O CINEMA COMO ELEMENTO FACILITADOR PARA TRABALHAR EM
GRUPOS, TEMAS RELACIONADOS AO ENVELHECIMENTO
MARIA ELVIRA M. GOTTER
Ger-Ações - Centro de Pesquisas e Ações em Gerontologia - São Paulo – Brasil
RESUMO
O presente texto é uma reflexão, de referencial psicanalítico, do trabalho procedente
da coordenação realizada com encontros nomeados de Cinema–Reflexão. Encontros
com grupo de mulheres que começaram a tomar consciência do processo de
envelhecimento, e que procuraram uma forma diferente de abordar questões referentes
ao envelhecimento. Alguns assuntos muitas vezes provocam mal–estar, seja pela falta
de informação, seja pela dificuldade de aceitar a passagem do tempo. Em Cinema–
Reflexão o filme atuou como instrumento de lazer, informação, difusão de cultura,
sociabilização e, principalmente, como instrumento incentivador para a reflexão e a
discussão sobre sexualidade, relacionamento intergeracional, ninho vazio, perdas e
luto, finitude, demências, cuidadores, entre outros. Foram utilizadas as histórias
narradas e seus personagens para favorecer um melhor entendimento de situações
semelhantes vivenciadas pelas participantes do grupo. Por meio de uma escuta
diferenciada do coordenador, e de uma metodologia sugerida ao grupo, em cada
encontro, foi possível abrir novos caminhos para novos dizeres e interpretações por
parte dos integrantes.
PALAVRAS CHAVES: Envelhecimento, cinema, grupos.
Estas reflexões procedem do trabalho de coordenação realizado, em encontros
mensais denominados de Cinema – Reflexão, em diversos grupos de mulheres de
idade entre 50 e 70 anos, nos quais o filme foi utilizado como instrumento facilitador
para tratar de assuntos de interesses dessa população. Para a realização desses
encontros partimos do pressuposto que, no cinema, o sujeito se identifica de forma
imaginária pelo fascínio que os efeitos do filme produzem, propiciando maior
disposição para o debate. (Machado Guimarães, 2006). Além de se identificar, muitas
vezes, com aquilo que está nas entrelinhas da narrativa e não com a história manifesta
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do filme, são provocados efeitos na subjetividade, que se manifestam nos diversos
discursos das pessoas.
As mulheres participantes ao tomarem consciência da passagem do tempo,
procuraram uma forma diferente de abordar as questões referentes ao envelhecimento.
Assuntos que, muitas vezes, provocam um mal-estar pela falta de informação ou pela
dificuldade de aceitar o processo de envelhecimento. Admitir a passagem do tempo é
difícil e, por conseguinte, difícil também a aceitação do próprio envelhecimento, cujas
primeiras manifestações são as mudanças corporais, que muitas vezes abalam a autoestima da mulher. De acordo com Freud, n’ O Mal-estar na Civilização (1929-30),
umas das três fontes do sofrimento humano é o próprio corpo que está condenado ao
declínio e ao aniquilamento. Decorrente dessa percepção, a mulher toma consciência
do seu envelhecimento por meio da estética, confrontando-se com uma série de perdas
relacionadas à identidade feminina. Essas perdas não se referem somente ao corpo,
como também aos diferentes papéis sociais e às relações afetivas. Ambos
desencadeiam um processo de transformações, muitas vezes de difícil elaboração.
Neste sentido, segundo Hornstein, (2006) se faz necessário um trabalho de luto, para
tomar consciência dessas perdas e dar lugar às possibilidades de novas aquisições.
As participantes possuíam estudos superiores e um bom nível cultural, todas
eram profissionais em exercícios de suas carreiras, que encararam os encontros de
Cinema – Reflexão como um momento particularmente próprio, de lazer, cultura,
sociabilização, informação. No decorrer do tempo e de uma maneira especial, o filme
foi considerado como instrumento incentivador para a reflexão e a discussão de temas
variados relacionados ao envelhecimento tais como, sexualidade, relacionamento
intergeracional, ninho vazio, relacionamentos afetivos, morte, luto, consciência de
finitude, demências, cuidadores, entre outros.
No começo houve certa dificuldade de consolidar os grupos porque se por um
lado, tinham dificuldade de entender a proposta, possivelmente pelo medo de
mobilizar conteúdos inconscientes, por outro lado, a dificuldade de olhar para o grupo
como um lugar para desenvolver uma atividade participativa e não de simples
espectadoras.
