FTU nunca quer ocupar a posição dos
sacerdotes (…). O fundamento do sacerdote é
fundamental e tenho a certeza que os sacerdotes
também estão interessados , quando falo em
teologia, de mostrar essa parte mais académica
que acontece nas religiões afro-brasileiras, na
umbanda mais especificamente e a faculdade se
interessa por isso fazendo o quê? Aqui no Brasil
nós temos um curso de graduação, um curso de
bacherlato (…) é um curso universitário como
outro qualquer, todos os dias de 2ª a 6ª feira, das 7
às 11 horas. E é um curso pesado (…) porque é um
curso universitário com todas aquelas disciplinas
que eu falei p'ra vocês. Como é que a gente vai
fazer para aquelas pessoas que não têm formação,
que não têm um curso médio? Nós temos um
curso que chamamos extensão universitária. É um
curso que não exige (…) nenhum nível de
escolaridade e dá o mesmo curso de uma forma
mais simplificada e dá ênfase à parte prática da
nossa religião, não só de uma umbanda, mas das
várias umbandas, (…) de forma presencial ou tele
presencial. (…) Na questão das pessoas que já são
académicas, nós temos agora um curso (…) de
especialização (…) com professores como
Reginaldo Prandi, Mundicarmo e Sergio Ferreti
(enfim, tem uma porção de professores…) onde
elas vão ser especialistas em teologia das religiões
afro-brasileiras (…) mas isso já a um nível de pósgraduação. Mas e os que não têm o curso
universitário? Como vão fazer?(…) o mesmo curso
a pessoa pode vir assistir, só que ela não vai
receber no final o curso de especialização porque
ela (…) fez um curso de extensão universitária (…)
você não precisa comprovar a escolaridade. Mas
você não vai ter um curso superior…vai ter uma
adaptação a isso. Mas é bom, porque os pais de
santo (…) vão estar se atualizando… Então a
faculdade tem procurado de alguma forma levar a
todos uma cultura e um respeito incondicional à
cultura (…), à pessoa, fortalecendo a identidade
dos adeptos das religiões afro-brasileiras…
F-De que outras formas a FTU contribuiu para
a divulgação e unificação da Umbanda no Brasil de
hoje?
MRN- Certo. Eh, a pergunta de vocês é muito
inteligente, muto instigante, inclusive. A nossa
finalidade era e é demonstrar que as religiões
afro-brasileiras (quando eu falo de religiões afrobrasileiras estou falando de uma unidade de
religiões que tiveram influências indígenas,
africanas e indo-europeias, desde a umbanda
branca com influências kardecistas até aquelas
que têm uma influência direta do candomblé,
Angola (…) e do candomblé da nação (…). Mas
então, dessa umbanda branca até essa umbanda
traçada (umbanda omolocô) há várias umbandas.
(…) Mas o que a faculdade tenta promover?
Primeiro dizer que a Umbanda é uma linguagem
ou uma ideia que se apresenta de várias
linguagens e todas as linguagens são certas, (…)
www.atupo.com
Fundamento | 07
Jornal Umbandista Português
009
concernentes(…) na medida em que elas
procuram demonstrar três coisas principalmente:
ela tem uma identidade forte (…), mais do que isso,
ela tem uma vivência nesse contexto e ela
obviamente tem um sentido de unidade com essas
coisas, que no momento que você começa a
fragmentar (…), vai ficando com feudos, você vai
ficando com guetos e o que é que isso parece? Para
Umbanda? Por isso é que eu digo, você pode unir a
Umbanda (…). Unir é aceitar as diferenças (…), nós
temos de ter respeito pelas diferenças. Ao unificar,
unificar quer dizer codificar. Se eu codifico, eu vou
engessar ela (…), não vou permitir que ela tenha
um processo de ser uma unidade aberta, vou
fechar ela e isso fere a tradição oral. E se eu vou
codificar, vou codificar por qual? Por essa daqui,
por essa ou por essa? Então, isso fica muito difícil.
