: ARTIGO A primeira infância aos olhos da União Europeia Mafalda Leal . Eurochild www.eurochild.org Este artigo pretende dar uma breve perspetiva das políticas e ações da União Europeia em relação aos serviços de educação e acolhimento na primeira infância e ao modo como os direitos das crianças são tidos em conta no seu desenvolvimento. Perspetivam-se ainda os desafios que se apresentam aos Estados membros no desenvolvimento dos seus sistemas de acolhimento e educação para a primeira infância, mas também as oportunidades que uma ação coordenada a nível europeu oferece para assegurar a provisão de serviços universais e inclusivos de qualidade, centrados no bem-estar e desenvolvimento das crianças. Cumpre relembrar que legislar sobre os direitos das crianças não é uma competência da União Europeia. Porém, desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 2009, um novo objetivo de promover a proteção dos direitos das crianças abriu as portas para ações da União que visem diretamente as crianças. Mas ainda na ausência desta base legal, a União Europeia não se absteve de levar em conta os direitos das criancas na elaboração de legislação, ações e programas cujos efeitos incidissem sobre as crianças. No que respeita ao acesso e disponibilidade de serviços de acolhimento e educação – de qualidade – na primeira infância, até há relativamente pouco tempo o debate a nível europeu centrou-se mais em questões ligadas ao desenvolvimento económico e à participação das mulheres no mercado de trabalho e em questões de igualdade de género, do que na necessidade de oferecer serviços em prol do interesse superior da criança. O argumento económico, enquadrado pela Estratégia de Lisboa para o Crescimento e o emprego, levou à adoção de metas quantitativas segundo as quais os Estados membros se comprometeram a garantir a disponibilidade de estruturas de acolhimento, até 2010, para pelo menos 90% das crianças com idades compreendidas entre os três anos e a idade da escolaridade obrigatória e para pelo 9 Cadernos de Educação de Infância n.º 100 set/dez13 menos 33% das crianças com menos de três anos. Mais de dez anos volvidos, apenas 6 países alcançaram ambos os objetivos. Considerações sobre a necessidade de disponibilizar serviços qualitativos de qualidade e os critérios avançados para a sua definição da qualidade nos serviços de educação de infância pela Rede de Cuidados com a Infância da Comissão Europeia praticamente caíram no esquecimento, talvez fruto do desinteresse dos Estados membros e da falta de competência da União nesta matéria. O denominado Método Aberto de Cooperação para a educação e formação, que desde o ano 2000 permitiu aos Estados membros acordarem objetivos comuns para os sistemas de educação e formação assentes na qualidade, acesso e abertura, e respetivos indicadores e parâmetros de referência para medir progresso, trouxe um novo impulso ao desenvolvimento de políticas dedicadas à primeira infância. Uma nova leva de estudos foi financiada pela União Europeia sobre temas diversos como a força laboral da primeira infância1, a melhoria dos sistemas de primeira infância2, ou ainda a contribuição da educação e cuidados na primeira infância para a redução de desigualdades sociais e culturais. Outros atores possibilitaram a realização de estudos importantes, como o RECI, sobre a inclusão das crianças de etnia cigana na primeira infância3. Ao mesmo tempo, o reconhecimento crescente de que as fundações bases para um desenvolvimento saudável de uma criança e 1. Working for Inclusion: how early childhood education and care (ECEC) and its workforce can help Europe’s youngest citizens, Children in Scotland, 2010. CoRe - Competence requirements in Early childhood Education and Care, University of East London, Gent University, 2011. 2. NESSE (Network of Experts in the Social Sciences of Education and Training) report commissioned by the DG for Education and Culture on a European Commission symposium, Early Matters: Improving Early Childhood and Care, held in October 2008, June 2009. 