Essas dificuldades se traduziam no embaraço das participantes em
expressar os sentimentos e emoções que o filme despertava. Dessa forma, o debate
girou em torno das questões manifestas, por exemplo, das falas dos personagens, das
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cores utilizadas no filme, da trilha sonora, entre outros elementos. Na medida em que
as pessoas travavam conhecimento, começou a surgir o sentimento de grupo e,
adquiriram maior confiança para emitir as opiniões e sentimentos verificando-se,
assim, uma necessidade de escuta.
Essa necessidade de ser ouvida pelo outro, é
causada porque o sujeito tenta reconstruir-se numa demanda dirigida ao outro e busca
uma espécie de garantia no outro, que permita situar-se e nomear-se (Mannoni, 1995).
Neste sentido o grupo funcionou como o lugar onde as mulheres podiam ser ouvidas
sem serem julgadas, nem avaliadas e, na medida em que os temas de interesse do
grupo surgiam, elas conseguiram se identificar em diversas situações, e trabalhá-las
com diálogos e pareceres das outras integrantes.
Houve um resgate de lembranças
por meio da reminiscência, de fatos ocorridos em diferentes momentos da vida. Um
dos filmes que mais mobilizou as lembranças foi O tempero da vida em que as
recordações da infância marcaram presença em todo o grupo. A função da
reminiscência “... é realizar uma articulação entre a dimensão do passado e as
circunstâncias do presente, outorgando um sentido de comando da realidade e
continuidade do ser.” (Goldfarb, 1998).
Os grupos não operaram como grupos terapêuticos, nem o coordenador um
crítico de cinema e, sim, como indica o nome, GRUPOS DE REFLEXÃO em torno de
um objetivo comum. O grupo foi respeitado como uma estrutura em movimento,
proposta baseada nos grupos operativos, de Pichon Rivière (2000): "conjunto de
pessoas, ligadas no tempo e no espaço, articuladas por sua mútua representação
interna, que se propõem explícita ou implicitamente a uma tarefa, interatuando para
isto em uma rede de papéis, com o estabelecimento de vínculos entre si."
Todo encontro começava com um aquecimento da análise da narrativa e das falas
dos personagens, o que propiciava durante o transcurso da atividade um lugar para
uma análise mais profunda, em que as participantes começavam a colocar seus
próprios sentimentos a respeito da situação narrada. Segundo Machado Guimarães
(2006), “O filme como uma obra autônoma, é susceptível de engendrar uma análise
textual baseada nas significações sobre as estruturas narrativas, uma análise icônica
sobre os dados visuais e sonoros, além de uma análise psicanalítica sobre os efeitos
no espectador”. A seguir foi sugerido pelo coordenador, como forma de facilitar o
debate, que as participantes descobrissem o material que, submerso na narrativa do
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filme, poderia trazer novas leituras possíveis e desta maneira, novas significações por
meio da bagagem cultural e emocional de cada participante.
Durante os encontros se estabeleceu uma dinâmica de interrelação grupal que foi
além da tarefa técnica a ser realizada e que norteou a atividade grupal. Segundo
Bleger, (2002) o complexo conjunto de elementos subjetivos compõe o instrumento
primordial dos grupos, sendo assim, foi valorizado o esquema referencial de cada
integrante do grupo com suas experiências, conhecimentos e afetos, providenciandose uma amálgama de diferentes maneiras de pensar e agir que enriqueceram o debate.
A função do coordenador do grupo não foi ocupar o lugar do saber e sim como
facilitador das questões surgidas durante o debate. Conforme Bleger (2001) é
necessário que os integrantes do grupo trabalhem e incorporem as questões tratadas,
sem que o coordenador transmita uma informação acabada.
No debate foram evidenciados quatro momentos: 1) Momento de ver e ouvir; 2)
Momento de olhar e de escutar; 3) Momento de refletir; e, 4) Momento de concluir.
No primeiro momento está em jogo o ver, ou seja, reconhecer as imagens que o filme
apresenta e do ouvir tanto o que os personagens do filme têm para comunicar como a
trilha sonora. Momento de apreensão da história apresentada tal qual é. “Uma análise
icônica sobre os dados visuais e sonoros” Machado Guimarães (2006). No segundo
momento está em jogo o olhar e o escutar que não dependerá só do roteiro do filme e,
sim, da percepção de cada um dos espectadores segundo sua própria bagagem cultural
e emocional. No terceiro momento, depois de assistir o filme, as participantes são
convidadas a refletir sobre o mesmo, neste caso são estimulados a falar sem restrições.