Eu acho que foi um mecanismo de auto
preservação da espiritualidade. A espiritualidade
fez com que nós pudéssemos fazer de várias
formas estas religiões afro-brasileiras.
religião é fundamental para que haja paz no
mundo. Porquê? O religioso deve ser aquele
indivíduo que está sempre buscando uma
religação com o divino, com o sagrado e esse
sagrado, quando colocado no coração (…) das
pessoas, ele deve mudar, do ponto de vista
institucionalizado de um país, ele deve mudar o
aspeto social, as desigualdades sociais ( eu sou a
favor das diferenças, não das desigualdades), da
mesma maneira que você faz com a política. Eu não
quero ser político, mas eu posso fazer política com
pressão, como cidadão eu posso fazer pressão
social e isso vai mexer na economia, porque hoje,
em todos os países, a política é refém da economia,
porque quem é que financia os políticos? Então, a
gente procura fortemente fazer isso.
F-Não posso deixar de perguntar-lhe, enquanto
discípulo de um dos maiores escritores e Mestres da
Umbanda, qual foi, para si, o maior legado deixado
por W.Matta e Silva?
MRN- (…) Eu tive uma convivência com o velho
F-Segundo as suas palavras, “Hoje a FTU
Matta, o Pai Matta, eu já tinha terreiro desde 68.
trabalha pela convergência dos povos, das religiões
(…) O Mestre que eu conheci em 71, as pessoas
e das tradições culturais.” De que modo?
perguntam, mas como era esse Matta, ele era
MRN- Desse modo, desse modo, procurando diferente? Eu falo para as pessoas o seguinte.
respeitar todas as culturas. A FTU ela tem esse Quem conheceu o velho Matta (…) ele era uma
diálogo a que nós chamamos diálogo “inter- pessoa … se você ler o livro, você vai achar que ele
religioso”; nós procuramos de todas as maneiras era um cara duro (…) um sujeito austero, ele
entrar em contacto com as diversas religiões e escreveu para mudar uma série de coisas que ele
tentar, obviamente, não ocupar o lugar dessas achava que não eram condizentes e tinha um
religiões (olha, você tem que fazer a minha religião modo de ser. Mas era uma pessoa humana, uma
ou fazer a sua), mas o respeito incondicional que pessoa essencialmente dócil, uma pessoa
temos que ter, na medida em que achamos que a comum(…) mas o maior feiticeiro que eu conheci!
(e o pior é que eu conheço muito feiticeiro no
Brasil!), o maior curandeiro…Ele foi o primeiro
sujeito que trouxe para o Brasil na umbanda o jogo
do Ifá (…) No livro “Macumbas e Candomblés na
Umbanda” está lá…ele mostra como a umbanda
está dentro dessas coisas todas, num processo que
ele chama de umbandização (…) O velho Matta
mudou a estrutura daquela umbanda popular
(algumas pessoas quiseram elitizar…) (…) era um
cara simples, humilde que gostava de estar em
contacto com as pessoas. Ele até dizia “ Rivas, meu
filho, quem precisa da Umbanda são os sofredores
e a maioria das pessoas tem problemas sérios, ou
problemas espirituais que se refletem na saúde,
nas coisas afetivas ou nas coisas financeiras!” (…)
Então, por isso que eu falo que ele era um feiticeiro
danado (…) Eu tive uma vivência com ele de
dezoito anos e se alguém ler o livro dele e achar
que aquilo é ele, ele está muito longe daquilo,
porque a realidade da pessoa, principalmente nós
que somos da tradição oral, muitas vezes o que
você sente, você não consegue passar para o papel.
É claro que aquilo é um norte para todos nós (…) o
velho Matta foi aquele que mais observou as coisas
de hoje e do futuro, é muito futurista. (…) Se eu
pudesse definir numa coisa só, diria que o maior
legado do da Matta e Silva foi o culto ao espírito, à
essência das coisas, à essência que transcende
toda e qualquer forma (…) Então acho que ele, de
uma forma simples, pelo menos para os
discípulos, gostava do que ele fazia, ele foi um
marco e um exemplo de um cidadão do mundo. Eu
tenho orgulho de ter sido filho dele!
