COMO NÃO SER “BEBÊ”? Trabalho em análise de um jovem psicótico Ana Beatriz Freire e Fabio Malcher Iniciei minhas reflexões para esse depoimento de trabalho a partir da questão: o que preocupa esse sujeito? A preocupação de Sandro, 17 anos1, parece estar muito ligada à questão do crescimento. Como ocupar um lugar subjetivo diferente de “bebê”? Como se apropriar de um corpo púbere, localizando-o na questão de gênero? O presente depoimento trata, em três momentos lógicos, da maneira que Sandro vem trabalhando no dispositivo de análise de forma a produzir algo da diferença na construção de um novo lugar diante do Outro, um lugar que o forneça maior abertura ao laço social. Em entrevista com a mãe, ela relata que por vezes Sandro lhe faz a pergunta “eu sou seu neném?”, geralmente seguida de “você me ama?”. Essa posição de “neném”, “bebê”, parece fornecê-lo um lugar mais estável no campo do Outro. Por outro lado, “você não é mais criança” é uma fala muito recorrente à sua volta, em tom de queixa. No entanto, cabe questionar se este enunciado se sustenta como enunciação, visto que o tratamento dispensado a Sandro no seu dia-a-dia tende a reforçar seu lugar de criança, por exemplo, ajudando-o muito diretamente em seus cuidados pessoais. A mãe de Sandro não gosta quando ele brinca com bonecos em casa, pois considera coisa de “criança” e que ele não tem mais idade para isso. Como analista, minha decisão foi de tomar seu brincar, a encenação com o uso de bonecos, enquanto um recurso capaz de mediar sua relação com o Outro, protegendo-o em certa medida, e possibilitando alguma localização de gozo, alguma abertura ao laço social. Primeiro momento: repetições incessantes Sandro recorre ao uso de bonecos em encenações lúdicas nas sessões, sempre comandando as cenas. Os personagens são quase sempre os mesmos, e dividem-se, 1 Participante do projeto de pesquisa “Circulando e traçando laços e parcerias: atendimento para jovens autistas e psicóticos - do circuito pulsional ao laço social”, na UFRJ, financiado pela Faperj e CNPq, em convênio com o Serviço Infanto-Juvenil do Instituto Municipal Philippe Pinel, coordenado por Ana Beatriz Freire e supervisão de Ana Beatriz Freire, Kátia Alvares e Doris R. Diogo. claramente, entre crianças e adultos, ambos com funções definidas. As crianças seguidamente atuam de maneira a burlar as regras e convenções sociais; aos adultos cabe a função de punir tais atos, bem como fornecer os cuidados, como dar mamadeira, chupeta, trocar fralda, dar banho, momentos em que o corpo fica em evidência. Mesmo sem uma definição diagnóstica pelo autismo, entendo o recurso aos bonecos como o uso de um duplo, de um objeto autístico complexo, que “[...] afasta o gozo do corpo do sujeito, localizando-o em uma borda, que não apenas faz barreira ao mundo externo, mas também promove uma conexão à realidade social.”2. Segundo Maleval, esse importante objeto tem como função: “[...] deslocar o lugar de emissão da enunciação, fazendo falar um duplo ou um objeto no lugar do sujeito [...] é o duplo que fala, e não eles [...] dominar a troca, protegendo o sujeito, que permanece à distância dela, essa é a função do duplo, como suporte de uma enunciação artificial.” (Maleval, 2012: 63)3 Embora a posição de enunciação seja difícil para Sandro, não há uma recusa radical típica do autismo, falando por diversas vezes em primeira pessoa, respondendo algumas perguntas diretas, ou pedindo algo; de qualquer forma, nas encenações sua fala fica visivelmente mais fluente, revelando-se certa cessão de gozo vocal. Sobretudo, esse recurso cumpre a função de aparelhar um excesso pulsional, localizando o gozo nas falas e nos atos dos bonecos, mediando sua relação com o Outro. Visto que o laço social se refere ao laço entre os significantes (Naveau, 2005: 56)4, entendo que a possibilidade de melhor articular a fala nas encenações com os bonecos, e a função de aparelhamento de gozo, apontam na direção de alguma abertura ao laço social por parte de Sandro. Entretanto, um excesso de gozo também surge em alguns momentos das próprias encenações, na forma de movimentos exagerados, descontrolados, com riso muito 2 Pimenta, P. “Objeto e linguagem em um caso de autismo”. Em: Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. orgs. Alberto Murta, Analícea Calmon e Márcia Rosa. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p.171 3 4 Maleval, JC. “Língua verbosa, língua factual e frases espontâneas nos autistas”. op. cit., p.63 Naveau, P. “Les psychoses et le lien social: le nœud défait”. Paris: Anthropos, p: 56 (“C’est là la démonstration que le lien entre les signifiants est très précisément le lien social. Et cela tient à la phrase, au nœud qu’elle noue entre les mots.” - “Está aí a demonstração de que o laço entre os significantes é muito precisamente o laço social. E isso se refere à frase, ao nó que ela enoda entre as palavras.”) intenso, em especial quando alguma criança faz algo errado, bem como quando o adulto aplica um limite ou punição, algo que nunca deixa de acontecer, sempre surgindo essa figura que representa alguma lei. Chama atenção como ambos os casos são igualmente deleitosos para Sandro, revelando-se certa indiferenciação entre os registros do gozo e da lei. Houve momentos em que Sandro chegou a machucar a si mesmo e a mim com movimentos exagerados com os bonecos, momentos em que me recusei a prosseguir a encenação, demarcando um limite. Tal relação do sujeito com a dimensão da lei revela que, embora a forclusão do significante Nome-do-Pai não tenha possibilitado a Sandro a introjeção da Lei, essa questão o ocupa bastante, sendo grande parte de seu trabalho justamente em torno desse ponto, em um esforço repetitivo na tentativa de circunscrever alguma borda em torno desse furo. Ao seu modo singular, Sandro enfrenta a questão da lei. O desregramento de gozo que perpassa o sujeito se apresenta na falta de limites, tanto das crianças em suas travessuras, quanto dos adultos em suas punições. As crianças fazem atos seguidos de rompimento com o laço social, como tirar a roupa na escola, jogar bola durante a aula, brigar pela posse de objetos diversos, realizar xingamentos entre si e aos adultos, entre outros. Interessante notar que os limites e punições aplicados pelos adultos são imprescindíveis para Sandro, porém, também são desregrados, permeados de gozo, chegando a níveis inviáveis, como perder o recreio desde um minuto até semanas. Alguns momentos mais difíceis e de excesso por parte de Sandro surgiram quando não apliquei tais punições, parecendo ser insuportável abrir mão do gozo nesse ponto. Em outras ocasiões, foi possível sustentar essa perda e a cena deslizou para outra direção, que invariavelmente retorna para uma situação em que uma criança rompe com o contrato social, surgindo um adulto para atuar junto a ela. O primeiro momento lógico da análise de Sandro se deu dessa maneira, com o recurso ao duplo em encenações repetitivas. Como possibilitar o aparecimento de algo novo nessa repetição? Segundo momento: surge o novo a partir de sua invenção Certamente que a resposta a essa questão teria de vir através do recurso eleito pelo próprio sujeito, de sua invenção, as encenações com os bonecos. Primeiramente, refleti acerca da própria construção de tal recurso por parte do Sandro, na medida em que uma invenção tende a surgir diante de algum ponto de insuportável, de avassalador ou inassimilável ao sujeito, como parece ser, para ele, a questão da diferença sexual, articulada à questão do crescimento. Decido esperar o tempo lógico do sujeito até que ele próprio opte por uma posição de buscar, sempre a partir de sua invenção, o novo, a diferença no que tange as questões de gênero e do crescimento. Assim, começa um segundo momento lógico da análise, em que temos o surgimento do novo a partir das repetições nas encenações com os bonecos. A condição “bebê” ou “neném” se articula privilegiadamente aos significantes “chupa chupeta”, “toma mamadeira” e “usa fralda”, sendo estes os cuidados pessoais que os adultos fornecem com maior frequência nas cenas. O trabalho de Sandro em análise passa justamente pela possibilidade de extrair de lalangue5 algum significante capaz de se articular a uma condição diferente de “bebê”, algum S1 que possa aparelhar o gozo de maneira a fornecer ao sujeito um novo lugar diante no Outro. Missão nada simples se levarmos em conta sua condição estrutural, sem poder contar com o Nomedo-Pai nessa empreitada. Os adultos e as crianças que não são “bebê” são definidos por Sandro como aqueles que não chupam chupeta, nem tomam mamadeira ou usam fralda, não se destacando, inicialmente, um significante que marque positivamente a condição de não ser “bebê”. Entre os bebês há uma personagem central, a qual, em determinada sessão, Sandro denominou “muito bebê”, enquanto as outras bonecas eram somente “bebê”. Pergunto o que cada personagem faz sozinho, sem a ajuda de um adulto. Sandro indica que uma bebê toma