CONTRIBUIÇÕES DA NEUROPSICOLOGIA PARA AMPLIAR O OLHAR DO (A) PSICOPEDAGOGO (A) CARVALHO Rosita Edler [email protected] Este artigo inicia-se com algumas premissas que representam, em si mesmas, um primeiro convite à reflexão para a ampliação de nosso olhar, enquanto profissionais interessados na melhoria da qualidade de vida dos Sujeitos que nos procuram - os nossos clientes ou alunos: • Aspectos políticos, sócio-culturais e econômicos que caracterizam o contexto em que vivemos exercem influência sobre nossas ações profissionais, mesmo não sendo condicionantes delas; • Profissionais que lidam com pessoas, como é o caso dos psicopedagogos, devem acompanhar os avanços científicos e tecnológicos, além daqueles específicos de sua área de atuação, mas a ela relacionados; • Psicopedagogos enfrentam inúmeros desafios, incluindo-se mudanças no seu próprio campo de atuação, sem fugir de seus princípios. nspirando-me nessas premissas, tenho como objetivo apresentar alguns subsídios extraídos da neuropsicologia e que representam provocações para o nosso trabalho como psicopedagogos. Precisamos enfrentá-las, sem culpas e sem medos. Temos muito que aprender sobre o cérebro humano, pouco explorado nos cursos de especialização para nos tornarmos psicopedagogos (as)1. Essa constatação não banaliza o conhecimento construído, ao contrário: é a partir do que sabemos que podemos avaliar o que nos falta e o que nos assombra sob a forma de dúvidas e de questionamentos. Para esclarecê-los precisamos extrapolar o próprio campo de atuação psicopedagógica, sem fugir de seus princípios. Não tenho a menor pretensão de ser exaustiva nos domínios da neuropsicologia, até porque estou em processo de formação, ávida por informações que me permitam construir 1 Em todo o texto, sempre que houver referência a um profissional ou aluno, ficam subentendidos os gêneros. 2 conhecimentos e novas práticas, de modo a melhor exercer minhas funções como psicopedagoga. Várias são as direções para as quais o psicopedagogo dirige seu olhar, dependendo dos âmbitos de intervenção que elegeu: clínico, institucional escolar, empresarial ou na ação social2. Em cada um desses campos de atuação, as premissas acima arroladas são aplicáveis e devem merecer um primeiro olhar, pois são compatíveis com a visão sistêmica de nossa realidade (extremamente complexa pelo dinamismo e rapidez com que fatos e fenômenos se interligam enquanto acontecem). Na segunda das premissas, particularmente, estão os alicerces deste artigo, pois os estudos e pesquisas na neuropsicologia traduzem significativos avanços científicos e tecnológicos dos quais o saber e o fazer psicopedagógicos não podem ficar distanciados. Embora as contribuições da neuropsicologia sejam úteis em qualquer dos âmbitos de intervenção do psicopedagogo, neste trabalho estabeleci como recortes suas práticas na clínica ou na escola. Nesta, a ênfase recai sobre as ações pedagógicas, particularmente para alunos que apresentam “problemas” e, na clínica, para os processos cognitivos de Sujeitos com dificuldades na aprendizagem. Em ambas as situações, ao lado dos processos cognitivos, valorizam-se os aspectos afetivos e relacionais, além dos corpos e organismos. Com propriedade Sara Paín (1989) ao relacionar os quatro fatores3 que devem ser levados em consideração para a compreensão de problemas de aprendizagem, inicia sua análise com os orgânicos. E, ao elegê-los, apresenta-os com um parágrafo que, por si só, justifica buscar as contribuições das neurociências: A origem de toda aprendizagem está nos esquemas de ação desdobrados mediante o corpo. Para a leitura e integração da experiência é fundamental a integridade anatômica e de funcionamento dos órgãos diretamente comprometidos com a manipulação do entorno, bem como dos dispositivos que garantem sua coordenação no sistema nervoso central. (p.29). (O grifo é meu). 2 A respeito da intervenção psicopedagógica, uma leitura interessante é IGEA, B.R. e col. Presente e futuro do trabalho psicopedagógico. Trad. Antonio Feltrin. Porto Alegre: Artmed, 2005. 3 Os quatro fatores elencados por Sara Paín são: orgânicos, específicos (como a lateralidade indefinida, a dislexia), psicógenos (como a inibição da função de aprender ou a transformação dessa função) e os ambientais (rede de relações familiares, possibilidades reais que o meio fornece, natureza dos estímulos, etc.). Tais fatores constam do livro: Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem . Trad. de Ana Maria N.Machado. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. 2 3 Ao longo do texto no qual trata dos fatores orgânicos, a autora faz-nos pensar na importância do corpo para a recepção e integração dos estímulos, alertando-nos para a prioridade que deve ser conferida à saúde dos analisadores4 que entram em contato direto com o entorno. E exemplifica com possíveis perdas ou disfunções sensoriais, tardiamente identificadas e que podem gerar comportamentos de desinteresse, alheamento ou de dependência no aprendiz que, por ser hipoacúsico ou míope “não quer ouvir ou ver”. (op.cit: p.29). Transtornos endocrinológicos também são mencionados no texto de Paín, não só por sua interferência no desenvolvimento global dos Sujeitos como porque, muitos casos de desatenção, memória alterada, sonolência, etc. podem ser explicados por disfunções glandulares. Não raro, tanto na escola como na clínica, os sintomas são previamente concebidos como manifestações de problemas nas dimensões cognitiva, afetiva/ emocional ou na relacional, descuidando-se dos aspectos orgânicos. Com propriedade, portanto, Paín referese às investigações sobre o corpo e o organismo, incluindo aspectos neurológicos, pois quando há desordens ou lesões corticais elas provocam alterações na aprendizagem. Daí a importância do Sistema Nervoso Central, (SNC) e que destaquei em negrito na citação. É ele o grande coordenador de todos os dispositivos corporais, bem como de seu funcionamento nas relações com o meio ambiente. De modo elegante e sutil Sara Paín leva-nos a valorizar o SNC, pois ao referir-se às relações entre ele e os problemas cognitivos - mais ou menos graves-, afirma que as perturbações no referido Sistema, mesmo não sendo causas suficientes, devem ser consideradas como causas necessárias para que se configure um problema de aprendizagem! Esta afirmativa, embora sem conter referências explícitas à importância das neurociências, permite-nos considerá-las nas entrelinhas. Penso que se a autora estivesse escrevendo seu livro nos dias de hoje, provavelmente, nos brindaria com as contribuições da ciência neural (dentre elas a neuropsicologia), porque nos oferece explicações sobre como milhões de células atuam no cérebro para produzir comportamentos, influenciadas pelo meio ambiente e pelos comportamentos de outras pessoas. Tais constatações levam-nos a dar destaque ao corpo e 4 Observe-se que a denominação /analisadores/ empregada por Paín, sem comprometimento da mensagem, pode ser substituída por /receptores orgânicos/, para facilitar a compreensão. 