Trabalhadores-estudantes: estudar e trabalhar, ou estudar para trabalhar?
Uma análise da relação entre trabalho e educação no sul fluminense
Marina de Carvalho Cordeiro1
Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar resultados de pesquisa na região Sul
fluminense, um Distrito Industrial do setor automobilístico, enfocando o perfil dos
trabalhadores da localidade e o papel representado pela educação na dinâmica
entre o sistema ocupacional e o educacional. A partir de dados colhidos durante
pesquisa e trabalho de campo, desenvolvidos entre 2007 e 2008, e de dados
quantitativos de dois surveys realizados com trabalhadores de chão de fábrica na
região, nos anos de 2001 e 2009, estabelecemos uma comparação entre o perfil
dos trabalhadores e os dados relativos à escolaridade. A proposta, portanto, cobre
um período de aproximadamente dez anos, e pretende-se apontar questões
relativas à importância da escolaridade, bem como traçar um panorama do
processo de escolarização da mão de obra fabril ocorrido na região.
Palavras-chave: trabalhadores, escolaridade, indústria automobilística, dados
quantitativos, dados qualitativos.
Worker-student: studying and working, studying for work?
An analysis of the relationship between labour market and education in
South of Rio de Janeiro
Abstract
The aim of this paper is to present results of research located in South of Rio de
Janeiro, an industrial district dominated by the automobile industry. The focus is on
the local workers’ skills profile and the role of education in the dynamic between
the labour market and educational system. Our purpose is to present qualitative
data from fieldwork developed some years ago as well quantitative data from two
different surveys, conducted with shop floor workers in 2001 and 2009. These data
provide the basis for longitudinal analysis of the importance of training and
education in the changing skills profile of the region.
Key-words:
workers,
escolarization,
automobile
industry,
quantitative
data,
fieldwork.
1
Graduação em Ciências Sociais (UFRJ), mestre em Sociologia (PPGSA/IFCS/UFRJ), doutoranda em
Sociologia
pelo
PPGSA/IFCS/UFRJ.
Área
de
atuação:
Sociologia
do
Trabalho.
Contato
[email protected].
Introdução
A região Sul Fluminense,2 um Distrito Industrial, pode ser percebida como
um lócus privilegiado para a observação de impactos sociais e econômicos de novas
formas de produção a partir da implantação de duas montadoras do setor
automobilístico: a Volkswagen, no ano de 1996, e a Peugeot-Citroën, em 2001, nos
municípios de Resende e Porto Real, respectivamente. As duas montadoras operam
a partir do paradigma da produção enxuta, com altos níveis de produtividade e
reduzido
número
de
trabalhadores,
e
estabelecem
um
discurso
de
maior
participação e comprometimento dos seus funcionários com os objetivos da
empresa.
A
implantação
deste
polo
automotivo
impactou
não
apenas
as
macroestruturas da região, mas também as famílias dos trabalhadores, que se
viram diante de uma alteração no mercado de trabalho local e das qualificações e
certificações requeridas para dele fazerem parte. Inúmeras pesquisas foram e vêm
sendo desenvolvidas neste contexto, abarcando diferentes aspectos em níveis
micro e macrossocial (entre outras, Maçaira, 2007; Rocha, 2002; Pereira, S.E.M.,
2003; Pereira, C.R.A., 2002; Cordeiro, 2008).
No que se refere à relação entre sistema educacional e ocupacional, a
implantação das montadoras e as novas exigências no mercado de trabalho daí
advindas,
além
de
colocarem
as
estratégias
educativas
no
centro
dos
planejamentos de reprodução familiar, estabeleceram um novo padrão a ser
atingido pelos próprios trabalhadores: o Ensino Médio. O status social adquirido
pelos indivíduos que integram este mercado de trabalho é mais um elemento que
reforça esta tendência. O “trabalhador da indústria automobilística” é, por motivos
econômicos e sociais, percebido como um “trabalhador diferencial”, sendo o
investimento em educação algo a ter um retorno reconhecido pela população, já
que a escolaridade se tornou o “passaporte de entrada” neste mercado.
A partir do estudo das famílias de trabalhadores das duas plantas
automobilísticas – a VW e a PSA Peugeot-Citroën – e tendo como pano de fundo a
discussão sobre reestruturação produtiva e as conseqüências na formação do
trabalhador, buscou-se perceber os impactos do desenvolvimento econômico local
nas famílias dos trabalhadores, de que forma reagiam aos novos elementos e como
estes eram incorporados às suas marcas de pertencimento social e às suas formas
de atuação na vida cotidiana. Neste artigo, discutiremos questões levantadas
durante a pesquisa e o trabalho de campo, entre os anos de 2006 e 2008, e
2
A região “Sul fluminense” ou do “Médio Paraíba” é uma categoria utilizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e se refere ao conjunto das cidades de Barra Mansa, Itatiaia, Pinheiral,
Piraí, Porto Real, Quatis, Resende, Rio Claro e Volta Redonda.
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compararemos dados estatísticos de survey3 realizado com trabalhadores da VW no
ano de 2001, e reaplicado em 2009, procurando estabelecer relações entre dados
qualitativos apontados pela pesquisa e dados quantitativos de ambos os surveys.
O contexto: reestruturação produtiva e o Sul Fluminense
A indústria mundial tem passado nas últimas décadas por um processo de
reestruturação produtiva, buscando compatibilizar alterações organizacionais e
institucionais nas relações de produção e trabalho, além de redefinir os papéis dos
Estados Nacionais e das instituições financeiras no sistema de produção como um
todo. Diversos processos, inerentes à lógica do fordismo e aos limites técnicos
decorrentes da organização científica do trabalho, bem como o choque do preço do
petróleo e a ascensão das taxas de juros (ocorridos em meados da década de 70),
colocaram desafios à lucratividade das empresas. A fim de superar problemas como
diminuição dos ganhos de produtividade, elitização do consumo, mercados com
poder de compra reduzido e aumento da competição intercapitalista mundial,
distintas estratégias foram desenvolvidas e vêm sendo utilizadas, tendo papel
fundamental nesse processo a introdução de novas tecnologias informatizadas. Tais
estratégias possuem dois eixos básicos: transformações na organização do
processo de trabalho, com novas formas de controle social, e flexibilização da
produção através da introdução de tecnologia microeletrônica, no intuito de
adaptação às novas exigências do mercado mais instável e competitivo.
“Flexíveis” e “enxutas”, as fábricas reestruturadas possuem como principais
inovações o discurso que privilegia o trabalho em equipe e a introdução de
máquinas flexíveis e adaptáveis a fins diversos, possibilitando a diminuição do
número de máquinas e, consequentemente, o espaço físico requerido pela fábrica,
além da utilização de uma força de trabalho diversa da anterior e que tende a ser
mais qualificada. As inovações tecnológicas em conjunto com o surgimento de
novas tendências gerenciais e institucionais apontam para outro modelo de
desenvolvimento (e não mais o fordista) baseado em um novo regime de
acumulação (Catani & Holzmann, 2006:237-239). No entanto, ressaltamos que
existem diferentes caminhos para a substituição do fordismo (produção em massa)
como forma dominante de acumulação capitalista, como adaptações de modelos às
condições locais, a convivência entre eles e a existência de vários padrões
alternativos de acumulação. Esse processo pode ser percebido no Brasil, ainda que
3
Ramalho & Santana, 2002. Survey. A pesquisa foi realizada em setembro de 2001 e cobriu uma
amostra de 10% dos empregados da Volkswagen e das sete empresas do Consórcio Modular. O
questionário foi aplicado numa sala no centro de treinamento da empresa e era composto de 70
perguntas dividas em três temas: relações de trabalho, vida fora da fábrica e órgãos de representação.
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as inovações se apresentem em ritmo lento, sendo difícil localizar em qualquer
setor uma planta na qual o modelo flexível tenha sido completamente introduzido.
