SUB DA MATÉRIA DE CAPA Autora: Mariana Martins Para onde olhar Novas iniciativas invadem as telinhas, mas também os parques e escolas Não é exagero afirmar que o Brasil passa por um momento de efervescência no que diz respeito às reflexões sobre o universo infantil, desde a maternagem até a fase de formação da identidade das crianças, que vai até os 06 anos. A criação com apego, a amamentação exclusiva e a própria discussão sobre as formas e a humanização do parto contribuíram para que fosse jogada luz em fases da infância pouco debatidas. O papel dos pais e mães na reflexão sobre a educação formal, muitas vezes se limitava à escolha da escola e, na educação informal, na reprodução de costumes passados de gerações anteriores e orientações médicas. Hoje, com a ajuda de redes sociais, fóruns de mães e pais proliferam pelo Brasil; com isso, a prática de refletir sobre diversos aspectos da criação de filhos vem sendo mais comum. O empoderamento das famílias sobre métodos de ensino e processos de formação das identidades na infância também repercutem no consumo de mídia por parte dos pequenos. Gabriela Raposo, pediatra, e mãe de Eduardo, que tem 2 aninhos, fez a opção de evitar ao máximo a exposição do bebê a conteúdos audiovisuais. “Até os seis meses eu não indico aos pacientes a exposição à televisão. Isso para evitar, por exemplo, que todas as refeições sejam feitas na frente da televisão. Até depois dos dois anos, quando fui deixando ele assistir, senti que, mesmo limitando o tempo e selecionando o conteúdo, ele ficava hipnotizado e não queria fazer mais nada. Queria televisão o tempo todo”, lembra Gabriela. O que as crianças podem ou devem assistir, e se devem assistir, passou a ser um assunto doméstico. Podemos, inclusive, localizar o crédito do início destas discussões no país a esforços desprendidos ao longo dos anos por entidades como a Rede Andi - Comunicação pelos Direitos da Criança e do Adolescente e o Instituto Alana. Com contribuições voltadas para a valorização dos direitos da infância na mídia e sobre a importância das crianças não serem tratadas como consumidoras e não serem expostas de maneira direta às campanhas publicitárias, estas entidades contribuíram para o uma nova consciência sobre o assunto. Rodrigo Bueno, pai das gêmeas Iolanda e Margarida, também de dois aninhos, diz que a primeira seleção feita por ele antes de expor as meninas ao conteúdo televisivo é relacionado à questão da publicidade de produtos. “A gente evita desenhos que são muito populares e que geram produtos. Aqui não entra nada que vira sapato, que vira comida, essas coisas”, afirma Rodrigo referindo-se a produtos derivados de desenhos animados. A busca por uma programação audiovisual sem apelo mercadológico passa a ser um dos pontos de partida quando a questão é a escolha dos pais. Alguns, mesmo aqueles que evitam ao máximo a exposição dos seus filhos aos conteúdos audiovisuais, são categóricos em dizer que em algum momento o consumo de mídia pelas crianças é inevitável. Existe um paradoxo posto, afirma Rodrigo: “as pais sabem que expor as crianças todo tempo às diferentes telas não é bom, eles discutem isso, criam algumas regras familiares. No entanto, a nossa vida hoje é tão corrida que mesmo os pais mais instruídos vão em algum momento abrir mão, ceder voluntariamente e involuntariamente, aos conteúdos. São recursos muito disponíveis, pulverizados e sedutores”. Os formatos e o excesso de informações e estímulos preocupam Gabriela, que diz ter tido experiências ruins nas primeiras exposições de Eduardo aos conteúdos audiovisuais. “Notei que todas as vezes que ele assistia TV, ele ficava estressado e dormia mal. Acordava chamando os personagens dos desenhos”. Os tipos de estímulos corretos para cada faixa etária, os conteúdos não apelativos e mídias que não atuem como “novas babás eletrônicas”, apenas para hipnotizar os pequenos, ganharam mais defensores. Rodrigo também diz evitar