3 4 ao organismo, no emaranhado de alternativas para as quais devemos direcionar nosso olhar psicopedagógico. Embora o eixo vertebrador deste artigo seja a neuropsicologia, seguem-se breves alusões à neurociência, pois a neuropsicologia é uma de suas áreas5. Podemos sintetizar um conceito dizendo que neurociência é um termo que reúne estudos do sistema nervoso normal e patológico, especialmente a anatomia e a fisiologia do cérebro, interrelacionando todas as disciplinas que explicam o comportamento, o processo de aprendizagem e a cognição humana, bem como os mecanismos de regulação orgânica. É, essencialmente, uma prática multidisciplinar, envolvendo estudos sobre as composições moleculares e bioquímicas do sistema nervoso e suas diferentes, manifestações por meio de atividades intelectuais como, por exemplos: a linguagem, a resolução de problemas, o planejamento. Dizendo de outro modo, as neurociências procuram descrever, explicar e, se necessário, intervir sobre mecanismos neuronais que sustentam atos cognitivos, perceptivos, motores, sociais e emocionais. Compreendo que, mesmo me apoiando em idéias de pessoas renomadas como Sara Paín, trazer as neurociências para o terreno das reflexões nos meios “psi” é um desafio. Escrever e falar sobre neurônios, sinapses, neurotransmissores, bioquímica etc. pode ser considerado como uma hipertrofia dos aspectos orgânicos, em detrimento dos psicológicos e sociais, a ponto de se batizar o olhar que valoriza as atividades neuronais com diversos nomes como: reducionismo, categorização, medicalização, biologismo ou como pensamento único. Mas, s.m.j., desconsiderar os impactos que o sistema nervoso produz na conduta humana é, também, uma manifestação pensamento único. E...se os profissionais das áreas “psi” deixarem de reconhecer a importância da contribuição das neurociências e das técnicas de registro imagético das atividades do cérebro enquanto realiza tarefas específicas, estarão desperdiçando uma importante possibilidade de ampliar o seu “olhar”, atualizando-se. 5 São três áreas na neurociência: neurofisiologia, neuroanatomia e neuropsicologia. A neurofisiologia é o estudo das funções do sistema nervoso; a neuroanatomia é o estudo da estrutura do sistema nervoso, em nível microscópico e macroscópico e a neuropsicologia é o estudo da relação entre as funções neurais e psicológicas. 4 5 Enquanto psicopedagogos precisamos entrar nas neurociências por meio da neuropsicologia, objetivando melhor investigar (diversificando nossas hipóteses) e melhor compreender as manifestações comportamentais de pessoas que nos procuram, que nos são encaminhadas ou com as quais interagimos, na escola. A diversificação de hipóteses para explicar as dificuldades enfrentadas pelos nossos aprendizes depende da ampliação dos paradigmas sobre os quais assentamos nossas práticas. Conhecer e valorizar a contribuição da neuropsicologia será tanto útil na fase de diagnóstico como na de intervenção psicopedagógica sendo que, na escola, deve ser ter caráter preventivo, pois escola não é clínica. A neuropsicologia é um campo do conhecimento humano que vem se estruturando como o estudo das relações entre cérebro, mente e comportamento humano. Em outras palavras, a neuropsicologia trata das relações entre cognição e comportamento, investigando as diferentes funções cerebrais, com ênfase para os processos mentais superiores. Kandel et al. (2000)6 ao conceituar a nova ciência esclarece que, além de fornecer informações sobre o comportamento, tendo como escopo a atividade cerebral produzida por milhões de células neurais, também trata das influências do ambiente incluindo-se, nelas, as relações interpessoais. Um novo corpo de conhecimentos está se desenvolvendo graças a associação entre a psicologia e a neurociência, gerando valiosa contribuição para aprofundar o conhecimento das funções indispensáveis ao processo de aprendizagem como: percepção, atenção, memória, abstração, raciocínio, processamento da informação, afetividade, funções motoras e funções executivas, dentre inúmeras outras. Fica, veladamente encoberta, uma questão: como conciliar a neuropsicologia com a psicanálise, um dos escopos do trabalho psicopedagógico, principalmente se apoiado na epistemologia convergente? Alguns psicanalistas têm enfrentado essa problemática e procuram as pontes para compatibilizar as relações fisiológicas com o psiquismo. Dentre eles cito Monah Winograd, doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001) e que trabalhou os conceitos freudianos de pulsão e afeto como conceitos- 6 Kandel,E; Schwartz,J; Jessel T. Fundamentos da neurociência do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2000. 5 6 membrana entre o fisiológico e o psicológico, considerando que deveriam servir de base epistêmica para pensar as relações entre a fisiologia e o psiquismo. Em seu artigo sobre Freud e os conceitos-membrana, publicado pela Revista Percurso, n. 28, 1/2002 com o título “Freud, o corpo e o psiquismo”7, ao citar o pensamento do pai da psicanálise, lembra o fato de que ele considerava o psíquico e o corporal como ordens de realidade distintas, o que não significa que ele as compreendesse como ordens de realidade autônomas. Distinção não é necessariamente correspondente à autonomia, independência. Extraído do texto de Winograd (op.cit.): Para Freud, a conexão entre processos fisiológicos e processos psicológicos não é de causalidade mecânica: são processos paralelos, concomitantes e dependentes reciprocamente uns dos outros. Podemos dizer que cada um é causa do outro e de si mesmo, noutras palavras, cada ocorrência numa das séries produz efeitos nesta mesma série e na outra. Deste ponto de vista, é problemático qualquer discurso que pretenda reduzir uma série à outra, seja biologizando o sujeito, seja psicologizando-o. A psicanálise está assentada neste paralelismo psicofísico de Freud que, provavelmente, é o seu pressuposto mais importante. Ao valorizar a neuropsicologia para ampliar o meu olhar como psicopedagoga e psicóloga tenho enfrentado algumas barreiras decorrentes de críticas tais como: há uma exacerbação do “bio” em detrimento do psicossocial; a predominância do “bio” é mais condizente com o modelo médico em vez do social, este mais atual e aquele ultrapassado; todas as práticas narrativas das neurociências extrapolam a epistemologia genética piagetiana e, ainda, a psicanálise não fica explícita nos estudos e pesquisas das neurociências e, em decorrência desconsideram-se suas contribuições.... Suponho que outros psicopedagogos que resolveram buscar, na neuropsicologia, respostas para as inúmeras indagações que ficaram em aberto durante sua formação, sofrem as mesmas críticas. 7 Disponível em http://br.geocities.com/materia_pensante/conceitos_membrana.html, acessado aos 2 de setembro de 2009. 