Mary Nogueira
A ATUPO no XXII Rito de Exu
Umbanda no Mundo
O Guardião do Axé e do Destino | II Congresso de Sacerdotes e Sacerdotisas das Religiões Afro-Brasileiras
No passado dia 22 de Outubro, a ATUPO, a convite da FTU (Faculdade de
Teologia Umbandista), esteve presente no XXII Rito de Exu – O Guardião do
Axé e do Destino / II Congresso de Sacerdotes e Sacerdotisas das Religiões
Afro-brasileiras, realizado nas instalações da faculdade, em S.Paulo, Brasil.
Casas representadas por dirigentes de vários estados do Brasil – entre
outros, de S.Paulo, do Ceará, do Rio Grande do Norte, do Rio de Janeiro, do
Mato Grosso - e de outros países, nomeadamente Portugal representado
pela ATUPO e Paraguai com a presença de Pai António de Oxalá,
manifestaram no Congresso, através de uma convivência pacífica e serena,
as suas opiniões e posições no que concerne à diversidade religiosa. Vários
foram os que, assumindo a necessidade de acabar com a intransigência
religiosa e da premência em reconhecer e respeitar essas diferenças,
concordaram com a ideia de que “a unanimidade não leva à união” e “que
todos os ritos tenham o olhar de cada sacerdote e sacerdotisa!”
Findo o Congresso, os presentes confraternizaram entre si, trocando
impressões sobre as ideias partilhadas e sobre a diversidade religiosa.
Muitos foram os dirigentes que se mostraram agradavelmente
surpreendidos pela Umbanda que se faz em Portugal.
www.umbanda.pt
De seguida, mais de duas mil pessoas celebraram primeiramente o Orixá
Omulu/ Obaluaie, através de um enredo toque-dança, protagonizado pelo
Mestre Rivas Neto e seus filhos, O tema do enredo era a neutralização de
tudo o que nos faz mal (as doenças, pestes) e a louvação de todos os
benefícios trazidos pelo Orixá através dos seus pós de encantamento e de
cura. De seguida, foi iniciado o rito de louvação a Exu, através da sua
celebração e invocação. Após a chegada dos Exus e Pomba-Giras, todos os
pais e mães de Santo passaram pela cabana de Omulu, onde o Exu de Mestre
Rivas, S.Capa Preta, os aguardava para os saudar! Depois, a festa foi levada
para a rua por todos os Exus e Pomba-Giras, pelo povo da rua, demonstrando
que a Umbanda não se cinge às paredes de um templo, mas ela se abre às
ruas, ao mundo que é de todos e para todos, independentemente da sua
condição social! Aí se festejou, num misto de alegria e ruído, a liberdade
religiosa e cultural e o anseio pelo fim da intolerância: dos céus se ouvia o
fogo de artíficio e na rua ecoavam as gargalhadas dos Exus! De volta ao
templo, a festa de louvação a Exu continuou, tendo sido abrilhantada ainda
mais pela voz de Pai Élcio que também esteve presente neste ritual!
Mary Nogueira
www.atupo.com
08 |
Fundamento
2012
Uma Lenda
Exú ganha o poder sobre
as encruzilhadas
Exú não tinha riqueza, não tinha fazenda, não
tinha rio, não tinha profissão, nem artes, nem missão. Exú vagabundeava pelo mundo sem paradeiro.
Então um dia, Exú passou a ir à casa de Oxalá. Ia à
casa de Oxalá todos os dias. Na casa de Oxalá, Exú se
distraía, vendo o velho fabricando os seres humanos. Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá,mas ali ficavam pouco,quatro dias, oito dias e nada
aprendiam. Traziam oferendas, viam o velho Orixá,apreciavam sua obra e partiam. Exú ficou na casa
de Oxalá dezesseis anos. Exú prestava muita atenção na modelagem e aprendeu como Oxalá fabricava as mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos
homens, as mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina
das mulheres. Durante dezesseis anos ali ficou
ajudando o velho Orixá. Exú não perguntava. Exú
observava. Exú prestava atenção. Exú aprendeu
tudo.