3. Roma Early Childhood Inclusion, Open Society Institute, Roma Education Fund, UNICEF, 2012. a sua integração e contribuição para a sociedade começam na primeira infância levou a que várias comunicações da Comissão Europeia fizessem referência à importância dos serviços de educação e cuidados, ainda que largamente de um ponto de vista do sucesso escolar. São de salientar: • a comunicação Uma Agenda da União Europeia para os Direitos da Criança4, que reconhece que “facultar a todas as crianças o acesso ao ensino pré-escolar e a à educação e cuidados é a base para uma aprendizagem bem-sucedida ao longo da vida, a integração social, o desenvolvimento pessoal e a capacidade de encontrar emprego mais tarde”. • a comunicação sobre a Plataforma Europeia contra a Pobreza e a Exclusão 4.An EU Agenda for the Rights of the Child, COM(2011)60/4. : ARTIGO Social 5 , que reconhece a contribuição da educação pré-escolar para a rutura do ciclo vicioso da transmissão intergeracional da pobreza. • a comunicação sobre o combate ao abandono escolar precoce6, que refere que “o acesso a uma educação e cuidados de qualidade nos primeiros anos de vida foi considerado uma das medidas mais eficazes para garantir às crianças um bom começo no seu percurso escolar e reforçar a sua resiliência”. A proeminência deste tema levou os Estados membros e a Comissão Europeia a chegar a um acordo sobre a importância do desenvolvimento de um referencial de qualidade europeu para a primeira infância. Para isto não foi alheio o esforço da sociedade civil no sentido de ancorar as políticas relativas à primeira infância nos direitos das crianças. É de realçar a importância de situar o desenvolvimento dos serviços para a primeira infância num contexto político mais vasto, relacionando-os com as políticas de emprego, as políticas de apoio à familia e de licenças parentais, e as políticas que regem os sistemas formais de educação7. A comunicação da Comissão Europeia de 2011, seguida de conclusões do Conselho Europeu sobre a educação e acolhimento na primeira infância “Proporcionar a todas as crianças as melhores oportunidades para o mundo de amanhã” são marcos importantes. Neles reconhece-se que: • uma educação e acolhimento de qualidade proporcionam uma série de benefícios a curto e longo prazo para as crianças, e em particular para as crianças de meios desfavorecidos, bem como para toda a sociedade; • a construção de alicerces sólidos nos pri5. COM(2010) 758/3 The European Platform against Poverty and Social Exclusion: A European framework for social and territorial cohesion. 6. Tackling early school leaving: A key contribution to the Europe 2020 Agenda, 31.1.2011. p 6. 7 Policy position on Early Childhood Education and Care, Eurochild, 2011. 10 Cadernos de Educação de Infância n.º 100 set/dez13 • • meiros anos de vida favorece a aprendizagem posterior, tornando-a mais eficaz e provavelmente mais duradoura, diminuindo o risco de abandono escolar precoce, reforçando a equidade dos resultados educativos e reduzindo os custos para a sociedade em termos da perda de talentos e das despesas públicas com os sistemas social, de saúde e até de justiça. a oferta de serviços de acolhimento e educação na primeira infância é tão importante como assegurar a sua disponibilidade e acessibilidade e é necessário dedicar atenção a áreas como o meio ambiente e as infraestruturas, o pessoal, o currículo, a boa governação e garantia de qualidade. é necessária uma abordagem sistémica garantindo o envolvimento de todos os interessados, incluindo as famílias, e uma colaboração transversal entre diversas políticas, nomeadamente as políticas de educação, cultura, assuntos sociais, emprego, saúde e justiça. Ambos os documentos afirmam que a equidade de acesso a serviços de educação e cuidados de qualidade dá um forte contributo para o sucesso da Estratégia 2020 (sucessora da Estratégia de Lisboa) e em particular para alcançar os objetivos estratégicos de educação – reduzir a taxa do abandono escolar precoce para menos de 10% – e de luta contra a pobreza e a exclusão social – reduzir pelo menos em 20 milhões o número de pessoas em risco ou em situação de pobreza ou de exclusão social. Sugerem também um conjunto de medidas que podem contribuir para responder ao desafio da equidade no acesso e aumentar a qualidade destes serviços, que vão desde a promoção de uma abordagem integrada e a disponibilização de serviços que respondam a todas as necessidades das crianças (cognitivas, sociais, emocionais, psicológicas e físicas), até ao apoio à profissionalização do pessoal desta área e o envolvimento dos pais, das famílias e das comunidades. Na sequência desta Comunicação e da sua aprovação pelo Conselho, iniciaram-se trabalhos, cuja finalização está prevista para a primavera de 2014, para a definição de um referencial europeu de qualidade para os serviços de educação e cuidados para a infância. Um estudo do Parlamento Europeu é unânime sobre a necessidade de apostar na qualidade, nomeadamente alargando o âmbito de participação nos serviços (em particular nas zonas rurais); desenvolvendo sistemas integrados; apostando na