1
UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL - UNIJUÍ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO NAS
CIÊNCIAS - DOUTORADO
O LIVRO DIDÁTICO, O PROFESSOR E O ENSINO DE CIÊNCIAS: UM
PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO-FORMAÇÃO-AÇÃO
Tese de Doutorado apresentada à Banca
Final do Programa de Pós-Graduação em
Educação nas Ciências/UNIJUÍ como
requisito parcial para obtenção do Título de
Doutor em Educação nas Ciências.
Doutorando: Roque Ismael da Costa Güllich
Orientadora: Profa. Dra. Lenir Basso Zanon
2012
2
Catalogação na Publicação
G499l
Güllich, Roque Ismael da Costa.
O livro didático, o professor e o ensino de ciências : um processo de
investigação-formação-ação / Roque Ismael da Costa Güllich. – Ijuí, 2012. –
263 f. : 30 cm.
Tese (doutorado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul (Campus Ijuí). Educação nas Ciências.
“Orientadora: Lenir Basso Zanon”.
1. Investigação-ação. 2. Reflexão. 3. Formação continuada. 4. Currículo.
5. Discurso educacional. I. Zanon, Lenir Basso. II. Título. III. Título: Um
processo de investigação-formação-ação.
CDU : 37:371.13
37:371.671
Frederico Cutty Teixeira
CRB10 / 2098
3
4
Às mulheres da minha vida:
minha filha Lauren,
minha Esposa Uanita,
minha mãe Esmerilda,
minha avó Amélia (in memorian).
5
AGRADECIMENTOS
A Deus pelo dom da vida e paz na alma que me propicia;
À minha família por serem as pessoas mais confiantes que conheço;
Ao Pai Adão e à minha Mãe Esmerilda pelo apoio incondicional ao meu retorno ao sul do
Brasil e por serem incansáveis em seu afeto;
À minha orientadora Professora Dra. Lenir Basso Zanon pela acolhida, discussões e incentivo
constante na tessitura da tese;
Aos colegas de Doutorado Adair e Adriana pela parceria;
Aos sujeitos da pesquisa: licenciandos, professores de escolas, supervisoras escolares, e
professores formadores por aceitarem o desafio de participar da investigação;
Aos bolsistas da Universidade que auxiliaram no processo de investigação;
À Universidade Federal da Fronteira Sul pela liberação parcial de atividades e da carga
horária para o doutorado.
6
RESUMO
Nesta investigação-ação tomo o livro didático como objeto de análise para
compreender como se dá a relação entre o livro, o professor e a formação docente em
Ciências, a partir de uma compreensão de que processos formativos que se utilizem da
reflexão como categoria formativa possam ser uma possibilidade de enfrentamento ao uso
exclusivo do livro em salas de aula na produção do ensino de Ciências. Apoiado no
referencial teórico da recontextualização do discurso educacional, da perspectiva históricocultural e dos pressupostos da investigação-ação, analiso, através da abordagem
microgenética e do paradigma indiciário, um processo de formação de professores de Ciências
desencadeado pela implementação de um grupo de estudos e pesquisa na área de que
participam licenciandos e professores formadores de uma Universidade e professores de
Ciências e Matemática da rede de educação básica do município em que se insere o Curso de
Licenciatura em Ciências: Biologia, Física e Química. A análise pormenorizada dos indícios
evidencia que o processo de constituição docente foi mediado através do diálogo formativo,
que levou ao desencadeamento de transformações nas atitudes dos participantes frente ao
grupo, nas interações entre os sujeitos envolvidos; uma recontextualização do uso livro
didático na prática dos professores em formação; possibilitou também a qualificação da
discussão das temáticas nos encontros, mudanças no cenário investigado e desencadeou a
retomada da autonomia dos professores participantes no grupo. Dessa análise é possível
depreender que a reflexão presente nos processos formativos de professores a faz ser
considerada como categoria formativa. A necessidade de instrumentos de reflexão para
aperfeiçoamento dos processos formativos também é premente, entre eles aposto nas
perguntas pedagógicas recorrentes nas discussões encaminhadas pelos professores
formadores, qualificando o diálogo como reflexivo-formativo, e no diário de bordo como
possibilidade de desenvolvimento da escrita reflexiva e investigação das práticas através das
narrativas. O contexto educacional investigado e o referencial em que apoiei minhas reflexões
acerca do papel da reflexão crítica em processo de formação, permitiram propor como
interface do processo a expansão conceitual da investigação-ação para investigação-formaçãoação. Ademais, acredito que o processo inicial acompanhado desencadeou a constituição
docente por uma perspectiva dialógica, crítica e transformadora das práticas, em que a
autonomia docente parece estar sendo resgatada; nisso incide o desejo de continuidade e o
crédito dos professores envolvidos com o processo em continuar sua formação nesta via, o
que também me faz refletir, como professor formador, na necessidade de uma articulação
consistente entre formação inicial e continuada de professores, bem como no potencial da
investigação-ação para o desenvolvimento de outros ciclos reflexivos no devir.
Palavras-Chave: Investigação-ação, Reflexão, Formação continuada, Currículo, Discurso
educacional.
7
ABSTRACT
In this action research, I take the textbook as an object of analysis to understand how
is the relationship between the book, the teacher, and teacher education in science, from an
understanding that formative processes that use reflection as a formative category may be a
possibility of confronting the exclusive use of textbook in classrooms in the production of
science teaching. Supported by the theoretical framework of educational discourse
recontextualization, historical-cultural perspective, and action research assumptions, I
analyze, through microgenetic approach and evidentiary paradigm, a process of training for
science teachers triggered by the implementation of a study and research group in which
participated public schools in-service Science and Math teachers, as well as future teachers
and their University teacher educators in Biology, Physics and Chemistry. A detailed analysis
of the evidence shows that the process of teacher constitution was mediated through the
formative dialogue, which led to the triggering of changes in participants 'attitudes toward
the group, in the interactions between the individuals involved, a recontextualization of using
textbooks in pre-service teachers’ practice, and it also allowed the qualification of the
discussion of topics in the meetings, changes in the scenario investigated and triggered the
resumption of the autonomy of teachers participating in the group. From this analysis it is
possible to conclude that reflection existing in formative processes of teacher education
makes it to be considered as a formative category. The need for reflection instruments to
improve formative processes is also urgent, including pedagogical questions persistent in
discussions guided by teacher educators, qualifying the dialogue as reflective-formative, and
in the logbook as a possibility for development of reflective writing and investigation of the
practices through narratives. The investigated educational context and the theoretical
framework in which I supported my reflections about the role of critical reflection in the
formation process, allowed me to propose as a process interface the conceptual expansion of
action research to research-training action. Furthermore, I believe that the followed initial
process triggered a teaching constitution under a dialogical, critical and transformative
perspective of practices, in which teaching autonomy seems to be rescued. With this, it comes
the desire for continuity as well as the recognition of the teachers involved with the process in
continuing their formation in this path, which also makes me reflect, as an educator teacher,
upon the need for a consistent link between initial and continuing education, as well as the
potential of action research for the development of other cycles in becoming reflective.
Keywords: Action research, reflection, continuing education, curriculum, educational
discourse.
8
LISTA DE SIGLAS
Banco Internacional de Desenvolvimento - BID
Banco Interamericano de Desenvolvimento – BIRD
Ciências da Natureza – CN
Ciência e Tecnologia - CT
Ciência, Tecnologia e Sociedade – CTS
Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente – CTSA
Conference of Europen Researchers in Didactics of Biology - ERIDOB
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES
Conselho Nacional de Saúde - CNS
Comissão Nacional do Livro Didático – CNLD
Comissão do Livro Técnico e Livro Didático – COLTED
Ciências da Natureza e suas Tecnologias - CNT
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
Diretrizes Curriculares Nacionais - DCN
Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental DCN-EF
Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino - ENDIPE
Encontro Nacional de Ensino de Biologia - ENEBIO
Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - ENPEC
Encontro Regional de Ensino de Biologia da Região Sul - EREBIO-Sul
Estado do Rio Grande do Sul - RS
Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM
Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais - FCBA
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica - FUNDEB
Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino de Ciências e Matemática - GEPECIEM
9
Grupo de Pesquisa em Formação de Professores em Ciências: Políticas e Práticas –
FORPROC
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB
International Organization for Science and Technology Education - IOSTE
Instituto Nacional do Livro – INL
Investigação-ação - IA
Investigação-formação-ação - IFA
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN
Ministério da Educação - MEC
Plano de Ações Articuladas - PAR
Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN
Plano de Desenvolvimento da Educação - PDE
Plano Nacional de Educação - PNE
Programa de Consolidação das Licenciaturas - Prodocência
Programa de Educação Tutorial – PETCiências
Programa de Iniciação Científica da UFFS - PIBICUFFS
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência - PIBIDCiências
Programa Nacional do Livro Didático - PNLD
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD
Organização das Nações Unidas - ONU
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO
Scientific Electronic Library Online - SCIELO
Secretaria de Educação Superior - SESu
Secretaria Municipal de Educação e Cultura – SMEC
Seminário de Iniciação Científica - SIC
Simpósio Latino Americano e Caribenho de Educação em Ciências do International Council
of Associations for Science Education - ICASE
Situação de Estudo – SE
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE
Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS
Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
10
Universidade Federal do Rio Grande - FURG
Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ
Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional - USAID
11
SUMÁRIO
A PROPÓSITO DE UMA ESPIRAL AUTORREFLEXIVA............................................ 13
CAPÍTULO 1: PESQUISAR O LIVRO DIDÁTICO E A FORMAÇÃO DE
PROFESSORES EM CIÊNCIAS - SOBRE COMO AS COISAS ACONTECERAM... 20
1.1 Pesquisar o Livro Didático, por quê?............................................................................. 21
1.2 (Re)conhecendo o objeto de investigação....................................................................... 26
1.3 O percurso da orientação metodológica da pesquisa.................................................... 29
1.4 O Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino de Ciências e Matemática: o contexto de
criação, os sujeitos de pesquisa, seus desdobramentos...................................................... 36
1.5 Os Sujeitos de Pesquisa e suas razões formativas........................................................ 39
1.6 Sobre os Preceitos Éticos da Pesquisa........................................................................... 43
1.7 O(s) Contexto(s) formativos na pesquisa: buscando um caminho para reflexão na
formação continuada de professores de Ciências............................................................... 44
CAPÍTULO 2: O LIVRO DIDÁTICO E O PROFESSOR DE CIÊNCIAS - AMARRAS
DISCURSIVAS...................................................................................................................... 58
2.1 As Políticas Públicas Educacionais e o reforço de um currículo nacional comum.... 61
2.2 As políticas curriculares no contexto do discurso educacional do PNLD ao professor:
a via do livro didático de Ciências........................................................................................ 69
2.2.1 Situando a análise do discurso educacional acerca das políticas curriculares em
contexto.................................................................................................................................... 70
2.2.2 A dinâmica de atravessamento das políticas curriculares no discurso educacional... 72
2.2.3 Muitas vozes e um discurso unificado, por quê?............................................................ 82
2.3 (Re)Conhecendo currículos: os conteúdos em disputa................................................ 85
2.4 O livro impregnando sentido e significados no Ensino de Ciências: o contexto da
experimentação como proposta de análise do enredo do livro didático............................ 92
12
2.5 A escolha do Livro Didático de Ciências PNLD 2010/2011 - um dia diferente?...... 102
2.6 O livro didático e o Professor de Ciências: uma relação perversa?.......................... 108
2.7 O livro didático no contexto da Prática e da Formação Docente.............................. 114
CAPÍTULO 3: NO CONTEXTO DA CONSTITUIÇÃO DOS PROFESSORES DE
CIÊNCIAS (RE)CONHECENDO CONCEPÇÕES, PRÁTICAS E
MOVIMENTOS
FORMATIVOS.................................................................................................................... 122
3.1 O movimento formativo mediado pelo texto Joãozinho da Maré: No espelhamento
das práticas a ancoragem de um problema prático......................................................... 125
3.2 O movimento formativo da Experimentação: (re)dimensionando a experimentação
pelo diálogo crítico e constitutivo dos sujeitos professores.............................................. 134
3.3 Movimento formativo da Organização Curricular: o discurso ingênuo das
competências como entrave na formação docente ........................................................... 150
3.4 O movimento formativo dos Planos de Estudos I - O currículo do Livro ou o Livro
do Currículo?........................................................................................................................ 167
3.5 O movimento formativo dos Planos de Estudos II – Necessidades formativas e o livro
didático em questão: conversando entre professores........................................................ 176
3.6 O movimento formativo dos Planos de Estudos III – Compreendendo um currículo a
partir de um processo decisório.......................................................................................... 186
CAPÍTULO 4: A REFLEXÃO CRÍTICA COMO MEDIADORA DA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE CIÊNCIAS: A INVESTIGAÇÃO-FORMAÇÃO-AÇÃO............ 196
4.1 Formação de professores: compreendendo um modelo possível............................... 198
4.2 Reflexão coletiva em processos de formação (inicial e continuada) de professores de
Ciências: os indícios da reflexão......................................................................................... 204
4.3 Por uma investigação-FORMAÇÃO-ação................................................................... 214
EM DÉMARCHE: UMA POSSÍVEL INTERVENÇÃO.................................................. 225
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 231
APÊNDICES......................................................................................................................... 240
ANEXOS............................................................................................................................... 248
13
A PROPÓSITO DE UMA ESPIRAL AUTORREFLEXIVA1
Esta introdução expressa uma visão geral a propósito de uma espiral autorreflexiva
que vivenciei ao longo do percurso do processo de investigação-ação2 que acompanhou o
desenvolvimento do trabalho aqui apresentado, cujo tema está focado na relação entre livro
didático, professor da Educação Básica e formação de professores em Ciências.
A discussão acerca do papel do livro didático na escola, e de modo especial na
condução do currículo escolar, tem sido exaustiva nas últimas décadas. Esta sensação de
exaustão parece concorrer para o abandono, por parte de pesquisadores, da discussão sobre
essa temática. Mas, quando na formação continuada de professores nos deparamos com falas
como: “não participei da escolha ...” (Professora 10, 2010); “para ensinar ciências, utilizo o
livro didático” (Professora 2, 2010) ; “mas ele é peça diária em sala de aula” (Professor 2,
2010); “o livro didático para mim é um suporte de conhecimentos e de métodos para o ensino
e serve como orientação para as atividades de produção e reprodução de conhecimentos”
(Professor 11, 2010); “os professores não se sentem seguros se não tiverem o livro em cima
da mesa, podem até não usar” (Professor Formador 4, 2010)3, nossos desejos de pesquisa,
inquietações e leituras reavivam-se em novas perguntas, que nos levam a investigar esse tema,
1
A ideia de espiral autorreflexiva, da qual depreendo o contexto e o título da introdução, está baseada na
proposição de Carr; Kemmis (1988), que foi reconfigurada por Contreras (1994), a fim de propor um movimento
que propicia, sobretudo, reflexão no contexto investigativo de uma ação-problema educacional. Nesse sentido
me apoio na concepção dos autores para refletir e articular a apresentação da discussão.
2
Adotei o termo investigação-ação por questões de ordem teórica, estando em acordo com o referencial utilizado
na pesquisa. Nesta tese é entendida como sinônimo de pesquisa-ação. Em contexto latino-americano existem
outros referentes importantes utilizados como fontes/literatura para pesquisas das Ciências Humanas, em
especial na discussão da educação popular.
3
As falas dos sujeitos foram utilizadas sempre no corpo do texto com destaque tipográfico em itálico (grifo meu)
independentemente do número de linhas que a fala adquiriu ao ser transcrita. Exceto nos turnos dos episódios e
de diálogos que foram então alinhadas à margem, com demarcação própria e fora do texto. Optei por fazer
apenas correção linguística parcial das falas, para não descaracterizar o contexto.
14
num processo que nos convida à discussão reflexiva, a repensar o contexto de produção de
significados acerca do uso do livro didático na escola básica e sua relação com a constituição
da docência, considerando-se a tendência de o livro didático substituir os próprios programas
de ensino.
No ensino, além dos conhecimentos e conceitos defasados e equivocados expressos
nos livros, são veiculadas concepções de ciência positivistas e cristalizadas, sobretudo uma
visão reproducionista de ciência da qual decorre uma visão simplista de docência, na qual o
professor
é
um
mero
transmissor
mecânico
dos
conteúdos
e
reprodutor
de
práticas/experimentos estampados como receitas culinárias. Além disso, o livro didático tem
assumido mais que o currículo-conteúdo, uma dinâmica que se apresenta na
recontextualização dos discursos educacionais acerca das políticas e programas educacionais
curriculares, o desenho metodológico e a produção de aula e a própria formação dos
professores de Ciências.
Os livros didáticos estão inseridos numa esfera de produção cultural específica, que,
sendo uma instância de recontextualização pedagógica de conhecimentos científicos,
diferencia-se tanto da produção científica quanto da divulgação científica pela mídia (LOPES,
2007). O livro didático vem sendo universalizado através do Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) e, como recurso didático, tem sido utilizado amplamente nas escolas
públicas brasileiras, chegando a fazer parte tacitamente da prática dos professores. Por isso, é
preciso estar atento ao seu conteúdo, o qual deve ser discutido e questionado. Conforme
Fracalanza (2006-b, p.182), embora “muitos e diversificados sejam os estudos sobre o livro
didático, no Brasil, poucas são as sugestões feitas no sentido de reduzir ou solucionar, mesmo
que parcialmente, os aspectos quase sempre negativos que as pesquisas evidenciam”. Porém,
há um consenso de que se faz necessário tecer análises que contemplem melhor alguns temas,
sejam eles: a avaliação, a escolha, os modos de uso, a sua influência nos currículos de
formação e o conhecimento dos professores acerca do livro didático, a partir de contextos
formativos.
A escolha do livro parece ser central na discussão, uma vez que a sensação de falsa
escolha nos faz refletir sobre o aparelhamento do Estado no reforço de políticas internacionais
de melhoria da educação, bem como de seu financiamento por programas do Banco
Internacional de Desenvolvimento (BID). O PNLD, além de ser a política educacional de
15
maior volume de financiamento da educação, tem reproduzido seus modelos até o Ensino
Médio.
A ideia de desconstruirmos a imagem velada do livro como detentor de verdades e da
ciência correta e pura, vem sendo defendida por vários autores da área de ensino de ciências,
num movimento não de o deixarmos de lado, mas fazermos uma crítica efetiva ao seu uso
indiscriminado como manual e cartilha, que determina o ensino e a docência em ciências. Esta
necessária e deliberada análise do conteúdo do livro tem movido inúmeras pesquisas nessa
área, que resultam em um diálogo mais incisivo acerca da formação inicial e continuada de
professores, diálogo este que aborde a temática com a real importância que merece.
A problemática do uso do livro, ainda que ausente das preocupações e/ou parcialmente
negada por muitos professores e pesquisadores da área, merece atenção especial da escola e
dos programas de formação dos professores, pois pode a formação inicial e/ou a continuada
resgatar o lugar e o papel do livro no contexto da prática docente. Ou seja, em decorrência de
sua existência como fonte de informações para os aprendizados na escola, é inerente a relação
entre o livro e o professor. Práticas docentes decorrem do seu uso, de modo que estas, ao
serem refletidas e melhor compreendidas, podem superar as atuais contradições encontradas,
já que se constitui em importante material de aprendizagem e fonte de conhecimentos para os
estudantes.
Esta outra possibilidade, a de visitar o livro depois de certa trajetória, mais experiente,
projeta-se como nova na perspectiva das pesquisas acerca do livro didático de Ciências.
Acena-se com meios diferenciados de compreender o livro no contexto da formação e da
docência, o que implica inovação e avanço nas compreensões acerca deste objeto de pesquisa.
Pesquisas com bases empíricas na área de educação em Ciências têm apontado que os
professores utilizam o livro didático quase em caráter exclusivo e em geral ainda não possuem
formação adequada para (re)pensar e refletir sobre seu papel na Escola, bem como sobre
novos e possíveis encaminhamentos para tal. Tais pesquisas indicam pistas que apontam para
o papel da formação inicial e continuada como forma de ampliar o conhecimento dos
professores acerca desta ferramenta didática. Também cabe estabelecer que as possibilidades
de pesquisa acerca do livro didático e o ensino de ciências – no sentido de conhecer o
problema através do discurso dos professores de ciências, assume uma linha de destaque no
sentido de ampliar esforços para que se estabeleçam diálogos e interfaces entre formação
contínua, formação inicial e a docência em ciências e as perspectivas de pesquisa, para que
16
possamos alavancar ainda mais no campo dos resultados para melhoria da qualidade da
educação brasileira, em especial no que se refere à Escola Básica.
A questão do livro didático no Ensino de Ciências está correlacionada a outros dilemas
que não apenas os que envolvem a docência na Escola Básica. Entre eles, a formação inicial e
continuada dos professores de Ciências, que parece ter deixado de lado esta discussão, ou não
tem conseguido fazer uma reflexão em que a preocupação com a relação já estabelecida pela
tradição pedagógica com este material possa de algum modo ser explicitada em contexto
formativo e sensibilizar os professores a (re)discutirem qual o papel o Livro Didático pode
ocupar em suas aulas. É nesse sentido que a investigação proposta neste estudo se apresenta e
foi desenvolvida, no propósito de compreender um processo formativo continuado [em
contexto situado] pela via da reflexão como caminho viável para uma provável melhoria das
práticas de ensino em Ciências, demasiadamente aprisionadas pelo uso do livro didático. É
esta a tese que defendo ao longo do texto.
Situado um contexto mais amplo acerca do campo de investigação, cabe delimitar
como foi desenvolvida e está articulada a discussão. Um problema de pesquisa em educação
tem sempre em seu escopo uma conexão entre teoria e prática. Como a relação entre o
professor de Ciências e o livro didático se configura e que processos dela decorrem, no
sentido de suas implicações na constituição da docência em Ciências? Foi a pergunta que deu
início a minha reflexão, da qual ascende esta tese. É, pois, um problema situado em contexto
formativo, processual e continuado, uma investigação-ação, que me permitiu compreender
melhor especialmente a formação continuada de professores na perspectiva em que deve ser
colocada uma pesquisa em educação – a melhoria das práticas através de um processo
formativo colaborativo, no sentido que propõem e entendem Carr; Kemmis (1998), Contreras
(1994) e Alarcão (2010).
Esse problema de investigação me cercou de objetivos que persegui no sentido de: conhecer a relação entre o professor de ciências e o livro didático e compreender como ela
ocorre, a fim de averiguar seu caráter constitutivo no que se refere à docência; - verificar e
analisar categorias de pesquisa emergentes dos discursos de professores de ciências quanto a
implicações do livro didático na docência; - analisar, particularmente, como a reflexão se
torna possibilidade de enfrentamento da relação entre professor e livro didático, na qual o
livro adota o professor, no contexto da docência e da formação continuada de professores de
Ciências.
17
O processo decorrente das inquietações, que me levaram a propor a problemática da
tese e as compreensões acerca da investigação-ação, fizeram-me empreender ações no sentido
da formação continuada de professores de Ciências, da implementação de um grupo de
estudos e pesquisa colaborativa e do encontro com desejos formativos de professores, que se
entrelaçaram com meu processo formativo e investigativo. O processo foi desenvolvido
através de encontros do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino de Ciências e Matemática
(GEPECIEM) de que participaram professores formadores, professores da Educação Básica e
licenciandos em formação inicial, que nesta colaboração constituíram uma comunidade em
que a reflexão foi se tornando, gradativamente, parte da constituição docente. O processo
permitiu que o grupo, ao se desenvolver, servisse de espaço-tempo formativo: - de modo
continuado para os professores formadores e professores da educação básica; - de formação
inicial para os licenciandos; - de pesquisa gradativamente para professores formadores,
licenciandos e para os professores de Educação Básica. Esta associação colaborativa de três
categorias de atores em formação me permitiu vislumbrar que o modelo de investigaçãoformação-ação também pode ocorrer de modo indissociado, assim como a Universidade
contemporânea tanto persegue. Como formador, coordenador do grupo e pesquisador, tive a
oportunidade de investigar como ciclos reflexivo-formativos transformam uma ação de
formação continuada. Também foram entrevistados e participaram de parte do processo
supervisores das escolas em que atuam os professores sujeitos da investigação.
A constatação que fiz acerca da formação continuada, ao conhecer o contexto dos
professores de Ciências com os quais trabalhei, permite-me afirmar que existia: - um quadro
de cursos estanques e de curta duração e palestras: “tem a competência, vamos dizer... ainda
falha ... com certeza a formação continuada, necessária para complementar isso,
constantemente, mas que é lá da graduação que eles têm essa [formação]...” (Supervisora 1,
2010); - aulas de Ciências que eram produzidas através da especial articulação com o livro
didático: “eu sou livreira mesmo” (Professora 12, 2010); “eu acho que muito, quase que
exclusivamente... única e exclusivamente” (Supervisora 1, 2010); “porque o livro acabava
sendo um referencial único” (Supervisora 2, 2010); - as concepções e teorias sobre docência e
ensino de Ciências circulantes entre os professores baseavam-se em sua formação inicial e em
suas experiências, por vezes equivocadas, simplistas e espontâneas: “... elas tiram do próprio
livro e também da... vamos dizer da graduação do curso dela, onde eles receberam alguma
coisa e... procuram colocar em prática...” (Supervisora 1, 2010); um espaço de discussão
coletiva perdido que havia existido no passado e alguns encontros desarticulados sem
18
mediação teórica e sem coordenação, o que principiava certo descrédito no modelo que,
conforme uma professora supervisora da rede municipal, pode ser descrito como: “a
formação continuada dos professores da nossa área de abrangência, a municipal, rede de
ensino municipal ... acontece este ano ... trabalhando, voltando a trabalhar com encontros de
professores quinzenalmente, professores por área de 5ª a 8ª série” (Supervisora 1, 2010).