Um dia Oxalá disse a Exú para ir postar-se na encruzilhada por onde passavam os que vinham à sua
casa. Para ficar ali e não deixar passar quem não
trouxesse uma oferenda para Oxalá. (…) Exú tinha
aprendido tudo e agora podia ajudar Oxalá. Exú
coletava os ebós para Oxalá. Exú recebia as oferendas e as entregava a Oxalá. Exú fazia bem o seu
trabalho e Oxalá decidiu recompensá-lo. Assim,
quem viesse à casa de Oxalá teria que pagar também alguma coisa a Exú. Quem estivesse voltando
da casa de Oxalá também pagaria alguma coisa a
Exú. Exú mantinha-se sempre a postos guardando a
casa de Oxalá. Armado de um ogó, poderoso porrete, afastava os indesejáveis e punia quem tentasse
burlar sua vigilância. Exú trabalhava demais e fez
ali sua casa, ali na encruzilhada. Ganhou uma
rendosa profissão, ganhou seu lugar, sua casa. Exú
ficou rico e poderoso. Ninguém pode mais passar
pela encruzilhada sem pagar alguma coisa a Exú!
A
s lendas apresentadas foram
selecionadas tendo em conta o vasto
campo de atuação de Exu: ele é o Guardião das
encruzilhadas, aquele que guarda a casa, que nos
protege das emboscadas da vida, é a entidade que
aconselha, que orienta, é o Exu que cura!
A primeira lenda apresenta-nos Exu na Casa
de Oxalá onde através do seu esforço e serviço é
recompensado, tornando-se o orixá mensageiro,
responsável pela comunicação entre o mundo dos
Orixás (o “Orun”) e o mundo dos homens (o “Aye”)
e portador das orientações e determinações dos
Orixás para os humanos. É ele que estabelece a
ligação entre os dois mundos, através da qual os
homens oferendam os Orixás, para que Estes os
ajudem e protejam. Mas a ele deve ser dada a
primazia na entrega das oferendas, pois sem ele a
comunicação não existe. A segunda lenda refere-se a Exu como responsável em assegurar o
equilíbrio entre os dois mundos. A sua natureza é
perfeitamente compatível com a natureza de
Orunmilá, simbolizando assim a harmonia entre
os dois mundos: a existência no mundo material
(Aye)- e o nível sobrenatural (Orun). O
restabelecimento da ordem, com a ajuda de Exu,
pressupõe assim a ação de duas forças
www.umbanda.pt
Exu põe Orunmilá em perigo
e depois o salva
“(…) Exu colocou obis frescos na beira da
estrada e lá os deixou. Exu foi e cumprimentou
Orunmilá novamente. Orunmilá disse:- “Exu, meu
amigo, estás vindo de Ouô mais uma vez?” Exu
respondeu: “Os amigos devem duvidar uns dos
outros? O que é, é!” Orunmilá desconfiou da situação. (…) Seguiu adiante e encontrou os obis deixados por Exu. Cansado da longa viagem, pegou os
obis e começou a comer para refrescar-se. Nesse
momento, um fazendeiro de Ouô apareceu. Trazia
na mão um facão e o acusou de estar comendo os
obis da sua árvore. Orunmilá argumentou que não
tinha visto árvore alguma. Mas o fazendeiro não
aceitou a desculpa de Orunmilá. E os dois lutaram.
Na briga, o facão do fazendeiro feriu a palma da
mão de Orunmilá. (…) Na entrada da cidade encontrou Exu.(…) Orunmilá e Exu entraram juntos em
Ouô. O fazendeiro foi até ao rei acusar Orunmilá.
(…) Aí Exu falou por Orunmilá perguntando ao
fazendeiro como identificar o ladrão. O fazendeiro
(…) disse que o ferimento na palma da mão de
Orunmilá seria a prova. Exu, defendendo Orunmilá,
pediu então que todos os cidadãos abrissem a mão.
O rei concordou (…). E constatou-se que todos
igualmente tinham um ferimento(…) O rei reconheceu de imediato a inocência de Orunmilá e ordenou
que ele fosse indenizado pela falsa acusação.
São muitas as tramoias de Exu. Exu pode fazer
contra, Exu pode fazer a favor. Exu faz o que faz, é o
que é.