Mudanças ocorrem, mas sua direção ainda é incerta, e é comum a coexistência de
diferentes estratégias tecnológicas e organizacionais em um mesmo setor (Catani &
Holzmann, 2006:237-239; Ramalho & Santana, 2006b).
A região Sul fluminense vivencia uma dinamização na economia local desde
a implantação das montadoras, com resultados consideráveis em relação ao
aumento dos recursos públicos, à instalação de novas empresas, à criação de
postos de trabalho e ao incremento nas atividades de serviços (Ramalho,
2006a:17). Esta (re)industrialização4 da região vincula-se ao debate acerca do
perfil profissional flexível e competente, não apenas qualificado, uma vez que as
fábricas lá instaladas foram concebidas e organizadas a partir do paradigma da
produção enxuta. Porém, mesmo “nascendo reestruturadas”, apenas alguns anos
depois de sua instalação, estabeleceram o Ensino Médio como o patamar mínimo de
escolaridade para sua força de trabalho.
No entanto, há um debate em torno dos conceitos de qualificação e
competência. Nele, aponta-se que o paradigma da flexibilidade estaria alterando
não só a base técnica, mas também a própria força de trabalho, tanto em aspectos
quantitativos quanto qualitativos. Assim, a partir do surgimento de novas formas de
trabalho, teríamos como consequência um diferente uso do saber e da inteligência
operários que colocariam em xeque a própria concepção de qualificação (Régnier,
1998:15). O sistema flexível estaria rompendo com a concepção dos modelos
taylorista/fordista e seu one-best-way, dando lugar à demanda e à valorização de
novas habilidades e capacidades, tais como a de resolução de problemas, o
raciocínio lógico/abstrato, a compreensão do processo produtivo como um todo, a
capacidade de comunicação verbal e escrita, a de trabalhar em equipe, a
responsabilidade e a disponibilidade para a cooperação (Régnier, 1998:16).
Observa-se uma elevação do grau de escolaridade exigido para ingresso e
manutenção dos profissionais nas empresas – ainda que se afirme que muitas
dessas habilidades são produto de socializações que se dão fora do espaço formal
de aquisição de conhecimentos, ou seja, fora dos espaços de escolarização formal e
profissional. Neste contexto, observa-se a emergência do discurso de competência
como substituto conceitual à qualificação, gerando na sequência um grande debate
em torno do uso de tais conceitos. Régnier, citando outros autores, aponta para a
diferenciação entre os conhecimentos profissionais de base (“saber”), o seu uso em
4
A história industrial de Resende, desde 1950, pode ser dividida em ciclos econômicos e está associada
à existência de grandes firmas, algumas das quais ainda permanecem na localidade, com atividades
ligadas à indústria química e farmacêutica (IQR, CYNAMID), de bebidas, energia nuclear (INB),
metalurgia e pneus (Whately & Godoy, 2001:32).
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contextos específicos (“saber-fazer”) e a reivindicação de uma série de qualidades
pessoais e exigências comportamentais dos sujeitos (“saber ser”). Interessante
observar que os dois últimos termos seriam normalmente utilizados em oposição
aos “saberes escolares”, ainda que, na prática, mantenham com estes estreita
correlação (Régnier, 1998:16).
Quando do início do funcionamento, as empresas contratavam trabalhadores
com níveis de escolaridade inferiores ao Ensino Fundamental completo, porém,
após alguns anos, as exigências se alteraram e os trabalhadores se viram diante do
desafio de adquirir uma certificação de Ensino Médio. Cabe considerar que outros
elementos impactaram essa dinâmica, como a introdução de uma certificação para
as montadoras automobilísticas, a ISO/TS 16949, que possui dentre seus critérios
os níveis de escolarização da força de trabalho. Consequentemente, reconfigurouse o cenário educacional local a partir de sua interface com o sistema ocupacional,
uma vez que a escolarização e suas certificações tornaram-se partes integrantes e
fundamentais na formação deste trabalhador “flexível e competente”.
Perfil dos trabalhadores de Resende
Os depoimentos e os dados recolhidos e analisados durante o período de
trabalho de campo indicaram não apenas uma elevação dos níveis de escolaridade
entre gerações, mas também um incremento na mesma geração de trabalhadores.
Grande parte deles percebia seu pertencimento à fábrica como uma experiência de
mobilidade ascendente, já que muitos atuaram anteriormente na construção civil:
“antes eu era peão de obra mesmo”, como muitos diziam.
Estes
trabalhadores
comprovaram,
através
da
experiência
de
suas
demissões ou de amigos, da perda de promoções ou de possibilidades de serem
contratados para empregos considerados “melhores”, a necessidade de elevação de
seus níveis de escolaridade. Ter o trabalho “fichado”, contando com “todas as
vantagens que se tem lá dentro da fábrica”, significava compartilhar padrões de
consumo, “garantir um futuro para a família” e também ter “um trabalho mais
seguro”, com o conforto do ônibus e o orgulho do uniforme. Diante de tais
experiências, os trabalhadores passaram a ser trabalhadores-estudantes, uma vez
que para manter a condição de “trabalhador” foi preciso tornar-se “estudante” e
esforçar-se para “terminar os estudos”, investir numa faculdade “para poder
crescer dentro da empresa”, além de fazer cursos, “desenvolver alguma coisa” e
“mostrar interesse em estar sempre se atualizando”. A categoria educação passou a
operar aliada à categoria trabalho e aqueles que antes “paravam de estudar para
trabalhar”, começaram a “estudar agora para trabalhar depois”, “voltar a estudar
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para voltar a trabalhar”, “estudar e trabalhar” ou “estudar para manter o emprego”.
O
“orgulho
do
uniforme”
estava
presente
nos
depoimentos
desses
trabalhadores e nos dados disponíveis no survey (2001), no qual a maioria dos
funcionários da Volkswagen indicou ter orgulho de trabalhar ali e nas empresas do
“consórcio modular” (86%). Quando questionados sobre o significado de trabalhar
na VW, afirmaram que o emprego regular na fábrica propiciava “serem respeitados
como trabalhadores” (66%), darem “a garantia de um futuro para a família” (76%)
além de ser um “estímulo aos estudos” (49%). Curioso perceber que, mesmo o
salário sendo um fator importante na valorização do emprego, o dado “ter um bom
salário” aparecia em quarto lugar, com 42% das escolhas (Ramalho & Santana,
2002:37). O trabalho nas fábricas representa uma distinção de status, exercendo
influência na opção por esse caminho, um tanto tortuoso e penoso, de “terminar os
estudos” ou “esforçar-se em fazer uma faculdade” e tentar “chegar lá”. Para
ingressar nesse mercado “tem exigência”, é preciso ter “escolaridade, qualificação”
para
crescer
na
empresa
ou
mesmo
para
manter-se
nela;
portanto,
os
trabalhadores incorporam o discurso da importância de “se qualificar” e “investir no
estudo”.
A força de trabalho empregada nas fábricas era, em 2001, majoritariamente
masculina (97%) e jovem, com 70% de trabalhadores entre 20 e 34 anos; em
geral, casados (62%) e com filhos (60%), a maioria com até dois filhos (89%). No
que se refere à escolaridade, 50% dos trabalhadores da fábrica possuíam pelo
menos o Ensino Médio completo (somando dados de 2º grau completo, superior
incompleto e completo), e os outros 50% tinham níveis de escolaridade inferiores,
ou seja, metade da força de trabalho possuía níveis de escolaridade entre o Ensino
Fundamental II (1o grau, até a 8a série) completo ou o Ensino Fundamental I
completo e incompleto (1o grau, até a 4a série). Vale ressaltar, no entanto, que
44% dos trabalhadores continuavam estudando na época, dos quais 55% estavam
fazendo cursos de 2º grau (1o, 2o e 3o anos do Ensino Médio), 9% cursavam o
Ensino Superior e 21%, outros cursos técnicos.