que as meninas assistam a desenhos animados que são muito rápidos, que tenham contornos muito definidos e que sejam parecidos com videogames. Tanto Gabriela quanto Rodrigo afirmam preferir musicais, histórias contadas e produtos que permitam autonomia para as crianças, para que elas possam criar e usar também a sua imaginação. A busca por conteúdos qualificados, educativos e com valores sociais mais fortes que os mercadológicos fez surgir uma geração de conteúdos independentes, não mais criados dentro das grandes emissoras de televisão ou das grandes produtoras, e que não necessariamente surgiram para serem produtos midiáticos. Historicamente os conteúdos produzidos pela comunicação pública brasileira como Castelo Rá-Tim-Bum, Cocoricó e no Mundo da Lua são sempre lembrados como conteúdos educativos e qualificados da telinha. Na linha dos musicais, Palavra Cantada e Hélio Ziskind, e nas histórias contadas, Bia Bedran, foram durante muito tempo alternativas aos produtos derivados de grandes emissoras e produtoras nacionais e internacionais. Um exemplo desta nova efervescência vem surgindo no Recife e em São Paulo. Nos últimos anos, várias experiências surgiram e com elas também novos modelos de negócio e concepções diferentes. Mas todos atendem a um público muito parecido de pais e mães que buscam conteúdos alternativos, ou, apenas conteúdos inovadores e, principalmente, não excessivamente mercadológicos. Em Recife, uma das novidades dessa linhagem pode ser vista no “Mundo Bita”, programa que faz maior sucesso com a criançada. Segundo Felipe Almeida, um dos sócios da Mr. Plot – produtora responsável pelo programa – a ideia de produzir conteúdos para criança surgiu a partir de uma análise de mercado e da constatação de que existiam poucos aplicativos para telefones móveis e tabletes para crianças em português. A ideia, ainda segundo Felipe, era criar livros digitais e interativos em português para as novas plataformas. O personagem Bita não foi exatamente criado para os aplicativos, mas de forma inusitada foi trazido por um dos sócios para dentro do negócio. Bita foi uma criação caseira, feita para a chegada de um novo papai e uma nova mamãe. O personagem saltou, então, da ilustração do quarto da filha para os aplicativos criados no trabalho do pai. A ideia de aplicativos como livros e jogos infantis para plataformas móveis não renderam o esperado e a saída da empresa foi buscar um produto musical que, segundo Felipe, parecia ser mais atrativo para as crianças. De 2011, quando o Bita foi criado, para hoje, já são dois Cds/DVDs, 27 músicas, uma peça de teatro, um musical, interprogramas de TV e um curta-metragem saindo do forno, junto com o próximo DVD. A partir de uma outra lógica, para se somar a um novo e diferenciado conteúdo infantil, surgiram as cantoras Fadas Magrinhas e a contadora de histórias Carol Levy. Aninha e Lulu, as Fadas Magrinhas, são percussionistas, tocaram com grandes nomes da música popular brasileira e resolveram criar um grupo musical dedicado às crianças. Uma das fadas, Lulu, era professora de iniciação musical em uma escola do Recife e, fazendo pesquisas para levar músicas populares para crianças, deu de cara com a ausência de conteúdos para essa faixa etária e com a falta de continuidade de alguns projetos que existiram. As Fadas Magrinhas surgiram, então, da vontade de sanar esta dificuldade e de conseguir falar de música e, mais especificamente, de ritmos regionais, para crianças. “Nossas músicas são músicas e letras para crianças com ritmos pernambucanos. As crianças não precisam ouvir frevo só no carnaval ou forró só no São João”, acrescenta Aninha. Já Carol Levy, largou a publicidade e até uma empresa para buscar um novo caminho em sua vida e se achou na contação de histórias. Começou com as crianças do prédio onde morava, depois com a ajuda de financiamento do Funcultura produziu espetáculos em escolas públicas e programas de rádio, fez