Esse contexto me fez refletir o tempo todo, situando e (re)significando meu problema de
investigação ao longo da ação.
Acredito que tenho pistas, indícios e marcações empíricas analisadas em perspectiva
histórico-cultural e através do referencial da Investigação-Ação (IA) que me permitem refletir
que o processo possibilitou mudanças no contexto de formação, sejam elas: - a criação do
GEPECIEM, numa situação de mediação colaborativa com três categorias sujeitos em
formação; - a reflexão como parte dos diálogos, pois os sujeitos participantes (professores e
professores em formação) compreenderam que a possibilidade de falar é parte da formação e
também compreenderam que a reflexão sobre a prática torna-se necessária e inerente à
formação; - a presença dos licenciandos em contextos educacionais, de formação no grupo em
si e nas escolas; - os professores perceberam problemas com o uso do livro didático, com um
currículo que tem modelo e formas de fazê-lo muito peculiares, com práticas pedagógicas,
especialmente com relação às práticas experimentais; - os professores se reconhecem como
grupo e desejam continuar com o processo; - notam que o modelo de formação vivenciado
pode atender aos desejos do coletivo.
Essas mudanças me fazem afirmar, defender e
corroborar, ao longo do texto que apresento para discutir o processo de minha espiral
autorreflexiva, a hipótese de que existe uma relação de adoção do professor pelo livro de
ordem perversa, a qual aprisiona o professor e sua docência, e, frente a ela, processos
reflexivos de formação se configuram em possibilidade de percepção (sobre a relação) na
contracorrente da maquinaria pedagógica que se disfarça no livro didático.
Os resultados das ações empreendidas no contexto formativo situado – o GEPECIEM
– realinham novos ciclos reflexivos para os sujeitos do processo e novas espirais
autorreflexivas como partes de minhas investigações através de novos e outros problemas que
configuraram processos de investigação-ação, dos quais emergem: projetos compartilhados
de pesquisa entre formadores, reflexões acerca das práticas de ensino de Ciências, o diário de
bordo como instrumento de reflexão que, através das narrativas, se colocam como espaçotempo constitutivo de professores, o papel da investigação na formação inicial em Ciências e
o processo de desenvolvimento profissional dos professores. Optei por situar, discutir e
19
refletir acerca de ciclos reflexivos que estão delimitados no transcurso do ano de 2010 e os
resultados que remetem a sua continuidade a partir da avaliação do processo do ano de
implementação do GEPECIEM e transcorridos durante o ano de 2011, que estão aqui
pontuados, ficam apontados, deflagrados, iniciados como molas propulsoras de novas
intervenções. Os ciclos reflexivos estão delimitados no capítulo 1 e se configuram como o
modo de organizar a investigação-ação que foi empreendida.
A disposição do texto-tese está delimitada em capítulos, que foram organizados em 4
partes, para que fosse possível dar forma e estrutura aos resultados da investigação.
O capítulo 1, intitulado: “PESQUISAR O LIVRO DIDÁTICO E A FORMAÇÃO DE
PROFESSORES EM CIÊNCIAS - SOBRE COMO AS COISAS ACONTECERAM”, é
precursor do recorte temporal que optei por analisar durante este tempo de doutorado. Por
isso, nesse me ocupei de descrever o percurso investigativo que empreendi para melhor
compreender a problemática que tensiona a relação: livro didático, professor e ensino de
Ciências.
No capítulo 2: “O LIVRO DIDÁTICO E O PROFESSOR DE CIÊNCIAS AMARRAS DISCURSIVAS”, apresento e analiso as interfaces entre o livro didático, o
ensino de Ciências e a formação de professores, expandindo a compreensão da temática.
Destinei a este capítulo a tentativa de explicitar de que ordem decorre a relação entre o livro
didático e o professor de Ciências.
O capítulo 3, que denominei como: “NO CONTEXTO DA CONSTITUIÇÃO DOS
PROFESSORES DE CIÊNCIAS (RE)CONHECENDO CONCEPÇÕES, PRÁTICAS E
MOVIMENTOS FORMATIVOS”,
foi organizado no intuito de contribuir à melhor
compreensão dos processos formativos que transcorreram no processo da investigação-ação
desencadeado pela implementação do GEPECIEM.
No capítulo 4: “A REFLEXÃO CRÍTICA COMO MEDIADORA DA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS: A INVESTIGAÇÃO-FORMAÇÃO-AÇÃO”, que se
pretende sobre a pesquisa e para a formação de professores, especialmente no tocante à
formação continuada de professores de Ciências, estou empreendendo esforços para
compreender como a reflexão se torna um instrumento mediador da formação e o modelo da
investigação-ação um caminho possível.
20
CAPÍTULO 1: PESQUISAR O LIVRO DIDÁTICO E A FORMAÇÃO DE
PROFESSORES EM CIÊNCIAS - SOBRE COMO AS COISAS ACONTECERAM
Eu já fui como uma traça devoradora de livros (didáticos);
eu já me alimentei das gravuras e páginas amarelas de muitos livros que visitei,
dos quais senti seu cheiro, seu gosto e percebi seus detalhes;
eu tive a triste visão ingênua de que este aparato todo favoreceria minha aula de Ciências;
o “meu livro queres ler?”;
eu já me afoguei de vez nos livros didáticos e me deixei prescrever
pelas lindas palavras que lá encontrei;
ah, que “belas mentiras”!;
“mentiras que parecem verdades”;
adotei essas mentiras, sim, porque o professor parece adotar o livro didático;
e então fiz o caminho de volta, neguei os livros, suas histórias,
seu uso, suas intenções;
fiz a crítica ao seu enredo, tentei fazer uma verdadeira fogueira inquisitiva com livros didáticos,
porque afinal de contas é o “livro que adota o professor”;
e “entre anjos e demônios”, “medos e ousadias”;
estou procurando “o caminho do meio”;
tentando compreender como a reflexão na formação
pode contribuir para (re)situar minhas próprias compreensões... A
O primeiro capítulo desta tese, por certo, extrapola os limites deste primeiro capítulo
da investigação que aqui está descrita, analisada e na qual empreendo estudos teóricos. Pude
atingir objetivos, corroborar uma hipótese e construir respostas a uma pergunta de pesquisa.
Pois essa investigação se iniciou muito antes, minha constituição como professor-pesquisador,
e não cessará ao final desse texto que apresento. Há de me acompanhar por toda uma vida,
num continuunn devir, ressignificando interesses, desejos e minha própria constituição.
Este capítulo é precursor do recorte temporal, que optei por analisar durante este
tempo de doutorado. Por isso, nele ocupei-me em descrever o percurso investigativo
empreendido para melhor compreender a problemática, que tensiona a relação entre o
professor de Ciências e o livro didático.
21
O capítulo apresenta a discussão da temática em estudo, revisitando o estado da arte,
explicitando o referencial teórico-metodológico e que também se configura como o próprio
referencial de análise. Posteriormente, estão delimitados o percurso metodológico, as escolhas
e os procedimentos de pesquisa, bem como os sujeitos envolvidos na investigação-ação. Para
além dos procedimentos, também, são clarificados os contornos que delinearam mais
especificamente o desenvolvimento desencadeado por cada ciclo reflexivo, que a investigação
me permitiu qualificar.
1.1 Pesquisar o Livro Didático, por quê?
A respeito do estado da arte da pesquisa acerca do livro didático, em especial de
Ciências, Nosella (1979); Schnetzler (1980) Fracalanza; Amaral e Gouveia (1986); Freitag,
Motta e Costa (1987); Hennig (1986); Alvares (1991); Soncini (1992); Delizoicov e Angotti
(1994); Pretto (1995) Moraes (1998), o Catálogo Analítico da Biblioteca Central da
UNICAMP sobre o livro didático (1989) e a tese “O que sabemos sobre o livro didático de
Ciências no Brasil”, de Hilário Fracalanza (1992), configuram-se como os primeiros trabalhos
de referência na área e mostram um panorama dos resultados das pesquisas realizadas ao
longo da trajetória da Educação em Ciências no Brasil. Outros clássicos sobre pesquisa com
livro didático merecem ser destacados, tais como Bonazzi; Eco (1980); Faria (1986); Molina
(1987) Baldissera (1993) e Silva (2000). Corroborados por Lopes (2007, p. 137-8), os
trabalhos citados apontam que, no que se refere ao conteúdo dos livros, existe uma
significativa produção de trabalhos, especialmente no que tange a problemas metodológicos e
erros conceituais. Alice Lopes, porém, reitera que carecemos de pesquisa nos campos ligados
ao “domínio da análise do conteúdo”, ligados às “questões políticas e econômicas” e “ligados
às formas de utilização do livro em sala de aula”. Também fica claro, ao examinar pesquisas e
trabalhos de referência na área, que a perspectiva epistemológica e de apreender no discurso
dos professores as questões problemáticas em torno do livro também são escassas.
Artigos de Geraldi (1994), as produções de Megid Neto; Fracalanza (2003) e de
Selles; Ferreira (2004) figuram num bloco de pesquisas que apontam a necessidade de se
(re)configurar a pesquisa sobre o livro didático e fazem apontamentos sérios e severos quanto
ao cerceamento que ele vem causando à prática docente, bem como sobre a falta de discussão
na formação inicial de professores e a necessidade da ressignificação de seu uso na prática
docente. Situados nesse contexto estão a tese de Corinta Geraldi (1993) e o artigo de Ossak;
22
Bellini (2009), que discutem o aprisionamento do professor e do processo pedagógico em
razão do livro didático.
Outros autores que tratam da formação de professores em Ciências, bem como das
questões curriculares deste ensino, têm se posicionado referindo-se que “os programas de
ensino, os livros didáticos, os materiais de ensino [...] pouco mudaram nesses últimos anos.
Prevalecem roteiros tradicionais de ensino que se consolidam em livros didáticos que
conservam, em essência, as mesmas sequências lineares e fragmentadas de conteúdos”
(MALDANER; ZANON; AUTH, 2006, p. 53). Nesse sentido, Maldaner; Zanon; Auth (2006)
têm aliado o estudo de tais materiais na formação inicial como modo de familiarizar os
licenciandos, bem como estabelecer pontes entre contextos, conteúdo escolar e a crítica
necessária ao seu uso; os autores também destacam o papel das pesquisas colaborativas,
especialmente no que se refere ao desenvolvimento de Situações de Estudo (SE) como
processo de inovação curricular, articulando a interação escola-universidade, formação inicial
e continuada, o que também é destacado em Pansera-de-Araújo; Boff; Auth (2008) e Panserade-Araújo; Maldaner; Auth (2007).
Pernambuco; Delizoicov; Angotti (2002, p. 36) apontam que é “bastante consensual
que o livro didático, na maioria das salas de aula, continua prevalecendo como principal
instrumento de trabalho do professor, embasando significativamente a prática docente [...] é
seguramente a principal referência da grande maioria dos professores”. Esses referenciais,
assim como outros da área, têm deixado clara a necessidade de se revisitar constantemente as
práticas e os livros didáticos de Ciências, devido a seu papel preponderante no ensino.
Carvalho; Gil-Pérez (2000; 2001) mencionam que, em programas de formação
permanente, é necessário que sejam situados espaços para “vivência de propostas
inovadoras”, inclusive através de “novos materiais curriculares” (2000, p. 109) como
modo/forma de fuga ao uso linear do livro didático, por exemplo. Também alertam que “todos
os trabalhos de pesquisas existentes [apontam para a] gravidade causada por uma carência de
conhecimentos da matéria pelo professor, transformando-o em um transmissor mecânico dos
conteúdos dos livros-textos” (2001, p. 109).
Carvalho (2006, p. 3) também afirma que as
mudanças na atual configuração e estruturação do ensino das Ciências, especialmente após o
movimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Ciências, “exigem também
modificações no desenvolvimento do trabalho em sala de aula” no que se refere aos conteúdos
do ensino. No contexto ibero-americano, Menezes (1996) menciona reflexões de um grupo de
23
autores da área: Gil-Pérez; Gutiérrez; Krasilchik; Menezes (1996), que são organizadas a
partir de distintas realidades e no conjunto dos textos são feitas considerações acerca das
necessidades formativas em Ciências a partir de pesquisas da área. Apontam que os grupos de
formação continuada baseados na reflexão e investigação da prática se mostram mais
promissores no que se refere ao desenvolvimento profissional docente.
Tais afirmações nos remetem a dois contextos: o do uso do livro e, com isso, as
preocupações suscitadas em relação ao seu conteúdo e às metodologias que vão prescrevendo
a aula de Ciências; e o contexto da formação inicial e continuada de professores, que não pode
se descuidar da tematização de discussões curriculares acerca da escolha e uso do livro, acerca
do livro como parte do ensino de Ciências e seu lugar nesse ensino.
Krasilchick (1994; 2004, p. 65) reafirma a crítica de que o livro didático tem tido “um
papel de importância, tanto na determinação do conteúdo [...] como na determinação da
metodologia usada em sala de aula, sempre no sentido de valorizar um ensino informativo e
teórico”, por conseguinte, também livresco. A autora segue e também reforça a ideia de que
são necessários determinados cuidados na escolha das obras e na sua adoção como:
“cuidadosa análise de sua estrutura, do seu conteúdo e dos seus valores implícitos e explícitos
que apresentam aos estudantes” (p. 66). Marandino; Selles; Ferreira (2009) situam o lugar do
livro didático no contexto de (re)produção dos currículos e, na historiografia da disciplina
escolar Ciências e Biologia, também dão tratamento ao modo como os livros didáticos podem
ser compreendidos como espaços de contextualização de conhecimento escolar e não
científico ou tampouco cotidiano. Neste sentido, as autoras se alinham aos trabalhos de Alice
Casemiro Lopes, já incorporados pela área e nesta discussão.
Ademais, a pesquisa acerca do livro didático de Ciências tem trazido apontamentos de
extrema valia para definição do estado da arte neste campo de pesquisa. Cabe ressaltar os
estudos de Fracalanza; Megid Neto (2006), Amaral (2006), Fracalanza (2006-a; 2006-b),
Höfling (2006). Nessa linha, também cabe destacar os estudos de Lopes (2008) e Martins
(2006) no sentido de aprofundamento da questão que envolve o livro didático na produção de
sentidos e significados a partir do discurso educacional, traçando uma agenda de análise que
envolve inúmeras necessidades de pesquisa para área em questão, como o discurso de ciência
apresentado pelo livro, suas implicações como vozes discursivas e o papel que a retórica entre
ouvintes e o contexto do livro vêm produzindo, inclusive investigando-se os contextos de
produção dos livros. Resultados corroborados por Güllich; Silva; Antunes (2010-a; 2010-b),
24
também apontam para a necessidade de perceber e aprofundar aspectos constitutivos da
relação entre professor e o livro didático pela via do discurso educacional. Trabalhos como os
de Pereira; Gomes; Ferreira (2010) situam o papel do livro na produção de currículos e
contextos de ensino. Outro contexto que tem se tornado indispensável na pesquisa acerca do
livro é o exame dos discursos educacionais no contexto das políticas públicas como
documentos que situam as dinâmicas curriculares, como, por exemplo, o PNLD (HÖFLING,
2000; LOPES, 2008).
Pesquisas e trabalhos nacionais e internacionais têm sido publicados em eventos da
área de Educação em Ciências, ensino de Biologia e ensino de Ciências, tais como:
Conference on Science and Technology Education, Conference of Europen Researchers in
Didactics of Biology (ERIDOB), International Organization for Science and Technology
Education (IOSTE) – através do IOSTE Symposium, Encontro Nacional de Pesquisa em
Educação em Ciências (ENPEC), Encontro Nacional de Ensino de Biologia (ENEBIO),
Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE). Seus resultados
apontam/convergem de modo geral para a necessidade de melhor compreendermos a relação
entre o professor e o livro didático, aspectos constituintes dessa relação e o uso do livro como
ferramenta didática, que, à medida que tem facilitado o trabalho docente, aprisiona-o. Neste
âmbito, cabe destacar trabalhos internacionais acerca do livro didático como potencial objeto
de pesquisa, especialmente no que tange a questões ligadas ao currículo de Ciências da
Natureza e Biologia e na proposição de mecanismos de superação do uso linear do livro de
Carvalho et. all. (2010), Quessada; Clément (2010), Pansera-de-Araújo; Maldaner; Auth
(2010), Oliveira; Perrelli; Gioppo (2010) e Clément (2008), esse último organizador de um
IOSTE Symposium com o tema: "Critical Analysis of School Science Textbooks", evento
voltado à área de pesquisa no âmbito internacional, mas que, no seu conjunto, não há
tratamento similar por parte dos artigos que o compõem, sobressaindo apenas a análise de
livros, no que tange aos seus enredos; mas não fazem menção à discussão da temática na
perspectiva da formação inicial e continuada de professores.
É marcante que os trabalhos de pesquisa de âmbito internacional sobre o livro didático
de Ciências, especialmente os publicados nos eventos supracitados em língua inglesa, são na
sua maioria voltados a compreensões de concepções sobre conceitos biológicos, expressas,
mesmo que de forma implícita, nos livros didáticos, por parte de estudantes de escolas de
nível fundamental e médio; a aprendizagem de conteúdos presentes em tais livros e a
compreensão de professores sobre essas aprendizagens e, em menor nível, a investigação
25
sobre autores e seu papel nessa produção e suposta aprendizagem. Em revisão da literatura no
âmbito da Scientific Electronic Library Online (SCIELO) e do portal periódicos da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) com as expressões:
livro didático de ciências, science’s textbooks e textbooks, entre os artigos encontrados,
poucos fazem referência ao tema: livro didático, ensino e formação de professores de
Ciências, com discussão na perspectiva que está sendo empreendida nesta investigação, e em
nenhum deles foi encontrada com destaque.
No contexto latino-americano de produção sobre livro didático, alguns trabalhos de
referência merecem ser destacados por sua contribuição à perspectiva de pesquisa que está
sendo assumida, entre eles o texto de Akker (2006), que propõe, como superação do modelo
tradicional da cópia do livro em classe, a integração entre prática, reflexão e formação, tendo
como foco de análise os materiais escolares; e o texto de Liendro (2006), que situa a discussão
dos conceitos científicos nos livros-texto como um uso de programa pronto que instaura a
ilusão de que se ensina Ciências.
Os trabalhos de Silva; Schnetzler (2000), Rosa (2004), Schnetzler (2000), Rosa;
Schnetzler (2003), Marandino (1997) e de Maldaner (1997; 2006) são, entre outros, trabalhos
brasileiros de referência sobre a formação de professores de ciências, em temas como: a
formação continuada em Ciências, processos de investigação-ação, pesquisa colaborativa e
reflexão na ação docente. Apresentam e discutem suas produções que dão conta de possíveis
modelos para reconstrução de uma formação com concepção complexa, entendida, na razão
dialética e em perspectiva histórico-cultural, como modelos de superação de uma formação
exclusivamente técnica e tecnicista, em contraposição a esta.
Os trabalhos de Güllich (2004); Emmel, Güllich e Pansera-de-Araújo (2010); Emmel
(2011) expressam que, ao revisar o estado da arte da pesquisa com livro didático no Brasil, a
partir das publicações indexadas no SCIELO, podem ser situados no mínimo três blocosmovimentos de pesquisa na área, sejam eles: a crítica, a crítica à crítica e a perspectiva que
pergunta o que fazer com o livro didático? Esse intento de configurar grupamentos de
pesquisa também nos demonstra que faltam pesquisas que contribuam para compreender a
dinâmica da problemática do livro didático no contexto da prática e suas interfaces
formativas, de docência, de pesquisa, especialmente ligadas ao uso do livro, seu papel nos
contextos e discursos educacionais, sua configuração dentro das políticas curriculares como
26
determinante de currículos e modos de ensino, bem como sobre seu papel na (in)formação de
professores de Ciências.
1.2 (Re)conhecendo o objeto de investigação
A minha trajetória de pesquisa tem sido marcada pela convivência com a reflexão
sobre o livro didático como problema de pesquisa desde o ano de 2002, quando iniciava
minha docência no Curso de Pedagogia da Faculdade Três de Maio, na disciplina de
“Fundamentos, Metodologia e Prática de Ensino de Ciências”. Desde lá, passando por outras
tantas experiências docentes, e como pesquisador, fui vivenciando necessidades investigativas
no âmbito do tema em distintos momentos formativos e em (de) modos diferentes de abordálo. Orientando projetos de pesquisa acerca do livro didático, fui fundamentando minha
discussão em inúmeras leituras e, no embate com dados empíricos que iam sendo construídos
e analisados, fui (re)construindo esse objeto de estudo constantemente. Inúmeras vivências
docentes, como pesquisador e orientador de pesquisas na graduação, fizeram-me ir galgando
degraus de acordo com as perspectivas que ia delineando, em diálogo com a literatura, e
muito a partir do ‘design’ que a revisão histórica dessa área ia configurando ao estudá-la.
Desse modo, posso situar no mínimo dois modos diferentes de pesquisar que tenho
adotado, por serem complementares, senão também antagônicos, anacrônicos, assimétricos,
mas, ainda assim, necessários à melhor compreensão do tema em contextos formativos de
professores, tanto no que se refere à formação inicial, como à contínua e permanente, sejam
eles: o livro como documento que norteia práticas escolares - situando as pesquisas acerca da
crítica ao uso do livro, erros conceituais, práticas prescritas em seu enredo, implicações
curriculares e perspectivas de seu uso em contextos de ensino; e o livro didático como
contexto e discurso formativo - que abriga perspectivas de pesquisa sobre o papel do livro na
formação de professores, o discurso educacional das políticas públicas, a (re)produção
cultural de conhecimentos e currículos, o livro como espaço e tempo de aprendizagens, o livro
como território de conflitos e relações com a prática docente.
Posso destacar, no mínimo, um trabalho relevante, na área, para cada momento de
pesquisa ou percurso que a pesquisa sobre o livro didático assumiu, pois assim também pude
ir gradativamente aprendendo a pesquisá-lo. Trabalhos publicados tais como Güllich (2004),
Güllich; Emmel; Pansera-de-Araújo (2009), Güllich; Pinheiro (2009) Güllich; Pansera-de-
27
Araújo; Emel (2008; 2010), Güllich; Silva; Antunes (2010-a; 2010-b), Emmel; Güllich;
Pansera-de-Araújo (2010) e Kierepka; Rudek; Güllich; Hermel (2011), que contêm marcas
desde uma abordagem da crítica ao livro didático, até trabalhos que vão se contaminando pelo
novo momento que vivencio, têm tido grande influência nas abordagens e discussões que
venho construindo. Ao me deslocar do livro em si como documento de análise, para um olhar
sobre o discurso dos professores em formação, fui percebendo que adotar para isso categorias
como a do professor reflexivo e referenciais que visam entender como os movimentos
formativos, a partir da reflexão crítica, pode ser um modo de enfrentamento ao uso deliberado
do livro didático como ferramenta que extrapola o trabalho docente e aprisiona-o em seu bojo.
Então, por um lado, continuo vendo possibilidades de pesquisa no âmbito do tema do
livro didático de Ciências/Biologia, especialmente no que diz respeito ao seu papel na
formação inicial de licenciandos, pois, ao pesquisar o livro, o professor em formação pode ir
se constituindo crítico e reflexivo, ir percebendo perspectivas de uso mais adequadas e ir
(re)descobrindo a ferramenta como uma possibilidade e não como única via de produção da
aula em Ciências. Por outro lado, tenho percebido que pesquisar sobre os contextos
formativos/constitutivos decorrentes do uso do livro didático vai marcando uma pesquisa
alinhada com o como, por quê e sobre o livro didático. Ou seja, vou percebendo as marcas
formativas/constitutivas da relação que se estabelece entre o professor e o livro didático na
articulação com a pesquisa, com a reflexão e os movimentos de formação inicial e contínua
que tenho acompanhado. De todo modo, aliar os documentos, bem como os discursos e
recontextualização destes discursos presentes nos documentos - tais como o livro didático, as
políticas curriculares, os guias de escolha do livro, os planos de estudos - e a pesquisa
colaborativa em espaços formativos através da investigação-ação é um momento que venho
descobrindo como profícuo, novo e diferente forma de conduzir a pesquisa e a formação de
modo indissociado aos programas de formação docente.
Outro componente de minha constituição como professor pesquisador na área de
ensino de Ciências que cabe estar destacada é a experiência com os grupos de estudos e
pesquisa, uma aposta que venho assumindo desde 2004, pela via do educar pela pesquisa em
dois distintos lugares de formação.
Na formação inicial de normalistas do curso profissionalizante de Magistério, atual
curso Normal de nível médio (2001-2002), de licenciandas de Pedagogia (2004-2008) e
Biologia (2009), atuando como professor, levara em conta a perspectiva do educar pela
28
pesquisa. Nas aulas de Biologia e de Prática de Ensino (como proposta de ensino de Ciências)
no Curso Normal, como orientador de pesquisa-ação das licenciandas de Pedagogia e, mais
tarde, para constituir e coordenar grupo de estudos em torno do referencial do ensino pela
pesquisa no Curso de Ciências Biológicas, fui assumindo essa perspectiva formativa de alunas
professoras e tentando compreender como as futuras professoras iam gradativamente se
apropriando do referencial pela via da reflexão.
Também na formação continuada de professores, e especialmente a partir da
experiência como gestor da educação municipal de Giruá, Estado do Rio Grande do Sul (RS)
(entre os anos de 2005 e 2008), pois nesse período pude articular meu papel como formador,
meus sonhos com o trabalho de gestão e os desejos e necessidades formativas de um grupo de
professores e supervisores da rede municipal de ensino. Na ocasião implementamos uma
proposta de formação que partiu de grupos estudando e (re)conhecendo o referencial nas e das
práticas. Após esta fase, foram assumindas também perspectivas de pesquisa para os sujeitos
professores que participavam dos grupos (de diferentes áreas do conhecimento) e de
encaminhamento metodológico das aulas na formação dos alunos desses professores. Esta
face de investigação e prática que tem me acompanhado se reveste de referenciais que
transcendem o educar pela pesquisa em si e estão mais situadas no aporte da reflexão sobre e
para ação docente em Ciências.