6 7 Passemos, agora, ao exame de algumas das contribuições da neuropsicologia que, no meu entendimento, precisam ser aprofundadas nos estudos de formação inicial ou continuada de psicólogos e psicopedagogos: 1- As principais unidades funcionais do cérebro e suas interações; 2- O cérebro executivo. As informações que se seguem foram extraídas de meus apontamentos de aulas e, principalmente, de dois “livros de cabeceira”: Fundamentos de Neuropsicologia e O Cérebro Executivo. Este de autoria de Elkhonon Goldberg (2002) discípulo do autor do outro livro, Aleksander Romanovich Luria (1981). 1-As principais unidades funcionais do cérebro e suas interações Três são as unidades cerebrais funcionais cuja participação se torna necessária para qualquer tipo de atividade mental, em especial as atividades conscientes: (i) unidade para regular o tono e a vigília; (ii) unidade para obter, armazenar e processar informações; (iii) unidade para programar, regular e verificar a atividade mental. Cada uma dessas unidades básicas possui, ela própria, uma estrutura hierarquizada e consiste em pelo menos três zonas corticais construídas uma acima da outra: as áreas primárias que recebem impulsos da periferia ou os enviam para ela; as secundárias aonde as informações que chegam são processadas e as terciárias, responsáveis - no homem pelas formas mais complexas de atividade mental e que requerem a participação de múltiplas áreas corticais. Desta última afirmativa (referente às múltiplas áreas corticais) podemos extrair outra: “os processos mentais humanos são sistemas funcionais complexos que não estão ‘localizados’ em estreitas e circunscritas áreas do cérebro, mas ocorrem por meio da participação de grupos de estruturas cerebrais operando em concerto” (LURIA, 1981: 27). O conhecimento mais detalhado das três unidades funcionais e das estruturas corticais envolvidas permite, não só identificar manifestações patológicas, como criar condições tais que possibilitem ao Homem dito normal desenvolver suas atividades mentais, recebendo, selecionando, analisando informações e corrigindo equívocos. 7 8 (i)- Em relação à primeira unidade funcional - a que regula o tono, a vigília e os estados mentais-, desde os estudos realizados por Pavlov (em 1900), sabe-se que a atividade mental dirigida a metas requer um nível ótimo de tono e vigília cortical. Esta primeira unidade compreende a medula espinhal, o tronco cerebral, o cerebelo, o sistema límbico e o tálamo (FONSECA, 2007, P.47).8 A imagem abaixo, extraída do sistema de buscas do Google, permite-nos localizar algumas das partes que compõem a primeira unidade funcional. Descobertas mais recentes apontam que as estruturas que mantêm e regulam o tono cortical situam-se no subcortex e no tronco cerebral. Na década de 50, dois investigadores Magoun e Moruzzi, apud Luria (op.cit.p.29), mostraram que há uma formação nervosa particular localizada no tronco cerebral – a formação reticular- especialmente adaptada (morfológica e funcionalmente) para controlar e manter o tono cortical e o estado de vigília, além de regular esses estados em concordância com as solicitações reais com que se defronta o organismo. Embora sem que se possa visualizar a formação reticular, a imagem que se segue ajuda-nos a localizar o tronco encefálico em relação ao córtex, esclarecendo-se que é formado pelo: diencéfalo, mesencéfalo, ponte e mielencéfalo ou medula oblonga, que podem ser vidualizadas na figura que se segue do tronco encefálico: 8 Fonseca, V. Cognição, Neuropsicologia e Aprendizagem: abordagem neuropsicológica e psicopedagógica. Petrópolis, Rj: Vozes, 2007. 8 9 As fibras ascendentes e descendentes da formação reticular formam um único sistema funcional verticalmente arranjado, o que pôs fim às idéias de que os mecanismos nervosos dos processos mentais estavam localizados inteiramente no córtex. Estudos que se seguiram e que continuam nos dias de hoje têm comprovado que a formação reticular tanto tem uma função ativadora do córtex, como uma função inibidora. A formação reticular ativadora sofre a influência de, pelo menos, três origens: • a que é representada por aspectos metabólicos do organismo, regulados principalmente pelo hipotálamo, com o qual partes da formação reticular estão intimamente conectadas; • o influxo de estímulos (informações) do mundo exterior que, por meio dos órgãos dos sentidos e dos reflexos de orientação - estreitamente ligados aos mecanismos de memória -, chegam à formação reticular que está relacionada com o sistema límbico, em especial com o hipocampo; • “intenções e planos, previsões e programas que se formam durante a vida consciente do homem que são sociais em sua motivação e que são efetuados com a participação íntima da fala, inicialmente externa e depois interna” (LURIA, idem, p.40). Seria errado considerar o aparecimento de metas como atos puramente intelectuais, pois as fibras descendentes da formação reticular, estendendo-se desde o córtex pré-frontal até os núcleos do tálamo e do tronco cerebral, também participam da formação de intenções e planos, tornando possíveis as formas mais complexas da atividade consciente. Essas informações, decorrentes de estudos e pesquisas, ampliam nosso olhar psicopedagógico, particularmente quando dirigido àqueles clientes ou alunos com 9 10 perturbações no desenvolvimento e na aprendizagem e que se mostram muito lentos, algumas vezes monótonos, inclusive nas respostas às nossas indagações e com astenia geral, embora não apresentem distúrbios na recepção de informações visuais, auditivas, táteis ou cinestésicas. A avaliação de sua motricidade, praxia postural, estruturas rítmicas, fala e escrita, igualmente não evidencia sinais de perturbação. No entanto, apresentam distúrbios de memória, tendência à fadiga, passagem rápida à micrografia, clara redução do tono, começando a desempenhar suas tarefas corretamente e, derrepente, tornando-se lentos até uma total astenia, com modificações no tom da voz e nas reações afetivas que se manifestam como indiferença ou como ansiedade e aflição. Segundo Fonseca (op.cit.,p.48) desordens na primeira unidade funcional podem incluir outros sintomas como insônia, desatenção, hiperatividade e hipoatividade. Em situação de aprendizagem, sujeitos com manifestações de alheamento, tensão, desmotivação, à guisa de exemplo dentre tantos outros que seriam possíveis, podem ficar muito e muito tempo em avaliação e atendimento em busca dos aspectos cognitivos, relacionais e afetivo-emocionais que pudessem explicar seus comportamentos. Mas, se estivemos atentos às contribuições da neuropsicologia, vamos suspeitar da existência de “síndromes silenciosas”9 e buscar a ajuda de outros profissionais, objetivando melhores esclarecimentos para a sintomatologia e para nossas próprias observações clínicas. Com propriedade Ratey e Johnson (1997) referem-se a sombras mentais: pessoas com formas brandas de distúrbios sérios, e mencionam a “confusão quando vemos pacientes que, apesar de não se encaixarem nas teorias clássicas, têm dificuldades na vida” (p.16). O grifo é meu para lembrar que tais teorias podem ser de qualquer ramo dos saberes “psi”. E, prosseguem os autores: “Será que essas dificuldades se devem inteiramente à educação e ao ambiente, ou têm alguma base na biologia do cérebro?” Tenho me formulado essa pergunta com constância, sempre que me deparo com casos que apresentam alguns sintomas que não se “encaixam” nos quadros de referência comumente usados na psicopedagogia, ou que não respondem adequadamente à intervenção no consultório. 