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Gráfico 1
(Fonte: Ramalho & Santana, 2002)
O survey foi reaplicado em 2009,5 oito anos depois do primeiro, e dois anos
após o fim do trabalho de campo. Ao confrontarmos dados de pesquisa qualitativa
com dados do survey (2009), chama a atenção a mudança nas taxas de
escolarização da força de trabalho: enquanto no ano de 2001, 50% dos
trabalhadores possuíam níveis de escolaridade inferiores ao do Ensino Fundamental
I e II completos, em 2009, a percentagem de trabalhadores com os mesmos níveis
de escolaridade praticamente desapareceu, reduzido para apenas 0,7%. De um
modo geral, após os referidos anos, houve um processo de escolarização em massa
da força de trabalho, e nos deteremos nele a seguir.
Sistema educacional e sistema ocupacional
O trabalho de campo envolveu, entre outras atividades, entrevistas guiadas
com
trabalhadores
e
suas
famílias,
enfocando
suas
trajetórias
escolar
e
ocupacional; as expectativas em relação aos filhos; seus projetos familiares e as
estratégias de escolarização adotadas pelo núcleo; entrevistas com atores da
comunidade escolar local; inúmeras visitas aos estabelecimentos de ensino (escolas
e universidades); Festa anual do aniversário da cidade de Resende (EXAPICOR);
eventos
acadêmicos
em
universidade
local;
e
visitas
às
unidades
fabris.
Quantitativamente, utilizaram-se bases de dados regionais e municipais, oriundos
do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil e de fontes oficiais, e o survey com
perfil dos metalúrgicos da Volkswagen.
O impacto do sistema ocupacional na estrutura de ensino da localidade
5
Survey VW-Resende, 2009, Projeto Pensa Rio-Faperj, coordenação de José Ricardo Ramalho.
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ocorreu nos seus diversos níveis, aumentando a oferta e a demanda por vagas
tanto para aqueles interessados em finalizar a Educação Básica como para aqueles
que desejavam cursar o Ensino Superior. No entanto, um dos maiores destaques
ocorreu na Educação Básica, na qual surgiu uma “corrida pelo Ensino Médio”,
consequência da elevação nos níveis de escolaridade exigidos para a entrada e/ou a
manutenção no mercado de trabalho específico da indústria automobilística. A
partir de dados quantitativos da Fundação CIDE (Gráfico 2), traçamos um
panorama do incremento da Educação de Jovens e Adultos (EJA) na cidade de
Resende desde o ano de 1996. Por meio deles e das entrevistas, inferimos que
muitos trabalhadores interromperam o processo de escolarização quando jovens,
gerando uma significativa ocorrência de não conclusão do Ensino Médio.
Diante das recentes alterações, esses trabalhadores recorreram à Educação
de Jovens e Adultos (EJA) – um curso público e gratuito, presencial, porém flexível
e que oferece a possibilidade de conclusão de um ano letivo em 6 meses6 – para
conseguir o “passaporte de entrada no mercado”: o diploma de Ensino Médio. Os
dados a seguir demonstram que o número de concluintes do Ensino Fundamental I
é inferior ao do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. É possível observar ainda
que o número de concluintes dos Ensinos Fundamental II e Médio eleva-se
consideravelmente em 1998 e 1999 – anos após a implantação na VW na região –
decresce e se mantém nos anos seguintes, sendo que o do Ensino Médio aumenta
novamente nos anos de 2002 e 2003 – anos que se seguem à implantação da PSA
Peugeot-Citroën.
6
Há grande flexibilidade para ausências por motivo de trabalho no EJA, e trabalhadores em regime de
revezamento de turnos podem realizá-lo apresentando: justificativa para as faltas, trabalhos realizados
durante a semana em que estiveram ausentes e provas feitas em outros horários. As escolas orientam
os professores em relação a essa flexibilidade. A Volkswagen possui dois turnos (de 06h30 às 16h18 e
de 16h28 à 01h35); a PSA Peugeot-Citroën e a Michelin trabalham com esquema de revezamento de
turnos. A PSA faz revezamento semanalmente (de 06h às 15h24 ou de 15h48 às 24h48); e a Michelin
faz de três em três (de 08h às 16h, de 16h às 24h e de 24h às 08h). Muitos trabalhadores afirmavam
que estes horários por si só geravam uma grande dificuldade para o término do Ensino Médio ou a
realização de uma faculdade.
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Gráfico 2
Fonte: Fundação CIDE – site www.cide.rj.gov.br
Realizamos entrevistas na escola e nas casas dos trabalhadores, todos
alunos da EJA, dentre os quais um era funcionário terceirizado da VW; outro havia
vivenciado um processo de seleção para ingresso numa fábrica que se instalaria
futuramente na PSA Peugeot-Citröen, sendo admitido; outro já havia participado de
dois processos seletivos, não sendo admitido em nenhum deles; e um era
funcionário da Michelin (Fábrica de Pneus). A orientadora pedagógica do CIEP da
“Grande Alegria”,7 que era professora no EJA, cujo marido também trabalhava na
VW, cita o status e como os próprios alunos se comparam entre si em entrevista:
[...] porque muitos trabalham aqui de pedreiro, tem alguns bairros sendo
construídos e trabalham como mestre de obras, ajudantes; e até na minha sala
à noite, ”nossa, professora, hoje minha mão está doendo, está cheia de calos,
não consigo nem pegar num lápis, trabalhei no sol o dia inteiro!” […]. Eles dizem
”ah, eu não quero ficar o tempo todo nessa vida não, quero logo terminar os
estudos para entrar numa fábrica...”; porque os ônibus da Volks, da Peugeot
passam aqui na frente da escola à tarde, pegam os funcionários que ficam aqui
nos pontos, uniformizados, dentro do ônibus tem todo conforto, aí eles já
observaram isso. Falam assim: ”olha lá, eles vão para a fábrica, tudo limpinho,
todos arrumadinhos, o ônibus pega, o ônibus leva, tem convênio”; eles já sabem
os benefícios que tem na fábrica, não precisa nem ser Volks, a gente tem outras
fábricas, eles têm vontade de entrar. Aí uns dizem: ”hoje não teve nem café da
manhã”; ele diz assim: ”ah, lá na fábrica teve suco, leite, café”; ”ah, então eu
7
A “Grande Alegria” é um complexo que abrange inúmeros pequenos bairros, afastado do centro,
periférico e de construção histórica recente – reflexo da expansão da cidade nos últimos anos. De acordo
com o survey (Ramalho & Santana, 2002:10-12), a maioria dos trabalhadores da VW era de residentes
no bairro Cidade Alegria (e vizinhança), e a maior parte residia há mais de 20 anos nesses locais. No
survey de 2009, os mesmos dados não estão disponíveis.
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vou estudar logo que eu quero entrar numa fábrica”. Eles mesmos vão
observando a diferença, o que é ter estudo, se esforçar um pouquinho...
Em sua visão, fazer parte desse mercado de trabalho é percebido por muitos
como um “sonho”:
[...] eles [os alunos] estão sonhando em terminar o Ensino Médio para tentar
entrar numa fábrica, mesmo que não entrem, mas pelo menos eles foram
estimulados durante esse tempo para conseguir caminhar mais à frente.
De acordo com a diretora de outra Escola Municipal da “Grande Alegria”,
escola “respeitada” no bairro e que também atendia ao público de Educação de
Jovens e Adultos, “a chegada da empresa fez só a corrida para a conclusão do
Ensino Fundamental e Ensino Médio. Foi a única coisa em que todo mundo tentou
se formar para poder conseguir um lugar na empresa...”. No mesmo sentido,
Fernando, que tinha 26 anos, casado, com um filho pequeno e cuja esposa era “do
lar”, disse que voltou a estudar porque:
Eu acho que hoje em dia a procuração de emprego necessita mais também
porque eles procuram mais o 2º grau, ou de preferência até com o estudo
terminado. Eu parei na 8ª série, aí [...] quando eu descobri o EJA, eu vim para
cá. Estou aqui há uns três anos já. Porque dois anos praticamente eu fiquei
brincando [...] Aí este ano não, eu resolvi pegar firme mesmo e meu filho
também nasceu, aí eu me endireitei mais um pouco. [...] Eu mesmo não
passei ano passado; foi como eu falei, foi falta de interesse meu mesmo,
só que ano passado eu perdi um emprego por causa disso, porque não
tinha terminado o 2º grau.