banho, enquanto outra toma mamadeira sozinha; a “muito bebê” não fazia nada sem ajuda. Em entrevista com os que se ocupam dele, soube que Sandro recentemente passara a tomar banho sem ajuda direta, somente com certa supervisão. Após o uso do banheiro, ele não se limpava sozinho, pedindo ajuda. Indico à família sua possível condição de fazer isso sozinho, mesmo que precise tomar banho em seguida. Entendo a produção desse significante “muito bebê” enquanto uma nomeação, algo novo que surge na invenção singular do sujeito. Em sessão recente, a professora propõe que os alunos sejam separados em duas turmas, uma com os “bebês” e outras com os demais. Ao perguntar a Sandro sobre quem comporia essa última turma, ele diz “moças”, outro significante novo que surge em relação àqueles que não são “bebê”. 5 Lacan, J. (1972-3) O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p.194 Embora seja interessante o surgimento da diferença com relação ao “bebê, esses ainda não parecem ser significantes dos quais Sandro tenha se servido para se articular como sujeito e lidar com suas preocupações. O trabalho de diferenciação entre os personagens também ocorre. No início, além da personagem central e de seu irmão, as outras crianças tinham o mesmo nome. Indico a dificuldade da professora em diferenciar as alunas de mesmo nome, ao que ele fornece sobrenomes diferentes a elas. Certa sessão, a “muito bebê” cochicha no ouvido da professora que parou de usar fralda, mas na sessão seguinte volta a usar. Os outros também cochicham para professora sobre usar ou não fralda, mamadeira ou chupeta. Terceiro momento: o novo fora das encenações com bonecos Um terceiro momento se constitui a partir da disposição de Sandro para passar certo tempo de suas sessões em trocas com o analista sem recorrer ao duplo. Pergunta se tem jogo do seu time na televisão, indica suas preferências musicais. Ofereço um aparelho de som, ele gosta da proposta, e escolhe a estação de rádio que costuma ouvir em casa e que toca o estilo de música que ele quer ouvir no momento. Lista outras estações que gosta, bem como outros estilos musicais e artistas. Indico que ele pode trazer de casa algum CD que queira ouvir na sessão, o que ele faz algum tempo depois. Cada vez mais há momentos em que ele prescinde do duplo nas sessões, mesmo que recorra a esse recurso depois. Por vezes, foi possível articular o uso do som com as encenações, surgindo um rádio na escola, um baile funk com os alunos, ou sendo a perda do som por parte dos alunos uma punição promovida pela professora. Entendo essa abertura por parte de Sandro também enquanto algo novo que pôde surgir em análise. Contudo, isso não significa que o recurso ao duplo nas encenações com os bonecos tenha sido deixado de lado, sendo tal recurso ainda muito valioso na mediação de sua relação com o Outro. Um trabalho constante: construção de um corpo e a diferença sexual Ao longo das encenações, a professora ajuda os alunos em seus cuidados pessoais, dando banho, trocando fralda, momentos em que outros alunos tentam espiar o corpo nu e Sandro, entre risos, aponta e nomeia partes do corpo, como “peito”, “mamilo”, “bumbum” e “isso” ou “aqui” para os genitais. Esse mapeamento erógeno do corpo dos bonecos também surge nas incessantes oportunidades em que as crianças tiram a roupa em locais impróprios, e parece fazer parte de um esforço de Sandro na construção de um corpo, algo mais premente a partir das mudanças corporais que vem experimentando na puberdade. Temos aqui a fundamental questão de como se apropriar de um corpo púbere, localizando-o no gênero, parecendo ter a fralda certa função de véu com relação à diferença sexual, com um constante trabalho em torno desse velamento e desvelamento nas encenações com os bonecos. As trocas de fralda são frequentes, bem como o uso da mamadeira e da chupeta, as idas ao banheiro e os banhos dados nas personagens. Com o tempo, Sandro marca a diferença entre os genitais dos meninos e das meninas, indicando que o genital do que “é menino” (boneco com pequeno barbante indicando o genital), o pai “também tem” (mesmo o boneco tendo essa parte lisa), enquanto das meninas ele diz que “ela não tem”. Ao enfrentar a questão da diferença sexual, Sandro parte da pequena diferença6, anatômica, não chegando à diferença lógica, sustentada na ordem fálica, que depende do preço da castração7, da renúncia ao gozo do órgão, do pênis, para ficar com o gozo do significante, ordenado pelo falo. Todavia, a fala