9 Ratey, John J., Johnson, C. Síndromes Silenciosas:como reconhecer as disfunções psicológicas ocultas que alteram o curso de nossas vidas. Trad. de Heliete Vaitsman. Rio de Janeiro:Objetiva, 1997. 10 11 Na escola, se conhecida e valorizada essa primeira unidade funcional, ajudará o psicopedagogo e os professores a compreenderem que determinados comportamentos dos alunos são intrínsecos à atividade reguladora de suas atividades corticais e níveis de vigilância. Reclamar, punir, criticar ou insistir para que “aprendam” com mais dedicação ou com práticas de ensino mais exigentes,não vai modificar seus comportamentos, mas poderá acarretar sentimentos contraditórios, inclusive de baixa auto - estima. No consultório caberá aprofundar os processos diagnósticos para a identificação de possíveis alterações neurológicas que expliquem as dificuldades dos alunos. (ii)- A segunda unidade funcional descrita por Luria é de recepção, análise e armazenamento de informações. Localiza-se nas regiões laterais do neocórtex incluindo, também, as regiões visual (occipital), auditiva (temporal) e sensorial geral (parietal). É formada por neurônios isolados que obedecem à regra de tudo-ou-nada10, recebendo impulsos individualizados e transmitindo-os a outros grupos de neurônios. A figura que se segue, igualmente disponível no Google, permite localizar regiões que integram a segunda unidade funcional, na abordagem luriana. Propriedades funcionais evidenciam que esta segunda unidade está adaptada para receber estímulos de receptores periféricos que vão para o cérebro, onde são decodificados e integrados, porque as partes que a compõem possuem grande especificidade para a natureza dos estímulos que recebem, incluindo-se os gustativos e olfativos. 10 A regra de tudo ou nada, diz respeito à propagação do impulso nervoso nos neurônios que são ativados quando um estímulo elétrico provoca, na junção sináptica, a liberação de substâncias químicas - os neurotransmissores.Os efeitos elétricos podem ser excitatórios ou inibitórios e, se a soma dos potenciais excitatórios e inibitórios vindos de todas as sinapses excede determinado valor limiar,o neurônio dispara ou não, um potencial de ação que se propaga a outros neurônios. 11 12 Depreende-se, portanto, que a segunda unidade funcional serve como um aparelho que recebe, analisa e armazena informações que chegam do mundo exterior, ou, em outras palavras como “mecanismos cerebrais de formas modalmente especificas dos processos gnósticos” (LURIA, ibidem, p. 54). Lembra o autor que tais processos são complexos e resultantes de atividades polimodais, envolvendo o funcionamento combinado de várias zonas corticais, porque a atividade gnóstica humana nunca ocorre vinculada a uma única modalidade isolada. Retomando as estruturas hierárquicas já referidas neste texto, na segunda unidade funcional elas se manifestam como se segue: • as áreas primárias (de projeção) recebem informações e as analisam com especificidade modal máxima, isto é, por meio de neurônios com funções altamente diferenciadas; • nas áreas secundárias (de projeção-associação, responsáveis pela decodificação e síntese de informações sejam visuais, auditivas, táteis ou cinestésicas) predominam neurônios associativos e com especificidade modal em grau menor, mas com função gnóstica modalmente específica e, • nas áreas terciárias (responsáveis pelo funcionamento coordenado de vários analisadores e pela produção de esquemas simbólicos) a especificidade modal é muito menor, podendo ser considerada como supramodal, devido ao funcionamento simultâneo de vários analisadores, Essas zonas terciárias são específicas da espécie humana e, nelas, a grande maioria dos neurônios é de caráter multimodal, pois integram informações de diferentes analisadores, organiza-os e converte percepções concretas em pensamento abstrato e, ainda, fazem seu armazenamento. Além de fazer referência ao princípio da especificidade modal decrescente (da área primária à terciária), Luria descreve o princípio da lateralização funcional crescente. Exemplifica que, com o aparecimento de maior aptidão numa das mãos bem como com o aparecimento da fala, algum grau de lateralidade começa a ocorrer.11 No caso de pessoas destras, por exemplo, o hemisfério esquerdo passa a ter um papel dominante e essencial na organização cerebral da fala e de todas as formas superiores de atividades cognitivas a ela vinculadas (percepção organizada em esquemas lógicos, 11 Importante ressaltar que esse fenômeno não foi encontrado em animais, mas no homem tornou-se em importante princípio da organização funcional do cérebro. 12 13 memória verbal ativa, pensamento lógico, etc.). Para essas pessoas o hemisfério direito é subdominante e suas funções nas áreas secundárias e terciárias começam a diferir significativamente daquelas do hemisfério dominante. O reconhecimento e valorização dessa segunda unidade funcional nos leva a examinar, na escola, as condições em que se realizam os processos receptivos dos alunos, de modo a aprimorar, decodificação/codificação no dos processo estímulos ensino-aprendizagem, (informações), mecanismos contribuindo para de o armazenamento de informações relevantes, com longa duração. No consultório ocorre o mesmo, principalmente na fase da avaliação diagnóstica: um Sujeito cansado, mal alimentado, ou sob efeito de medicamentos, que acarretam baixo estado de tono e de vigília será um cliente desatento. Nessas condições, a recepção, as análises e o processamento das questões propostas pelo avaliador (por meio de testes ou não) coloca o avaliado em situação de desvantagem. Não reconhecer essas condições e prosseguir na atividade será um erro, podendo resultar em laudos precipitados e incorretos. Outra contribuição importante diz respeito à lateralidade. Embora estudos realizados na década de 70 apontem que apenas um quarto das pessoas são completamente destras e pouco mais de um décimo das pessoas apresente dominância esquerda, os cuidados com a observação da dominância lateral do Sujeito é importante, na medida em que estudos clínicos evidenciam as consequêcias, para a aprendizagem, de dominância lateral cruzada em vez de homolateral, bem como de dominância contrariada. (iii) – A terceira unidade funcional para programar, regular e verificar a atividade é a responsável pela organização das ações conscientes. É considerada como a unidade de output motor do cérebro (FONSECA, op.cit.,p.53). Além de receber e processar informações que chegam do meio ambiente, o Homem cria intenções, planos e programas para sua vida presente e de futura, regula seu comportamento para atingir seus objetivos e, finalmente, verifica suas atividades, analisando os efeitos de suas ações em relação ao planejado e desejado. Trata-se de processos conscientes desenvolvidos pelas estruturas da terceira unidade funcional que se localizam nas regiões anteriores dos hemisférios cerebrais. A via de saída dessa unidade é o córtex motor com uma estrutura topográfica tal que suas fibras dependendo das partes de onde se originam - enervam mecanismos motores dos membros superiores, dos membros inferiores , face, lábios e língua. 