Houve um tempo, que é parte de minha trajetória, em que tentei negar a pesquisa que
venho desenvolvendo, sobre a problemática do livro didático; de um lado, por acreditar que a
área já tinha desenvolvido pesquisas de alto nível alinhadas com os objetivos pretendidos; de
outro, por desconfiar que este objeto não carecesse mais de tratamento em nível de pesquisa, e
sim, na perspectiva da extensão-formação continuada de professores; de outro, ainda, por
acreditar que os professores atualmente não eram tão dependentes do livro como ferramenta
didática e que a política de distribuição de livro tinha avançado no sentido da escolha deste
material. Dessa forma acreditei, por certo tempo, que essa questão estivesse pretensamente
resolvida.
Após esse período, iniciei pesquisas junto ao Grupo de Pesquisa em Formação de
Professores em Ciências: Políticas e Práticas (FORPROC), da Faculdade de Ciências
Biológicas e Ambientais (FCBA) / Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Por
ocasião de concurso público, quando fui nomeado para área de “Prática de Ensino e Estágio
Supervisionado em Ciências Biológicas”, e durante o ano de 2008 e 2009, pude (re)situar meu
29
objeto de pesquisa em contextos formativos, de ensino, de extensão e de pesquisa. No
contexto situado de pesquisa e formação, percebi que o livro didático ainda permanecia como
a única ferramenta de ensino dos professores, que as práticas eram sobremaneira determinadas
pelo uso do livro, tanto licenciandos quanto professores em geral desconheciam a discussão
acerca da escolha do livro didático de Ciências e ainda mantinham uma visão por vezes
ingênua acerca do seu enredo, desconsiderando erros, defasagens, bem como o potencial
aprisionamento que o livro mantinha sobre suas práticas de ensino em Ciências. Assim,
trabalhando com os grupos de licenciandos em Ciências Biológicas em estágio
supervisionado e com professores da rede pública de Dourados-MS em formação continuada,
deparei-me com a necessidade de melhor compreender essa relação em que o livro adota o
professor, de modo perverso e limitando o potencial de produção da aula de Ciências.
Estas inquietações têm me acompanhado e, quando tive a oportunidade, ao final de
2009, de escrever uma proposta de doutorado, novos percursos e contextos de investigação
foram emergindo. Assim, fui me deparando com um novo compromisso com meu objeto de
pesquisa, ou a partir das compreensões tecidas sobre ele, especialmente pela criação do
GEPECIEM, na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus de Cerro Largo - RS,
meu novo espaço de investigação-ação.
1.3 O percurso da orientação metodológica da pesquisa
Tendo como premissas pesquisas desenvolvidas na área desde o ano de 2004, revisão
da literatura, a tradição de pesquisa em Educação em Ciências, bem como estudos recentes e a
trajetória de pesquisa referente ao objeto livro didático de Ciências, emergiu a necessidade de
ouvir professores de ciências, para, a partir de seu discurso, situar o problema de pesquisa de
modo a melhor compreendê-lo a partir de contribuições de vozes advindas do campo empírico
deste trabalho. Através da escuta dos discursos dos professores, podem fluir pistas, indícios
nos enunciados, falas e entonações dos sujeitos, que podem ser registradas a fim de
analisarmos a discussão acerca da temática em estudo: a relação entre livro didático, professor
de Ciências e formação de professores.
Para tanto, meu desejo foi desenvolver uma pesquisa com base empírica, teórica,
reflexiva e crítica que possibilitasse conhecer o discurso dos professores de Ciências do
Ensino Fundamental, no exercício da docência em escolas públicas, para discutir com estes a
30
questão do livro didático, o seu uso, a escolha, os entraves e as práticas decorrentes, bem
como aportes sobre a atividade docente, a carreira; para que se possa averiguar como esse
recurso didático se expressa na prática docente, quais suas determinantes, em que interfere,
como os atores reagem a ele e que interfaces outras estejam atuando nesta questão.
A investigação desenvolvida foi uma pesquisa qualitativa em Educação com recorte
para Educação em Ciências, desenvolvida através de uma modalidade de investigação-ação
crítica (CARR; KEMMIS, 1988), assumindo, para análise, a perspectiva histórico-cultural
(VIGOTSKI, 2001), para investigar o discurso dos professores em espaços formativos, com
apoio no referencial teórico acerca da reflexão em contexto de pesquisa educacional (CARR;
KEMMIS, 1988; SCHÖN, 2000; ALARCÃO, 2010). Fiz uso de análise microgenética
orientada por Góes (2000), bem como da análise documental descrita por Lüdke; André
(2001), e seus desdobramentos como possibilidade de análise para que os discursos dos
professores se confluam em resultados de pesquisa. A integração de métodos de análise
distintos, porém complementares, deu-se na medida em que a investigação exigia uma
compreensão mais completa do problema e hipótese aventados.
O caminho da reflexão, numa perspectiva crítica e interativa parecia ser uma
possibilidade que emanava do discurso dos próprios professores, a ser averiguada na pesquisa
aqui proposta. Nessa medida foi uma categoria perseguida pela discussão. A pesquisa
qualitativa, na modalidade investigação-ação em educação, nos possibilita perceber/averiguar,
explicitar, incorporar e compreender contradições, resistências e mudanças na postura dos
professores investigados, a partir do discurso que expressa a sua prática docente.
O caráter de uma investigação-ação pode ser definido por objetivos essenciais
defendidos por Carr; Kemmis (1988, p.176), como: busca da melhoria de uma prática;
melhora do entendimento da prática pelos professores; melhoramento da situação - espaço em
que se vincula a prática; e como modo de produção de interesse pelo processo cada vez maior
por parte dos envolvidos e os que deverão se envolver como afetados pela prática, à medida
que ela vai se estabelecendo e provocando mudanças. Nesse sentido, os autores também
frisam que as melhorias desejadas e o interesse almejado são emanados em mão única e de
igual importância, e apontam que todos os envolvidos na investigação-ação necessitam estar
intervindo em todas as fases do processo investigativo, sejam elas: planejamento, ação,
observação e reflexão.
31
A perspectiva crítica assumida nessa pesquisa é uma provocação também da acepção
assumida por Carr; Kemmis (1988, p. 219), que tem como premissa uma ciência educacional
crítica, pautada pela reflexão e autorreflexão de todos os envolvidos, de modo a que esses
tenham capacidade de participar de um discurso crítico e teórico relevante, pois essa
necessidade na ciência educacional crítica é para além da dimensão de teórica, também
prática.
Segundo Contreras (1994), a investigação ação no enfoque crítico tem compromisso
com a melhoria da prática educativa em contexto social em que ela é produzida, pois as
condições sociais estabelecem as condições das práticas. Ao situar esse compromisso, o autor
também situa que o universo da crítica tende a converter práticas acríticas e não reflexivas em
práxis, ou seja, ação teoricamente mediada e comprometida com a transformação e melhora
gradativa e colaborativa das práticas educativas. Adiante, aposta que a investigação-ação,
quando crítica, pode transformar a própria teoria e a reflexão pode levar a cabo um
desenvolvimento teórico e da práxis efetivamente.
A pesquisa colaborativa é um design assumido pelos processos decorrentes de
investigação, formação e ação na perspectiva da produção de conhecimentosB. A
investigação-ação colaborativa “se diferencia entre outras, sobretudo pela valorização das
atitudes de colaboração e reflexão crítica, visto que os pares calcados em decisões e análises
construídas por negociações coletivas tornam-se [...] co-autores de processos investigativos
[...] da participação ativa, consciente e deliberada” (IBIAPINA, 2008, p. 26). Este
encaminhamento se desenha com pretensões definidas e propositadas para entender os
processos educativos e a dimensão da educação como política, social e cultural. É também
parte dos contextos e dos dilemas da sociedade e não somente da escola, também é definida
como proposta de transformação e por isso exige a participação ativa dos envolvidos, pois é
crítica e subentende reflexão compartilhada.
Segundo Maldaner (1997, p. 11; 1998; 2003), os requisitos para uma pesquisa em
grupo colaborativo podem ser entendidos como condições iniciais que permitem a criação e
implementação de uma proposta compartilhada de formação:
I) que haja professores disponíveis e motivados para iniciar um trabalho reflexivo
conjunto e dispostos a conquistar o tempo e local adequados para fazê-los; II) que a
produção científico-tecnológica se dê sobre a atividade dos professores, sobre as
suas práticas e seu conhecimento na ação, sendo as teorias pedagógicas a referência
e não o fim; III) que os meios e os fins sejam definidos e redefinidos constantemente
no processo e de dentro do grupo; IV) que haja compromisso de cada membro com
o grupo; V) que a pesquisa do professor sobre a sua atividade se torne, com o tempo,
32
parte integrante de sua atividade profissional e se justifique primeiro para dentro do
contexto da situação e, secundariamente, para outras esferas; VI) que se discuta o
ensino, a aprendizagem, o ensinar, e o aprender da ciência, ou outras áreas do
conhecimento humano, que cabe à escola proporcionar aos alunos, sempre
referenciado às teorias e concepções recomendadas pelos avanços da ciência
pedagógica comprometida com os atores do processo escolar e não com as políticas
educacionais exógenas; VII) que os professores universitários envolvidos tenham
experiência com os problemas concretos das escolas e consigam atuar dentro do
componente curricular objeto de mudança, que pode ser interdisciplinar ou de
disciplina única.
Estas dimensões trazem presentes condições que, a meu ver, se fazem necessárias ao
desejado rompimento com modelos tradicionais de formação de professores, dão aporte ao
significado do compartilhamento coletivo em contexto formativo e ampliam as perspectivas
para a compreensão do que seja pesquisar a ação docente. Neste sentido, este referencial
amplia também as possibilidades de compreender como transformar as visões simplistas de
docência tão impregnadas na formação inicial e nos cursos de formação contínua (conf.
CARVALHO E GIL-PÉREZ, 2000), compreendendo que em perspectiva formativa a
pesquisa é constitutiva e inerente ao ser professor.
A compreensão da perspectiva histórico-cultural, a partir de Vigotski (2001; 2002) e
seus seguidores ou continuadores, entre eles os pesquisadores contemporâneos brasileiros
como Góes (2000), Pino (2000), Smolka (1997); Smolka; Góes; Pino (1998), Smolka; Góes
(1994) Fontana (2000), Maldaner (2006), Silva; Schnetzler (2000), Machado (1999) e Rojo
(1997) é parte do mecanismo de análise desta investigação, especialmente no que se refere à
seleção, ao recorte e à análise de episódios que foram vivenciados no processo de
investigação-ação. Para tanto, utilizei a concepção de paradigma indiciário para compreender
como os indícios, as minúcias e os microprocessos se tornam marcas dialógico-discursivas do
processo de constituição docente. Manifestadas nos turnos de diálogo através das falas dos
sujeitos e em discursos do grupo, as marcas permitem perceber como as concepções,
conceitualizações, ações e a constituição dos sujeitos envolvidos vão se processando (GÓES,
2000; SMOLKA; GÓES, 1994). Desse modo, empreendi uma análise microgenética dos
processos em perspectiva histórico-cultural.
Como as interações em processos coletivos deixam ressurgir as relações
socioculturais, através da análise dos microcomportamentos, descrição dos cenários,
estabelecimento de relações entre microeventos e condições macrossociais, interação social e
do modo de funcionamento desse grupo cultural, é possível percebermos detalhes do processo
de constituição do sujeito na malha/rede social em que atua, especialmente porque, estando
em coletivo, ele se expressa, dialoga, escuta, fala e com isso tende a significar sua própria
33
constituição. A análise microgenética que estive utilizando “vem das proposições de Vigostki
(1981;1987) sobre o funcionamento humano, e, dentre as diretrizes metodológicas que ele
explorou, estava incluída a análise minuciosa de um processo, de modo a configurar sua
gênese social e as transformações do curso de eventos” (GÓES, 2000, p. 11).
É, pois, um processo que envolve o detalhamento “das ações dos sujeitos e as relações
interpessoais, dentro de curto espaço de tempo” (p. 14) e, em perspectiva, tende a possibilitar
“uma forma de identificar transições genéticas, ou seja, a transformação nas ações dos sujeitos
e a passagem do funcionamento intersubjetivo para o intrassubjetivo” (p. 15). Desse modo,
toda a análise está voltada para a observação criteriosa aos detalhes de movimentos e das falas
dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, o detalhamento pormenorizado das ações e interações
é necessário para que se percebam as zonas privilegiadas de compreensão da realidade, e
assim decifrá-las. Nisso incide a noção de paradigma indiciário, na possibilidade de apreender
sinais e minúcias que permitem “buscar interconexões e efetuar tentativas de compreensão da
totalidade”, do processo (GÓES, 2000, p. 19).
A análise documentalC foi procedida com base no que defendem Lüdke; André (2001),
pois
pode se constituir numa técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja
complementando as informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando
aspectos novos de um tema ou problema. [...] são considerados documentos
’quaisquer materiais escritos que possam ser usados como fonte de informação
sobre o comportamento humano’ (PHILLIPS, 1974). Estes incluem desde leis e
regulamentos, normas, pareceres, cartas, memorandos, diários pessoais,
autobiografias, jornais, revistas, discursos, roteiros de programas de rádio, televisão
até livros, estatísticas e arquivos escolares (p.38).
Os documentos constituem-se fontes de argumentação que podem justificar, reafirmar
e reforçar as declarações do pesquisador, os discursos e os contextos. Os documentos não são
“apenas uma fonte de informação contextualizada, mas surgem num determinado contexto e
fornecem informações sobre esse mesmo contexto” (LÜDKE; ANDRÉ, 2001, p. 39). Desse
modo, para verificar o modo como os discursos são recontextualizados no âmbito
educacional, em especial no sentido das políticas curriculares, utilizei o modelo documental
de análise para melhor compreender o problema de pesquisa.
Para o aprofundamento da parte empírica da pesquisa, (re)situando o discurso e o
objeto de pesquisa, apropriei-me e usei para análise livros didáticos de Ciências utilizados
pelos professores que participam da investigação, guias de escolha do livro didático – PNLD,
leis e decretos que instituem o PNLD no Brasil, Planos de Estudos da Disciplina Escolar
34
Ciências do Ensino Fundamental das escolas nas quais os professores que são sujeitos de
pesquisa neste trabalho são docentes. Para Vigotski (2001), cada palavra recheada ou
encharcada de significado constitui um conceito, mas cada sujeito se individuou a partir de
sua história e de suas interações com os outros, o que mostra o quanto uma interpretação
destes documentos é única e particular.
A investigação-ação foi conduzida em um processo colaborativo instruído através da
organização de um grupo de estudos e pesquisa em ensino de Ciências, com encontros
temáticos mensais, para tratar do ensino de Ciências e, desse modo, do livro didático. A
investigação-ação crítica tem a colaboração coletiva como exigência, segundo Contreras
(1994), pois no individual não temos o tensionamento, os contrastes, o intercâmbio entre a
prática [que sempre é social] e o campo empírico da investigação; é, pois, sempre um
processo colaborativo, cooperativo. A investigação-ação, para que seja crítica, necessita de
condições e contextos para poder ser definida como uma prática reflexiva, investigadora e de
colaboração, sobretudo precisa de condições de trabalho, ou seja, o contexto necessita estar
situado e em sintonia com o exercício e o planejamento da docência, fazer parte do tempo
dedicado ao trabalho, não ocorrendo em contextos diversos e como algo que remeta trabalho
excessivo aos participantes.
O grupo decorreu de duas necessidades distintas e complementares, articuladamente:
uma da parte dos gestoresD da rede municipal de Cerro Largo-RS, que pode ser traduzida na
fala de uma Supervisora da Rede: “Eu acho assim que... eles realizam um trabalho até então
muito individualizado, cada um ... Através desses encontros agora, eles vão conseguir assim
uma, definir uma linha de trabalho; pela troca de ideias ... conseguir ter uma unidade de
trabalho assim... E tem muito a desejar assim, seria preciso ..., que a gente sentiu [e] sente
essa grande necessidade do professor se aperfeiçoar e ter essa formação continuada”
(Supervisora 1, 2010) e outra como proposta de extensão, pesquisa e ensino (em caráter
integrado) que, a partir das minhas necessidades de investigação, minhas compreensões
acerca da formação inicial e continuada que devem compartilhar espaços formativos e para
pesquisa que aqui está sendo discutida, que busca a formação reflexivo-colaborativa de
professores, num espaço-tempo permanente de formação de professores em Ciências da
Natureza.
A opção de triangulação na análise foi assumida por conta da dinâmica da coleta de
dados, organizada de acordo com vários instrumentos, a fim de melhor conhecer os processos
35
decorrentes da relação entre professor e o livro didático, formação e a constituição docente e
quais interfaces tem com o uso do livro, questões curriculares. A coleta dos dados decorreu da
gravação em áudio e posterior transcrição dos encontros do grupo de estudos e pesquisa.
Também foram realizadas visitas às escolas em que trabalham os professores participantes do
grupo para gravação de entrevistas sobre o uso e adoção do livro didático com professores e
supervisores/diretores da Escola (LÜDKE; ANDRÉ, 2000). Também me utilizei de diário de
bordoE para anotação de informações adicionais sobre as discussões, entrevistas, encontros e
visitas nas escolas, bem como para registro de reflexões que fui fazendo constantemente F
durante toda a pesquisa. Para fins de análise dos livros didáticos, PCN e guias didáticos,
solicitei empréstimo ao Banco do Livro das Escolas dos professores pesquisados e acessei as
políticas públicas curriculares (PNLD, leis e decretos) via internet, na página do MEC.
Além das gravações e apreensões de imagens, fiz uso de questionário aberto para
conhecer a formação, atuação dos professores, expectativas com a participação no grupo, bem
como para se conhecer concepções iniciais sobre ensino, currículo e livro didático (ver
Apêndice A).
Procedi também à análise dos diários de bordoG e reflexões escritas dos licenciandos,
que foram produzidas no decorrer dos encontros. As licenciandas que estavam sob minha
orientação desenvolvem diário de bordo para fazer reflexões acerca de suas experiências na
pesquisa e processo formativo. Às demais licenciandas, solicitei que expressassem reflexões
escritas, em virtude de não ter ocorrido muitas participações ativas (com falas) nos encontros
de formação. Desse modo, pude perceber os movimentos formativos e as razões do
silenciamento das licenciandas no GEPECIEM. O silêncio, ainda que interativo, precisa ser
também elucidado, conhecido, compreendido. A perspectiva pela qual compreendi o papel
dos diários de bordo está empreendida na concepção de Porlán e Martín (1997, p. 201[tradução própria]), ao referirem que:
sua utilização periódica [do diário de bordo] permite refletir o ponto de vista do
autor sobre os processos mais significativos da dinâmica que está imerso. É um
caminho para reflexão sobre a prática, favorecendo a tomada de consciência do
professor sobre seus processos de evolução e sobre seus modelos de referência.
Favorece, também, o estabelecimento de conexões significativas entre o
conhecimento prático e o conhecimento disciplinar, o que permite a tomada de
decisões mais fundamentada. Através do diário de bordo podem ser realizadas
focalizações sucessivas na problemática que se aborda sem perder as referências ao
contexto. Por último, propicia também o desenvolvimento dos níveis descritivos,
analítico-explicativos e valorativos do processo de investigação e reflexão do
professor.
36
Acredito ser oportuno situar, no contexto da coleta e dos mecanismos de análise dos
resultados, o recorte temporal do qual estou me utilizando para discutir o campo empírico
desta investigação. Na medida em que os dados foram sendo coletados, precisei delimitar um
recorte e desse modo optei por analisar e discutir especialmente os resultados do ano de 2010,
ano da implementação do GEPECIEM. Todavia, me reporto a resultados que foram coletados
em 2011 para acentuar e enfatizar determinadas marcas formativas, bem como assumir
posições frente ao referencial e também para inferir a respeito das perspectivas, limitações e
novas possibilidades de compreensão para o problema de pesquisa.
Situar o contexto do recorte temporal é mais do que simplesmente clarificar o período
compreendido nas coletas de informações e que analisei mais precisamente. É, sim, fazer uma
opção a partir do entendimento que o contexto situado em que se deu o campo empírico dessa
investigação-ação guarda em si todo um sentido dessa opção. As questões correlatas à relação
entre professor e o livro didático, à formação continuada de professores de Ciências, à
constituição docente e o caminho reflexivo como mote articulador do processo formativo só
foram possíveis de compreensão no contexto da implantação do GEPECIEM, e por essa razão
é que a opção por este período inicial - e não por outro - foi realizada.
1.4 O Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino de Ciências e Matemática: o contexto de
criação, os sujeitos da pesquisa, seus desdobramentos
Os sujeitos da pesquisa foram supervisores escolares e professores de Ciências e de
Matemática do Ensino Fundamental do Município de Cerro Largo-RS (das redes municipal,
estadual e particular de ensino), professores formadores da UFFS, entre eles, professores da
área básica de Biologia e Matemática, e professores da área de ensino de Ciências e
Matemática, incluindo o pesquisador responsável pelo Projeto e licenciandos do Curso de
Licenciatura em Ciências da UFFS.
No grupo geral do GEPECIEM, trinta e quatro sujeitos professores foram envolvidos
diretamente na pesquisa, sendo oito professores de Ciências, sete professores de Matemática,
quatro professores formadores da área de ensino de Ciências e Matemática, três professores
formadores atuantes na área básica de Biologia e Matemática e dez licenciandos em Ciências.
Esse contingente teve ganhos e perdas em razão do tempo, do horário, dos temas abordados
pelos estudos e pesquisas, em razão dos desejos e outros que não couberam ser analisados
37
durante a pesquisa. Tanto no grupo de professores da UFFS tivemos desistências e novas
adesões, bem como no grupo de professores da escola.
Os encontros foram mensais e abrangeram temas delimitados a partir do questionário
prévio aplicado no início dos encontros, sendo encontros mensais que totalizaram dez, dos
quais seis foram analisados nesta investigação. Os encontros versaram sobre os seguintes
temas: 1- Formação Continuada: limites e desafios da constituição do GEPECIEM. Acordos
iniciais sobre o funcionamento do grupo (não gravado); 2- Ensino de Ciências: Reflexão sobre
a prática docente em Ciências. Texto – Joãozinho da Maré; 3- Resolução de Problemas:
teoria, prática ou metodologia de investigação sobre o ensino; 4- Experimentação no Ensino
de Ciências; 5- Resolução de Problemas: teoria, prática ou metodologia de investigação sobre
o ensino de Matemática; 6- Planos de Estudos I: planejamento entre UFFS e Secretaria
Municipal de Educação e Cultura (SMEC); 7- Planos de Estudos II: análise dos Planos de
Estudos de Ciências e Matemática de Cerro Largo-RS; 8- Planos de Estudos III: análise da
Proposta Estadual Lições do Rio Grande e proposição de novos Planos de Estudos 2011 –
Ensino Fundamental Ciências e Matemática; 9- Planos de Estudos IV: Mudanças e aprovação
dos Novos Planos de Estudos; 10- Educar pela Pesquisa: princípios e metodologia. Avaliação
dos Ciclos Formativos 2010.
Os professores foram informados quanto aos objetivos da pesquisa e do grupo, sendo
que foram situados momentos distintos de atuação e reservados espaços a discussões teóricas
e para atualizações de conteúdos específicos. Todos foram convidados a consentir, inclusive
sobre a adesão aos temas e a metodologia utilizada, com as gravações das falas.
Os meus desejos iniciais de pesquisa eram focados no interesse de discutir temas
referentes às categorias: escolha do livro didático e o aparelhamento do Estado, a adoção e o
uso do livro didático, imagens do livro didático, concepção de ciência, a docência e as
práticas decorrentes do livro didático, pesquisas acerca do livro didático, o conteúdo do livro
didático, a profissão e a carreira do professor. Nesse sentido, posso afirmar que não impus os
temas, porque eles foram emergindo no contexto das discussões que se deram da via da
investigação-ação, uma vez que o livro didático está de fato impregnado à prática docente e
desse modo vai (re)surgindo o tempo todo nos discursos. Meu interesse inicial (e o apresentei
explicitamente ao grupo) era tratar dos temas a priori, em encontros iniciais para dar conta da
investigação-tese, mas isso não foi necessário e no (re)planejamento das ações-encontros pude
ir situando o tema diferentemente e a todo tempo. Como os procedimentos de registro não se
38
limitaram à gravação dos encontros desse grupo, eu também pude compreender o problema
utilizando os demais instrumentos de coleta.
O tema inicialmente foi delimitado em torno do uso do livro, mas na interação com os
professores em formação, na investigação-ação, o tema foi ganhando forma. A medida que o
processo se desenvolvia, foi sendo atribuído um sentido maior do que eu tinha em mente. O
trabalho assumiu uma forma mais ampla, talvez porque a questão era maior, por isso o
contexto do grupo de formação (GEPECIEM) tomou parte da pergunta inicial e da hipótese
que defendo, seja ela: o livro didático tem aprisionado o professor de Ciências e a formação
através da via reflexiva é um caminho de enfrentamento a dessa relação, conduzindo a uma
melhoria das práticas.
O grupo geral do GEPECIEM foi criado com desejos que extrapolam minha pesquisa,
ou seja, não foi criado apenas para o seu desenvolvimento, e sim com intenção de progressão
das atividades como espaço-tempo permanente de formação de professores de e em Ciências
(compartilhada, inicial e contínua).