É o momento em que surge o debate com as diferencias de opiniões que contrário ao
esperado, não interferem na unidade do grupo e sim o engrandecem. Segundo Bleger:
“O ótimo se dá quando existe uma máxima heterogeneidade dos integrantes com a
máxima homogeneidade na tarefa”. Neste momento as participantes criam coragem
para se posicionar e colocar suas ideias. No quarto momento as participantes
concluem com frases pedidas pelo coordenador, para expressar um sentimento que o
filme ou uma situação do filme trouxe para eles, além de um breve apanhado das falas
feito pelo coordenador. Os filmes foram escolhidos pelo coordenador, segundo o
interesse dos participantes evidenciado durante o transcurso dos debates.
A seguir três exemplos, da forma de como foram trabalhados os filmes.
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Em Pão e Tulipas o debate girou em torno da liberdade e a procura da felicidade.
A liberdade foi trabalhada segundo o texto da filósofa Marilena Chauí (2003):
“Liberdade é a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade,
transformando a situação de fato numa realidade nova, criada por nossa ação”. Foi
trabalhada a impossibilidade de uma felicidade completa. Freud n’O Mal-estar na
civilização (1929-30) considera irrealizável o desígnio, imposto pelo princípio do
prazer, de ser felizes. Porém não se podem abandonar os esforços para conquistar a
felicidade. O sujeito procura sempre caminhos para evitar a dor e obter o prazer. As
pessoas devem procurar por si mesmas sua própria felicidade que dependerá da
economia libidinal de cada uma.
No filme Elsa e Fred: A pergunta feita ao grupo para começar o debate foi: O
que é ser velho? O velho foi considerado a pessoa sem desejo representada ao começo
por Fred e foi analisada a velhice ativa da personagem feminina Elza. Chegou-se à
conclusão que se há desejo, existe a capacidade de amar, de relacionar-se com os
outros e, de empreender novos projetos. O desejo como demanda de amor e, o amor
na velhice com sua capacidade de erotismo. A realização de sonhos, e da re-invenção
de cada dia vivido. Tudo isto permeado com o sentimento de que se existe um desejo
traduzido na realização de um sonho, não se pode esquecer, contudo, que existe um
tempo real que deve ser considerado para a concretização: “Há uma distancia entre
alguns projetos que se gostaria de realizar e a possibilidade de realização e que se
situam diferentemente para os de 20 anos e para os de 90 anos”. Mucida (2004)
O filme Parente é Serpente mobilizou os grupos profundamente pelos fortes
temas abordados pelo diretor: família, segredos, desamparo na velhice, velhice
marginalizada, demência, entre outros. Temáticas que causaram grande impacto e que
mobilizaram conteúdos inconscientes. Muitas participantes colocaram suas próprias
histórias de cuidadoras informais dos próprios pais, alguns deles com demência.
Houve também uma preocupação da possibilidade de estar expostas ao desamparo
num futuro próximo. Foram trabalhados primordialmente no filme dois conceitos: o
de velhice fragilizada e da condição de desamparo. Segundo Goldfarb (2007):
“Relacionamos a situação de fragilidade com uma perda de equilíbrio e harmonia
orgânicos que longe de ser um problema puramente corporal, provoca efeitos na
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subjetividade” Consideramos que a condição de desamparo provoca uma dor psíquica
de angústia, de medo, de perder o amor do outro. (Freud, 1925)
Foi possível a realização de debates no sentido de abrir novos caminhos para
novos dizeres e interpretações por parte dos integrantes do grupo. Dessa maneira, o
filme funcionou como instrumento incentivador para a reflexão e a discussão de temas
variados, e o grupo como elemento acolhedor para a expressão de sentimentos e para
a interpretação por parte das participantes de situações relacionadas a seus cotidianos
que envolvem principalmente o processo de envelhecimento.
BIBLIOGRAFIA
BLEGER, José (2001) Temas de psicologia: entrevistas e grupos. Ed.Martins Fontes,
SP.
CHAUÍ, Maria Elena (2003) Convite à filosofia. Ed. Atica,SP.
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HORNSTEIN, Luis (2006) Las depresiones-Afectos y humores del vivir. Ed. Paidós,
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MACHADO, Dinara Guimarães, (2006). O cinema na transmissão da psicanálise.
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Acesso
em
2009.
MUCIDA, Ângela (2004). O sujeito não envelhece. Ed. Autêntica, BH
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Maria Elvira M. Gotter: Psicanalista; Especializações em Gerontologia - FM-USP;
Sexualidade Humana - FM-USP e Psicopatologia Psicanalítica - FMU. Docente convidada do
curso “Psicogerontologia: fundamentos e perspectivas” COGEAE-PUC-SP. Membro da Rede
Ibero-americana de Psicogerontologia. Coordena grupos de Cinema-Reflexão. Membro da
diretoria da Ger-Ações: Pesquisas e Ações em Gerontologia. E-mail: [email protected]
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