gravações amadoras de suas contações e jogou no YouTube. O retorno do público era muito bom, e, por isso, Carol começou a fazer shows em parques e foi convidada para fazer um programa infantil na Rede Globo Nordeste. As temáticas de Carol Levy e das Fadas Magrinhas são parecidas, a cultura popular está sempre permeando o trabalho das autoras que buscam também levar, a partir dos seus trabalhos, informação, cultura, arte e conhecimento para crianças cujo acesso ao universo de produções de conteúdo infantil é restrito. A carência de conteúdos produzidos para as crianças cujo o foco seja a própria criança e não a venda de produtos unifica as preocupações pais, mães e produtores. “Tenho muito medo do boom de músicas infantis que estão surgindo porque tenho medo de quem vê a música infantil como nicho de mercado”, diz a fada Aninha. A mercantilização da infância a partir dos conteúdos audiovisuais parece já ter atingindo o status de vilão dessa história, assim como as produções que abusam de efeitos e estímulos. Então, qual seria o desafio para a comunicação pública com relação ao conteúdo infantil? A comunicação pública segue sendo umas das grandes referências para os pais e mães que buscam alternativas aos produtos mais comerciais e de grandes corporações e é citada sempre que a referência é feita aos valores transmitidos. Contudo, estas referências são mais lembranças de uma geração de pais e também de produtores e produtoras que tiveram um contato muito forte na infância com a produção infantil da TV Cultura, por exemplo. “Outro dia estava a procura de uma alternativa e achei no YouTube o Castelo Rá-Tim-Bum, aquele programa é sensacional, tem uma qualidade que transcende o tempo, eles falam de coisas e estimulam com muita consciência os pontos de desenvolvimento muito precisos das crianças. Quando vi, estava sentado acompanhando os episódios com as meninas” lembrou Rodrigo. Os musicais, inclusive os que não tem imagens e são apenas músicas, são as preferências de Gabriela para divertir Dudu sem que ele fique parado na frente da TV, “hipnotizado”, como faz questão de enfatizar a mãe. Já Rodrigo diz buscar no Tiquequê, trabalho do grupo Barbatuques destinado a crianças, que integra música com teatro, e no grupo Palavra Cantada as alternativas audiovisuais para suas meninas Magá e Iôio. Para as Fadas Magrinhas, boas referências para quem curte música infantil vêm de artistas como a Banda Mirim e os trabalhos infantis de Zeca Baleiro e Chico César. Tanto as Fadas Magrinhas como Bita e Carol Levy migraram das suas plataformas originais. O Bita, que surgiu para ser aplicativo de celular e tablet; as Fadas Magrinhas que surgiram como cantoras infantis em escolas e parques; e Carol Levy como contadora de histórias em casas, livrarias e parques acabaram chegando até a telinha. Por mais que no mundo das tecnologias se esbraveje o fim da TV aberta, e esta venha perdendo paulatinamente o seu repertório infantil, o caminho para ela acabou sendo o destino de boa parte das iniciativas pesquisadas. Nada parece haver uma fórmula para tratar este assunto de maneira definitiva. Ou melhor, a comunicação pública não pode trabalhar com uma única fórmula para fazer sua programação infantil. Assim como criar crianças, criar conteúdo para criança não é fácil, não é estático e é preciso ter sempre mais de um plano. Como diz o pai de Magá e Ioio, “a gente vive num tempo muito doido, em que as crianças brincam no celular e aos adultos com livros de colorir. Os conteúdos públicos não podem fugir da sua missão de atingir a maioria, mas devem buscar fazer isso da melhor forma, deve haver uma brecha para produzir um conteúdo sofisticado, elaborado mas que não esteja dentro de um código elitista. Deve-se ir ao encontro do chão que a gente pisa e da realidade. Usando uma metáfora atual, o desafio da comunicação pública para mim é como ver o SUS fazendo parto humanizado”, conclui Rodrigo. Julho de 2015