Exu leva dois amigos
a uma luta de morte
Certa vez, dois amigos de infância, que jamais
discutiam, esqueceram-se, numa segunda-feira, de
fazer as oferendas devidas para Exu. Foram para o
campo trabalhar, cada um na sua roça. As terras
eram vizinhas, separadas apenas por um estreito
canteiro. Exu, zangado pela negligência dos dois
amigos, decidiu preparar-Ihes um golpe à sua
maneira. Ele colocou sobre a cabeça um boné pontudo que era branco do lado direito e vermelho do
lado esquerdo. Depois, seguiu o canteiro, chegando
antagónicas: mal e bem, céu e terra.
A ambiguidade de Exu está também presente
quando este aparece colocando Orunmilá em
perigo e depois o salva. Esta lenda mostra Exu
atuando: da mesma forma que coloca em nosso
caminho obstáculos, dificuldades, tentações, de
modo a que consigamos resgatar dívidas do
passado, também nos defende e protege dos
perigos que possam ameaçar a nossa caminhada.
Exu, atuando numa vibração muito próxima da
vibração do plano físico e sendo grande
conhecedor do ser humano, nomeadamente das
suas dificuldades, fraquezas, vícios e medos
conhecedor de toda a experiência humana, é
mestre na resolução de problemas de ordem
material ou relacionados com dificuldades nos
caminhos da vida, como dinheiro, emprego,
disputas ou intrigas. Enquanto executor da Lei
Kármica, atua de acordo com o merecimento de
cada um, a favor da evolução. É Ele que, segundo a
lenda, coloca as duas cores no boné. Ao fazê-lo,
mostra que a verdade é relativa, pondo em
questão o certo e o errado. Ao mesmo tempo
instaura o caos, a dúvida e a instabilidade, que
levam à briga e morte dos dois compadres. Mas
Ele não é responsável pelo desfecho da trama, o
à altura dos dois trabalhadores amigos e, muito
educadamente, cumprimentou-os: -"Bom trabalho,
meus amigos!"
Estes, gentilmente, responderam: -"Bom passeio,
nobre estrangeiro!"
Assim que Exu afastou-se, o homem que trabalhava
no campo à direita, falou para o seu companheiro:
-"Quem pode ser este personagem de boné branco?"
-"Seu chapéu era vermelho", respondeu o homem
do campo a esquerda.
-"Não, ele era branco, de um branco de alabastro, o
mais belo branco que existe!"
-"Ele era vermelho, um vermelho escarlate, de
fulgor insustentável!"
-"Ele era branco, tratar-me de mentiroso?"
-"Ele era vermelho, ou pensas que sou cego?"
Cada um dos amigos tinha razão e ambos estavam
furioso da desconfiança do outro. Irritados, eles
agarraram-se e começaram a bater-se até matarem-se a golpes de enxada.(…)
(Lendas 1, 23 e 7 do Livro Mitologia dos Orixás de Reginaldo Prandi)
seu desencadeamento foi uma escolha humana.
Não culpemos Exu pelas nossas escolhas, atitudes,
caminhos. Não façamos dele o Diabo. Muitas
vezes, a sua própria manifestação ruidosa,
provocante, à espera de uma reação, é uma forma
de nos chamar a atenção para os nossos próprios
defeitos, uma vez que é para o ser humano é
sempre mais fácil ver o cisco no olho do seu irmão!
A Exu atribui-se a reflexão especular, a
qualidade de refletir o interior de cada um,
exteriorizando todas as nossas verdades,
desnudando-nos a alma. Ao fazê-lo, põe-nos de
frente com o nosso Eu, tal qual ele é, com todas as
qualidades e defeitos, permitindo assim que, ao
conhecermo-nos de verdade, possamos
transformar o nosso interior e conquistar o
conhecimento necessário à nossa evolução.
Citando Mario César Barcellos, em “Os Orixás e o
segredo da vida: lógica, mitologia e ecologia”, “Exu
é o nosso interior, é a nossa intimidade, o nosso
poder de ser bom ou mau, de acordo com a nossa
própria vontade. Exu é o ponto mais obscuro do
ser humano e é, ao mesmo tempo, aquilo que
existe de mais óbvio e claro!” Salve Exu! Laroiê!
Mary Nogueira
www.atupo.com
Download

D i s t r i b u i ç ã o G r a t u i t a N º 0 0 9