13 14 As partes mais importantes dessa terceira unidade funcional são os lobos frontais que desempenham decisivo papel na formação de intenções, na regulação e verificação das mais complexas formas de comportamento humano. Na imagem que se segue podemos visualizar as partes do lobo frontal que integram a terceira unidade funcional na abordagem de Luria. Uma característica peculiar das regiões pré-frontais (que estão no lobo frontal) são suas conexões com todas as partes do córtex (inclusive com a formação reticular, localizada no tronco encefálico, como assinalado antes), numa bidirecionalidade, que permite receber impulsos aferentes e organizar os impulsos eferentes. A influência do córtex pré-frontal sobre a fala foi objeto de estudos nas décadas de 60 e 70, o que ampliou a compreensão do papel essencial que desenvolve sobre o comportamento humano, particularmente no que respeita às intenções e aos planos formulados com o auxílio da fala. Observe-se que esta habilidade é da maior importância para regular a atividade consciente humana, pois os processos mentais superiores se formam e ocorrem com base na atividade da fala. A importância dessa terceira unidade funcional para a ampliação de nosso olhar psicopedagógico será objeto do próximo item desse artigo que apresenta uma síntese dos estudos sobre as funções executivas. Observações recentes evidenciam que as regiões pré-frontais do córtex tornam-se maduras para a ação, dependendo da velocidade de desenvolvimento do tamanho das 14 15 células constituintes. Essa velocidade aumenta acentuadamente entre três anos e meio a quatro anos de idade e depois, numa espécie de salto, em torno dos sete a oito anos. Podemos correlacionar tal maturação com dois períodos de desenvolvimento da inteligência, segundo a epistemologia genética de Piaget: o período pré-operacional e o das operações concretas. O primeiro com a criança entre 2 e 6 anos caracteriza-se: “por uma certa coerência a nível da ação, o que dá certa estabilidade à vida da criança em termos de atividades cotidianas. Porém a nível de pensamento estará em desequilíbrio ou em equilíbrio instável, dadas as inadequações do pensamento egocêntrico em termos de compreensão da realidade.[...] a criança tenderá muito mais a assimilar dados da realidade externa à sua visão de mundo (onde pensamento lógico e fantasia se confundem) do que se acomodar a eles. (RAPPAPORT et. al, 1981, volume III, p.44)12. Em torno dos 7 anos e até os 12, a criança está no período das operações concretas, no qual notam-se significativas diferenças em seu comportamento, linguagem, nas suas relações sociais e na qualidade de seu raciocínio. O egocentrismo estará diminuindo rapidamente e o nosso sujeito do conhecimento deixará de perceber a realidade a partir de si próprio passando a perceber as contradições de seu pensamento, a sentir necessidade de comprovação empírica de seus julgamentos, a abandonar o pensamento fantasioso, tornando-se capaz de se relacionar com a realidade externa física e social de maneira mais adequada (RAPPAPORT et al., 1981, volume IV, p.49). 12 Rappaport, C.R, Fiori, W.R., Davis,C. Psicologia do desenvolvimento: a idade préescolar.Volume 3 e Psicologia do desenvolvimento: a idade escolar e a adolescência.Volume 4. São Paulo:EPU, 1981-1982. 15 16 É possível e desejável buscar as relações entre esses fenômenos cognitivos e a base biológica que os sustenta. A própria Rappaport refere-se a elas, inclusive quando analisa as fases anal, fálica, de latência e genital, na abordagem psicanalítica freudiana. Outros autores também se referem à relação entre corpo e cérebro, como consta da citação: Na criança as aquisições decorrentes da aprendizagem numa dada idade vão sendo adquiridas e integradas sequencialmente num processo evolutivo longo desde a imaturidade, passando pela desmaturidade, até atingir a maturidade neuropsicológica, processo de mudança e de desenvolvimento extremamente complexo e articulado entre as três unidades funcionais, mas obviamente contextualizado na multiplicidade e qualidade interativa dos ecossistemas sociais (micro-meso-exo-macro), que atuam ora sequencialmente, ora simultaneamente no seu processo de desenvolvimento multicomponencial, multiexperiencial, multicontextual. (BRONFENBRENNER, 197713, apud FONSECA, 2007, p.58). (O grifo é meu, para destacar a importância da participação do cérebro). E, para finalizar esse bloco sobre as unidades funcionais do cérebro, mais algumas idéias de Luria (ibidem) referentes à interação entre elas: • As três unidades funcionais atuam de forma combinada, sendo um erro supor que atuam independentemente, embora cada uma ofereça sua contribuição própria; • No caso das funções perceptivas, elas ocorrem por meio da ação combinada das três unidades funcionais do cérebro, sendo que a primeira fornece o tono necessário; a segunda leva a cabo a análise e a síntese das informações que chegam e a terceira provê os movimentos necessários para conferir à atividade perceptiva o seu caráter ativo; • Os movimentos voluntários e, mais especificamente, as manipulações de objetos envolvem o funcionamento combinado de diferentes partes do cérebro: os sistemas da primeira unidade suprem o tono muscular necessário; os da segunda unidade oferecem as sínteses aferentes e os da terceira unidade produzem 13 Bronfenbrenner,U. Ecologial factors in human development,in retrospect and prospect. In: Mc GURK,H Ecologial Factors in Human Developmente. Amsterdan [s.ed.]. 16 17 programas para a execução da ação motora e todos os mecanismos para seu controle e correção. e envolvimento ecológico facilitador interagem reciprocamente para Uma observação da maior importância, no caso da percepção de objetos, é que ela tem natureza polirreceptora dependendo do funcionamento combinado de um grupo de analisadores e incorporando vários componentes motores ativos. O papel virtual de movimentos oculares já descritos por Sechenov (1874, apud LURIA) tem sido ressaltado nos atuais estudos de ortóptica, confirmando-se que a percepção de objetos se baseia, sempre, além da recepção, na utilização de movimentos ativos dos olhos, que buscam, selecionam e organizam os indícios perceptivos iniciais. Assim, parece indispensável, além dos cuidados habituais com a acuidade visual, que tenhamos outros, na ortóptica, e que estão relacionados com a motricidade dos olhos, lembrando-nos que eles trabalham em paridade. E, como corolários para todas as informações que pude sintetizar objetivando expandir e, talvez, complicar nossa reflexão, reforço algumas premissas: • Substratos neurológicos que comportamentos possam surgir de acordo com uma hierarquia neurológica pré-estruturada; • Mas... sem experiências de aprendizagem mediatizadas (como processo intencional e social) as habilidades não emergem, pois é indispensável que indivíduos mais experientes transitem nessa zona de maturação neurológica, transformando potenciais latentes em potenciais reais (VYGOSTSKY,198614). 