Além do GEPECIEM, no trabalho em grupo geral, temos instituídos outros dois
subgrupos, no corpo docente da escola: subgrupo 1(que inclui apenas professores de Ciências
da rede municipal e que às vezes professores formadores e licenciandos da UFFS) e o grupo
dos professores formadores da UFFS: subgrupo 2 (que inclui os professores formadores e os
licenciandos). Estes subgrupos têm objetivos paralelos que se intercomplementam com o
grupo geral e dão conta de partes diferenciadas de estudo e pesquisa, tais como o
planejamento das ações. Neles, por exemplo, são levadas adiante discussões pormenorizadas
acerca dos encaminhamentos metodológicos do grupo, como é o caso do subgrupo 2, e a
discussão de temas específicos do ensino de Ciências, tais como a experimentação, a escolha
do livro didático de Ciências e a revisão dos planos de estudos de Ciências. É importante
ressaltar que o subgrupo 1 surgiu no início do ano de 2010 por orientação da SMEC e tem um
contexto próprio, originalmente proposto ao planejamento conjunto das ações entre os
professores da área que trabalham nas escolas municipais, e o subgrupo 2 surgiu a partir de
uma necessidade dos professores formadores em torno de planejar as ações do GEPECIEM
institucional e extrainstitucionalmente, pois dele dependem também propostas de pósgraduação, organização de linhas e grupos de pesquisa internos, orientação de licenciandos
em projetos de pesquisa que emanam do grupo geral. Nesse sentido, também cabe afirmar que
este grupo tem sido um espaço de formação e discussão complementar para os professores
39
formadores, por onde passam as discussões que são apresentadas ao grupo geral e espaço em
que são discutidos os temas de pesquisa e a condução das atividades do grupo geral.
1.5 Os Sujeitos de Pesquisa e suas razões formativas
Os participantes do GEPECIEM são professores e futuros professores de Ciências e
Matemática. Dentre os participantes éramos/somos:
i) dez licenciandos do Curso de Graduação em Ciências: Biologia, Física e Química –
Licenciatura, sendo que têm entre 16 e 18 anos de idade e cursam o 1º e 2º ano de graduação.
Todos cursaram o Ensino Médio em escolas públicas da região missioneira do RS. Dentre os
licenciandos, quatro são bolsistas de iniciação científica, dentre os demais quatro são
voluntários que participam do grupo para sua formação e para desenvolver pesquisas na área
de Educação em Ciências, e dois são bolsistas do (Programa de Educação Tutorial
(PETCiências)H, que começaram a participar do grupo ao final de 2010;
ii) sete professores formadores, sendo que quatro são professores com formação na
área de Educação em Ciências/Biologia (um), Ensino de Química (um), Ensino de Física
(dois), são mestres em áreas do Ensino de Ciências, sendo três doutorandos na área em
questão e, dentre os três, um tem mais de dez anos de experiência na formação de professores,
um tem experiência no ensino superior, fundamental e médio e o outro apenas no ensino
fundamental e médio, iniciando sua atividade de ensino superior em 2010. Três são
professores com formação na área básica de Biologia – Doutorado em Neurociências (um),
Mestrado em Matemática (um) e Modelagem Matemática (um) e trabalham com ensino de
Ciências e Matemática/formação de professores há mais de três anos (um) e os outros dois, da
Matemática, têm mais de vinte anos de experiência na área de atuação, sendo que a professora
da área básica de Biologia está migrando de área, com produção de pesquisas a partir de 2010.
Os professores formadores têm entre 33 e 47 anos de idade.
iii) quinze professores de Ciências de escolas públicas e privada de Cerro Largo – RS,
sendo três de escola privada e doze de escolas públicas, nove municipais e três estaduais. Eles
têm entre 32 e 51 anos de idade e todos possuem curso de Licenciatura Plena completo em
Biologia (seis), em Matemática e Física (sete) e em Química (dois). Todos têm experiência
docente há mais de dez anos, com atuação em Matemática e Ciências do Ensino Fundamental,
na maioria dos casos, sendo poucos a ministrarem exclusivamente Ciências durante sua
40
trajetória (três). Atuam em escolas que têm entre 100 e 300 alunos, situadas na Zona Urbana
de Cerro Largo – RS.
iv) sete professoras supervisoras das escolas públicas e privada de Cerro Largo – RS,
sendo que duas são professoras supervisoras da rede municipal - SMEC; duas são professoras
diretoras de escolas municipais, pois as referidas escolas não têm o serviço exclusivo de
supervisão escolar, função que é desempenhada pela SMEC e pela direção das duas escolas;
uma é supervisora em duas escolas, sendo uma pública e outra privada, e também é professora
de Biologia e Ciências, nas escolas em questão, sendo de Biologia na escola privada e de
Ciências na pública; duas são supervisoras de escolas públicas estaduais em que atuam
professores de Ciências que participam do grupo. As supervisoras participaram de diálogos,
entrevistas e alguns encontros do grupo.
Os desejos formativos iniciais dos professores de Ciências e Matemática que
participam do GEPECIEM podem ser compreendidos em no mínimo três diferentes blocos,
sendo um grupo que situa seus desejos iniciaisI em torno de aprendizagem de novas práticas,
sobremaneira correlatas à experimentação, tais como os que se traduzem nas falas:
“enriquecer ainda mais meu conhecimento, aprender novas técnicas, sanar algumas dúvidas,
melhorar e aprender novas práticas laboratoriais e atividades em sala de aula”; “motivação
em crescer, buscar mais, acima de tudo práticas que eu possa desenvolver em sala de aula”
(Professoras 1, 2, 7 e 8, 2010); outro grupo que deseja compreender melhor o modo de
produção de conhecimento dos alunos e contextualizar a questão ambiental, sendo este
representado por falas do tipo: “como produzir conhecimento com os alunos. Como
conscientizá-los para preservar a natureza” (Professores 3, 5, 6, 2010), e um terceiro grupo
que tem seu discurso situado em torno da questão do interesse e motivação dos alunos em
relação à área de Ciências e Matemática, expressando: “diminuir minhas angústias em
relação ao interesse dos educando no ensino de ciências” (Professores 4, 9, 2010).
Quando solicitados a responder o que é um grupo de estudos, os professores
responderam com requisitos que podem dar uma noção do desejo de reflexão que emana do
discurso, inclusive deixando claro que o grupo é necessário e pode ser um espaço-tempo de
formação para eles. As falas que seguem: “um grupo de pessoas que buscam alternativas
para diminuir ou sanar as dúvidas” (Professora 4, 2010); “troca de experiências,
planejamento, encontro onde os profissionais colocam suas angústias e anseios” (Professora
6, 2010); “é a troca de ideias com os colegas” (Professora 8, 2010); “encontro de vários
41
indivíduos para discutir sobre algum assunto” (Professora 9, 2010), permitem identificar de
algum modo como estão situados o contexto da prática, os desejos formativos, a necessidade
de discussão e indícios de que o grupo poderia, pela via da reflexão, constituir-se num fórum
de troca, de planejamento, de formação.
Os licenciandos também expressaram, em seus diários de bordo, suas perspectivas
iniciais quanto ao grupo, traduzidas como possibilidades, vontades, e demonstram, que
mesmo inicialmente em silêncio, estão interagindo no grupo, de modo muito particular como
o exemplificado no escrito de uma licencianda que traduz: “também estou gostando de
participar do GEPECIEM, ou melhor, ouvir no GEPECIEM, porque até o momento não
participo ativamente. Trago comigo minhas vivências da educação básica, mas não as relato
porque pra mim é mais interessante escutar o que os professores têm a dizer. Embora que às
vezes eu tenha vontade de interferir no grupo, mas não me sinto totalmente segura ainda,
quando ouço os professores relatarem sua metodologia de ensino iguais às dos meus antigos
professores, que pra mim, como aluna, não foram tão eficientes no meu processo de
aprendizagem” (Licencianda 2, 2010).
Questionei o grupo de professores formadores da UFFS que têm participado do
GEPECIEM, sobre quais eram seus desejos formativos, seus objetivos em relação ao grupo e
qual era o papel do grupo em relação à formação de professores de Ciências e Matemática e
em relação a sua formação. Nesse contexto surgiram no mínimo três concepções distintas
acerca dos processos formativos que temos desenvolvido, assim expressas: a- uma visão
externalista, em que a professora se esquiva do processo, pontuando “como não sou da área
da educação, meu objetivo, ao participar desse grupo, era tentar entender como funcionavam
as pesquisas, o que se estuda, que tipo de leituras são realizadas, qual era a dinâmica dos
processo envolvendo a pesquisa e o ensino nessa área” (Professora Formadora 2, 2010); buma visão técnica mais aliada à questão da gestão da Universidade e do Curso: “ possibilitar
ao curso (alunos e professores) um início de suas atividades de extensão. ... principalmente
pelos diálogos originados a partir dos estudos e atividades propostas... expectativa de que o
grupo se fortaleça como um espaço de integração do ensino, da pesquisa e da extensão”
(Professor Formador 4, 2010); c- uma outra visão mais contextualizada e mais próxima da
minha interpretação e desejo como formador foi externalizada por três professoras
formadoras, de distintos modos que se intercomplementam: “atualmente serve como um
momento de reflexão sobre a minha prática pedagógica” (Professora Formadora 5, 2010);
“quando iniciei os trabalhos na UFFS, o grupo de pesquisa já estava atuando ... então
42
participar de um grupo de pesquisa, de formação continuada e ser professor formador, foi e
está sendo um desafio” (Professora Formadora 6, 2010); “acredito que o grupo está se
constituindo como um ambiente de trabalho colaborativo entre docentes da educação básica,
do ensino superior e alunos da graduação, para estudar, compartilhar, discutir, refletir e
investigar sobre o ensino de ciências e matemática” (Professora Formadora 3, 2010).
Uma das professoras segue explicitando que, para ela, o grupo de formadores precisa
se encontrar, fortalecer-se, como a expressar: “acredito que ainda precisamos avançar no
sentido da constituição de um grupo efetivamente, nesse caso me refiro ao grupo de
professores formadores, de um grupo que pesquise em conjunto. Talvez por sermos
decorrentes de diferentes formações, de estarmos apenas nos conhecendo, de estarmos
envolvidos com a implantação de tantas outras coisas, ainda não conseguimos de fato uma
organização de grupo efetivo, de um coletivo que trabalhe com os mesmos objetivos, com
objetivos que se conectem. Somos ainda um grupo onde prevalece a individualidade, cada um
com sua pesquisa, acredito que isso também enriquece o grupo, mas precisamos ampliar esse
individual para construções mais coletivas, precisamos de mais tempo para os encontros de
debates, para discutir e refletir sobre nossas ações. Quanto ao grupo no geral, precisamos
cada vez mais buscar a efetiva participação dos professores, suas manifestações, o que já
vem aumentando, mas precisamos estar atentos às falas e ao silêncio” (Professora Formadora
6, 2010).
A sensação que envolve a Professora Formadora 6, tem tomado conta de mim o tempo
todo, seja em minhas reflexões, seja no processo solitário de escritura dessa tese J. Também
acrescento que nos falta, a nós formadores, um reconhecimento especialmente no que tange a
nossas experiências anteriores, nossas trajetórias de pesquisa e, por conseguinte, de formação,
nos falta também a explicitação clara das teorias, para que nos grupos possamos dialogar na
perspectiva de entendimentos do que seja a investigação-ação, para clarificar nossos desejos
formativo-investigativos como coletivo de formadores. Mas acredito também que essa
sensação é de um percurso inicial e que tem muito caminho a percorrer, pois a nossa formação
como professores pesquisadores está envolvida e em disputa nesse contexto formativo. Nesse
sentido, ainda que tenhamos avançado como grupo em quase dois anos de trabalho, temos
muito pela frente, uma vez que o caráter contínuo, progressivo e processual do GEPECIEM
nos imbrica e conecta a um processo que está apenas construindo suas bases, o advir é que
nos deixa esperançosos. A mim, parece claramente que temos presentes indícios, não mais e
não menos e que estes indícios formativos e constitutivos dos sujeitos revelaram-se em
43
movimentos intensamente reflexivos, mediados, interativos, no coletivo, com o tempo, com a
formação e no caminho.
Os indícios do processo de formação e constituição dos professores pela via da
reflexão mostram que os professores foram sendo constituídos na vivência formativa, sendo
assim ter presente os desejos formativos facilitou a percepção do modo de conduzir e ficar
atento às concepções, transformações e necessidades de desenvolvimento individuais e do
coletivo. Essa opção facilitou a compreensão dos fenômenos, pois o processo é de caráter
histórico e cultural, o que implica a atenção aos detalhes e à origem das necessidades
formativas que estavam em jogo no grupo.
1.6 Sobre os Preceitos Éticos da Pesquisa
O uso das informações dos sujeitos da pesquisa foi realizado mediante consentimento,
e a produção intelectual do grupo será compartilhada, sendo que todos os membros do grupo
foram, estão sendo e serão orientados a produzir trabalhos e reflexões que possibilitem
publicação e visibilidade a todos os participantes.
Os preceitos éticos, como sigilo e anonimato dos sujeitos pesquisados, serão
resguardados, especialmente através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), que está apenso (ver Apêndice B) e atende aos princípios expressos na Resolução
196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). As garantias, proteções e direitos dos sujeitos
envolvidos encontram-se explicitadas no TCLE.
Os sujeitos foram nominados com expressões: Professor(a), Professor(a) Formador(a),
Licenciando(a), Supervisor(a) e números de 1 até 15, de acordo com cada segmento e a
participação na pesquisa. O ano de cada fala também está informado a cada turno transcrito
ou excerto selecionado. Para melhor compreensão, o sujeito foi marcado a cada turno de fala
durante a transcrição, sendo apresentada sua fala no contexto do episódio para apreensão de
fenômenos, compreensão de processos e movimentos formativos.
A identificação foi feita na transcrição, com a pretensão de compreender qual sujeito
externalizou tal fala, a fim de facilitar os entendimentos individuais e coletivos como
discursos, e os conceitos, concepções, bem como alterações decorrentes destas por novas
atribuições de sentidos e significados aos mesmos.
44
A pesquisa seguiu os trâmites legais quanto à Resolução 196/96 CNS, submetida e
aprovada em Comitê de Pesquisa da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul (UNIJUÍ) pelo Parecer Nº 044/2011 e cadastro junto ao Conselho Nacional da
Saúde do Ministério da Saúde, por se tratar de pesquisa envolvendo seres humanos, sob o
Protocolo de Pesquisa nº 0127/2010. A responsabilidade pelos riscos, usos das informações,
dos resultados, pelo sigilo dos informantes pesquisados, bem como pela regulamentação de
todo o processo de pesquisa, é do pesquisador responsável e está expressa no TCLE. O
compromisso com os benefícios dos resultados está expresso nas expectativas da pesquisa, de
modo a interagir especialmente em caráter permanente com a formação inicial e continuada
de professores de Ciências.
As condições para suspensão e/ou cancelamento da pesquisa foram dadas: pelo
afastamento do pesquisador responsável da UNIJUÍ; pela retirada total das informações
prestadas pelos sujeitos pesquisados; por falta de autorização dos sujeitos e instituições
envolvidas em qualquer fase da pesquisa; por diligência, denúncia ou uso inadequado dos
dados e desrespeito à Resolução CNS Nº196/96, desde que comunicada pelo Comitê de Ética
da UNIJUÍ, ao pesquisador responsável.
Todos os dados coletados (ou que sejam) entre 2010 e 2012 (anos em que tive
autorização para coletar) estão arquivados, enquanto os dados totais e/ou parciais continuarem
a ser utilizados na pesquisa, durante a tese, e na publicação dos resultados (por, no mínimo,
cinco anos).
1.7 O(s) Contexto(s) formativos na pesquisa: buscando um caminho para reflexão na
formação continuada de professores de Ciências
Os movimentos formativos do grupo de estudos e pesquisas foram emergindo em
contextos colaborativos e isso nos permitiu demarcar ciclos de reflexão. Então, à medida que
a investigação-ação crítica foi sendo estabelecida com, para e pelo grupo, os ciclos foram
sendo visualizados pela minha análise, como professor formador que coordenava o grupo e ao
mesmo tempo, desenvolvia o processo da pesquisa. Esse papel de pesquisador participante,
mas também coordenador do/no grupo, deixou-me sempre muito à vontade de levar minhas
intenções para dentro das discussões, não em caráter de prescrição, pelo contrário, mas de
modo a garantir que a reflexão fosse tomando forma, propósito e tivesse indícios de uma
45
formação/constituição a partir da teorização das práticas, caminho que temos perseguido com
o grupo intensamente e de modo deliberado. Essa postura assumida no e como grupo foi me
permitindo vislumbrar, ao longo do processo, determinados momentos que desencadearam
problemas formativos, que chamei de ciclos de reflexão, para situar os contextos em
diferentes temas e situações de formação/constituição dos (professores) participantes do
grupoK (professores de Ciências e supervisores da Educação Básica, professores formadores
da área de Ensino de Ciências e da área Básica da UFFS e Licenciandas do curso de Ciências
da UFFSL).
No sentido metodológico, os ciclos reflexivos foram desenhados na perspectiva de
reflexão na investigação-ação proposta por Contreras (1994), como molas propulsoras que
vão desencadeando a direção do processo formativo e permitem avanços teóricos,
investigativos e constitutivos dos sujeitos da pesquisa. Esse modelo é conhecido como espiral
da investigação-ação, que apreende todas as etapas de uma investigação-ação em torno de
problemas práticos ou perguntas investigativas, que depois de uma volta da espiral, em tese,
são
ressignifcados
os
problemas,
o
que
permite
avançar
na
sua
compreensão/entendimento/aprofundamento. Nos movimentos de estudos, pesquisa e
reflexão, por isso, movimentos formativos, os ciclos foram emergindo como novas perguntas
a partir da realidade, contexto crítico-reflexivo. Essas perguntas foram sendo postas em
debate, em disputa, em perspectiva formativa.
A base do processo é o contexto do grupo e sua complexa rede de fios que se
conformam entre si, se (re)conhecem, se estranham, se articulam, e nesse contexto vão
tecendo interações mediadas pela linguagem. Dessa estrutura inicial, surgiram diferentes
contextos investigativo-formativos, que foram sendo compreendidos à medida que o grupo de
estudos foi se desenvolvendo. A esses contextos de perguntas-problemas investigativos foi
atribuído o nome de ciclos reflexivos. Cada ciclo que surgiu dentro da representação da
espiral mestra foi tratado de modo a situar momentos que o conformam de planejamento,
ação, observação e reflexão. No conjunto dos ciclos, podemos aferir que estes foram
organizados de modo a prosseguir uma ordem de problema – observação, planejamento,
reflexão e ação (CARR; KEMMIS, 1988), que ao mesmo tempo permitem iniciar novas
espirais pela reflexão sobre a ação e que demonstram uma correlação com fases da
investigação-ação crítica, na visão de Contreras (1994), sejam elas: definição de um problema
prático, coleta de dados, análise e reflexão e proposta de ação, que são modos distintos de
proceder na investigação, mas intercomplementares. A respeito do modelo de pesquisa
46
adotado, penso que pude empreender certo avanço através da customização que foi
empreendida na implantação do GEPECIEM. No capítulo 4, apresento e envido esforços para
explicitar em plano teórico os avanços que minha pretensão de pesquisador faz afirmar, bem
como certo alargamento conceitual acerca da formação de professores de Ciências, apoiado
no contexto empírico e na teorização da investigação-ação.
Ao primeiro ciclo reflexivo, atribuí o nome a constituição do grupo, tema que
alimentou as iniciativas de pesquisa e os primeiros encontros. Nesta espiral podemos dizer
que foram demarcados movimentos constitutivos do grupo, nela se apresentaram as
possibilidades de interação, declaram-se os papéis de cada um dos participantes, foram
sentidos os primeiros movimentos de formação, estabeleceram-se regras, foram discutidos
desejos de formação e intenções dos participantes.
Neste ciclo a problematização emana do desejo de criar o grupo de estudos e pesquisa,
por conta desta investigação que precisava situar-se em tempo e espaço para ter contexto e
justificação e pelos desejos iniciais, de um lado, da Secretaria Municipal de Educação e
Cultura e, do mesmo lado, mas, em outra via, dos interesses formativos declarados pelos
participantes do grupo na instalação dos trabalhos. Podemos situar o discurso dos professores
nesse sentido de modo a encontrar marcas das fases deste ciclo, como na passagem: “através
desses encontros agora, eles [os professores] vão conseguir assim uma linha de trabalho;
pela troca de ideias,... conseguir ter uma unidade de trabalho assim, mais ou menos, seguir
uma linha de trabalho, ... E tem muito a desejar assim, seria preciso, que a gente sentiu, sente
essa grande necessidade do professor se aperfeiçoar e ter essa formação continuada”
(Supervisora 1, 2010), e também em excertos de respostas dos professores: “é a oportunidade
que os professores de área têm para trocar experiências”; “produzir conhecimento”; “é a
reunião de um grupo de pessoas que buscam alternativas para diminuir ou sanar as
dúvidas”; “planejamento, troca de experiências, encontro”; “encontro de vários indivíduos
para discutir sobre algum assunto” (Professoras 1; 3; 4; 5; 9, 2010). Estes fragmentos já nos
permitem aferir que apontam indícios de que as professoras acreditam que em grupo, e pela
discussão (reflexão), é possível avançar na perspectiva de aprofundar conhecimentos e
formação profissional. E que, pelo planejamento conjunto e determinação de ações do grupo,
possam surgir encaminhamentos e alternativas aos problemas cotidianos, o que também nos
confere êxito na metodologia que optamos para estes processos, a investigação-ação, no que
podemos nos aproximar mais de Alarcão (2010, p. 51): “pesquisa-formação-ação”, de modo
que o contexto é formativo e de pesquisa. Também é importante registrar que, quando
47
questionados acerca de sua participação no grupo de estudos e pesquisa, os professores
responderam às seguintes questões iniciais: “Questão 4: Você está disposto a estudar
perspectivas teóricas e metodológicas do ensino de ciências?” e “Questão 5: Você está
disposto a participar de movimentos colaborativos de pesquisa e formação continuada no
ensino de Ciências em caráter permanente em conjunto de professores formadores da UFFS,
professores da rede pública de Cerro Largo e licenciandos da Universidade?” Os professores
foram unânimes em afirmar que desejavam participar e discutir questões teóricas acerca da
educação em Ciências.
Conhecidos e apontados os desejos formativos, iniciamos o planejamento do trabalho
inicial do grupo, tanto meu planejamento como pesquisador, participante e coordenador do
grupo, tanto no âmbito do grupo de professores formadores, que inicialmente eram cinco,
sendo dois professores da área de ensino de Ciências e três professoras da área básica, como
interesse em participar dos contextos de estudo e pesquisa. Em reunião apresentei o modelo
que preconizamos para esta investigação e decidimos uma pauta inicial, que somente se
confirmaria após conhecermos os desejos dos participantes do grupo, o que se confirmou a
posteriori.
No contexto de desenvolvimento do grupo, a ação, ou seja, os encontros do grupo,
foram constituindo processos de reflexão que ocorreram pela via da mediação teórica através
de textos e apresentações dos formadores, das perguntas e incursões dos professores
formadores, bem como no diálogo entre os participantes, gerando reflexão sobre a ação. Não
podemos afirmar que nesse momento inicial foram identificados movimentos no sentido de
verificarmos reflexão na ação (SCHÖN, 2000) e reflexão para ação, conforme preconiza
Alarcão (2010).
As marcas discursivas de cada etapa do processo de investigação-ação estão presentes
nos episódios que analisaremos em outros capítulos. À medida que decorreram os encontros,
foram ficando cada vez mais expressivas as etapas da pesquisa em cada ciclo reflexivo e, com
isso, tornando-se constitutivas da reflexão. As estratégias-planejamentos de cada ciclo foram
seguindo caminhos que por vezes foram diferenciados e exigiram contextos diferenciados de
discussão, devido ao grupo ter participantes com interesses marcadamente relativos ao ensino
de Ciências e ao ensino de Matemática.
A partir dos encontros e das entrevistas que foram acontecendo paralelamente, foi
possível situar no mínimo mais sete grandes espirais no processo reflexivo, que (re)surgiram
48
como perguntas-contextos para o desenvolvimento de ciclos reflexivos, entre elas a
experimentação, a escolha e o uso do livro didático e as necessidades formativas em temas
específicos – conteúdos científicos. Essas perguntas vão surgindo nos contextos e sendo
assumidas pelo próprio coletivo, que em sua dinâmica impõe maneiras de interação para
discuti-las, aprofundá-las, melhor conhecê-las, compreendê-las à luz de referenciais, quem
sabe, pretensamente,
resolvê-las,
ainda
que
parcialmente.
As perguntas/contextos
formativos/investigativos serviram de molas propulsoras da discussão-reflexão na
investigação-ação.
Como as intenções de pesquisa de cada participante foram sendo dialogadas no grupo,
surgiam também diferentes estratégias de enfrentamento para as demandas. Desse modo, as
licenciandas sob minha orientação perceberam que a investigação em Ciências que estavam
desenvolvendo precisa compreender melhor qual o papel da experimentação na prática dos
professores de Ciências. As intenções das licenciandas foram discutidas em conjunto com
professores formadores e tiveram um encaminhamento que culminou num artigo científico
acerca da experimentação. Como o grupo de professores de Ciências da rede municipal se
encontra também regularmente para planejamento da docência em outro contexto formativo,
levamos até o grupo a proposta de discutir a experimentação, surgindo assim o segundo ciclo
reflexivo, que preferi chamar em minha análise de: o (re)dimensionamento da
experimentação num contexto de ensino de Ciências. Neste movimento emergiram no
mínimo três outros desdobramentos de reflexão, tidos aqui como marcas do movimento
formativo, são eles: o (re)conhecimento das concepções de experimentação entre os
professores no contexto do grupo, a constituição docente e
sua relação com o uso da
experimentação na formação e na docência, e a tessitura da experimentação em contextos de
ensino de Ciências.