Fernando
trabalhava
como
agente
funerário
e
motorista,
e
estava
terminando o Ensino Médio na EJA. Seus pais “vieram da roça” e eram
semianalfabetos; dos quatro irmãos e duas irmãs, ele seria o primeiro a completar
o 2º grau. Quando perdeu um emprego por não possuir esta certificação, resolveu
“se endireitar mais um pouco” e terminar. Na primeira entrevista que me concedeu,
estava vivenciando um processo seletivo para uma fábrica que se instalaria dentro
da Peugeot; faria uma prova de português e matemática em breve. Acreditava
“estar bem”, pois já tinha feito os cursos de inspetor de qualidade, logística e
operador de empilhadeira no SENAI, a um custo médio de R$ 120 cada, nos quais
ele “investira” o dinheiro da rescisão de contrato quando saiu do “ramo da
funerária” na primeira vez. Voltou a trabalhar na funerária mesmo contra a sua
vontade, pois não podia “ficar parado”, e não havia se adaptado como ajudante de
pedreiro. De acordo com Fernando, seus planos eram:
Bom, meu objetivo mesmo é terminar os estudos e ver se consigo um emprego
melhor para mim, estou tentando ver se consigo, já estou na segunda entrevista
numa empresa mesmo que é bem melhor, tem plano de saúde, plano
odontológico [...].
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Ao ser questionado se de fato era melhor trabalhar nessas empresas, ele
respondeu:
Eu acho que é melhor e mais seguro também. [...] Pelo menos, tem esse
negócio do plano de saúde que ajuda a gente muito, plano de saúde não está
muito barato hoje em dia, eu também estou pensando mais no meu filho, tudo
bem que a gente pensa na gente, mas de preferência no filho. Porque tu vai no
hospital, ainda mais eu que convivo com negócio de funerária... Hoje teve um
exemplo de negligência médica no hospital, um sr. que faleceu [...] morreu por
quê? Negligência de médico, da enfermeira [...].
Alguns meses depois da primeira entrevista, Fernando havia conseguido o
emprego na Peugeot, para o qual disse que “não pensaria duas vezes” caso fosse
chamado. Em uma das posteriores visitas à escola onde estudava, Fernando estava
“de turno” – trabalhando até 00h48 – não podia comparecer à aula naquela semana
e, portanto, só pude entrevistá-lo novamente em outra oportunidade. Na segunda
entrevista, foi impossível não reparar em suas olheiras, provavelmente resultado de
seu novo emprego. Na Peugeot os funcionários trabalham em esquema de
revezamento de turnos, o último até as 00h48 – sem contar horas-extras.
Fernando relatou seu cansaço, pois às vezes chegava em casa às 03h30 e que,
apesar de o “correto ser no máximo duas horas”, muitas vezes fazia três ou quatro
horas extras. O ônibus passava na esquina de sua casa uma hora antes do início do
turno; dizia-se cansado, mas feliz.
O incremento da EJA foi considerável e outras escolas do bairro e da cidade
também passaram a oferecer esta modalidade de aceleração escolar; segundo
dados do website do Instituto de Educação de Resende (EDUCAR), havia em 2007,
na rede municipal, oito escolas de Ens. Fundamental e três de zona rural
oferecendo EJA; de acordo com a responsável estadual pelo segmento havia, no
mesmo período, 11 escolas com a modalidade de nível médio e uma oferecendo o
Centro de Estudos Supletivos (CES). Portanto, houve ampliação dos cursos
supletivos como a EJA, o CES e o “provão”. Enquanto a EJA é um curso presencial,
o CES é uma modalidade semipresencial, que disponibiliza as apostilas de cada
disciplina para os alunos, com professores que esclarecem dúvidas em diferentes
horários; o aluno estuda de acordo com sua disponibilidade e faz a avaliação
quando se sente preparado.
Há ainda o “provão”, uma vez ao ano, quando é feita inscrição de acordo
com a faixa etária e os alunos são submetidos a uma avaliação de todas as
disciplinas; aquelas em que o aluno tiver bom desempenho são eliminadas, e as
que ficarem “pendentes” poderão ser realizadas via CES. Por fim, ao eliminar todas
as nove disciplinas, adquire-se a certificação de Ensino Médio concluído. Autores
como Sergio Haddad (1998) afirmam que o Estado tem um caráter indutor
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essencial no que se refere à Educação de Jovens e Adultos, já que, diferentemente
do grande consenso social em torno da necessidade e da importância de crianças
frequentarem educação regular, neste caso, isto não ocorre, sendo necessária uma
atitude ativa do poder público (Haddad, 1998:108). Ressalta-se, no entanto, que
no caso estudado a demanda partiu dos próprios trabalhadores e moradores da
região, que acabaram pressionando o poder público local para que ofertasse mais
vagas.
Os impactos da implantação das fábricas também se estendem ao Ensino
Superior. A cidade de Resende, até 2008, possuía uma estrutura que compreendia
a Universidade Estácio de Sá (2.000 alunos); a Associação Educacional Dom Bosco
–AEDB (1.500 alunos); a Academia Militar das Agulhas Negras – AMAN (3.000
cadetes); a Faculdade de Tecnologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro –
UERJ (500 alunos); e as modalidades à distância, como o Projeto Universidade
Aberta do Brasil – UAB e o Centro de Educação Superior a Distância do Estado do
Rio de Janeiro – CEDERJ, que iniciaram o funcionamento entre 2006 e 2007. Na
região
Sul
fluminense,
até
2008,
havia
três
polos
oferecendo
cursos
semipresenciais. Na época, alguns trabalhadores e professores da rede pública
comentavam a implantação destes cursos e os viam como uma boa possibilidade
para “dar continuidade aos estudos”.
Ambas as instituições privadas de Resende – AEDB e Estácio de Sá –
buscavam responder à demanda por profissionais para o polo automotivo e
estabeleciam um relacionamento direto com as indústrias. A Universidade Estácio
de Sá instalou-se no segundo semestre de 1997 – um ano e meio após a
implantação da VW – e, segundo o diretor da instituição, a grande motivação foi a
expansão do polo industrial e a VW. A Estácio, em geral, possui cursos que fazem
parte de sua rede, e como se realiza uma pesquisa de “vocação da área” e se criam
“pacotes para cada realidade socioeconômica”, um dos cursos oferecidos foi
“gestado” em Resende, criado para atender especificamente às necessidades da
região – o curso de Gestão de Produção Automotiva.
Segundo o mesmo diretor, é comum, ao montar um curso novo, que sua
estrutura seja levada ao conhecimento dos diretores das montadoras, “não que
peçam aval”, mas a justificativa se coloca pelo fato de que “é uma cidade pequena
e as pessoas se conhecem” e, portanto, é possível “trocar informações”. Esta
instituição, assim como outras da região, possui convênios com as empresas da
localidade e oferece descontos aos funcionários; atendem tanto a moradores de
Resende quanto de outras cidades próximas, ainda que em menor escala devido
aos custos de transporte. A existência do aluno que trabalha em esquema de
revezamento de turnos faz com que haja a necessidade de atenção especial – tal
ENFOQUES v.11(1), março 2012
Marina de Carvalho Cordeiro
144
como ocorre na EJA. Desta forma, quem faz cursos que têm horários noturno e
diurno pode assistir às aulas em ambos e existe uma facilidade maior para a
realização de provas e trabalhos, desde que o aluno apresente um documento da
fábrica.