de que o boneco liso “também tem” revela certo recurso simbólico para lidar com a questão da diferença entre os sexos, havendo alguma localização de gozo. Também como forma de dar lugar à dimensão corporal nas encenações, aponto a necessidade de encaminhar à enfermaria os personagens que sofrem agressões, que ficam, assim, ausentes da sala de aula. Essa ausência de determinados locais foi possível com a delimitação de espaços estanques, a partir da introdução de bordas que fiz com tampas de caixas designando a sala de aula, o banheiro, a coordenação, a enfermaria, etc. Essa demarcação dos espaços gerou interessantes situações, como quando ele diz que um personagem beliscaria o outro, que está no banheiro com a porta fechada, ao que eu indico a impossibilidade disso. O personagem passa a perturbar o outro batendo insistentemente na porta do banheiro. Uma das maiores consequências da diferenciação entre os espaços foi a sala de aula ficar vazia depois de todos os alunos serem conduzidos à coordenação por atitudes como tirar a roupa ou ofender colegas e professora. Uma ofensa privilegiada entre as crianças é, curiosamente, “bebê chorona”. 6 Lacan, J. (1971-2) O Seminário, livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012, p.13-7 7 Idem, p. 16-7 Introduzo certo desânimo da professora em não conseguir dar aula por falta de alunos, e pergunto de que os alunos gostariam de ter aula. Eles pedem aula de “trocar fralda”, a professora acata, sendo essa aula levada até o fim, bem como outra de “prender cabelo”. Em outras oportunidades, mesmo indicando outros temas de interesse, as aulas não chegam ao fim. Uma situação mais difícil se apresenta quando a própria diretora da escola tira a roupa em sala de aula. Diante disso, decido, sem garantias acerca dos efeitos de tal ato, que a professora pede demissão, pois trabalhar em uma escola na qual a diretora faz isso estaria além dos seus limites. Sandro propõe que outra professora seja contratada, o que ocorre na sessão seguinte, tendo a professora o mesmo nome que a anterior. Com o tempo, proponho uma reunião entre a professora e os responsáveis pelos alunos, para tratar das dificuldades nas aulas. Nessa reunião, dois pais se comportam de maneira inadequada, sendo necessário retirá-los da sala. As infrações por parte dos adultos passam a surgir também em outras ocasiões, embora com frequência muito menor às das crianças. Conforme avança no trabalho de deslocar-se do lugar de “bebê”, seria importante para Sandro garantir algum gozo ao lugar de adulto? Seria essa uma forma de tornar esse lugar menos ameaçador em relação à perda de gozo? Não podemos afirmar isso, mas há indicações da dificuldade de tal lugar para Sandro. A mãe relata que ele questiona e reclama muito do trabalho dela, e quando ela diz que é preciso e que um dia ele também trabalhará, ele responde que não quer, pois “trabalho dói”. Apesar disso, Sandro vem trabalhando intensamente em análise. Embora persista a dificuldade de inscrever simbolicamente algo da diferença, sustentando-a ao longo do tempo, o novo surge em análise. Os sobrenomes das personagens não se fixam, mas podem, a cada sessão, demarcar alguma diferença entre elas, como uma relação diferente com a mamadeira ou a chupeta. O recurso às encenações com os bonecos também parece ter valor para que o sujeito possa trabalhar, de maneira mediada, questões atuais em sua vida. Por exemplo, conforme se aproxima a data de seu aniversário, vários personagens fazem festa de aniversário, escolhendo temas diversos. Em análise, Sandro recorre ao recurso das encenações com bonecos para mediar sua relação com o Outro, algo que, como analista, acolho enquanto uma maneira singular do sujeito aparelhar gozo e proteger-se do Outro. Com isso, vem se construindo um interessante percurso de análise no qual tem sido mais possível para Sandro ceder gozo vocal, sustentando falas com alguma enunciação, bem como trabalhar na construção de um corpo próprio e que não seja de um “bebê”. O trabalho junto a ele segue na direção de possibilitar suas tentativas de destacar algum significante capaz de sustentar, em algum nível, um lugar próprio que se diferencie tanto do “bebê”, significante privilegiado ao sujeito, mas que não aponta para o laço social, quanto do “você não é mais criança”, significante que vem do Outro, mas que parece ser muito demandante. Há muito trabalho pela frente, e Sandro tem mostrado disposição para tal. O analista estará ali, com o seu desejo.