2- O cérebro executivo Compreender o funcionamento do cérebro tem sido um enorme desafio para o Homem. Nos dias atuais, graças ao advento da imagenologia funcional que permite o mapeamento do cérebro em atividade e às inúmeras pesquisas sobre o funcionamento neural, alguns mistérios vêm se esclarecendo. 14 Vygotsky. L. Collected Works: problems of general psychology. Nova York: Plenum, 1986. 17 18 Como órgão, o cérebro está sujeito a influências, respondendo sempre que estimulado e deteriorando-se por influência de inúmeros fatores, como por exemplo, lesões causadas por diferentes causas, ou efeitos da idade. Numa interessante metáfora, Goldberg (2002)15 refere-se ao mundo mental como uma orquestra com grandes músicos: os talentos, as aptidões e os conhecimentos sendo que, no neocórtex sem dúvida, estão os mais competentes atores da orquestra cerebral, os responsáveis pelas funções executivas. Função executiva é um conceito neuropsicológico recentemente formulado. Usando a metáfora da orquestra, cada músico (toca ou executa suas habilidades por meio de seu instrumento), tendo responsabilidades em relação a ele e na articulação com os demais músicos da orquestra, para não desafinar... Cada músico como executor deve: levantar informações (sobre seu instrumento e partitura, autores da melodia, dos arranjos orquestrais, etc); impor-se uma organização (criar estratégias para facilitar sua execução); formular planos (criar caminhos para atingir suas metas de tocar com proficiência); fixar objetivos (manter-se articulado com os demais músicos); manter controle sobre circunstâncias cambiantes (como os diferentes comandos do regente da orquestra, por exemplo) e, até mesmo, antecipar numerosas possibilidades e modificar objetivos e planos de acordo com as referidas circunstâncias. Nos últimos anos a neuropsicologia tem ampliado o número de pesquisas sobre as funções executivas e suas relações com o córtex pré-frontal que ocupa quase um terço da massa total do cérebro. Dentre os pesquisadores do tema no Brasil, cabe citar Alessandra G.S. Capovilla, Ellen Carolina S.Assef e Heitor Francisco P Cozza, autores de um texto muito esclarecedor “Avaliação Neuropsicológica das funções executivas e relações com a desatenção e hiperatividade”16. O córtex pré-frontal mantém relações múltiplas e quase sempre recíprocas com inúmeras outras estruturas encefálicas, como o córtex parietal, temporal e occipital, bem como com diversas estruturas subcorticais, especialmente com o tálamo e possui as únicas representações corticais de informações provenientes do sistema límbico. Em decorrência é caracterizado como local de interface entre a cognição e a emoção. 15 Goldberg, Elkhonon. O cérebro executivo:lobos frontais e a mente civilizada Trad. De Raul Fiker e Márcia Epstein Fiker. Rio de Janeiro:Imago Ed. 2002. 16 Capovilla,A.; Assef,E.C e Cozza, H.F Avaliação Neuropsicológica das funções executivas e relação com a desatenção e hiperatividade. Disponível em http://pesic.bvs-psi.org.br/scielo.php? Acessada aos 7/07/09. 18 19 O córtex pré-frontal, localizado no lobo frontal, pode ser subdividido em três regiões funcionais: • córtex dorsolateral; • córtex ventromedial ou córtex orbitofrontal • córtex cingulado anterior. As imagens extraídas do sistema de buscas oferecido pelo Google, ajudam na localização das regiões funcionais do córtex pré-frontal: a) CÓRTEX DORSOLATERAL b) CÓRTEX ORBITOFRONTAL c) CÓRTEX CONGULADO ANTERIOR 19 20 Dessas três regiões o córtex pré-frontal ventromedial é o que está mais articulado com o sistema límbico responsável principal por nossas emoções, ficando as outras duas regiões mais relacionadas com tarefas cognitivas. Tais tarefas (ou funções executivas), segundo estudos de Gazzaniga (2002, apud CAPOVILLA et al., op.cit.) constituem-se como aspectos complexos da cognição e envolvem a seleção de informações, a integração de informações atuais com informações previamente memorizadas, planejamento, monitoramento, flexibilidade cognitiva, tal como descrito na metáfora dos músicos de uma orquestra. Segundo Paul J. Eslinger17, nos estudos neuropsicológicos, as funções executivas têm sido demonstradas como sendo muito diferentes da inteligência geral e da memória, o que se traduz como um cuidado conceitual, tanto no diagnóstico quanto na intervenção psicopedagógica, seja na escola ou no consultório. As áreas do cérebro que possibilitam funções executivas são as últimas a amadurecer sendo que, progressivamente vão permitindo: dominar os conhecimentos para fatos, números, palavras e imagens. Tais funções são indispensáveis para nossas atividades e para as adaptações ao contexto que nos rodeia porque são responsáveis, em cada um de nós, pela consciência em relação ao nosso conhecimento e ao nosso desconhecimento. Como escreve Eslinger (op.cit.), uma parte substancial das funções executivas consiste em desenvolver modelos mentais de processos que respondem ao “quê”, “onde”, "como", "porquê" e "quando" utilizar os conhecimentos adquiridos para os comportamentos dirigidos a metas. Uma das funções executivas que tem merecido estudos e pesquisas diz respeito à memória operacional ou de trabalho, especialmente relacionada ao córtex pré-frontal 17 Eslinger, P.J O cérebro e a aprendizagem. Disponível em http://www.cerebromente.org.br/n17/mente/braindevelopment_p.htm, acessado aos 6/09/09. 