A Associação Educacional Dom Bosco (AEDB), outra instituição de ensino
superior da cidade, foi fundada no ano de 1964 por militares. Há uma estreita
parceria entre a AEDB e a VW no desenvolvimento do curso de Engenharia de
Produção Automotiva que, de acordo com o coordenador, “nasceu dentro da
Volkswagen”. Existente desde 2005 – nove anos depois da chegada da VW e quatro
depois da Peugeot – estava em fase de reconhecimento em 2007, funcionando já
com autorização do MEC. De acordo com ele, para a formulação do curso, “tudo” foi
discutido com os funcionários da VW, em busca do perfil desejado para um
engenheiro da casa; com base em tal perfil, o curso foi criado para atender às
necessidades de todas as empresas que integram a indústria automotiva. Segundo
o coordenador, o curso era uma “necessidade”, pois na região não havia nenhuma
instituição voltada para a formação desse profissional e era preciso recorrer a São
Paulo, Rio de Janeiro e outras regiões – vale ressaltar que é o primeiro curso do
Brasil nessa área.
De acordo com AEDB, a elaboração deste Projeto Pedagógico se deu em
decorrência do interesse da VW, que procurou a instituição para, em parceria,
implantar o Curso de Engenharia de Produção Automotiva. Caberia à AEDB
viabilizar a estrutura acadêmica, o suporte laboratorial para as disciplinas de
Conteúdos Básicos (informática, física, química e eletricidade) e à VW, o apoio
laboratorial às disciplinas de Conteúdos Profissionais e Profissionais Específicos.
Importante ressaltar que as disciplinas de caráter Profissional Específica foram
indicadas pela VW, através de seus engenheiros, visando ao conhecimento da
chamada “eletrônica embarcada”, cada vez mais presente na manufatura de
veículos de um modo geral – o suporte seria dado pelo Curso de Engenharia
Elétrica com ênfase em Eletrônica (com funcionamento autorizado pelo MEC desde
1998). A parceria estende-se também ao laboratório de motores, que estava sendo
construído no ano de 2007, com colaboração, além da VW, da Peugeot que doara,
inclusive, três motores veiculares de sua unidade de produção de Porto Real.
Devido a esses “parceria e convênio”, as práticas que a instituição não pode
oferecer são realizadas pelos alunos na própria VW; o estágio obrigatório é
assegurado e todos os alunos da Engenharia de Produção Automotiva têm direito,
por contrato, de estagiar na VW.
Em outubro de 2007, a AEDB promoveu o IV SEGET – Simpósio de
Excelência em Gestão e Tecnologia – um evento com apresentações de palestras,
ENFOQUES v.11(1), março 2012
Marina de Carvalho Cordeiro
145
artigos e pôsteres e a realização de minicursos. O Simpósio foi avaliado pela CAPES
e classificado como “Qualis A”, e contou com patrocínio da VW, da Michelin e de
outras empresas. A Conferência Magna, de abertura do evento, ficou a cargo do
presidente da VW; a mesa foi composta pelo diretor da AEDB, um representante da
Câmara de Vereadores, o prefeito Silvio de Carvalho, o diretor acadêmico da AEDB,
os coordenadores do IV SEGET e a Comissão Científica. A Conferência começou
com a leitura do currículo do presidente da VW e informações sobre sua trajetória e
sucesso profissional; em seguida, Roberto Cortez fez sua apresentação. Através de
inúmeras fotos, tabelas e vários gráficos, o presidente da empresa exaltou o
sucesso do empreendimento e sua crescente participação no mercado, aí incluídas
as outras unidades de produção (Argentina, Colômbia, África do Sul e México), e
mostrou reportagens, como “Resende está no centro do mundo” (Revista Exame,
18/01/2006, seção “Negócios / Internacional”).
O presidente reafirmou o apoio da VW à formação e à parceria com a AEDB
no curso de Engenharia de Produção Automotiva, na montagem dos laboratórios de
eletrônica, na contratação de estagiários e no suporte dado ao corpo docente. Ao
fim da Conferência, foi passado um filme institucional da empresa, e houve o
discurso de um jovem estudante da AEDB, também estagiário da VW, afirmando
que estava realizando um sonho ao estudar naquela faculdade e ao trabalhar na
empresa, que “trará, com certeza, as realizações de um profissional de futuro
próspero”. Após o discurso, ao som de “Canção da América”, de Milton Nascimento
e Fernando Brant, a AEDB entregou ao presidente da VW/Resende o título de “sócio
benemérito” e de “sócio colaborador”8 [à Volkswagen Caminhões e Ônibus, através
de seu presidente.]
O curso de Engenharia de Produção Automotiva da AEDB pode ser apontado
como um exemplo de “sonho patronal da escola da casa”, nos termos de Bourdieu
& Boltanski (original de 1975; edição consultada de 2003), na medida em que se
configura como uma “confusão completa entre o diploma e o cargo”, havendo uma
correspondência entre as mudanças nos “sistemas de cargos” e na “produção das
capacidades técnicas dos portadores dos diplomas”. A VW indicou as disciplinas de
caráter Profissional Específica, enquanto à instituição coube apenas o suporte
laboratorial para as disciplinas de Conteúdos Básicos. Essa parceria é ambígua, pois
se, por um lado, compromete a relativa autonomia do sistema de ensino e o poder
do diploma, por outro, representa garantia de ingresso no mercado de trabalho,
devido à completa “adequação do sistema educacional ao sistema ocupacional”
8
De acordo com palavras do apresentador, seriam sócios beneméritos da AEDB “[...] aqueles que por
suas ações e méritos contribuem para que a AEDB alcance seus fins”; já os sócios colaboradores
seriam aquelas “[...] empresas que auxiliam a AEDB com subvenções periódicas ou lhe prestam valiosa
cooperação científica, cultural, educacional ou técnica”.
ENFOQUES v.11(1), março 2012
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146
(Offe, 1990).
Na
perspectiva
de
Bourdieu
e
Boltanski,
o
diploma
“universaliza
o
trabalhador”, pois o transforma em “trabalhador livre”, no sentido de Marx, mas
cuja
competência
e
direitos
estariam
garantidos
em
todos
os
mercados,
diferentemente do “produto da casa”, cujas habilidades são advindas do “cargo”
ocupado (Bourdieu & Boltanski, 2003:132). No entanto, nessas circunstâncias,
como fica o “poder coletivo do diploma” e quais são as possibilidades do diplomado
em Engenharia de Produção Automotiva fora do polo automotivo? Enquanto as
classes médias e altas cada vez mais têm sido atingidas pelas dificuldades de
inserção no mercado de trabalho, mesmo sendo portadoras de diplomas de
prestígio, os estudantes desta “escola da casa” possuem algo valioso: a (quase)
garantia de inserção no mercado de trabalho, ainda que percam amplitude na
atuação enquanto engenheiros, transformando-se em “produto da casa”, e não em
“trabalhador universal”.
Processos de escolarização da força de trabalho
Nesse contexto de mudança, a preocupação com a escolaridade tornou-se
central em relação aos filhos e aos próprios trabalhadores, e os resultados
aparecem ao observarmos dados dos dois surveys. Ao comparamos os dados de
2001 e 2009 (Gráfico 3), observa-se um processo massivo de escolarização na
geração de trabalhadores que integra esse mercado de trabalho. Se no ano de
2001 50% da força de trabalho empregada na fábrica possuía certificações de
níveis inferiores ao Ensino Médio (27% com o 2º grau incompleto, 15% com ginásio
completo e 8% com ginásio incompleto, segundo as nomenclaturas usadas nessa
época), as taxas referentes a 2009 apresentam uma elevação considerável, já que
apenas 0,7% tinha o Ensino Fundamental completo, 0,3% o Ensino Médio
incompleto; trabalhadores com Ensino Fundamental incompleto não aparecem
mais. Além disso, as taxas relativas ao Ensino Superior também apresentaram
grande alteração: a percentagem de trabalhadores com Ensino Superior incompleto
aumentou de 2%, em 2001, para 24,6%, em 2009.