O contexto desse ciclo de pesquisa surgiu como problema a ser investigado a partir da
observação do livro didático escolhido pelos professores de Ciências para 2011 e do Guia de
escolha dos livros para 2011, em que se tornam nítidas determinadas concepções acerca da
experimentação no ensino de Ciências, as quais no mínimo comprometem este ensino, tais
como a concepção situada no excerto: “ênfase na pesquisa e experimentação” (BRASIL,
2010-a, p. 17); outro aspecto que desejo situar foi uma entrevista de discussão acerca da
escolha do livro didático, em que, ao falar do assunto, o tema da experimentação ressurgiu,
como fica expresso na passagem: “então, assim, oh, dá muitos impasses, essa escola não tem
laboratório, tem um microscópio potente, nós estamos com as mãos atadas[...]Gente do céu...
49
então eu, mais Química e Física, eu encontro muita dificuldade. Então eu digo, eu demonstro
o que eu posso, o que eu posso demonstrar eu levo para a sala de aula, mas é difícil sem pia,
daí as merendeiras já me deram uma toalha ... então eu faço o que eu posso, o que está no
meu alcance .... mas eles gostam” (Professora 2, 2010), que traduz em boa medida a
necessidade de investigar essas concepções entre os professores.
Para tanto, solicitei autorização do grupo para nos encontrarmos no subgrupo 1, que se
reúne mensalmente numa Escola Municipal para planejamento das ações docentes. As
professoras prontamente atenderam positivamente ao pedido, pelo que combinaram data e
horário. Nesse encontro partimos do texto: A experimentação no ensino de ciências (SILVA;
ZANON, 2000), e planejamos um momento de reflexão mediada através da leitura e
discussão do texto. A reflexão foi compartilhada e o grupo pôde estabelecer, além da
discussão, uma memória das constituições formativas de cada um frente à experimentação,
bem como foi possível de serem estabelecidos momentos de interação pelo diálogo com a
teoria, com as autoras, com os colegas, com uma licencianda presente no encontro e, mais que
isso, a partir dessa discussão a possibilidade de mediação e teorização das práticas parece ter
sido desencadeada, o que tornou nosso movimento interativo-formativo intenso, profícuo,
desejável. O encontro permitiu situarmos as concepções do grupo acerca da experimentação
inicialmente, bem como, a partir destas, foi possível avançar conceitualmente no que
implicam atividades experimentais em nossa ação docente. A ação de mediação, a reflexão
sobre a ação, foi de certo modo alcançada neste ciclo, e desencadeou a necessidade de melhor
compreendermos nossas práticas, nossas aulas práticas, ou seja, emergiu a necessidade de
ressignificarmos a experimentação no contexto de estudo, de pesquisa, da prática. Este ciclo
está de todo modo ligado a outro que se fez necessário à compreensão do modo operante da
investigação-ação na perspectiva dos professores participantes do GEPECIEM, especialmente
quando em colaboração com professores formadores e licenciandos da Universidade.
Como atacar um problema que está presente e se disfarça no discurso, na prática, por
óbvio nos contextos? É assim que nasce outra via reflexiva, o terceiro ciclo reflexivo,
marcado como a escolha e uso do Livro Didático (de Ciências). Essa questão, ainda que
seja o cerne de minha investigação e componha a minha tese, ao mesmo modo em que era
trazida por mim como tema, não precisou ser perseguida e instituída na discussão
propriamente dita do grupo, como tema exclusivo, ou seja, foi surgindo gradativamente nos
discursos, no exame das entrevistas, na distorção das respostas e no diálogo com a prática que
fomos tecendo. À medida que eu pensava que fosse necessário atacar o tema, ele vinha à tona,
50
emergido do próprio discurso e contexto formativo do grupo, o tempo todo, saltando à frente
como se quisesse ser pinçado, a qualquer preço. É fato que, como este tema me interessa, eu,
sempre que possível, também trazia à tona perguntas que foram desencadeando processos
reflexivos acerca do tema, e que, ao ser o meu problema de pesquisa e por ser encharcado de
intenções, sempre que ele ia ressurgindo, não era neutro.
Entrevistando os professores, o uso do livro foi percebido de modo incondicional,
como fica esclarecido nos trechos: “auxilia o professor do planejamento de suas aulas”
(Professora 6, 2010); “o livro didático auxilia no desenvolvimento do nosso trabalho”
(Professora 7, 2010); “ajuda a preparar uma aula com textos, exercícios, explicações para
melhorar o entendimento” (Professora 9, 2010). Nesse sentido, esse ciclo teve a reflexão
sempre presente e o planejamento não exigiu ação dirigida no acercamento desse problema,
embora, como o episódio mediado pelo texto Joãozinho da Maré, nos encontros sobre os
planos de estudos, a temática e problematização recorrente sempre se situava em torno do
livro didático de Ciências. No trecho, um dos formadores faz uma reflexão acerca da escolha
do livro, que situa em boa medida a qualidade das discussões: na maioria das vezes que vai se
fazer as escolhas dos livros, elas passam pelos professores, pela facilidade que eles
encontram de trabalhar com o livro. Ou seja, eles vão olhar as opções e vão dizer “oh, esse
aqui tá mais fácil de trabalhar, então vai ser esse aqui”. E muitas vezes não há aquela
prática das discussões dos erros conceituais do livro, não é?... do que pode ser, as mudanças.
Alguns livros até acompanham as mudanças, mas alguns livros. A hora da escolha muitas
vezes é rápida. “Esse aqui”, “decidi qual é”, numa reunião de professores... define-se; não
se chega a um consenso dos professores... preferem um, outros preferem outro, tem que ver a
maioria, ou quem vai dar mais, e aí é que vai... Muitas vezes tem outras limitações...
(Professor Formador 4, 2010).
Os contextos foram se dando a todo o momento, como já frisei, e foram tanto
demarcando as relações dos professores com o livro, como posicionando o lugar que o livro
ocupava na prática desses professores e seu papel na instituição de currículos e constituição
docente. Ao entrevistar supervisores e os professores de Ciências sobre a escolha do livro,
pude perceber um universo de contradições, entraves e em boa medida o descaso do Estado e
a falta de preparo dos professores para a escolha, o que coloca na pauta de discussão a
necessidade da retomada do tema nos cursos e programas de formação inicial e contínua,
como bem afirma o Professor 15 (2010): “considero que todo professor deveria poder fazer
51
escolha do seu material, aquele que considerar melhor, por isso a temática deveria ser
inserida na formação continuada”.
O discurso educacional como recontextualização da dinâmica das políticas
curriculares é a demarcação que emergiu de um quarto ciclo reflexivo – a via do livro e a via
do currículo são possibilidades que permitiram minha análise e reflexão em torno das políticas
educacionais curriculares, dos livros didáticos, dos guias, como modos de representação dos
discursos educacionais. Esse ciclo reflexivo, ainda que embebido no contexto do grupo
situado de pesquisa, e ainda que eu tenha me utilizado destes discursos, propiciou-me uma
autorreflexão acerca da problemática, permitiu-me melhor compreendê-la, possibilitou-me
perceber as implicações das políticas, especialmente no discurso dos professores de Ciências,
e facilitou a compreensão de que a via do livro e do currículo são os modos de transmissão
destes discursos nos contextos educativos escolares. Para tanto, partindo da necessidade de
compreender como o discurso dos professores situa no “MEC, de acordo com os Parâmetros
Curriculares” (Professora 9, 2010) a função/condição para elaboração de currículos,
expropriando-se do contexto educacional (GERALDI, 1994). De posse deste e de outros
apontamentos das entrevistas com os professores, preocupei-me em verificar de que modo
esse discurso se propaga, se define e assume tal medida. Assim, como fase de planejamento
deste ciclo, demarquei e analisei documentos de recontextualização dos discursos acerca das
políticas curriculares, tecendo uma reflexão-ação contínua entre, com, nos e a partir dos
discursos dos quais fui me apropriando para compreendê-los. Como culminância dessas auto e
metarreflexões, acredito que todo o capítulo 2 desta tese foi escrito.
O grupo GEPECIEM foi sendo também um tempo-espaço de disputa e, à medida que
a reflexão foi causando alterações, gerando mudanças em contextos distintos, distintas
interações foram surgindo no contexto das ações do grupo, para e com o grupo. A SMEC de
Cerro Largo, desejando unificar os conteúdos ensinados nas escolas do Município em
questão, propiciou-nos o desencadeamento do quinto ciclo reflexivo, que eu identifiquei como
sendo: Que currículo é esse? A “necessária” revisão dos planos de estudos. Essa
necessidade delimitou uma nova problematização em torno do que se propunha, revisar e
atualizar os conteúdos do ensino de Ciências e, para tanto, a Universidade (UFFS) foi
convidada a proceder com essa revisão. De início o desejo era esse, ao menos em tese. Este
ciclo também teve estreita interação com o anterior, pois me propiciou acesso aos planos de
estudos das escolas, permitindo que eu tecesse uma nova reflexão acerca da escolha dos
conteúdos do ensino com base nos livros didáticos. A observação do contexto e o quadro em
52
que eu estava inserido me fez devolver o desafio ao grupo de professores e, nesse sentido,
participar das escolhas/revisões que se fizessem. O planejamento desse ciclo envolveu três
encontros do GEPECIEM, dois encontros com supervisoras da SMEC e das escolas estaduais,
e dois encontros entre os professores formadores na UFFS.
O conhecimento, ou seja, o conteúdo é sempre o contexto das disputas e dessa forma é
sempre o conteúdo determinante de nossas ações no contexto escolar. A ação revelou não
somente o contexto de produção dos planos, como disputas entre redes de ensino, o uso
exacerbado do livro didático na determinação dos conteúdos e dos currículos da disciplina
escolar Ciências, o esforço para se fazer perpetuar regras na constituição dos planos de
estudos e certo peso que os professores atribuem aos órgãos governamentais como modo de
expropriação e comportamento ingênuo destes professores, como pode ser evidenciado na fala
da Supervisora 2 (2010[municipal]): “... assim oh, desde que foi implantado no nosso Estado
em 2007, o ensino fundamental de nove anos, nós já tivemos que fazer num primeiro
momento um planejamento do 1º ao 4º ano dos planos de estudo e do novo regimento, da
nova proposta pedagógica. Agora, então, é o ano de nós planejarmos o restante, que é do 5º
ao 9º ano, então os novos referenciais curriculares, que nós temos como proposta nos nossos
novos planos de estudo, veio ao encontro através dessa proposta do Lições do Rio Grande,
que nas escolas estaduais foi a forma que eles adotaram pra que realmente a gente
conseguisse concretizar, trabalhar habilidades e competências”e da Supervisora 5 (2010
[estadual]): “...inclusive... ela colocou assim: as resoluções que tem que contemplar, a parte
dos PCNs que tem que... aquela... ela deu tudo pra nós direitinho... e as Lições do Rio
Grande que não é assim uma coisa mandatória...”. De todo modo fica claro que as intenções
eram, desde o início, unificar os planos de ambas as redes e seguir as Lições do Rio Grande.
A ação foi determinante dos processos de reflexão que foram mediados em distintos contextos
através da interação entre supervisores e professores formadores, professores e professores
formadores. Nesse sentido, essa interação foi se tornando mediada, contundente, aprisionante,
libertadora, ou ainda investigativa, reflexiva, crítica.
A dinâmica da investigação-ação impõe o processo de reflexão, especialmente se
desejarmos perseguir a perspectiva crítica. Nesse sentido, o sexto ciclo reflexivo deve-se à
necessária teorização das práticas, à escuta teórica, à reflexão mediada pela teoria, que podem
ser traduzidas por encaminhamentos teórico-metodológicos da reflexão crítica na, da e
para prática. O enfrentamento do meu problema de pesquisa é em boa medida a
compreensão da reflexão como possibilidade formativa ou eixo articulador da formação, por
53
isso perseguir esse entedimento foi um desafio constante de minha presença no grupo. Os
indícios deste ciclo surgiram no contexto de um episódio sobre a experimentação, em que um
professora expressou: “...as semelhantes tudo, eu faço isso em grupo também, isso eu tenho
lá... eles gostam muito dessas técnicas ... mas sempre eu vou questionando eles, ... nunca dou
pronto as coisas assim... eu faço assim, não sei se estou certa... estou louca pra que venha um
professor lá pra me orientar melhor [...] melhorando” (Professora 1, 2010). Não houve como
planejar o início deste ciclo, mas uma vez iniciado e emanado do próprio discurso dos
professores de Ciências, foi possível determinar os seguintes passos/fases do ciclo. Nesse
sentido, o planejamento foi seguido de modo a gerar uma intermediação da reflexão na
prática, sobre e para a prática, através de uma situação de supervisão mediada. Essa ação
gerou reflexão e foi um momento clímax de exercício da reflexão crítica em contexto
formativo, propiciou intensas interações e foi um processo constituinte dos professores
envolvidos.
A busca pela reflexão crítica em processos de investigação-ação é uma tarefa que pode
ser instituída em diferentes contextos e momentos da ação. Assim, pude perceber, ao longo
das discussões, que a reflexão é um modo de operar na formação de professores, que demanda
do coletivo, que parte dos desejos comuns, que é pertinente mais que necessária, pois não se
instrumenta sozinha, que deve ser mediada, pois não deslancha, não decola, se não tiver
impulsos e mediação teórica. O GEPECIEM constituiu-se como espaço-tempo de reflexão,
pois no nascedouro de qualquer discussão a mediação, as interações, foram propiciando
contextos formativos aos participantes do grupo e, nesses contextos, foram sendo situados
movimentos formativos, constitutivos dos professores de Ciências. Nesse sentido, ao
perseguir a compreensão do problema de pesquisa, foi possível perseguir a tese que defendo,
ou seja, a reflexão é um caminho formativo que pode ampliar as condições de docência e uso
do livro didático de Ciências no contexto da prática. A delimitação deste ciclo reflexivo deuse pela necessidade de reagrupar os movimentos que podem demonstrar como a reflexão
torna-se possível e é indispensável a contextos formativos de professores.
O universo do redimensionamento das práticas e sua teorização exigiu de uma
professora que se dispôs a abrir sua sala de aula para muitos outros movimentos formativos,
reflexivos, constitutivos de sua docência, que em conjunto com professores formadores e
licencianda passaram a se encontrar mais vezes. Posteriormente, já eram três professoras a
refletir sobre suas práticas, a partir da proposta de desenvolver um relato de experiência para
o GEPECIEM, e posteriormente, já em regime de colaboração, analisando a experiência e
54
enviando o relato a eventos que aconteceram no ano de 2011, sendo um deles o IV Encontro
Regional de Ensino de Biologia da Região Sul (EREBIO-Sul) e IV Internacional Council of
associations for Science Education (ICASE) - Simpósio Latino Americano e Caribenho de
Educação em Ciências (ver Anexo B).
A discussão foi tomando cada vez formas e contornos maiores. Desse modo as
necessidades formativas em temas específicos – conteúdos científicos foram demarcadas
como sendo o sétimo ciclo reflexivo, que assumiu uma forma mediada na dinâmica do
andamento do nosso grupo de estudos a partir do ano de 2011. Esse ciclo reflexivo emana de
um problema que é sempre formativo, pois ensinamos um determinado conteúdo escolar, e
teve sua origem em distintos momentos, mas presente desde o início do GEPECIEM, seja
pelos desejos formativos dos professores, seja pela condição que o conteúdo assume na
dimensão da aula de Ciências. Na exposição e análise dos temas que entendi notadamente
importantes, não pude selecionar este ciclo como sendo relevante à discussão, pelo tempo e
andamento do grupo e também para não tornar exaustiva a constante (re)condução da reflexão
em torno do Livro Didático, o que seria pertinente, uma vez que acredito que o livro tem
assumido papel muito importante na determinação dos conteúdos específicos. Penso que este,
assim como outros ciclos reflexivos que foram sendo possíveis de apreensão, serão
desenvolvidos nos encontros subsequentes e serão objeto de novas e importantes pesquisas
para a área.
Outros ciclos reflexivos vão surgindo em distintos momentos que vivenciamos no
GEPECIEM, dois ciclos que temos como deixar anunciados são: - o (con)texto dos diários de
bordo: narrativas e o exame das práticas e da constituição docente em Ciências e – a
investigação-ação na formação inicial como processo constitutivo da docência em Ciências,
ciclos que foram delimitados em 2011, e que têm todo um advir profícuo.
A intensidade com que os movimentos formativos do curso foram sendo articulados
em novos ciclos e subciclos reflexivos nos fez apostar na investigação de alguns deles e,
como grupo de formadores do GEPECIEM, fez-nos refletir sobre estas demandas e seus
enfrentamentos do ponto de vista da formação de professores. Desse modo, vários outros
temas que foram tratados no contexto do ensino de Matemática não foram destacados e sequer
analisados nessa pesquisa.
O (re)planejamento em perspectiva de continuidade de cada ciclo também foi sendo
reaprazado ao longo do ano 2011 e tenho compreensão de que se estenderão por vários anos
55
como perguntas que serão ressignificadas intermitentemente, como por exemplo o ciclo dos
conteúdos específicos. Afinal, o que ensinamos está sempre em pauta, o modo como
ensinamos, o conteúdo é sempre o centro da aula, senão qual seria a razão de disciplinas e
conhecimentos escolares a serem ensinados?
Os ciclos tornavam-se muito ativos, até mesmo frenéticos e vieram à tona a cada
momento. Nesse sentido, saber como articular a produção de sentidos e significados é um
grande desafio; reconhecer quando investir em num novo movimento é também muito difícil
de ser dimensionado. Os professores formadores foram se conhecendo através dos encontros,
especialmente do subgrupo 2, em que se deram as discussões da matriz teórica, disputas
acerca da metodologia que foi empregada e delimitação da atuação de cada um no contexto do
GEPECIEM. O grupo de estudos e pesquisa no contexto formativo em que se desenvolveu a
investigação-ação foi também adquirindo propósitos como grupo de pesquisa institucional
reconhecido pela UFFS, CAPES, Secretaria de Educação Superior (SESu), o que também
forçou o desdobramento de projetos de iniciação científica, de ensino, de extensão a partir do
grupo.
Deste arcabouço empírico-teórico é que emanaram as grandes perguntas de minha
investigação - tese, dentre elas a que me inquieta e conduz o eixo central da análise: Como a
relação entre o professor de Ciências e o livro didático se configura e que processos dela
decorrem, no sentido de suas implicações na constituição da docência em Ciências? Do
processo reflexivo que tem sido nascedouro de minhas teses é que se configuraram os
capítulos, os modos de compreensão, minhas defesas, minhas intenções. Essa dinâmica fezme optar por tratar de algumas delas, sobretudo das que me interessam no sentido de
esclarecer questões em torno da relação entre o livro didático de Ciências, o professor e os
processos de constituição e formação docente, no enfrentamento reflexivo dos dilemas da
prática, entre outros aspectos que a pesquisa - o texto - foram revelando.
Os ciclos não estão representados de modo explícito nos capítulos que seguem este
texto, mas de outro modo eles nortearam a determinação da organização da tese. Porém, para
compreender esta organização e o modo como de fato a pesquisa se sucedeu, te convido,
como leitor, a deleitar-te com minha escrita, com minha pesquisa, com meus contextos e a
impregnar-te dos sentidos e significados que me constituíram durante essa escritura.
56
A
Os excertos que compõem as notas de sessão, ao final de cada capítulo, foram extraídos de meu diário de bordo
que desenvolvi a pretexto da elaboração desta tese como forma de elaborar minha reflexão durante o processo de
investigação. Epígrafe produzida por ocasião do resultado de seleção do Doutorado (em março de 2010).
B
À medida que o tempo e a coleta de dados foram passando, me vi em meio a uma briga intensa: a definição dos
referenciais metodológicos e de análise. Acredito que este foi o grande ganho de meu doutoramento. Pois, ao ler,
interpretar, (re)significar e reconceitualizar/recontextualizar a perspectiva crítica da I.A., pude compreender e
teorizar minha prática: minha investigação-formação-ação, que é o modo como tenho assumido meu processo
reflexivo. Meu amigo Contreras muito ajudou a (re)conhecer em Carr e Kemmis uma guisa ao modelo de
análise, do qual me impregnei. Na verdade, a teoria crítica de ensino tem sido o referencial metodológico
procedimental, as bases teóricas de análise e o caminho formativo que adotei nesta I.A. crítica. Em profunda
simbiose com a perspectiva histórico-cultural e a dimensão reflexiva sobre, na e para ação tomaram parte e
adquiriram sentido especial para compreensão da problemática-processos e no enfrentamento desta para
corroborar a hipóTESE que venho defendendo (14.11.2010: os dias não tinham domingos).
C
A análise documental é tarefa orgânica e inerente à análise de conteúdo ( 28.10.2010).
D
No primeiro contato com a SMEC foi discutido o modo de participação dos professores no grupo de estudos
e pesquisa. Foi combinado que os professores terão a participação garantida dentro da carga horária de
planejamento docente em dia que os mesmos não têm aula na rede. Os encontros serão mensais, não serão
necessárias substituições, ou seja, os professores serão liberados de suas atividades na escola para participar do
grupo dentro de sua jornada de trabalho (08.06.2010).
E
Utilizei-me do diário de bordo e as reflexões que vou compartilhar como metatextos. São excertos de meu
diário, assim como essa. Essas reflexões foram indispensáveis e não são apenas apêndices, são parte de minha
constituição e, portanto, parte desta tese. Serão narrativas de minhas reflexões, minha constituição na tessitura
da tese. Uma história sobre a construção da reflexão do texto-tese (28.10.2010).
F
A tese é um processo solitário não só porque as minhas reflexões e a escritura são únicas e minhas, mas pelo
peso das afirmações que faço, pela falta de diálogo vivo quando tenho refletido sobre os problemas, inquietações
e caminhos que eu mesmo vivo, encontro e busco tecer esta investigação. Nesse sentido o diário de campo tem
sido um desabafo, um ouvido que vai recolhendo minhas ansiedades e inquietações acerca dos movimentos
formativos/constitutivos meus. “A Uanita e a Lauren me inspiram” (24.10.2010, das 17h às 19h).
G
Tenho insistido e reforçado a necessidade da reflexão na constituição das alunas, sendo que para isso elas têm
utilizado o diário de campo como espaço de registro para compor narrativas formativas com reflexões acerca
das experiências de pesquisa na formação delas (24.10.2010).
H
Programa de Educação Tutorial, que iniciou em novembro de 2010, e desde então o grupo teve adesão de mais
dois licenciandos (23.11.2010).
I
Meus desejos iniciais vão relutando comigo mesmo. Mais uma vez senti a necessidade de entrevistar os colegas
da área de Ciências e discutir a questão do livro didático em grupos menores nas escolas que desejo acompanhar.
Fico apreensivo por não ter um grupo tão focado no Ensino de Ciências. Ao final do primeiro encontro do
GEPECIEM, ficamos com a sensação boa de desejar falar mais, de discutir, e agora, começo a ler os
questionários (29.06.2010 – às11h 30min, 1º encontro do GEPECIEM).
J
Às vezes me sinto solitário, sozinho, na compreensão deste fenômeno todo. Para mim tudo vai se clarificando,
enquanto para outros colegas formadores parece difícil vislumbrar o que de fato estamos fazendo. Para alguns
formadores, compreender que a pesquisa e a extensão são e estão, em nosso contexto - GEPECIEM -,
indissociadas ainda parece complicado e difícil de ser desenvolvido. Sinto a falta de colegas com leitura e
entendimento mais claro do referencial que estamos utilizando. As leituras também têm sido feitas pelos demais
formadores, mas sinto certo distanciamento entre os nossos interesses, nossos desejos formativos, nossas
compreensões. É também nessas/por essas diferenças que o grupo deverá crescer. Mas, muitas vezes, recobradas
vezes me sinto sozinho a refletir. Também fica evidente meu papel nesse sentido, de aproximar a teoria desta
prática, de tornar a pauta de discussão e planejamento mais assídua, de buscar, de pescá-los (08.04.2011, às 20h).
K
Participar é um grande desafio e tenho sentido isso especialmente em relação às licenciandas que estão no
grupo. Ainda que pelo silêncio também participem, desejo vê-las interagindo, falando, participando ativamente
(24.10.1010).
57
L
Nesse tempo todo andei às voltas com minha tese. Como não estou afastado de minhas atividades de docência
e como parte delas estão intimamente ligadas à pesquisa-tese, tenho orientado cinco alunas na iniciação
científica de um projeto que se alinha à minha tese. Essa oportunidade de articular formação inicial e continuada
pela via da investigação-formação-ação tem sido muito diferenciada, pois as reflexões que fazemos em vista do
projeto de pesquisa das bolsistas também me permitem pensar o tempo todo em minhas perguntas, na formação
dos professores de Ciências (24.10.10, às 11h e 10min).
58
CAPÍTULO 2: O LIVRO DIDÁTICO E O PROFESSOR DE CIÊNCIAS - AMARRAS
DISCURSIVAS
O currículo é lista,
é ordenamento,
é discurso,
é (re)produção das políticas educacionais,
é livro,
é PCN,
é mercado,
é competência.
Você sabia que é BID, BIRD, MEC?
é conteúdo em disputa.
Eu poderia iniciar este capítulo parafraseando Alice Casemiro Lopes, em suas
compreensões mais contemporâneas sobre uma concepção de currículo, ou até mesmo citar o
que Tomaz Tadeu da Silva entende por currículo, ou ainda citar os entendimentos de Hilário
Fracalanza e de Corinta Grisolia Geraldi sobre livro didático, esta última autora de ideias que
também norteiam fundamentos da tese que defendo. Mas preferi iniciar esta discussão com
uma epígrafe que eu mesmo escrevi após um dos encontros que vivenciei no mês de outubro
de 2010M, durante o processo de assessoramento na reconstrução dos planos de estudos de
Ciências e Matemática do Município de Cerro Largo-RS e que me possibilitou refletir e
constatar marcas e amarras discursivas em torno da temática que tenho investigado: as
interfaces entre o livro didático, o professor de Ciências e a formação de professores.