profissionalização dos educadores e auxiliares, desenvolvendo currículos com equilíbrio entre fatores cognitivos e não cognitivos; envolvendo os pais no desenvolvimento dos serviços; assegurando que a despesa pública na primeira infância seja semelhante em todos os países da União Europeia de modo a possibilitar a comparação do desempenho entre países. Desafios e oportunidades As medidas de austeridade levadas a cabo por vários governos europeus e os cortes nas despesas sociais têm tido um impacto dramático nas crianças e nas famílias, que viram reduzido o acesso a recursos adequados, prejudicada a qualidade dos serviços educativos, de saúde e bem-estar e limitadas as oportunidades de participação das crianças e jovens na vida social e familiar8. O ensino em geral e a educação de infância em particular não ficaram alheios à redução de despesas e há um risco real de reformas tão desejadas como a reunião sob a mesma tutela dos serviços de educação e cuidados para as crianças dos 0 aos 6 anos ficarem na gaveta. O desinvestimento nos serviços de prevenção e intervenção precoce pode ter consequências graves no futuro em relação ao aumento da exclusão social e da pobreza, do insucesso escolar, de comportamentos de risco, etc., como também aos custos associados à resposta a estes problemas, que se 8 How the economic and financial crisis is affecting children and young people in Europe, Eurochild, 2012. calcula sejam bem superiores ao investimento na sua prevenção. Mas há também oportunidades que têm de ser aproveitadas no seu máximo potencial, nomeadamente a nova leva de fundos estruturais europeus, cujos objetivos e/áreas prioritárias incluem a primeira infância. A Eurochild acredita que os alicerces para muitas das aptidões necessárias aos mercados de trabalho atuais são erigidos na primeira infância. A educação e cuidados na primeira infância têm, junto com o apoio à família e licenças parentais adequadas, um papel importante a desempenhar na preparação de trabalhadores aptos no futuro. Por outro lado, o desenvolvimento dos serviços de educação de infância tem potencialmente um impacto direto na criação de trabalho e no crescimento económico. É positivo que a comunicação da Comissão Europeia sobre a primeira infância encoraje os Estados membros a utilizar os fundos estruturais para investir na primeira infância. A sociedade civil a nível europeu e sobretudo nacional não pode deixar passar esta oportunidade e apelar a que a primeira infância seja uma das prioridades dos programas de 11 Cadernos de Educação de Infância n.º 100 set/dez13 implementação dos fundos europeus, para ações de formação profissional e valorização da carreira dos educadores e auxiliares educativos, para sustentar estudos que mapeiem as necessidades dos utilizadores dos serviços, incluindo as próprias crianças, dando particular atenção a considerações de inclusão e diversidade, ou ainda para investir no desenvolvimento global da qualidade dos sistemas de educação de infância. Uma outra oportunidade a não perder diz respeito à implementação da recente recomendação da Comissão Europeia “Investir nas Criancas para quebrar o ciclo vicioso da desigualdade”, que estabelece princípios comuns e fornece recomendações aos Estados membros para a definição e implementação de políticas de combate à pobreza e exclusão infantil, com base numa perspetiva dos direitos da criança. A recomendação apela ao desenvolvimento de estratégias integradas com base em três pilares fundamentais: o acesso a recursos adequados, o acesso a serviços de qualidade economicamente comportáveis, e o direito das crianças à participação. No quadro do segundo pilar, os serviços de educação de infância merecem particular atenção pelo seu potencial enquanto investimento social destinado a corrigir as desigualdades e as dificuldades sentidas por crianças desfavorecidas através da intervenção precoce. É da maior relevância a afirmação de que os serviços de educação de infância devem ser serviços de qualidade, inclusivos e acessíveis a todos, independentemente da situação laboral dos pais. Definir qualidade na primeira infância, decidir o que deve ser avaliado, a comparabilidade entre países, estabelecer indicadores comuns e encontrar um equílibrio entre interesses económicos, pedagógicos, de inclusão social e de respeito pelos direitos das crianças é sem dúvida complexo. Mas nos tempos que correm, em que as restrições orçamentais põem em risco a qualidade dos serviços, é fundamental apoiar este apelo a serviços de qualidade e apostar no desenvolvimento do referencial europeu de qualidade.