ENFOQUES v.11(1), março 2012
Marina de Carvalho Cordeiro
147
Gráfico 3
Niveis de Escolaridade - 2001-2009
49.2
50.0
40.0
37.0
30.0
20.0
15.0
10.0
0.0
24.6
27.0
8.0
0.0
0.7
19.5
11.0
2001
5.4
0.3
2.0
2009
0.0
(Fonte dos dados: Ramalho, 2009, Survey VW-Resende. A título de esclarecimento: na legenda acima,
EF abreviação para Ensino Fundamental; EM para Ensino Médio e ES para Ensino Superior)
Apontamos a existência não apenas de uma “corrida pelo Ensino Médio”,
como também um processo de escolarização em massa, impactando o sistema
educacional em todos os seus níveis. Observando o gráfico acima, é possível
perceber as alterações dentro do espaço fabril e como tal processo inverte as taxas
de escolaridade da força de trabalho em 2009. Podemos levantar duas hipóteses
para tal inversão: uma modificação no corpo de trabalhadores da fábrica, ou um
empenho por parte dos trabalhadores que já a integravam em elevar seus
patamares
de
escolaridade.
A
fim
de
explorar
ambas
as
possibilidades,
analisaremos os dados fornecidos pelos dois surveys e os dados relativos à
educação na localidade, tomando como fonte o “Atlas do Desenvolvimento Humano
no Brasil”9 (PNUD-Brasil).
Ao se observarem o tempo e o tipo de contrato dos trabalhadores, percebese que praticamente toda a amostra referente ao ano de 2009 é de trabalhadores
permanentes (99%), sendo que em 2001 a política da empresa era similar, com
93%
exercendo
um
contrato
permanente
de
trabalho.
Em
2001
nota-se,
aparentemente, uma política estável por parte das empresas, com a manutenção
9
O “Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil” é um banco de dados eletrônico, disponibilizado pelo
Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD), a partir dos microdados dos censos de
1991 e de 2000 do IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e permite acesso a
informações socioeconômicas dos 5.507 municípios brasileiros e das 27 Unidades da Federação. De
acordo com o site, o objetivo do programa é “democratizar o acesso e aumentar a capacidade de
análise”; o sistema disponibiliza informações sobre o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
(IDH-M) e 124 outros indicadores georreferenciados de população, educação, habitação, longevidade,
renda, desigualdade social e características físicas do território. Extraído do texto “O que é o Atlas”.
Disponível em: http://www.pnud.org.br/atlas/dl/o_que_e_o_atlas.pdf. Acesso em: 30/04/2011.
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148
dos quadros contratados; com um número expressivo de funcionários com cinco
(20%) e quatro anos (38%) de contrato – é importante lembrar que, nessa época,
o máximo de tempo possível de contrato era de seis anos (1%), já que a VW e
parceiras instalaram-se em 1996. De acordo com os dados de 2009, 32% dos
trabalhadores possuíam mais de dez anos de contrato, 17% entre cinco e dez anos,
e 22% na faixa entre três e cinco anos.
Gráficos 4 e 5
(Fonte dos dados: Ramalho, 2009, Survey VW-Resende; Ramalho, J.R. & Santana, M.A., 2002. A
título de informação, no Gráfico 5, a legenda se refere a mais de um ano até dois anos; a mais de
dois anos até três anos, e assim por diante)
Considerando os dados apresentados, observamos que a VW tem optado
preferencialmente por contratos permanentes de trabalho, e não contratos
temporários. No entanto, isto se refere tão somente ao modo de contratação, não
sendo sinônimo de permanência por longo prazo na empresa. A comparação entre
os tempos de contrato apresentados em ambos os surveys não permite argumentar
que todo o quadro foi mantido durante o período. No ano de 2001, praticamente
70% da força fabril tinham entre três e seis anos de contrato (somatório total das
taxas referentes a esses intervalos de tempo), portanto, seria plausível supor que
em 2009, oito anos depois, pudéssemos observar uma taxa similar em relação
àqueles que apresentam mais de dez anos de contrato, o que não ocorre – apenas
32% têm contrato de dez anos ou mais. Se, por um lado, os trabalhadores
empenharam-se em adquirir novas certificações, por outro, é possível que a
empresa tenha se tornado mais seletiva, uma vez que, de uma forma geral, houve
um incremento nos níveis de escolarização da mão de obra disponível.
A partir de dados do “Atlas do Desenvolvimento Humano” (PNUD/Brasil),
ENFOQUES v.11(1), março 2012
Marina de Carvalho Cordeiro
149
trabalhando com os anos disponíveis, 1991 e 2000,10 é possível traçarmos um perfil
da educação no município. É importante ter em mente que o ano de 1991 antecede
a implantação da VW (1996), e o ano de 2000 corresponde a quatro anos de
existência da VW e antecede a chegada da Peugeot (2001). A partir dos gráficos e
das tabelas apresentados a seguir, é possível ter um panorama geral da elevação
das taxas de escolarização na região, observando-se melhorias nas taxas referentes
à educação da população de 25 anos ou mais (Gráfico 6) e de jovens, entre 18 e 24
anos (Gráfico 7).
Gráfico 611
Fonte dos dados: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, dados em percentagem; Elaboração própria
10
O Censo 2010 (IBGE) já disponibiliza algumas de suas informações, porém, a previsão para a
divulgação dos microdados é entre os meses de janeiro e março de 2012; portanto, utilizaremos como
base apenas os anos de 1991 e 2000.
11
Os dados dos Gráficos 6 e 7 referem-se a percentuais de: (1) pessoas analfabetas: que não sabem ler
nem escrever um bilhete simples; (2) pessoas com menos de quatro anos de estudo: pessoas que não
completaram a quarta série do fundamental, ou seja, que podem ser classificadas como “analfabetos
funcionais”; (3) pessoas com menos de oito anos de estudo: pessoas que não completaram a oitava
série do fundamental; indica que abandonaram a escola ou que apresentam um grau elevado de atraso
escolar; (4) pessoas com doze anos de estudo ou mais: pessoas que completaram pelo menos um ano
de curso universitário; (5) pessoas frequentando curso superior: pessoas que atualmente estão fazendo
o curso universitário; (6) pessoas com acesso ao curso superior: pessoas que estão frequentando o
curso universitário ou já o concluíram – indicadores utilizados no “Atlas do Desenvolvimento Humano”
(PNUD / Brasil).
ENFOQUES v.11(1), março 2012
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150
Gráfico 7
Fonte dos dados: “Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil”, dados em percentagem. Elaboração própria
O município de Resende também está entre os dez municípios do estado
com as maiores médias de anos de estudo da população de 25 anos ou mais,
ocupando a quinta posição, com 5,96 anos de estudo em 1991, e 7,07 anos em
2000 – apresentando uma elevação em 1,11 anos, enquanto a variação no
município do Rio de Janeiro é de 0,69 anos (eram 7,73 anos de estudo em 1991,
mudando para 8,42 anos em 2001).
Tabela 1
Posição
1°
2°
3°
4°
5°
6°
7°
8°
9°
10°
Média de anos de estudo por Município,
pessoas de 25 anos ou mais,
1991 e 2000
Município do RJ
1991
Niterói
8,84
Rio de Janeiro
7,73
Nilópolis
6,35
Volta Redonda
6,5
Resende
5,96
Macaé
6
São Gonçalo
5,78
Iguaba Grande
4,66
Maricá
4,97
Mangaratiba
4,72
2000
9,65
8,42
7,43
7,36
7,07
6,87
6,71
6,63
6,56
6,55
Fonte: “Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil”
ENFOQUES v.11(1), março 2012
Marina de Carvalho Cordeiro
151
Se considerarmos que os trabalhadores passaram a perceber o elemento
“educação” enquanto parte da categoria “trabalho” e o panorama geral das taxas
educacionais no município, podemos sugerir que a VW se beneficiou do contexto
favorável de maior oferta de trabalhadores com certificações escolares de níveis
superiores e elevou suas exigências para contratação e/ou manutenção no
emprego.