Destinei a este capítulo a tentativa de explicitar de que ordem decorre a relação entre o
livro didático e o professor de Ciências. Esta relação e os processos dela decorrentes parecem
estar muito presentes na prática de ensino de Ciências contemporânea. A todo momento sinto
que os professores se apoiam sobremaneira nos livros didáticos, em todo o contexto
pedagógico que estes recriam a sua volta, seja pelo conteúdo de seu enredo, seja pelo seu uso.
59
Nesse sentido, investiguei e proponho compreensões acerca do tensionamento que podemos
apreender entre o discurso oficial, proposto nas políticas públicas curriculares através dos
diferentes documentos que as recontextualizam, os currículos escolares (planos, livros
didáticos, falas) e o discurso educacional de professores de Ciências e supervisores da
Educação Básica, professores formadores e licenciandos da área de Ciências da UFFS.
Analisei, para isso, documentos oficiais, livros didáticos, planos de estudos, questionários,
falas registradas em entrevistas com professores de ciências e supervisores escolares e diários
de bordo de licenciandos e professores formadores que participam do GEPECIEM, grupo que
nos une, nos torna partes de um processo: o ensino de ciências e a formação de professores
em contexto situado.
Esta análise me levou a descrever e situar uma complexa rede de amarras discursivas
que vem tornando o professor potencialmente dependente do livro na execução de seus
planejamentos, na organização do currículo escolar, na sua própria formação e no estudo de
conceitos e confiados a esse recurso didático (quase que exclusivamente). Tal característica
torna a aula de Ciências excessivamente livresca e dependente desse recurso, bem como
expropria o próprio trabalho docente, fato este de que muitas vezes o próprio docente não se
dá conta (GERALDI, 1993; 1994).
O discurso acerca das políticas educacionais curriculares, em relação ao contexto de
Educação Básica (professores e supervisores – espaço escolar), acadêmico (Universidades,
publicações científicas), tecnocrático (gestores e financiadores das políticas) e dos
documentos oficiais que expressam as políticas em si, tem assumido uma perspectiva de
recontextualização conceituada como hibridação (LOPES, 2007). A hibridação é um
movimento reconstrutivo dos discursos que é intrínseca à recontextualização, senão fundante
da mesma. A hibridação pode ser caracterizada como um movimento de múltiplos
significados “nos textos e discursos das políticas de currículo podem produzir deslizamentos
de sentidos que favoreçam a leitura heterogênea e diversificada nos diferentes contextos,
abrindo espaços, inclusive, para ações diversas da ortodoxia globalizante”, nesse sentido
possam ainda favorecer “contextos da prática, ações contestadoras. As ambivalências nas
políticas, entretanto, também favorecem a incorporação de novos sentidos e significados em
discursos anteriormente classificados como ‘alternativos’ e ‘críticos’” (LOPES, 2005, p. 11).
Além dos espaços e tempos discursivos pedagógicos, os discursos oficiais e a mídia,
que tem sido utilizada pelo segmento comercial (as editoras), têm disseminado um discurso
60
educacional recontextualizado a serviço de quem detém e transmite um currículo. É para
combater essa última perspectiva e com base na apropriação e análise da primeira via de
recontextualização que amplio, também neste capítulo, a análise do livro didático e das
políticas educacionais curriculares: como documento, como recurso didático, como política
que tende a ser aprisionante de situações educativas e de contextos formativos.
Uma perspectiva de recontextualização que percebo no discurso educacional, a partir
da investigação, é uma via unidirecional que tende a reproduzir nos discursos pedagógicos a
noção de currículo “a ser seguido” e a reprodução discursiva dos documentos oficiais,
midiáticos e do livro didático. Porém, também posso identificar outras perspectivas de
recontextualização que se (re)enquadram pela via da hibridação, produzindo, por conseguinte,
um discurso cada vez mais híbrido, diverso, recontextualizado, que ao ser olhado em
profundidade se apresenta sob distintas formas: desde crítico e por isso diferenciado e
propositivo de ações, currículos e transformação educacional até discursos ingênuos e
maculados que, se não reproduzem políticas curriculares oficiais, reproduzem mazelas da
formação que estão no mínimo desarticuladas das atuais necessidades educacionais
contemporâneas.
Diferentes perspectivas de recontextualização estão presentes de modo articulado e
independentemente nos documentos oficiais que analisei, bem como nos discursos
educacionais dos sujeitos professores. Isso permite afirmar que decorre um movimento
discursivo que oscila intermitentemente, o que também influencia o tensionamento da questão
no contexto escolar, das políticas e das pesquisas em Educação em Ciências, pois esses
sujeitos estão em interação em diferentes espaços; o que também torna cada vez mais híbridos
os discursos, como também, felizmente, retroalimenta a discussão, numa perspectiva
transformadora.
Essas provocações que proponho nesta introdução do capítulo são os pontos que me
moveram em direção a melhor compreender essa dinâmica que os discursos acerca do
currículo, dos livros, da formação do professor expressam, na minha visão. Ao me defrontar
com a parte empírica e o referencial da área, pude também reconhecer novos e outros sentidos
e significados para a questão da relação do livro com o professor e é nesse tom e por esta
razão que constituí tal capítulo para pretensa discussão do tema com qualidade crítica.
61
2.1 As Políticas Públicas Educacionais e o reforço de um currículo nacional comum
As políticas públicas da educação são instrumentos do Estado para fortalecer linhas e
programas de ação que ora decorrem do diagnóstico socioeducacional, ora nascem como
programas de governo. A institucionalização dos programas de governo e/ou de Estado pela
legislação se dá através da transformação de diagnósticos e programas em políticas públicas.
Em geral tanto as esferas municipal, estadual ou federal se utilizam deste aparato legal de
forma tecnicista para sustentar e aplicar regras e normativas de âmbito geral, com o discurso
que promete garantir acesso e direito de todos à educação pública e gratuita de qualidade,
conforme determinam a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Base da
Educação Nacional (LDBEN) – Lei 9394/96, o que pude encontrar logo no início do Decreto
nº 7.084, de 27 de janeiro de 2010, que dispõe sobre os programas de material didático:
art.1º [...] - Parágrafo único: [...] as ações dos programas de material didático
destinam-se a professores e alunos [...] devendo as escolas participantes garantir o
acesso e a utilização das obras distribuídas, inclusive fora do ambiente escolar. Art.
2º São objetivos dos programas de material didático: - melhoria do processo de
ensino e aprendizagem nas escolas: I – públicas, com a consequente melhoria da
qualidade da educação (BRASIL, 2011, p.1 [grifos nossos]).
No contexto da educação brasileira, as políticas públicas nacionais tendem a ser
determinantes dos processos escolares no dia a dia, seja no modo como as escolas se
organizam em suas estruturas, seja na maneira como se mantêm financeiramente, ou ainda,
nos contratos didático-pedagógicos sala de aula adentro, tendo interferido sobremaneira no
currículo e na prática docente. O discurso oficial e midiático que é oferecido às escolas,
sistemas e, por conseguinte, que chega ao professor, tem sido discutido quanto à tendência ao
aprisionamento dos professores, do modo de ensinar e do currículo, como podemos perceber
no excerto, que segue:
o PNLD tem representado, ao longo de todos esses anos, um importante
instrumento de apoio ao processo de ensino/aprendizagem, ajustando-se,
continuamente, às mudanças e às novas demandas colocadas para atendimento aos
objetivos tanto do ensino fundamental como do ensino médio. Tanto é assim que,
buscando oferecer a alunos e professores as obras didáticas necessárias ao
desenvolvimento do currículo, o PNLD 2011 ampliou a oferta de livros didáticos
[...] (BRASIL, 2011, p.3 [grifos nossos]).
Nessa parte da análise, tomo como interfaces a educação pública e sua organização na
perspectiva das políticas públicas curriculares que norteiam a educação nacional e que
interferem na proposição e reforço da ideia de currículo nacional comum no sentido de
“propor um currículo a ser seguido” tende a aprisionar o ensino. Isso tem se mostrado
especialmente a partir do contexto situado da área de Ciências – Ensino Fundamental, no
62
âmbito do PNLD. Por vezes, o professor deixa de participar da produção do currículo escolar
efetivamente, abrindo mão da sua condição mais essencial: a de ser ator no processo.
A educação pública é financiada por recursos de ordem nacional, estadual e
municipalN, mas, no que se refere a este tema, o recurso financeiro que mais influencia a
educação tem sido o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB),
que passou de um recurso exclusivo do Ensino Fundamental para um recurso que a partir de
2006 financia toda a educação básica. Os recursos são calculados com base no censo escolar
do ano anterior e devem ser utilizados em no mínimo 60% com a valorização docente. Este
recurso financeiro é parte da política nacional de financiamento da educação, mas não é o
único e tampouco é suficiente para manter professores valorizados, bem como escolas com
material e estrutura física adequada a um sonhado ensino de qualidade. Existe, porém, uma
mídia que atua sob este recurso de modo a dificultar ainda mais e aprisionar o sistema em
função de um discurso sobre o recurso que pretende, por esta parte, “salvar a educação
brasileira”.
De outro lugar, a leitura acerca das políticas públicas leva-me a refletir sobre os
processos de mensuração da qualidade da educação na perspectiva da melhoria dos processos
de ensino. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), que é calculado com
base nos resultados de avaliações de língua portuguesa e matemática (Prova Brasil) e nos
dados de evasão, reprovação e repetência de alunos de 1º e 9º anos do Ensino Fundamental,
muitas vezes é percebido pelos professores e supervisores de ensino como uma imposição à
mudança, inclusive curricular. Baseados nessa incompreensão, adotam modelos e tomam
decisões, por vezes, pouco refletidas. A proposta de avaliar a qualidade do ensino não deixa
de ser pertinente e necessária, mas, analisando o programa, emergem implicações e sérios
questionamentos da ordem: avaliar apenas língua portuguesa e matemática, por quê?
Passamos décadas da educação tentando propor uma equidade entre os componentes
curriculares e, quando avaliamos a educação em caráter nacional, desejamos saber se nossos
alunos sabem ler, escrever e fazer contas? A avaliação, análise e monitoramento com metas
da qualidade da educação através do IDEB é um dos instrumentos da política nacional para
melhoria da qualidade do ensino e me reporto ao mesmo para qualificar a afirmação de que
não se pode avaliar com qualidade a educação de conhecimentos disciplinares sem compor no
mínimo os conjuntos de áreas do conhecimento, como, por exemplo: ciências da natureza,
códigos e linguagens, ciências humanas, matemática e propor, por outras vias, o
63
desenvolvimento da educação em ciências; existe, pois, no mínimo um certo descompasso
entre diretrizes e propósitos, senão outros.
Vinculada ao programa de avaliação da qualidade da Educação Básica, parece-me
estar implícita a noção de currículo mínimo nacional comum que se expressa pelo discurso do
Estado (ex: site do Ministério da Educação (MEC)), através de cartilhas e treinamentos para
professores, livros de instrumentação, programas de aceleração da aprendizagem e de
correção de fluxo (distorção idade-série), campanhas de mídia e programas de reforço escolar
para melhoria dos índices, entre outras medidas.
Ainda que a base nacional comum e os PCN não instituam conteúdos mínimos
obrigatórios e que a noção de currículo nacional comum traga consigo ‘certa determinação’
ligada aos programas de distribuição gratuita de materiais didáticos, como por exemplo o
PNLD, é importante refletir que o compromisso da escola é, pois, disponibilizar o acesso
pedagógico a conteúdos disciplinares e conceitos essenciais de cada campo/área do
conhecimento, possibilitando apropriação da cultura científica, entre outras, sem
supervalorizações, nem tampouco a pretensão de substituição de uma cultura pela outra
(LOPES; 1999, YOUNG, 2007; CHAVES, 2007).
Conforme Tura (2008, p. 140), existe “um Estado-avaliador que se apoia em um corpo
regulatório que, no âmbito do ensino fundamental e do ensino médio da educação pretende
promover” uma certa competição, notada mais claramente quando se implantam as avaliações
externas, que pretendem responsabilizar professores e gestores escolares pelos resultados. E a
autora segue, corroborando o que já tenho afirmado nesta análise:
assim, contraditoriamente, se tem imputado às unidades escolares a autonomia para
alcançar metas propostas por organismos externos ao ambiente pedagógico, dando
curso a um caráter homogeneizador da educação escolar pela imposição de uma
padronização das práticas escolares, a despeito do propalado discurso de
atendimento a peculiaridades locais (TURA, 2008, p. 140).
No âmbito deste trabalho, a atenção é direcionada para o professor e os seus coletivos
organizados, no sentido de como eles cumprem seu papel social, articuladamente aos
programas de formação inicial e continuada, no sentido de se contraporem a essa tendência à
padronização linear, que tende a seguir um currículo já pré-determinado. O tempo todo
parecemos avançar, mas voltamos e retrocedemos nas questões mais centrais da educação,
tais como: identidade da proposta pedagógica da escola, planos de estudos de acordo com a
64
realidade local e regional dos estudantes, currículo pleno e sempre em reconstrução. Isto não é
incompatível com a ideia de flexibilização curricular e nem com a necessidade de termos
claro que o papel da escola é, sim, ensinar determinados conteúdos que facilitem a
compreensão de mundo através de linguagens, códigos e tecnologias de diversas áreas do
conhecimento. As raízes podem estar no aprisionamento às listas de “conteúdos a serem
seguidas”, aos livros didáticos, vistos como necessários e determinantes do currículo e do
ensino.
Estas questões/dimensões têm reproduzido um discurso que traz novamente à tona a
ideia dos currículos mínimos, como sendo aqueles exigidos nas diretrizes curriculares ou
matrizes de referências para avaliação do IDEB. Nesse sentido, os livros didáticos
recontextualizam essa noção quando expressam conteúdos-currículos ditos de acordo com os
PCN para cada área, utilizados para reforçar o discurso vigente. Tura (2008, p. 141) afirma
que, durante a produção dos PCN no Brasil, “o que estava em curso era a produção de um
‘currículo nacional’, apesar da afirmação - no texto introdutório [do documento] – da não
obrigatoriedade da adoção desses parâmetros”. A autora também reitera que: “assim, na
atualidade, as questões curriculares tomaram dimensões mais complexas” e o faz com base
em Lopes (2004), chamando a atenção para o discurso de vários autores que já apontam “a
centralidade do currículo nas políticas educacionais no mundo globalizado” (TURA, 2008, p.
141).
Estas marcas ou demarcações estão visíveis nos documentos oficiais que norteiam, por
exemplo, a escolha dos livros didáticos da área de Ciências, como fica claro na ficha de
avaliação dos livros da área contida no guia de escola do PNLD, em que o professor é levado
a crer que o livro que tem a cor mais intensa está em maior acordo com os PCN, Diretrizes
Curriculares Nacionais (DCN), LDBEN, ou seja, influencia sobremaneira na escolha e na
alocação da referência de que atendendo às leis é bom. O que está melhor clarificado no
próprio texto do documento:
[...] ficha de avaliação: - cumprimento das normas oficiais: Respeito à legislação, às
diretrizes e às normas oficiais relativas ao Ensino Fundamental: o manual do
professor relaciona a proposta didático-pedagógica da coleção aos principais
documentos públicos nacionais que orientam o ensino fundamental no que diz
respeito ao ensino de Ciências? (BRASIL, 2010-a, p. 17).
Acredito que essas afirmações tomam a forma e tamanho que tenho apostado, tendo
em vista o contexto educacional brasileiro e em especial o que pesquisei, em que a maioria
dos professores com formação precária e/ou inadequada é levada à escolha dos livros
65
didáticos de modo pouco informado e sem preparo para tal processo; por outro lado, como os
resultados dessa tese confirmam mais adiante, os discursos educacionais sobre as
políticas/documentos curriculares são tidos, em geral, não como diretrizes e sim como um tipo
de ordenamento a ser seguido sem reflexão. Esses processos, que retomo, são deflagrados, em
grande parte, por conta da falta de uma formação inicial e continuada professores. Para além
de minhas próprias observações que trago como professor de escola pública por mais de 10
anos, tenho acompanhado esta questão como pesquisador desde 2002, verificando que não são
apenas suposições.
Se tomo o mesmo enfoque - examinar o discurso acerca da melhoria da qualidade da
educação através das políticas públicas nacionais de educação e a perspectiva de avaliação
desta “suposta qualidade”-, consigo apontar mais uma nuance desse processo que acentua os
efeitos da política pública na instrumentação para o ensino e seu currículo, especialmente
através da distribuição gratuita, via Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE), de livros didáticos no Brasil através do PNLD e demais programas de distribuição
do livro, notoriamente o ligado à Alfabetização, ao Ensino Médio, à Educação de Jovens e
Adultos e os que têm tradução para a Educação especial, como o Braile.
O PNLD é a maior política pública de educação em termos de aplicação de recursos
financeiros no Brasil, “em 2010, o governo federal investiu R$1.077.805.377,28 na compra,
avaliação e distribuição dos livros didáticos do PNLD 2011, que foram direcionados a toda a
educação básica” (p. 4). Distribuiu mais de 105 milhões de livros para o Ensino Fundamental
(105.722.049 livros), totalizando um investimento de R$ R$893.003.499,76, “ao todo [para
toda educação básica], foram adquiridos 137.556.962 livros para atender a 29.445.304
alunos” (p.4). Como está em franca expansão, o Programa de Distribuição de Material
Didático foi remodelado em 2009 e 2010 e agora tende a ser expandido para todos os níveis
de ensino da Educação Básica, devendo chegar em 2012 em sua plena universalização, desde
classes de educação infantil com cartilhas, alfabetização, 1º ao 5º ano e 6º ao 9º ano do EF,
Educação de Jovens e Adultos e Ensino Médio (BRASIL, 2011).
O livro didático no Brasil tem sua trajetória iniciada desde 1929, com a criação do
Instituto Nacional do Livro (INL), e 1938, quando Anísio Teixeira, através do Decreto-Lei nº
1.006, cria a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD). Esta história está imbricada com
o financiamento da educação por fundos internacionais e por políticas públicas de educação
como os programas já citados, pois em 1966 o Brasil, através do MEC, já faz acordo de
66
cooperação com a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional
(USAID). Este acordo permitiu a criação da Comissão do Livro Técnico e Livro Didático
(COLTED), “com o objetivo de coordenar as ações referentes à produção, edição e
distribuição do livro didático” (BRASIL, 2011, p. 4).
Além disso, o financiamento da educação através de programas de apoio didático tem
sempre caráter de instrumentar o professor para um determinado ensino de determinados
conteúdos, conduzidos pela estratégia didática ditada nos livros do PNLD. Outra questão de
fundo é que os livros colocados à disposição para escolha dos professores, depois de
classificados por uma equipe de consultores ad hoc do MEC, em conjunto com grupos de
Universidades Brasileiras, não têm sido adquiridos em quantidade suficiente para que supram
os pedidos ou opções de escolha dos professores. Em síntese, o que ocorre é que são
comprados todos os livros produzidos pelas editoras brasileiras, e por isso, muitas vezes os
livros que chegam às escolas, ainda que não os escolhidos, são os que ainda são disponíveis
ou que foram possíveis de serem produzidos, uma vez que não são muitas coleções/editoras
que oferecem o material ao MEC.
Muitos outros dilemas estão em xeque, por exemplo, a própria quantidade de coleções
avaliadas e/ou selecionadas, uma vez que a produção de material didático no Brasil não
consegue atender com qualidade toda demanda, nem sequer temos editoras capazes de
produzir em quantidade suficiente tantos livros. Num país em que o governo se orgulha de
pronunciar que possui o maior programa de distribuição gratuita de livros, penso que seja no
mínimo importante discutir, em perspectiva da qualidade, os entraves de tal programa.
Isso tudo situa a importância de melhor compreender a relação entre professor e ideia
de currículo nacional comum, que está posta, por exemplo, pela avaliação da qualidade via
IDEB; expressa nos documentos de referência, sejam eles PCN (no Ensino Fundamental), nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (DCN - EF) de cada área e nível
da educação básica no Brasil e articulada, neste modelo de oferta do ensino, pelo livro e
cobrança de seu conteúdo pelas avaliações propostas pelas políticas públicas de educação em
prol da suposta melhoria da qualidade do ensino. Desse modo, é importante refletir sobre a
tendência de que tanto escola e professores, como o currículo em si, ficam presos e amarrados
no arcabouço da ideia, da noção/esboço de um currículo nacional comum, deixando de lado
muitas vezes seus propósitos, meios e fins, que são sonhados em suas propostas pedagógicas e
deveriam estar contempladas em seus planos de ensino e trabalho.
67
Políticas Públicas novas e amplas têm emergido nos três últimos anos, tentando
agrupar as questões centrais da Educação, tais como ensino, formação e financiamento. Entre
elas estão: o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que surgiu para balizar as
iniciativas do Estado em toda sua extensão nacional como um “compromisso de todos pela
educação”, com fins específicos de melhorar a qualidade da educação pública; o Plano de
Ações Articuladas (PAR), que visa financiar a educação sob quatro enfoques: o pedagógico e
a formação dos professores, a estrutura física das escolas, os materiais de apoio, e o corpo
geral e administrativo da estrutura organizacional das escolas; o Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM), que em sua organização, estrutura e modelo de avaliação, tende a apostar
num modelo mais adequado de contextualização dos conteúdos escolares, passando a exigilos em nível de compreensão e por área de conhecimento, o que parece contribuir para
superação da fragmentação do conhecimento escolar; e o Plano Nacional da Educação (PNE),
que tem como grande desafio projetar o desenvolvimento da educação a longo prazo, não
apenas no que se refere a financiamento, mas também na prospecção de uma melhoria
qualitativa social da educação. Em nenhum momento penso que o desejo de escolas e gestores
seja uma educação sem recursos e financiamento do Estado, mas fazer educação sem
autonomia parece um contrassenso.
As políticas públicas e o PDE precisam de estratégias que possam fazer a escuta dos
professores brasileiros, de suas escolas e comunidades, a fim de que discursos sejam
transformados em práticas, sob pena de estarmos reconstruindo grandes dilemas da história da
educação nacional. Num momento em que surgem tantas pesquisas e resultados na área da
Educação de um lado, de outro todos estes parecem estar sendo desrespeitados, o que cria um
paradoxo.
O currículo e os conteúdos de Ciências/Biologia não ficam neutros e, fora desta
problemática, estão submetidos a estes mesmos dilemas/entraves como qualquer outra
disciplina e precisam de olhares atentos da área específica e da área de ensino desta. Assim,
vale ressaltar que urgem pesquisas acerca das relações entre as políticas públicas e amarrações
governamentais, entre outras, bem como acerca do currículo e práticas do dia a dia escolar,
analisando seus reflexos nos processos de ensino e aprendizagem. Neste trabalho, o olhar é
direcionado, particularmente, para o ensino de Ciências. Tanto a escuta dos professores, como
o uso do conhecimento que a tradição da área tem como contribuição podem reverter num
processo de reorganização de políticas e diretrizes para a educação brasileira, em contexto
local e geral.
68
Nesse contexto de tantas (im)posições, pensar o currículo (organização curricular)
como uma estratégia de aprendizagem (MALDANER, 2006), como identidade (SILVA,
2001-a; 2001-b), como campo de resistência (CORAZZA, 2010) e como espaço de
recontextualização de discursos pedagógicos que possam melhor apreender em práticas os
conceitos que desejamos ensinar em Ciências (LOPES, 2005) torna-se um objeto posto à
mesa de discussão como um grande desafio que pode tensionar a relação entre o livro didático
e o professor de Ciências, de modo a tender para busca de proposições de enfrentamento a
essa dilemática e contundente relação (de aprisionamento), que afirmo ser perversa. A
literatura da área de ensino de Ciências tem apontado alguns, senão vários, caminhos, dentre
eles, um está em torno da necessidade de aproximar os resultados de pesquisa e inovação
curricular na área à prática dos professores através dos processos de formação, especialmente
em
grupos,
ou
seja,
nos
coletivos
(CARVALHO;
GIL-PÉREZ,
2000;
ROSA;
SCHNETLZER, 2003; IMBERNÓN, 2010).
Uma das vias que tem assumido destaque na literatura pertinente é a possibilidade de
integração curricular4 como saída possível para um deslocamento da ideia de currículo único
(mínimo), ou copiado do livro, para uma direção que aposta em compreensões mais singulares
e até mesmo locais, através de diálogos intermitentes que atravessam pesquisa, formação,
escola e Universidade, mas se pautam especialmente, segundo Lopes (2007), na prática diária
que recontextualiza discursos educacionais a partir de híbridos no âmbito educacional como
forma de perceber em que medida as políticas interagem, absorvem ou são subvertidas pela
ação; noutras palavras, é uma via que permite uma compreensão teórica, histórica, mas
também prática.
Nessa dinâmica de recontextualização, atores tornam-se autores de um currículo,
porque são atores sociais da educação, da transformação de políticas, por isso, também, de
práticas, tornam-se atores, tomando em suas mãos sua própria formação e desenvolvimento
profissional. A via da integração curricular, defendida por Lopes (2007), argumenta em defesa
de propostas que teriam seu nascedouro nos próprios contextos e discursos escolares, que ao
se reconhecerem e compreenderem suas práticas em perspectiva de organização poderia
articular um currículo, nessa perspectiva. Esse currículo integrado, resguardadas as
compreensões da área de currículo no Brasil e sua trajetória, poderia ser qualificado, nas
4
No contexto da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS, temos vivenciado uma proposta de caráter
interdisciplinar e experimental no Curso de Licenciatura em Ciências da Natureza, resgatando a discussão entre a
Biologia, Física e Química para formar o professor do Ensino Fundamental.