20 21 lateral, uma espécie de repositório transitório de informações importantes a serem acessadas por outros circuitos neurais. Estudos de Gazzaniga e colaboradores (2002), evidenciam que uma alteração na memória de trabalho pode se manifestar como perseveração, fenômeno com o qual se defrontam psicopedagogos que atuam na clínica e na escola, ouvindo “queixas” das professoras e familiares de que os aprendizes repetem e repetem o mesmo erro, apesar de seus esforços para corrigi-los. Com a contribuição da neuropsicologia, podemos ampliar nosso olhar para incluir, dentre as hipóteses que formulamos para esclarecer esta problemática, a possibilidade de haver uma deficiência no sistema de memória de trabalho por possível lesão ou disfunção do córtex pré-frontal. Existe um instrumento para uso de psicopedagogos com formação inicial na Psicologia que é o Teste de Categorização de Cartas de Wisconsin, publicado no Brasil em 2005 (imagem abaixo) e cujos resultados permitem avaliar a perseveração por meio da manutenção do mesmo padrão, no agrupamento das cartas. Tal ocorre por uma dificuldade de selecionar e reter as características relevantes do estímulo apresentado, de modo a guiar uma nova escolha que não a anterior. Como uma mesma escolha perdura, diz-se que há um comportamento perseverante. Apesar das memórias de longo prazo não estarem estocadas no córtex pré-frontal, mas sim em regiões posteriores, principalmente temporais e parietais, o córtex pré-frontal parece ser o responsável por resgatar estas informações e mantê-las ativas. Para que determinada informação permaneça ativa durante a realização de uma tarefa, é necessária uma seleção das informações que são relevantes e, paralelamente, inibição de outras, irrelevantes. Assim, a seleção de informações é um segundo componente que tem sido associado às funções executivas e ao córtex pré-frontal, estando mais relacionada à atenção do que à memória. 21 22 Para a seleção, o córtex pré-frontal pode ser considerado como um mecanismo de filtragem dinâmica de informações, atentando às que são relevantes e ignorando ou inibindo as irrelevantes (SHIMAMURA, 2000, apud CAPOVILLA et al., op.cit). Na avaliação, os psicopedagogos/psicólogos podem usar alguns testes que oferecem pistas muito interessantes sobre a inibição cognitiva, como é o caso do teste de Stroop (1935) no qual são apresentadas palavras escritas correspondentes a nomes de cores. Algumas vezes o que está escrito corresponde ao nome da cor e outras vezes não como na figura abaixo: Na condição congruente a palavra verde vem escrita na cor verde, por exemplo, e na condição divergente a palavra verde vem escrita em outra cor. A solicitação pode ser ler a palavra, inibindo-se o nome da cor em que aparece escrita. Outras vezes a seleção é dizer o nome da cor, inibindo-se o impulso de ler a palavra. Pacientes com lesão no lobo frontal apresentam inúmeras interferências da cor na leitura das palavras, evidenciando dificuldades nos processos de inibição. Tal função executiva é da maior relevância na aprendizagem humana e precisamos estar atentos, pois se um Sujeito não consegue interromper uma atividade (física ou mental) ou desconcentrar sua atenção, dirigindo-a a outro foco, apresentará problemas na aprendizagem que até podem ser confundidos com teimosia, falta de atenção, déficit intelectual, ou como uma resposta de desafio aos comandos que recebe. Uma outra e também importante função executiva é o planejamento que pode ser entendido como uma “antecipação de eventos e de suas conseqüências”. Planejar requer toda uma hierarquia de ações (sub-objetivos) que encaminham para a meta que se deseja alcançar. Se desejo escrever um texto, por exemplo, necessito selecionar, estocar e manipular informações relevantes sobre o tema, bem como organizar, mentalmente, o “caminho” a ser percorrido antes de começar a escrevê-lo, na prática. Necessito igualmente criar estratégias, organizando os “passos” seqüenciais a serem dados, objetivando facilitar a produção do texto, assim como monitorar sua qualidade, seja 22 23 relendo, ouvindo a opinião de estudiosos do assunto, buscando mais informações atualizadas. Quando um psicopedagogo/psicólogo defrontar-se, na escola ou no consultório, com alunos cuja queixa é “desorganização, improvisação, desatenção e enorme dificuldade de antecipar consequências do que faz e do que deixa de fazer”... há um interessante recurso de natureza instrumental que oferece informações com base na neuropsicologia. Refiro-me ao teste da Torre de Hanói, que foi adaptado e simplificado por Shallice e Mc Carthy (1982) e recebeu o nome de Torre de Londres (imagem abaixo). Ele apresenta níveis graduais de dificuldade e a solução adequada implica, principalmente, nas funções executivas de planejamento, flexibilidade e inibição. A flexibilidade cognitiva é outra das funções executivas relacionada com mudança ou alternância de objetivos, sempre que ocorrerem imprevistos que interfiram no plano inicial. Servem como exemplo os desempenhos esperados em dois testes neuropsicológicos: (i) O teste de Stroop de cores e palavras, já descrito anteriormente, que permite conhecer, além da flexibilidade cognitiva, a atenção seletiva e concentrada, bem como a inibição, principalmente na solicitação em que se apresentam os cartões com palavras escritas com diversas cores, cabendo ao avaliado dizer o nome da cor, sem ler a palavra. (ii) O Teste das trilhas – Trail Making Test – TMT, no qual o avaliando deve conectar números desenhando uma linha entre eles em ordem ascendente e depois, deve ligar alternadamente, números e letras em ordem crescente e alfabética. Foi elaborado para avaliar a velocidade de processamento, inibição, praxia e flexibilidade cognitiva, além de envolver planejamento motor e visual. 23 24 Estudos recentes apontam que dificuldades na flexibilidade cognitiva manifestamse mais intensamente quando são requeridas evocações da memória de trabalho, como é o caso dos testes mencionados e não tanto quando os estímulos para retomar o plano inicial estão disponíveis no ambiente. Se tomarmos como exemplo os músicos da orquestra, no caso de um instrumento desafinar e o maestro interromper a execução, ao retomar o concerto, cada músico poderá recomeçar do ponto em que parou, por orientação do maestro, sem depender de sua memória de trabalho, até porque dispõe da partitura. Estudos de neuroimagem têm sugerido que o sulco frontal inferior (região do córtex pré-frontal lateral) de ambos os hemisférios é a região primariamente responsável por esta habilidade de flexibilidade (KONISHI e colaboradores, 1998, apud CAPOVILLA et al.). Mas no teste de Stroop exames com neuroimagens (LEUNG, SKUDLARSKI, GATENBY, PETERSON & GORE, 2000, apud CAPOVILLA et al., op.cit.) evidenciam uma ativação do córtex cingulado anterior, nas situações divergentes (por exemplo quando a palavra azul está escrita em cor verde e se pede a nomeação da cor, sem ler a palavra). Diante de inúmeras evidências, o córtex cingulado anterior tem sido conceituado como um “sistema de supervisão de atenção que atua em condições novas, em tarefas difíceis e na correção de nossas respostas erradas. A propósito de situações novas em contraposição às situações rotineiras, há que mencionar, de novo, Goldberg (op.cit) que se refere ao papel especial desempenhado pelos lobos frontais e pelo hemisfério direito ao lidar com as novidades e pelo hemisfério esquerdo na implementação de rotinas. Para os processos de aprendizagem essas descobertas18 evidenciam que as mudanças que o processo acarreta são, ao menos, duplas: “com o aprendizado o lócus do 18 No “National Institute of Mental Health, JIM GOLD e seus colegas pesquisadores estudaram- com o uso de Tomografia pela Emissão de Pósitrons (TEP)- as mudanças nos padrões do fluxo sanguíneo no curso do desempenho de tarefas complexas: no estágio inicial (da