Acrescentamos que, em ambos os surveys, os trabalhadores indicaram ter
orgulho de trabalhar na VW e nas empresas do “consórcio modular” (86% em 2001
e 95% em 2009), pertencimento percebido como elemento de status entre os
trabalhadores. No entanto, para fazer parte desse mercado, “tem exigência”, e a
importância do investimento em educação consta igualmente dos dados fornecidos
pelos surveys, na medida em que os trabalhadores afirmaram que trabalhar na VW
também significava um “estímulo aos estudos”. No survey de 2001, essa opção
aparecia em terceiro lugar (49%); em 2009, constava em quarto lugar (40,9%).
Gráfico 8
Trabalhar na Volkswagen significa...
2001
80%
70%
2009
76%
63%
65%
58%
60%
52%
50%
49%
41%
42%
40%
30%
23%
21%
15%
20%
7%
10%
0%
Futuro para
família
Respeito como Estímulo aos
trabalhador
estudos
Bom salário
Passo para
outro emprego
Crédito no
comércio
(Fonte: Ramalho, J.R. & Santana, M.A., 2002; Ramalho, 2009, Survey VW-Resende)
Desta forma, em ambos os surveys, em torno de 40% dos trabalhadores
afirmavam que trabalhar na fábrica significava um “estímulo aos estudos”.
Fernando, o ex-agente funerário que havia conseguido emprego na PSA, dizia que
sem estudar teria sido impossível “estar lá dentro”:
[...] Essas fábricas, a maioria... Volks, Michelin, só 2º grau, com 1º grau a
ENFOQUES v.11(1), março 2012
Marina de Carvalho Cordeiro
152
pessoa não entra mesmo. Só se tiver um conhecido, um “peixe”, mas mesmo
assim você pode ficar no máximo um ano se você não tiver o interesse de
estudar... Isso aconteceu com dois colegas meus, ele estava lá, tinha a 8ª série,
tinha um cara que conseguiu colocar ele lá dentro. Mas fulano entrou lá e não
ficou nem um ano, aí ele trabalhou, mas tinha que ter feito um supletivo pelo
menos, pagava um supletivo que é em seis meses... Mas não terminou, ficou
desempregado […].
A percepção de que a elevação nos níveis de escolaridade está relacionada à
ascensão em termos de função e mesmo à manutenção no emprego pode ser
apontada como um dos elementos que impactam a preocupação com o emprego,
algo que faz parte do dia a dia desses trabalhadores – ainda que seja possível
observar uma inversão em relação às taxas daqueles que se diziam muito
preocupados (36% em 2001, e 13% em 2009) e daqueles que se dizem
despreocupados (14% em 2001, e 32% em 2009). Podemos sugerir como hipótese
que, àquela época, havia uma pressão maior pela aquisição de novas certificações,
portanto, a preocupação com o desemprego era maior do que em 2009. No
entanto, em 2009, apesar da diferença no formato das respostas, a preocupação
com o desemprego permanece alta, em torno de 42% (soma dos 29% que se
dizem preocupados com os 13,1% dos muito preocupados; em 2001, 59% dos
trabalhadores tinham preocupação considerável com o emprego (somatório de 36%
dos muito preocupados com 23% dos razoavelmente preocupados).
Gráficos 9 e 10
(Fonte dos dados: Ramalho, 2009, Survey VW-Resende; Ramalho, J.R. & Santana, M.A., 2002.
Agrupamos as categorias “pouco preocupado” e “muito pouco preocupado” dos dados de 2001 a fim de
facilitar a comparação com os dados disponíveis em 2009)
Um elemento que pode corroborar a hipótese de que tenham ocorrido
alterações no corpo de trabalhadores refere-se às taxas de sindicalização, que se
invertem: eram 63% de sindicalizados em 2001, contra 73% de não sindicalizados
ENFOQUES v.11(1), março 2012
Marina de Carvalho Cordeiro
153
em 2009. No entanto, mesmo com a inversão no número de sindicalizados e
“descrença” nas atividades sindicais,12 os trabalhadores determinam a estabilidade
no emprego como tema que deveria orientar suas ações. Em 2001, os temas mais
importantes eram a estabilidade no emprego (71%), a promoção de cursos de
formação profissional (70%) e a questão salarial (63%). No ano de 2009, os temas
em destaque foram: melhores salários (19,7%), estabilidade no emprego (18,4%)
e melhores condições de trabalho e saúde (13,3%). A promoção de cursos de
formação profissional teve um decréscimo: da segunda maior preocupação, com
70% das respostas, para a quinta posição, com 12,3%.13 Podemos inferir que,
como o primeiro survey foi aplicado no período inicial, de expansão das empresas,
a preocupação com a formação ocupava lugar de destaque, decaindo alguns anos
mais tarde; já o desemprego permanece como tema de grande prioridade.
Tabelas 2 e 3
Lutas Prioritárias do
Sindicato,
2001
Estabilidade no
71%
emprego
Cursos de formação
70%
profissional
Salário
63%
Condições de Trabalho
51%
Terceirização
28%
Jornada de Trabalho
22%
Lutas Prioritárias do Sindicato, 2009
Melhores Salários
Estabilidade no emprego
Melhores Condições de
Trabalho e Saúde
19,7%
18,4%
13,3%
Pela redução da Jornada de
Trabalho
Promover cursos de formação
profissional
Contra a terceirização
13,1%
12,3%
5,7%
(Fonte: Ramalho, 2009; Ramalho, J.R. & Santana, M.A., 2002)
Vale destacar que outros elementos interferiram na dinâmica de elevação
dos patamares de escolaridade mínima para a entrada neste mercado de trabalho,
como a ISO/TS 16949. Desenvolvida em afinidade com as normas do Sistema de
Gestão de Qualidade ISO14 (International Organization for Standardization), a
12
Quando perguntados por que razão não se filiavam ao sindicato, os trabalhadores responderam que
“não acreditam nos sindicatos” (29%), “não possuem informação suficiente” (20%) e que “não há
garantias de melhoria salarial” (11%); e a grande maioria não participa das atividades promovidas pelo
sindicato (86%) – dados de 2009.
13
Note-se que as diferenças percentuais se devem à multiplicidade de respostas no primeiro survey, o
que não ocorre no segundo, cujo somatório é 100%.
14
A International Organization for Standardization (ISO) foi fundada em 1946, tendo 25 países entre os
seus membros, grupo no qual o Brasil se inclui através da Associação Brasileira das Normas Técnicas
(ABNT). Observando a utilidade da padronização nas relações comerciais, a ISO criou selos que
garantam a qualidade de produtos / serviços a fim de agilizar as trocas comerciais, suplantando os
processos de fiscalização (Lacerda & Simões, 2003). As certificações ISO podem se referir aos Sistemas
de Gestão de Qualidade (SGQ – “família 9000”) ou aos Sistemas de Gestão Ambiental (SGA – “família
14000”). Atualmente, os selos ISO são mundialmente reconhecidos e as certificações são muito
populares no Brasil, país com uma das maiores quantidades de selos da América do Sul.
ENFOQUES v.11(1), março 2012
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154
ISO/TS 16949 não é uma norma regulamentadora, mas uma Especificação Técnica
aplicada aos locais de trabalho onde ocorre montagem de automóveis ou fabricação
de peças ou componentes. Sua característica é conter os requisitos da Norma ISO
9001:2000 e os requisitos específicos da indústria automotiva mundial, mas suas
exigências são mais abrangentes e complexas do que a anterior e são obrigatórias
para
a
implementação
e
a
certificação
dos
fornecedores
automotivos.