69
palavras de Lopes (2007, p. 39), como: “forma de organização do conhecimento escolar capaz
de garantir a melhoria do processo de ensino-aprendizagem e/ou o estabelecimento de
relações menos assimétricas entre os saberes e sujeitos no currículo”.
Os discursos educacionais têm sido, a meu ver, aprisionados por amarras que são das
próprias políticas públicas curriculares, todavia outros entraves têm aprisionado ou demarcado
mais fortemente sua posição entre os discursos educacionais, especialmente no tocante aos
professores: sua formação continuada, que, em geral, é cerceada pelos governos, carreira
docente que não dá tempo e sequer espaço para pesquisa, possibilidade de reorganização
curricular que, em geral, é desarticulada de sua formação e comandada por um aparato
técnico-pedagógico que os obriga a aderir a uma ou outra proposta já existente em detrimento
de organizar outra mais contingencial.
Nesse sentido, deflagrar como essas ações/dimensões têm ocorrido é o papel dessa
discussão, senão como meio de diagnosticar e enfrentar problemas decorrentes apreendidos
num dado contexto, também como forma de ampliar compreensões que possam fundamentar
programas de formação continuada de professores de Ciências e, por que não, licenciaturas da
área. A seguir, para aprofundar essas (des)construções e melhor compreender uma via
discursiva que penso ser importante no contexto dessa discussão que proponho nessa tese,
apresento e discuto evidências de amarras discursivas em relação ao PNLD e ao Livro
didático de Ciências.
2.2 As políticas curriculares no contexto do discurso educacional do PNLD ao professor:
a via do livro didático de Ciências
Compreender o discurso educacional acerca das políticas curriculares, visitando
documentos e contextos, é uma tarefa que sempre denota exaustão e muitas vezes pode
incorrer em erros ou enganos. Nesta parte da análise empreendi esforços na tentativa de
perceber como os discursos se tornam híbridos, recorrentes, resistentes, resilientes e
transferem-se das políticas curriculares em direção ao professor, especialmente pela via do
livro didático.
70
2.2.1 Situando a análise do discurso educacional acerca das políticas curriculares em
contexto
Analisar políticas públicas de educação é sempre olhar para as políticas curriculares,
pois o currículo sempre é o objeto em disputa. Em seu ordenamento, objetivos, ementário, é
sempre possível perceber uma forma de poder e empoderamento pela via do conhecimento. A
seleção dos conteúdos, a metodologia-métrica e a avaliação é determinante de que tipo de
conhecimentos/conceitos a população terá acesso e poderá/deverá aprender. O currículo
sempre traz consigo as questões: o quê?, por quê?, para quê?, para quem? e como ensinar?
Envolve-se também em/com outras questões de fundo, tais como: a propósito de quê e de
quem? Quem decide e qual conhecimento um currículo expressa? O que se deseja com
determinados conteúdos? Nesse sentido, podemos inferir que um currículo nunca é neutro, ele
é ideológico. Se é currículo, é político; se é política, é o currículo que está em disputa.
O discurso educacional acerca das políticas curriculares tem sido tema de pesquisa de
inúmeros trabalhos que voltam olhares e vozes a um determinado tempo-espaço de
investigação: o campo do currículo e suas representações culturais. Partindo da ideia de
recontextualização pedagógica de discursos e da hibridação dos discursos educacionais no
contexto das políticas [de integração] curriculares abordadas por Lopes (2007; 2008), e dos
estudos acerca do livro didático e ensino de Ciências de Fracalanza (2006-b), Fracalanza e
Megid Neto (2003) e Amaral (2006), bem como de Cachapuz et all. (2005) e sobre o
currículo em ação no e pelo livro didático de Geraldi (1993; 1994), articulo nesta parte uma
análise de alguns elementos que estão presentes nos discursos educacionais e representam
marcas das políticas curriculares nestes discursos, de modo a constituírem significados,
representações, práticas e currículos, sendo paulatinamente repetidos em diferentes contextos,
adquirindo diferentes sentidos e produzindo interpretações e outros discursos a partir da
hibridação em diferentes contextos educacionais.
Para realizar a análise dos discursos curriculares, parti dos contextos expressos: no
referencial teórico; em entrevistas com Professores de Ciências e Supervisores de Escolas
Públicas; em gravações e transcrições de encontros destes professores em grupo de estudos
acerca do Ensino de Ciências; no livro de atas dos encontros dos professores em seu grupo de
planejamento escolar; no livro didático de Ciências adotado pelo grupo no PNLD 2010-2011:
Gewandsznajder, Fernando. Ciências: a vida na Terra. 3. ed. São Paulo: Editora Ática, 2007;
no Guia de Livros Didáticos PNLD 2011 – Volume de Ciências – Séries Finais do Ensino
71
Fundamental (BRASIL, 2010-a); nos Documentos que expressam as Diretrizes do PNLD,
contidas no Decreto Nº 7.0084/2010 -Casa Civil (BRASIL, 2010-c) e na Resolução Nº
60/2009 - FNDE, que dispõe sobre o PNLD na Educação Básica (BRASIL, 2009); - dos PCN
para o ensino de Ciências, volume 4 – Ciências Naturais (BRASIL, 2001). No seu conjunto,
acredito que, a partir da análise de tais discursos, posso apreender em boa medida como a
política curricular brasileira se expressa em diferentes contextos educacionais.
O discurso circunscrito no Decreto Nº 7.0084/2010 - Casa Civil - e na Resolução Nº
60/2009 - FNDE - institui as diretrizes do PNLD. Neste sentido são os documentos que
contêm a política educacional, instituindo o mecanismo pelo qual o discurso científico (em
termos de conteúdos escolares), pedagógico e, portanto, curricular perpassa a educação básica
brasileira: o livro didático. Essa política é instituída e instituinte de discursos globais e
nacionais, os quais foram aqui tomados como panos de fundo para análise. Procedi à leitura
dos documentos para perceber de que ordem eram tais discursos e como eles contêm/impõem
determinadas marcas que selecionei para análise. Nesses documentos o livro didático é
instituído, e através de tais políticas é distribuído amplamente; é por elas que a educação é
substancialmente financiada num montante previsto para o PNLD 2010/2011 de
R$880.263.266,15 (BRASIL, 2011). Vale a pena reforçar que esta política é uma diretriz
internacional em termos de condição, sem a qual o Brasil perde os financiamentos
internacionais do BID e Banco Mundial (BIRD), por exemplo. Utilizei-me da análise
propriamente dita dos PCN ao discurso dos professores [passando pelo livro didático, o guia
do PNLD], pois são espaços - contextos - em que as políticas se fazem representar mais
deliberadamente.
Para tecer uma análise da dinâmica com que o discurso educacional vai se
impregnando das políticas curriculares e o modo como esse discurso se torna híbrido e por
vezes, unidirecional, unificado, generalizador e único, valemo-nos de marcações em
fragmentos que transformei em excertos dos documentos analisados e de fragmentos dos
diálogos de entrevistas com professores de Ciências. Através dessa análise, foi possível
pontuar, através do exame de categorias, que emergiram do contexto e que elegi e delimitei
como sendo necessárias de contextualização e teorização, de modo a facilitar a compreensão
dos discursos acerca das políticas curriculares, pois são como arranjos que no seu bojo nos
permitem perceber o modo como este discurso é transferido por recontextualizações híbridas
no campo educacional. As categorias que utilizei para fazer as marcações discursivas foram:
Parâmetros Curriculares Nacionais, como modo de justificação para sustentar a ideia de um
72
currículo único; as relações de Ciência e Tecnologia, como concepções que interferem
diretamente nas relações entre ensino-Ciências-sociedade-cidadania; e a Experimentação,
como categoria que representa um modelo de ensino dito indispensável à aprendizagem em
Ciências. A partir dessas categorias, pude vislumbrar de modo mais pontual como o discurso
educacional (e o ensino de Ciências) incorpora e recontextualiza as políticas curriculares.
Não há como separar aspectos da relação entre Ciência e Tecnologia da
Experimentação, quando se trata do ensino de Ciências, e também não há como dissociar o
modo como estas são vistas no contexto educacional do discurso oficial proposto nos
Parâmetros Curriculares Nacionais da área de Ciências Naturais para o Ensino Fundamental
no Brasil, se o objetivo é entender a trama-rede do discurso educacional acerca das políticas
curriculares, de modo que é nessa trama que a tessitura discursiva pode ser esclarecida,
desvelada, apropriada, discursada, proferida, contestada. É importante reconhecer, porém, que
esta é uma via de análise, um caminho que possibilita explorar a discussão e não a única, a
melhor ou a correta forma/modo de fazer uma apreensão da questão norteadora, seja ela:
identificar e compreender como os modos de transmissão das políticas curriculares tomam
forma através de diferentes categorias contextualizadas no âmbito do ensino de Ciências, no
discurso educacional?
2.2.2 A dinâmica de atravessamento das políticas curriculares no discurso educacional
O discurso educacional é uma produção histórica e cultural, nesse sentido apreende
contextos, adquire força e vai sendo tecido na medida em que é (re)produzido e
(re)contextualizado. Quando incorpora as políticas curriculares, o discurso educacional vai
contextualizando e produzindo currículos, interferindo em sua constituição e impondo ritmos,
conceitos e amarras pela via do discurso que vai atravessando os contextos educacionais de
modo muito peculiar e dinâmico. Um modo de tornar o contexto educacional-pedagógico
mais crítico é analisar este percurso.
O discurso dos autores e editoras utiliza-se dos Parâmetros Curriculares Nacionais
para justificar suas opções metodológicas e pressupostos teóricos que embasam suas pretensas
propostas pedagógicas para o ensino. Em nome de seguir “os objetivos e conteúdos do ensino
de ciências, englobando ainda estratégias de trabalhos, a proposta dos PCNs”
(GEWANDSZNAJDER, 2006, p. 3 [manual do professor]), também alegam que esta proposta
73
deve ser amplamente discutida por todos os que tenham acesso à mesma, com vistas a
enriquecer o processo de ensino e aprendizagem, o que também pode ser assumido como uma
forma de transportar a todos o discurso da política educacional curricular, de modo que se
torne mais tacitamente aceita e não discutida ou até mesmo refutada, por exemplo.
À medida que a política é dissipada no e através do discurso educacional que é feito
de muitas vozes, sejam elas: dos editores, autores de livros, editoras, livros, professores,
autores e consultores das políticas, alunos, diretores, a política vai assumindo forma, sentidos,
significados e propósitos que se disfarçam no livro didático através de suas propostas e se
realinham no discurso dos professores, ao afirmarem que: “[o currículo] É elaborado por
todos os professores da área em encontro com estudos a partir dos PCNs (Professor 1, 2010);
Estadual: discutido com os professores após receber orientações da CRE e SEC. Particular:
elaborado pelos professores da rede após as leituras da LDB e PCNs (Professor 4, 2010).
O discurso educacional no campo escolar vai reforçando uma concepção de currículo,
de programa e conteúdo que deve ser construído por alguém fora do contexto escolar de modo
tecnocrático, sobremaneira governos, consultores, editoras, autores de livros didáticos, e,
desse modo, sedimenta-se um discurso-ação de aceitação sem reflexão acerca do tema, como
é possível destacar em outros excertos extraídos de questionário de pesquisa, em que os
professores se referem à determinação do currículo escolar do seguinte modo: “o MEC, de
acordo com os PCNs” (Professor 1, 2010); “quem: o MEC (conforme Parâmetros
Curriculares Nacionais), o quê: conteúdos a serem trabalhados durante o ano” (Professor 8,
2010); “o MEC, de acordo com os Parâmetros Curriculares, é que determina os conteúdos a
serem trabalhados por turma” (Professor 9, 2010).
A ideia de orientação curricular, construída pelo documento dos PCN de Ciências, em
sua apresentação ao professor, expressa que: “esperamos que os Parâmetros [grifos do autor]
sirvam de apoio às discussões e ao desenvolvimento do projeto educativo de sua escola, à
reflexão sobre a prática pedagógica” (BRASIL, 2001, p.6 [grifos nossos]), o que configura
realmente um universo distinto do adotado pelo discurso corrente entre professores e expresso
nos livros didáticos analisados. Essa outra perspectiva que é assumida nos discursos
educacionais, como única forma/modelo a partir do qual devem ser extraídos, especialmente,
os conteúdos, bem como propostas, pressupostos teóricos, estratégias de trabalho, traz
consigo uma ideia de reprodução cultural (LOPES, 2007) do currículo, que enfatiza uma visão
tradicional de educação.
74
No guia do PNLD 2011 da área de Ciências, na parte da resenha de avaliação da
Coleção Ciências de Fernando Gewandsznajder, da qual o Livro analisado faz parte, encontrei
a seguinte passagem: “apresenta uma discussão sobre as diretrizes para o ensino de Ciências
no País [PCN] e propõe reflexões” (BRASIL, 2010-a, p. 32), corroborando a noção de que o
livro é bom por seguir as diretrizes do Ensino Fundamental para área de Ciências,
notadamente faz referência aos PCN da área em questão. Essa marca discursiva vai sendo
assumida majoritariamente nos discursos educacionais acerca das políticas curriculares, pois,
ao entrevistar professoras supervisoras da rede municipal sobre o que elas levaram em conta
para escolher o livro didático, elas declararam: “- mas o que eles levaram em conta?
(Supervisora 1, 2010): “o conteúdo...” (Supervisora 3, 2010); “mesmo trazendo a opinião...
é, eu senti isso, porque assim: quando a gente colocou ali pra ser levado em conta... os
referenciais curriculares” (Supervisora 2, 2010). Importante inferir que a Supervisora 2 é
uma professora que também atua na rede estadual e então utiliza-se da linguagem atualizada –
contextualizada na perspectiva da vivência dela na rede em que mais atuou, ou seja, o Estado
do Rio Grande do Sul, cujos Referenciais Curriculares propostos para 2010 também
consideram e recontextualizam a política nacional que está expressa nos PCN, talvez em outra
perspectiva, mas muito próxima da nacional.
As visões deformadas da Ciência e Tecnologia, encontradas nos discursos
educacionais no seu modo de abordar a temática, caracterizam-se por marcas que atravessam
os diferentes discursos de modo muito peculiar, sendo similares às visões/concepções.
As “diferentes propostas reconhecem hoje que os mais variados valores humanos não
são alheios ao aprendizado científico e que a Ciência deve ser apreendida em suas relações
com a Tecnologia” (BRASIL, 2001, p. 21). Essa compreensão inicial, contida nos PCN de
Ciências, é, de certo modo, persuadida pelo discurso global ao ser incorporada na seleção de
conteúdos, apontamentos, deixando claro que o que determina os critérios de seleção são os
aportes entre a reconhecida complexidade das Ciências Naturais e da Tecnologia e a
necessidade de compreensão destas com vistas a ampliar os modos de aprendizagem dos
alunos e a vivência e cidadania destes nos seus contextos formativos.
Com este enfoque, os documentos oficiais acabam por emitir uma concepção de
relação Ciência-Tencologia-Sociedade (CTS) por vezes equivocada, conferindo uma
perspectiva em que “a maioria dos textos escolares de ciências reduzem-se à enumeração de
algumas aplicações dos conhecimentos científicos, caindo assim numa exaltação simplista de
75
ciência como fator absoluto do progresso” (CACHAPUZ et all., 2005, p. 43). E este discurso
vai sendo reforçado dos PCN ao livro didático e desse passa ao discurso educacional no
campo escolar, ou seja, aos professores.
A perspectiva que percebi enunciada no livro didático de Ciências como sendo a
“influência cada vez maior da Ciência e Tecnologia em nossas vidas e a rapidez com que
surgem as inovações nesses campos vêm despertando um intenso debate acerca do ensino de
ciências” (GEWANDSZNAJDER, 2006, p. 3 [Manual do Professor]), implica perspectiva
simplista de que, à medida que os avanços da Ciência se consolidam ou modificam a
realidade, devem ser considerados como uma mera aplicação de conceitos. É um dos entraves
do tratamento das relações CTS, e que nem de longe representam correlações do tipo CiênciaTecnologia-Sociedade-Ambiente (CTSA), que incluem as questões ligadas e que perpassam a
questão ambiental (CACHAPUZ et all., 2005).
No livro adotado pelos professores para o ano de 2011(escolhido em 2010),
encontramos marcas de um discurso que recontextualiza as afirmações/posições dos PCN, ao
tratar da questão Ciência e Tecnologia em notas, especialmente de modo a afirmar, em uma
das passagens, por exemplo, que o Instituto Butantã é um exemplo de ciência aplicada como
tecnologia: “é o maior produtor de soros do mundo e o maior fabricantes de vacina do Brasil
[...] desenvolve ainda várias pesquisas” (p. 141), discurso que indica em boa medida a
centralidade da apresentação do instituto de Ciência, através de sua capacidade de produção
de Tecnologia, e continua fazendo uma simplificação do local de pesquisa como “uma atração
turística muito apreciada” (GEWANDSZNAJDER, 2006, p. 141), ao se referir às coleções
vivas.
Além do livro, também pode ser percebido no discurso educacional circunscrito no
Manual do Professor que a concepção de Tecnologia como aplicação da ciência em diversos
contextos, e como uso em benefício da humanidade, articulando a noção de natureza como
domínio humano, fica marcada, quando expressa que:
os avanços científicos nos propiciam um domínio cada vez maior sobre a natureza.
Somos capazes de modificar o código genético de seres vivos, de erradicar doenças
[...], não podemos esquecer, porém, que o conhecimento científico também foi
usado para produzir, por exemplo, armas nucleares (GEWANDSZNAJDER, 2006,
p. 3 [Manual do Professor]),
e também marca a ciência como causadora de destruição em massa através de seu
desenvolvimento, ou seja, pela tecnologia como extensão da ciência. Aqui percebo, mais uma
76
vez, que o discurso educacional não tem conseguido vislumbrar essas relações como distintas
e complementares.
Cachapuz et all. (2005) adverte que as deformações nas visões de Ciência e
Tecnologia (CT) são entraves que temos que assumir, desvelar e superar para que haja uma
renovação na educação científica. Um dos aspectos que reforçam essa ideia é a perspectiva
que Cachapuz et all. (2005) assume ao separar a Tecnologia da Ciência, pois em suas histórias
há correlações que nos remetem a deixar de enxergar a Tecnologia como simples aplicação da
Ciência. Este entendimento clarifica que a tecnologia não é a pura e simples aplicação de
conhecimentos científicos (p. 41), pois a interdependência da tecnologia se dá à medida que
ela vai se aliando às cadeias produtivas e industriais. Elas, no entanto, não estão
desvinculadas, o que as extrapola, pois uma não é a aplicação de outra. Neste sentido, o
discurso dos PCN têm um alinhamento a essa crítica, de modo a expressar: “o
desenvolvimento da tecnologia de produção industrial deu margem a desenvolvimentos
científicos [...] da mesma forma, as tecnologias de produção também se apropriaram de
descobertas científicas” o que contribui para a associação de um discurso que se
“retroalimenta” em favor de uma via de “dupla mão de direção”, compreendendo ambas como
contextualizações diversas, complexas, humanas, passíveis de interesses sociais, econômicos,
por vezes hegemônicos (BRASIL, 2001, p. 28).
A respeito da Tecnologia no discurso das políticas curriculares, Lopes (2008) tem
expressado que essa marca tem raízes mais profundas do que aparentemente aparecem
expressas no livro, nos PCN, nos guias e no próprio discurso pedagógico do professor. Nesse
sentido, alerta que as marcas vão além do discurso e têm determinado práticas formativas que
se aliam a contextos de mercado, de regulação e de controle das massas, chamando atenção
para a necessidade atual de formar para empregabilidade e como a isso se alia o discurso da
tecnologia, ou seja, temos que formar para o uso da tecnologia, para compreensão de suas
aplicações. Assim, o discurso vai se utilizando da ideia equivocada de que a tecnologia é mera
aplicação da ciência, e isso se justifica e aparece fortemente em currículos, por exemplo.
“Esta empregabilidade ressalta algo que o indivíduo deva possuir para poder formar-se e
reciclar-se, de acordo com as contingências tecnológicas, de organização e do mercado”
(LOPES, 2008, p.121). Esta perspectiva estende-se desde uma compreensão das questões de
aplicações tecnológicas como parte dos conhecimentos escolares e até mesmo a aplicações na
educação, como a própria educação tecnológica, a distância, com recursos midiáticos, por
exemplo.
77
Nos excertos do discurso educacional encerrados abaixo, estão situados indícios desta
perspectiva, enunciando que a tecnologia é vista também como recursos de informação e
comunicação, sempre como necessária e, portanto, deixando claro que o professor deve se
apropriar da mesma e utilizá-la, muitas vezes não sendo pensada a necessária formação
docente neste sentido: “... hoje com a tecnologia e os recursos disponíveis, eu acho que o
professor poderia dar um pouco mais de si...Tem, tem laboratório... Nas duas têm laboratório
de informática... onde tem horário para os alunos... Tem acesso à Internet. E tem, vamos
dizer... [os professores] Eles têm. Fora do horário destinado aos alunos...[e] Tem monitor”
(Supervisora 1, 2010); “Fazer aulas diferentes... As escolas têm sala digital” (Supervisora 2,
2010).
A Experimentação é modelo de ensino, conduta ou metodologia de aula em Ciências
que tem sido utilizada nos discursos como pretensa forma de melhoria na qualidade de ensino
e formativa. A concepção de experimentação que perpassa documentos oficiais curriculares e
o discurso educacional em Ciências é que nos assusta como pesquisadores, formadores de
professores e responsáveis pela discussão da questão.
Já na abertura da avaliação dos livros didáticos de Ciências contida no Guia do PNLD
2011, antes mesmo de que se apresentem os critérios de avaliação das coleções a
experimentação é enunciada num contexto de categoria, o que marca certa contextualização
com hibridação entre o discurso [educacional] advindo da pesquisa na educação em ciências
e o discurso [curricular oficial] expresso pela política pública, sem falar do apelo nas obras de
referência, escolas de formação e o discurso educacional no campo escolar. Segundo esse
discurso, a maioria dos professores deseja laboratórios para melhorar o ensino de ciências e
atribui ao ensino pela experimentação a grande virada para qualificar processos conceituais e
formativos dos alunos. Do guia, pincei o fragmento: “IV. Conteúdos: correção e atualização
de conceitos, informações e procedimentos; ênfase na pesquisa e experimentação” (BRASIL,
2010-a, p. 17 [grifos nossos]), que demarca uma das categorias aqui analisadas como sendo
transmissora de currículo, de conteúdo, de modelos de ensino, e, portanto, de prescrições,
pois, se ao avaliar as coleções, uma das características levadas em consideração
explicitamente é ênfase à experimentação, é natural que os livros aprovados tenham essa
condição como relevante em seu enredo.
Quando o guia do PNLD se refere à coleção que estamos destacando nessa análise,
livros que foram adotados pelos professores de Ciências que entrevistamos expressam a
78
síntese da avaliação inferindo que “as atividades experimentais poderiam ser mais elaboradas
e mais abundantes ao longo da coleção” (p. 31), deixando clara a posição e necessidade de
reforçar o modelo de ensino baseado na experimentação. Mais adiante, o guia imprime outra
incursão sobre as atividades experimentais, inclusive fazendo-as como sinônimo de
investigação científica, de modo a sugerir: “a coleção propõe atividades experimentais no
livro do aluno e no manual do professor. As práticas são fáceis de serem executadas, de
pequena complexidade e com resultados simples” (BRASIL, 2010-a, p. 32 [grifos nossos]),
impregnando a ideia de que o livro didático avaliado devesse ter em maior número as
atividades experimentais. Essas marcas vão sendo traduzidas para os currículos em ação, pois
ao chegar à escola o livro leva sala de aula adentro uma concepção de ensino, baseado
sobremaneira na experimentação, o que reforça a visão de ciência reproducionista que está
inclusa nesta concepção e articulada às atividades em relação ao ensino de Ciências.
A experimentação como modelo de ensino e que sedimenta uma concepção de Ciência
focada no cientificismo, em que impera o positivismo lógico e cartesiano, sobremaneira
reproducionista e reforçando uma visão simplista de docência, não é somente matéria dos
livros didáticos e guias de avaliação destes. Está também tratada nos PCN, de igual forma
(BRASIL, 2001).
As marcações que apresento como exemplos reforçam uma concepção de Ensino de
Ciências, de currículo e de conteúdo, que deve ser preconizada por meio da experimentação,
pois acaba por sugerir ininterruptamente que: “os registros de atividades práticas de
observação e experimentação [...] estabelecimento de regularidades nas relações de causa e
efeito” (p. 83), quando apresenta o ensino de Ciências e expressa seus pressupostos; “por
meio de atividades experimentais [...], por meio de experimentos é possível essa verificação”
(p.88); “requerem a realização de atividades experimentais [...] comparando amostras por
meio de observações e experimentos” (p.89), quando expressa os conteúdos para o segundo
ciclo do Ensino Fundamental e prognostica modos de se investigar o ambiente: “buscar
informações por meio de observação, experimentações” (p.115) nos critérios de avaliação
(BRASIL, 2001). Uma das concepções de atividades experimentais que esse discurso passa é
a reprodução da própria ciência, como se no ensino fosse possível, adequada ou até mesmo
perseguida, a ideia de produzir conhecimento científico, e não o escolar. Este aspecto também
é alvo da crítica de Weissmann (1993), quando diz que por vezes o ensino de ciências tenta
formar pequenos cientistas e, ao fazer a crítica, refuta essa idéia, reforçando que não é este o
papel da escola.