novidade) a ativação foi muito maior na região préfrontal à direita do que na esquerda. Mas à medida em que a tarefa se tornou conhecida e rotineira, o padrão 24 25 controle cognitivo desloca-se do hemisfério direito para o hemisfério esquerdo e das partes frontais do cérebro para as posteriores” (p.70-77). Penso que essas contribuições - frutos de estudos e de pesquisas com grupos experimentais e de controle e graças aos avanços trazidos pelas técnicas de imagenologia funcional- desestabilizam muitos dos nossos conhecimentos, particularmente aqueles referentes às funções dos hemisférios cerebrais e as referentes ao lobo frontal. Finalizando, enfatizo a importância de incluirmos em nossos estudos as contribuições da neuropsicologia, particularmente no que se refere às funções executivas que englobam uma multiplicidade de funções refinadas e complexas (atenção, memória linguagem, aritmética, praxias, orientação têmporoespacial) que estão articuladas com diferentes regiões dos lobos frontais e destas com outras regiões cerebrais, inclusive e principalmente com as relacionadas às nossas emoções. Distúrbios nas funções executivas e no córtex pré-frontal são encontrados em quadros de problemas psiquiátricos e cognitivos, como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), dentre outros mencionados nas nossas práticas. Considerando minha própria formação na Psicopedagogia, a experiência clínica como psicóloga e a larga experiência como educadora, entendo que o conhecimento que se pode construir com a contribuição da neuropsicologia, enquanto teoria e prática são indispensáveis ao nosso trabalho. Nem sempre, ao usarmos nossos instrumentos de avaliação buscamos, intencionalmente, analisar as funções executivas de nossos clientes, até porque não estão, ainda, o suficientemente identificadas nos nossos instrumentos. Creio que aí reside um interessante desafio que nos permitirá, ao fazer nossas observações durante o diagnóstico - seja com a utilização de testes ou de jogos-extrair informações além das que estão previstas nos manuais e em nossas observações rotineiras. foi revertido: mais ativação na região pré-frontal à esquerda do que na direita, confirmando-se achados anteriores que relacionam o hemisfério direito com a novidade e o esquerdo com a rotina. Outros estudos evidenciam que o efeito novidade/familiaridade está presente seja qual for a natureza do estímulo. “isto é valido tanto para os símbolos (os quais, no esquema ortodoxo deveriam estar ligados ao hemisfério esquerdo, como para faces- que no esquema ortodoxo deveriam estar ligadas no hemisfério direito) (Elkhonon, op.cit.p.75). 25 26 A ampliação de nosso olhar com as lentes da neuropsicologia servirão para esclarecer os “casos” que nos procuram ou que são mencionados nas escolas, bem como para as análises qualitativas de nossos achados. Podemos e devemos levar os educadores e famílias a estimular as crianças para o desenvolvimento das funções executivas. Elas expandem-se por meio de brincadeiras e de atividades pedagógicas que envolvam atenção seletiva, memória de trabalho, planejamento, inibição motora e cognitiva, flexibilização cognitiva, organização, manejo do tempo, auto-regulação do afeto e persistência para que sejam alcançados os objetivos que elegemos. Na escola é desejável promover o trabalho em grupo porque desenvolve relações interpessoais e práticas colaborativas, úteis por toda a vida. Pais, educadores, neurocientistas e psicopedagogos devem iniciar um diálogo sobre como entender mais e utilizar melhor as unidades funcionais do cérebro, bem como promover o desenvolvimento das funções executivas em cada criança. Com tal parceria, será possível beneficiar nossos aprendizes, com ou sem problemas na aprendizagem, levando-os a desenvolver redes neurais de grande resiliência e que poderão ser acionadas para o desenvolvimento de habilidades e competências. Sara Paín me inspirou no início deste trabalho que encerro com uma citação de Vygotsky, mencionada por Oliveira (1999): As funções psicológicas têm um suporte biológico, pois são produtos da atividade cerebral. O funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior, as quais desenvolvem-se num processo histórico e a relação homem-mundo é uma relação mediada por sistemas simbólicos (OLIVEIRA, 1999,P.23)19. 19 Oliveira, M.K. Vygotsky, aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio-histórico. S.P. Scipione, 1999. 26 27 Porque acredito nisso quero compartilhar; porque ao apresentar minhas idéias, mantenho-me no desejo de compartilhá-las, com a expectativa de estimular debates, receber críticas e sugestões, para serem igualmente compartilhadas. Afinal, desejamos todos aprimorar, sempre, aquilo que fazemos! Referências Bronfenbrenner,U. Ecologial factors in human development,in retrospect and prospect. In: Mc GURK,H Ecologial Factors in Human Developmente. Amsterdan [s.ed.]. Capovilla,A.; Assef,E.C e Cozza, H.F Avaliação Neuropsicológica das funções executivas e relação com a desatenção e hiperatividade. Disponível em http://pesic.bvspsi.org.br/scielo.php?. Eslinger, P.J O cérebro e a aprendizagem. http://www.cerebromente.org.br/n17/mente/brain-development_p.htm Disponível em Fonseca, V. Cognição, Neuropsicologia e Aprendizagem: abordagem psicopedagógica. Petrópolis, Rj: Vozes, 2007. neuropsicológica e Goldberg, Elkhonon. O cérebro executivo:lobos frontais e a mente civilizada Trad. e Raul Fiker e Márcia Epstein Fiker. Rio de Janeiro :Imago Ed. 2002. IGEA, B.R. e col. Presente e futuro do trabalho psicopedagógico. Trad. Antonio Feltrin. Porto Alegre: Artmed, 2005. Kandel,E; Schwartz,J; Jessel T. Fundamentos da neurociência do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2000. 27 28 Luria, A.R. Fundamentos de Neuropsicologia. Trad. de Juarez Aranha Ricardo. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo:Ed.da Universidade de São Paulo, 1981. Oliveira, M.K. Vygotsky, aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio-histórico. S.P. Scipione, 1999. Paín, S. Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem . Trad. de Ana Maria N.Machado. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985 Rappaport, C.R, Fiori, W.R., Davis,C. Psicologia do desenvolvimento: a idade préescolar.Volume 3 e Psicologia do desenvolvimento: a idade escolar e a adolescência.Volume 4. São Paulo:EPU, 1981-1982. Ratey, John J., Johnson, C. Síndromes Silenciosas:como reconhecer as disfunções psicológicas ocultas que alteram o curso de nossas vidas. Trad. de Heliete Vaitsman. Rio de Janeiro:Objetiva, 1997. Vygotsky. L. Collected Works: problems of general psychology. Nova York: Plenum, 1986. Winograd,M. Freud, o corpo e o psiquismo Revista Percurso, n. 28, 1/2002 disponível em http://br.geocities.com/materia_pensante/conceitos_membrana.htm SITEShttp://br.geocities.com/materia_pensante/conceitos_membrana.html http://pesic.bvs-psi.org.br/scielo.php?. http://www.cerebromente.org.br/n17/mente/braindevelopment_p.htm 28