Diferentemente da ISO-9001:2000, a certificação ISO/TS 16949 é controlada de
forma centralizada pela IATF (International Automotive Task Force), que credencia
mundialmente os Organismos de Certificação, os quais devem subordinação ao
IATF – por sua vez, formado pelas “Gigantes”: BMW, DaimlerChrysler, Fiat, Ford
Motor Company, General Motors (e Opel-Vauxhall), PSA Peugeot Citroën, Renault
SA, e Volkswagen. A primeira edição desta Especificação Técnica data de 1999 e,
quando o prazo expira, as empresas devem adquirir as edições seguintes; segundo
informações disponíveis na Internet, a ISO/TS 16949 tornou-se obrigatória.
Ao trazer este elemento, o objetivo é apontar o fato de que, segundo relatos
de trabalhadores, uma das “responsáveis” pelo aumento nos níveis de escolaridade
exigidos são as certificações ISO e, não necessariamente, alterações no processo
de produção. Uma das possíveis relações que os selos de qualidade ISO podem ter
com o nível de escolaridade de seus funcionários é que, no “padrão de qualidade
ISO”, trabalhadores mais escolarizados produzem mais com melhor qualidade. No
entanto, enquanto alguns dizem que as empresas “exigem” e “obrigam” os
funcionários a completar o Ensino Médio, outros colocam que elas “aconselham,
pois sempre aparecem oportunidades”. Segundo Heloísa, que trabalha no setor de
Recursos Humanos da Volks:
Inicialmente, quando a Volks veio para cá, eles exigiam 2º grau, mas não era
completo. Só que agora eles têm a ISO TS, que é uma norma regulamentadora
que dá uma certificação; só que para ter essa certificação, os funcionários têm
que ter o 2º grau, então quer dizer que aqueles que já estavam sem o 2º grau,
continuaram. Mas a gente no RH sempre fala, “vai, termina o 2º grau”, tanto é
que hoje na empresa em que eu trabalho, poucos não têm o 2º grau, a maioria
já terminou. E a maioria que terminou não tinha o 2º grau na época que entrou
há quase 10 anos atrás, no começo da fábrica. Não é que a gente cobre, mas a
gente sempre está “ah, faz o 2º grau”, porque a gente faz seleção interna para
poder dar promoção para o funcionário. [...] tem que ter qualificação, se não
tiver qualificação... Aí, por exemplo, para ser assistente, tem que ter o 2º grau,
ter curso de mecânica, se não tiver, não pode nem concorrer à vaga. [...] Isso,
de certa forma, obriga eles a estudarem, tanto é que a maioria dos nossos
funcionários, praticamente 95%, tem o 2º grau, no mínimo, muitos já fazem
faculdade, muitos mesmo.
Outro funcionário da VW, terceirizado, afirma que “exigir não exige”, mas que
há uma concorrência com as “firmas lá de fora” e “aí, já imaginou uma empresa do
porte da Volkswagen se os funcionários não têm nem o 2º grau? A firma vai ficar
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para trás e ela não quer isso”. Não foi possível acessar os documentos oficiais para
verificar quais são os requisitos para a aquisição dessa Especificação Técnica, mas
este é mais um elemento que faz parte da dinâmica que altera os “passaportes de
entrada” neste mercado. Enfim, no jogo entre o diploma e o cargo, por vezes
existem pressões advindas não do “cargo” ou do “diploma”, mas de outros
elementos que fazem parte deste “campo de conflito”.
Considerações finais
Neste
artigo,
desenvolvemos
uma
comparação
entre
os
perfis
dos
trabalhadores de chão de fábrica, enfocando os dados relativos à escolaridade, nos
anos de 2001 e 2009. A partir de informações colhidas durante trabalho de campo,
foi possível traçar um panorama de como se deu esse processo de escolarização em
massa diante da pressão do mercado de trabalho local. Muitos autores atribuem a
mudança no perfil profissional requerido pelas unidades fabris que operam segundo
o paradigma da produção enxuta, competente e não mais apenas qualificado à
necessidade de uma mão de obra mais escolarizada. No entanto, no caso
apresentado, as unidades fabris já “nasceram” reestruturadas e enxutas e, ainda
assim, contratavam trabalhadores com níveis de escolaridade inferiores ao Ensino
Fundamental completo. Apenas alguns anos depois é que passaram a requerer da
mão de obra maiores níveis de escolaridade, implicando “altas exigências”. Quais
elementos influenciaram esse processo?
Após alguns anos de implantação, o relacionamento entre o sistema
ocupacional e educacional foi se estreitando, e o segundo incorporou novas
demandas colocadas pelo primeiro. Desta forma, surgiram e aumentaram as vagas
para os cursos de Educação de Jovens e Adultos, outros estabelecimentos de ensino
instalaram-se na região, os antigos adequaram sua oferta ao novo contexto, e
houve expansão das modalidades à distância. Outro elemento que integra esse jogo
entre o diploma e o cargo é a própria certificação ISO-TS, que acabou sendo um
elemento a mais para a elevação das exigências de escolaridade para o ingresso no
mundo fabril.
Offe (1990), ao discutir a relação entre o sistema educacional e o
ocupacional, aponta a relevância do papel do Estado e das políticas e dos
planejamentos educacionais no contexto econômico, e afirma que não há um
crescimento
da
demanda
de
qualificação
inerente
ao
desenvolvimento
da
industrialização, mas sim uma relação de oferta-procura entre o sistema escolar e o
sistema ocupacional. Em sua perspectiva, o sistema ocupacional poderia ampliar as
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exigências de escolaridade de seus trabalhadores por razões que não estariam
fundamentadas necessariamente nas transformações das estruturas de produção e
nas complexidades das tarefas no trabalho, mas que seriam resultado desta
dinâmica de oferta-procura (Offe, 1990:9-59). Assim, na medida em que o sistema
educacional se expandisse, o sistema ocupacional poderia se permitir ser “seletivo”,
elevando os critérios para as funções sem se preocupar com a elevação dos preços
pagos à força de trabalho. Considerando o contexto da pesquisa, parece-nos
apropriado analisar a dinâmica trabalho-educação no sul fluminense segundo estes
termos, uma vez que não houve nenhuma mudança radical na organização da
produção desde a sua implementação.
A possibilidade de as empresas terem se tornado “mais seletivas” a partir do
momento em que o contexto educacional se alterou – tanto pela ampliação da rede
educacional que atende às exigências do “cargo”, quanto pela elevação dos níveis
de escolaridade da população local e da camada trabalhadora em geral – e tenham
se permitido substituir a mão de obra anterior por outra mais escolarizada surge
como efetiva. Houve, de fato, como comprovam as taxas de escolarização da
localidade e os dados qualitativos, um empenho dos trabalhadores em incrementar
suas certificações escolares. Esse processo, por fim, parece favorecer o sistema
ocupacional, que pode então selecionar seus trabalhadores tendo em vista
patamares mais elevados.
Os trabalhadores das fábricas adquiriram status através do uso do uniforme,
do transporte, dos benefícios, elementos de extrema importância, já que o retorno
desse investimento foi comprovado pelas certificações escolares alcançadas. Logo,
a educação tornou-se parte do “ser trabalhador”, e foi preciso voltar à condição de
estudante para conseguir “entrar lá dentro”.
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PARA CITAR ESSE ARTIGO
CORDEIRO, Marina de Carvalho. Trabalhadores-estudantes: estudar e trabalhar, ou estudar para
trabalhar? Uma análise da relação entre trabalho e educação no sul fluminense. Enfoques - revista dos
alunos do PPGSA-UFRJ, v.11(1), março 2012. Online. pp. 133-159.
http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br
Recebido em 5 de maio de 2011.
Aprovado em 01 de setembro de 2011.
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