79
Outra concepção quanto ao uso da experimentação que está impregnada neste discurso
é a de que a experimentação seja um espaço para comprovação de teorias, repetição de
protocolos para confirmação de enunciados e verdades científicas, que também tem sido
combatida, especialmente a partir do texto de Silva e Zanon (2000).
Este modelo de
experimentação traz consigo um modelo de Ciência, que reproduz, que copia, que verifica e
que reforça teorias através de resultados clássicos e esperados. É também transmitido pelos
livros didáticos, que recriam este discurso ao apresentarem suas propostas de atividades
práticas e/ou experimentais aos professores como forma de encaminhamento metodológico de
suas aulas, conforme o exemplo: “a prática a seguir deve ser feita [...] deve ter em mãos [...]
desenhem [...] não se esqueçam [...] feito isso, guardem o desenho e preparem-se para
próxima tarefa” (GEWANDSZNAJDER, 2006, p. 156). O texto extremamente prescritivo,
ordenado de modo a impor o rigor científico pelas etapas sequenciais, que não devem ser
rompidas, vai aprisionando o fazer docente, de modo a subvertê-lo e a prescrever a dinâmica
da própria aula, imprimindo-lhe ritmos, direção e aparelhamento/cerceamento pedagógico
pela maquinaria que o livro representa (GERALDI, 1993; FRACALANZA, 2006-b).
Este contexto que se impõe ao professor acaba sendo uma amarra no processo
pedagógico do ensino de ciências e impõe também em seu bojo uma concepção de ciência
reproducionista (GÜLLICH; EMMEL;
PANSERA-DE-ARAÚJO, 2009). Esta leva
sobremaneira, a um cientificismo exagerado (AMARAL, 2006). Essa perspectiva (de Ciência
Reproducionista) é notadamente (re)produzida como cultura científica através das políticas,
por certo dos currículos, marcadamente nos discursos, como na passagem que selecionei: “no
laboratório, [o professor] pode observar como o aluno manipula o equipamento, se está atento
às regras de segurança, se coloca em ordem o equipamento usado após o experimento”
(GEWANDSZNAJDER, 2006, p. 9 [Manual do Professor, grifos nossos]) demarcando,
contribuindo, na com a (de)formação das concepções acerca da experimentação no ensino de
Ciências. Das concepções da proposta do livro didático ao modelo de avaliação, a
experimentação é tida como modelo de ensino para área de Ciências da Natureza, inclusive
utilizando citações – excertos dos próprios PCN de Ciências para justificar a presença desse
modo de encaminhar o ensino na área, demarcando de modo significativo a
(re)contextualização dos discursos educacionais em seus vários contextos a partir das políticas
curriculares, de um modo que me parece muito peculiar e próprio.
Quando perguntado a uma supervisora da rede de ensino: “de onde que tu acredita que
elas tiram essas práticas, quando elas fazem?” (Professor Formador 1, 2010), ela respondeu:
80
“- elas tiram do próprio livro e também da... vamos dizer da graduação do curso delas, onde
eles receberam alguma coisa e... procuram colocar em prática ...” (Supervisora 1, 2010).
Desse modo, podemos perceber mais um indício de que o livro, além de ser usado pelos
professores, é também um lugar de transmissão do discurso da experimentação, que é copiada
e retirada do livro didático, corroborando o que já afirmam trabalhos de referência nessa área
(GERALDI, 1994; FRACALANZA, 2006-a; 2006-b; EMMEL; GÜLLICH; PANSERA-DEARAÚJO, 2010).
Em outras transcrições de turnos das falas da entrevista realizada com a Supervisora
Educacional da rede municipal, também se revela que as atividades experimentais são vistas
como comprovação de teorias e aplicações, representando e reforçando o discurso já indicado
nos PCN, nos guias de avaliação e que priorizam o ensino experimental em Ciências e
também enfatizam que a falta de aulas práticas deve acabar recaindo sobre o professor e sua
formação. Nesse sentido, a Supervisora 1(2010) declara que a falta de uso dos laboratórios
se deve à falta de “segurança” e, mais adiante, reforça a ideia, dizendo que: “eu acredito que
seja falta de domínio, sabe...” e afirma também que o laboratório: “até é utilizado, mas ainda
deixa a desejar...” e quando perguntada sobre a importância das aulas práticas no ensino de
ciências, logo afirma: “... é essencial!” e continua, “são importantíssimas, porque a teoria...
a teoria o aluno esquece e a prática, o concreto, aí ele grava”. Esse discurso, além de
reforçar as marcas vigentes das políticas curriculares expressas nos PCN, no PNLD, alinha-se
de modo ingênuo a uma perspectiva simplista de ensino de ciências em que se acredita que os
modelos experimentais se autoexplicam e sejam suficientes à aprendizagem na área, o que já
tem sido explorado por Weissman (1993) e Silva e Zanon (2000).
Sobressai nesta análise que a via do livro didático transmite o discurso vigente
unidirecionalmente. Esse discurso educacional torna-se evidente e é tácito e aceito pelos
docentes que estamos investigando, nesse momento, ainda que estes efeitos não sejam
compreendidos por eles no sentido que estou afirmando. Nesse sentido, acredito que a
perspectiva da reflexão crítica (CARR; KEMMIS, 1988) é um modo de enfrentamento das
visões que encontrei nos discursos educacionais que analisei e, desse modo, os contextos de
formação permanente (inicial e contínua) situam-se como campos de resistências, para
facilitar esse enfrentamento. Na medida em que a reflexão crítica avança, os professores em
constituição vão se expressando (em contextos formativos compartilhados), e também vão
sendo compreendidas as próprias amarras que advêm de distintas partes: curriculares,
políticas e das práticas de Ensino de Ciências.
81
A lógica da disputa dos currículos massacra resistências e discursos singulares que,
mesmo com fortes resiliências, acabam por ser globalizados pela política educacional vigente,
seja pela expropriação do discurso que, pela recusa, fica à margem dos processos de
contextualização das políticas e, por consequência, deixam até mesmo de fazer a crítica e a
reflexão sobre o sistema, seja pela apropriação lenta e silenciosa dos livros didáticos, de
movimentos formativos, seja por representações outras. Por outro lado, processos formativos,
pautados na reflexão crítica tendem a criar espaços para pensamento e ação crítica, quebrando
a unidirecionalidade dos discursos, tendendo a processos de hibridação.
O próprio discurso que investiguei, quando olhado atentamente, com lentes da
perspectiva histórico-cultural, também contém indícios e aponta (mesmo que de modo acuado
e reduzido) evidências de um discurso mais híbrido, ainda que muito tênues e que ficam
levemente marcados no discurso, como disfarces ou máscaras que se configuram de algum
modo, ao expressar:
i) nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências, “muitas práticas, ainda hoje, são
baseadas na mera transmissão de informações, tendo como recurso exclusivo o livro
didático e as transcrições na lousa, outras já incorporam avanços, produzidos nas
últimas décadas, sobre o processo de ensino e aprendizagem em geral e sobre o ensino
de Ciências em particular” (BRASIL, 2001, p.19);
ii) no Guia do PNLD, o discurso imprime que “[o livro] não precisa ser usado [de
modo] linear” (BRASIL, 2010-a, p. 12);
iii) no próprio livro, o discurso expresso no Manual do Professor também remete que o
livro didático não deve ser a única ferramenta do professor, afirmando que: “[o livro
didático é] um entre os diferentes meios de aprendizagem (GEWANDSZNAJDER,
2006, p.5 [Manual do Professor]);
iv) no discurso dos professores quando uma delas afirma que: “eu acho que o livro
didático serve de auxílio para o professor” (Professora 5, 2010).
82
2.2.3 Muitas vozes e um discurso unificado, por quê?
...com efeito, assim como qualquer organista executa qualquer sinfonia olhando para
a partitura, a qual ele não fosse capaz de compor nem executar de cor só com a voz
ou com o órgão, assim também por que é que não há o professor de ensinar na
escola todas as coisas, se tudo aquilo que deverá ensinar e, bem assim, os modos
como há de ensinar, o tem escrito como em partituras? (COMENIUS, 1627, p.
XXXII-4).
Comenius, em sua Didática Magna, em 1627, acaba por influenciar a divisão entre o
que “compõe a partitura” e o que a “executa”, influenciando através de seu discurso os
manuais didáticos como modo de o professor ter seu trabalho expropriado da produção dos
mecanismos didáticos, ficando relegado ao papel de reprodutor de teorias e verdades
científicas, como bem o faz até hoje (GERALDI, 1994). Essa menção traz à tona a dimensão
histórica na qual está inserida a discussão do livro didático na determinação dos contextos
curriculares, dimensão esta que não irei discutir, mas que mesmo assim não me furto de
apresentar.
As origens das amarrações discursivas são, além de históricas, globais. Não tenho a
visão ingênua de acreditar que o Brasil propõe suas próprias políticas, pois a literatura afirma
o contrário e o direcionamento dado pelo BID como guia mestra de orientação curricular, e de
lá, através de recontextualização, para os PCN e o PNLD têm marcado o discurso educacional
com certos eixos, ora de hibridação, ora na composição de um discurso unidirecional das
políticas educacionais do global ao local, tais como: os temas transversais, a tecnologia, a
experimentação como modelo de ensino adequado as Ciências, por exemplo.
Poderia demarcar essas amarrações através do exame dos materiais da Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e da Organização das
Nações Unidas (ONU), tais como o relatório de Delors (1998), mas não é o objeto desta
discussão fazer tal aprofundamento; de outra parte, penso ser relevante apenas deixar situado
que nos PCN, volume de Ciências Naturais, encontrei de modo explícito menção a um dos
programas que marcam as origens globais do discurso presente na política curricular,
contextualizado na seguinte expressão: “Apoio: Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD)”
(BRASIL, 2001, p. 136) e a presença nas Referências do
documento, dos escritos sobre a reforma do ensino na Espanha, de Coll (1992). Nesse sentido,
os contextos educacionais, particularmente as instituições escolares, têm assumido discursos
que engessam currículos e práticas, hegemonizando culturas que permanecem e se reforçam
83
pela tradição pedagógica [uso do livro], ao reforçarem currículos, práticas, conteúdos, visões
de ciência, concepção de ensino, de docência.
Os apontamentos que foram recolhidos indicam e indiciam fortes marcas discursivas
acerca das políticas curriculares que nos permitem afirmar que decorre um atravessamento
unidirecional da política curricular prescrita nos PCN através dos e nos discursos
educacionais, que são apropriados pelas editoras através dos guias e livros didáticos, advém
das diretrizes presentes no PNLD e se fazem representar na ação docente pelo discurso às
vezes ingênuo, às vezes crítico, que se confunde na dimensão e contextos analisados.
Outras categorias, como o ambiente, as competências, educação de qualidade,
tecnologia, concepções de ciência, propostas pedagógicas, resolução de problemas, temas
transversais [e algumas ainda não aventadas] têm emergido dos contextos discursivos e,
mesmo articuladas à questão que delimitei nessa análise, não cabiam por ora no enredo da
discussão, o que não as desqualifica, pelo contrário, as coloca na agenda/pauta de próximas
discussões.
Outras pautas, outras agendas e temas vão emergindo, como as Lições do Rio Grande5,
“novo” referencial curricular da rede estadual de ensino do Estado do Rio Grande do Sul, que
no discurso que vinha sendo explicitado até o ano de 2010 prometia ser uma certa renovação
para a Educação Básica do Estado. De todo modo, já cabe perguntar: - são novas as
propostas? – que discursos, que políticas curriculares, que conteúdos têm sido disseminados
na proposta? – quais recontextualizações têm ocorrido no e através do novo documento? Um
contexto importante de ser apontado aqui é o fato de o Livro adotado para 2011, e analisado
em 2010 pelo grupo de professores que tomo como referência nessa investigação, é uma
edição de 2007, que possivelmente foi também a mesma utilizada desde então e avaliada em
dois processos do PNLD, o que também permite estabelecer outras indagações: - qual foi a
avaliação do Guia de Livros Didáticos do PNLD 2007? – foi a mesma que encontramos na de
2010? Não se trata de especular, mas de atribuir possíveis perguntas que remetem e também
ajudam a confirmar a tese que tenho defendido nessa parte da análise, seja ela: o discurso
educacional tem recontextualizado as políticas curriculares de modo a ser transmitido, aceito
tacitamente e num sentido unidirecional em todos os contextos educacionais analisados. Esta
tese também é corroborada por Fracalanza e Megid Neto (2003, p. 4), quando se referem a
5
Lições do Rio Grande: Documento do Referencial Curricular do Estado do Rio Grande do Sul. Secretaria de
Educação do Rio Grande do Sul publicou o documento no ano de 2009, como referência para construção dos
currículos da Educação Básica a partir de 2010.
84
como ocorre a apreensão das políticas brasileiras pelos sistemas internacionais, de modo a
expressarem que:
basta ler os PCN’s de Ciências do Ensino Fundamental ou outras propostas
curriculares oficiais para neles encontrar, de maneira bastante explícita, os
fundamentos teórico-metodológicos nos quais se baseiam para apresentar suas
diretrizes e orientações curriculares.
Outras vias de análise são possíveis, como o referencial apontado por Pacheco (2003),
que tem apontado e discutido perspectivas de análise das políticas curriculares a partir de
categorias como a escolha, os conteúdos [e avaliação] e o caráter, pela via da investigação, de
como os modos pelos quais o discurso sobre as políticas curriculares e educacionais são
legitimados. Ele também aborda vias de referencialização das políticas curriculares, que
podem ser lidas através dos quesitos: democratização curricular, deliberação e integração
curricular.
Analisando e nos apropriando dos discursos dos professores de Ciências que
participam desta investigação, posso inferir que estão apoiados nas políticas curriculares
vigentes para afirmar que devem (re)fazer seus planos de estudos conforme as regras dos PCN
(tidas como leis nessa amarração discursiva), que são lidas como diretrizes e com tom de
obrigatoriedade, como podemos situar nos excertos: “foram analisados os planos de estudos
quanto às competências, habilidades, conteúdos e operacionalização metodológica, dos
conteúdos já ministrados pelos professores em sala de aula, sendo feitas algumas
atualizações com livros, usando estratégias que irão modificar nosso fazer pedagógico [...].
Também estudamos atividades do livro [...] que serão trabalhadas com os alunos”(SMEC,
2010, p. 4).
As atas dos encontros dos professores de Ciências que analisamos trazem consigo um
forte argumento de autoridade ao expressar que: “quanto aos Referenciais Curriculares, [os
professores devem] procurar acrescentar os novos modos de trabalho de acordo com os
mesmos e procurar estar sempre atualizados, indo atrás de novos conhecimentos” (SMEC,
2010, p. 3). Este discurso educacional (re)contextualiza os desejos explícitos pela política
curricular - PNLD - de modo a fazer uma hibridação (LOPES, 2008), que parte da
necessidade de se atrelar as práticas às ‘diretrizes’ que supostamente viram leis a serem
cumpridas, como os PCN, e desse modo acabam seguindo-os cegamente na (re)produção de
currículos e práticas, pois o discurso é de todo modo histórico e cultural, e o currículo é um
artefato cultural.
85
Essa perspectiva de análise sob a égide teórica da hibridação e recontextualização dos
discursos educacionais a partir dos contextos de integração curricular (e sua pesquisa) tem
sido assumida pela área da Educação em Ciências, deixando marcas contemporâneas e
recentes na pesquisa do Ensino de Ciências/Biologia, como nos trabalhos Pereira; Gomes e
Ferreira (2010), Brito; Freitas (2009), entre outros da área em questão. Nesse sentido, Lopes
(2008, p. 82) tem proposto um certo afastamento dos mecanismos clássicos de pesquisa da
ciência e uma “aproximação das práticas das escolas e da história do currículo”, para que se
compreenda como se organizam os currículos e de que ordem decorrem as propostas de
integração curricular vigentes, em implantação, em desenvolvimento: estudo e pesquisa.
É importante frisar, também, que a via do discurso tem sido foco de análise e tem se
tornado uma agenda nas pesquisas com o livro didático, tanto no que diz respeito à
compreensão de discursos educacionais na pesquisa curricular, tanto quanto em pesquisas que
se (re)alinham à própria análise do discurso como modo de análise e apreensão de categorias
para compreender os mecanismos decorrentes das relações entre professor e livro didático,
demonstrando significativos avanços nos modelos de compreensão e na extrapolação de
contextos educativos (MARTINS, 2006).
Finalizando esta parte da análise, cabe ressaltar que o atravessamento das políticas nos
discursos educacionais tem legitimado a força global da internacionalização de um currículo
comum, orientado pelo mercado, que tem marcas que se expressam como contextualizações
híbridas e quase idênticas que aparecem nos discursos. Dessa forma, acredito que a reflexão
que pautamos, tendo como base da discussão categorias tais como: os PCN como justificação
curricular (de currículo nacional comum, de mudança, de concepção, de conteúdo, entre
outras); a relação entre CT e a Experimentação, que nos serviram de apropriação na Educação
em Ciências, foco dessa pesquisa, mostra que o atravessamento discursivo das políticas
curriculares nacionais está sobremaneira vinculado ao Livro Didático e, de todo modo, cabe
melhor investigá-lo.
Noutra parte dessa investigação estão tratadas outras vias de recontextualização,
especialmente ao ser melhor aprofundada a compreensão dos significados que os sujeitos da
pesquisa atribuem ao uso do livro didático, à composição curricular e a sua própria formaçãoatuação como professores de Ciências, parecendo fluir mais contextos e discursos híbridos,
diferentes em parte do que analisamos até aqui, uma via discursiva de recontextualização mais
unidirecional, no que se refere à transmissão de um discurso bastante unificado. Esta via, que
86
está apensada entre o PNLD e o livro didático, não cessa seus efeitos nessa direção. Na
próxima sessão empreendi esforços no sentido de perceber e tornar mais explícito um modo
também peculiar de aprisionamento do professor pela via do livro, no que se refere aos
conteúdos abordados, escolhidos e selecionados para a docência em Ciências.
2.3 (Re)Conhecendo currículos: os conteúdos em disputa
Os livros didáticos são o motor das aulas de Ciências, e a disputa pela sua escolha,
pela unificação dessa escolha não é meramente uma disputa ingênua. É sim, por outro lado,
uma disputa de poder, de conteúdo, de sequenciamento/ordenamento dos conteúdos em
Ciências.
A partir de uma análise documental e das falas das professoras em entrevistas e
encontros do GEPECIEM, pude observar um processo de dependência do professor em
relação ao livro, em que o livro consegue perverter a prática, o modo de sequenciamento dos
conteúdos, mas acima de tudo a própria formação do professor, que na sua atuação deliberada,
acaba por esquecer ou desperceber que o sujeito é quem determina as ações, as intervenções e,
portanto, os currículos. O professor expropria-se do processo de produção dos currículos, ao
adotar o livro como referência única para sua prática, para seu planejamento, para sua
formação. Nesse sentido, também cabe frisar que o PNLD também reforça esse tom que o
livro didático assume, como condutor do processo pedagógico, assim como afirma Geraldi
(1994).
Um exame nos planos de estudos e nos livros didáticos da 6ª série/7º ano do Ensino
Fundamental de uma das Escolas Estaduais de Cerro Largo-RS, da qual sua professora de
Ciências participa do GEPECIEM, mostra um total alinhamento, ou seja, uma cópia fiel da
lista e do ordenamento de conteúdos presentes no livro didático adotado para 2010 para os
Planos de Estudos 2010/2011. Ao examinar as falas, posso afirmar que a situação é
corroborada, pois os professores reconhecem que o livro é predominantemente o
organizador/mediador da aula de Ciências.
O conteúdo escolar é sempre disputado, seja pelas disciplinas e professores, pelos
organismos de controle social, de controle internacional, pela editoras, pelos documentos
oficiais curriculares, pelos livros em si e planos de ensino. O Ministério da Educação (MEC),
em seu processo de avaliação dos livros didáticos, fez em 2009 e em 2011 eventos regionais,
87
nas capitais brasileiras, para difundir o PNLD, bem como o seu processo de avaliação e
escolha dos livros didáticos a partir do Guia de Escolha. Reconhecendo que os professores
brasileiros pouco ou nada se utilizam deste mecanismo para o processo de escolha dos livros
didáticos, o MEC tem tentando aproximar a política da população-alvo.
Nos materiais utilizados para essa formação-divulgação pode ser encontrada a seguinte
passagem: “a seleção de conteúdos é adequada? A sequência com que são apresentados
obedece à progressão da aprendizagem planejada por sua escola? O conjunto dos conteúdos,
assim como o tratamento didático dado a eles, são adequados para o seu aluno e estão de
acordo com o currículo?” (BRASIL, 2010-b, p.13 [grifos do autor]), o que remete a pensar no
conceito de currículo, no suposto sequenciamento que o conteúdo deve assumir e na ideia de
que o livro devesse se orientar às normativas da escola, como se isso fosse possível levandose em conta os mecanismos atuais de produção dos livros. A ideia de que: “o livro é
produzido em função do currículo” (Professora 3, 2010) também está presente no discurso de
professores, pois implícita a essa falsa crença está a determinação do currículo pelas políticas
de Estado, ou seja, os professores, em grande parte, acreditam que o MEC é quem institui o
currículo escolar, então os livros didáticos que o MEC envia às escolas devem conter e ser
produzidos a partir do currículo escolar, o que também expressam de modo a compreender
que o currículo “vem determinando pela grade escolar” (Professora 3, 2010) e
quem
determina este é o “MEC, de acordo com os PCNs” (Professora 1, 2010). Essa fala da
Professora 3 (2010) também traz à tona a expropriação do trabalho do professor, que tanto
situa o modo de produção curricular, que, em geral, é rápido, pouco democrático e muito
impositivo, restando pouco poder decisório ao professor, como situa, também, uma zona de
conforto ao professor, que já espera que esteja pronto e com isso somente lhe cabe reproduzilo e não pensar, fazer, produzir um currículo.
Ligada a esse fato de que o professor se acomoda frente ao sistema a que ele se
submete, cabe uma discussão acerca do aparelhamento do Estado com suas políticas públicas,
os sistemas de governos, bem como a situação da profissão docente em termos de salários,
horas para planejamento de suas atividades e especialmente para formação continuada e
permanente que, em geral, são escassas e não suprem com qualidade a formação do professor.
A maioria dos professores deixa claro que suas condições de trabalho levam ao uso
indiscriminado do livro e que isso “influi, pois às vezes os professores se acomodam atrás do
LD” (Professora 4, 2010). Também destacam que “as más condições em que os professores
88
se encontram deixam margem para o desânimo, acomodação e falta de motivação”
(Professora 1, 2010). A questão da falta de condições - especialmente no que tange à falta de
tempo para planejamento e baixos salários - fica clarificada nos trechos: "o professor no geral
está muito desmotivado, percebo isso muito no Estado, baixo salário e carga máxima (16 a
17h) de 20h, por professor” (Professora 8, 2010); “geralmente os professores não encontram
tempo para preparar bem suas aulas e seguem o livro, os baixos salários desanimam e não
há interesse em aperfeiçoamento” (Professora 9, 2010). Estas falas tornam desveladas,
explícitas a correlação entre o uso exclusivo do livro e as condições de trabalho docente. Esta
dimensão tem sido pouco discutida por pesquisas da área de Educação nas Ciências, bem
como pela Educação em geral. É um fator que se configura no cenário do uso do livro e
precisa ser melhor investigado, acredito que este aspecto pode compor uma dimensão especial
que deve permanecer pautado na agenda de pesquisa sobre o Livro Didático no Brasil, deve
ser ampliado, melhor investigado, como elemento de expropriação do trabalho docente,
conforme afirma Geraldi (1993;1994), pois aqui somente pude aventá-la pela via do campo
empírico e, nesse sentido, permanece como pergunta – novo desafio para reflexões futuras.
As professoras de Ciências, quando questionadas frente ao processo de uso do livro
didático, também expressam a interdependência destes com o currículo escolar, de modo a
compreender que “o livro didático vem auxiliar na produção do currículo a partir de
leituras, atividades, etc” (Professora 1, 2010) e outra professora afirma que o livro é
“subsídio, mas no meu caso ele é essencial pelo motivo de não ter laboratório, turmas
grandes e dificuldade em levar o material à sala” (Professora 2, 2010). Nas falas fica
expresso algo que vai mais adentro na prática do professor, com relação ao livro didático e
seu papel na Escola básica, na sala de aula e na aula de Ciências. O livro “auxilia o professor
do planejamento de suas aulas” (Professora 6, 2010), é “um norteador na organização dos
conteúdos a serem desenvolvidos” (Professora 4, 2010), e também “ajuda a preparar uma
aula com textos exercícios, explicações para melhorar o entendimento” (Professora 9,
2010); “para ter uma sequência dos conteúdos, (atividades, textos), explicações”
(Professora 8, 2010). Assume, assim, o livro didático, o papel de motor do processo
pedagógico e (in)formativo do professor, desse modo fica claro que é pelo livro que se ensina
Ciências na razão docente (dos entrevistados).
Nesse sentido, cabe pontuar que, apesar de todos terem acesso à formação superior em
Curso de Licenciatura Plena, além disso, tiveram acesso a diferentes e diferenciadas
metodologias de ensino, no entanto se utilizam sobremaneira do recurso que deveria ser mais
89
um dentre os utilizados na docência e que se torna o único e exclusivo. Parece-me que, ainda
que esta situação seja singular e válida como afirmativa para o grupo investigado e no
contexto já descrito, pode também se aplicar à maioria das escolas brasileiras, que são, em
boa medida, influenciadas por este recurso didático.
Tentando dimensionar como ocorre a interferência dos livros nos conteúdosO do
ensino de Ciências, verifiquei em que medida os livros influenciam o currículo oficial (Planos
de Estudos) de uma escola pública básica no contexto de minha pesquisa. Ao comparar o
conteúdo dos planos de estudos com os do Livro Didático utilizado em 2010, é possível
encontrar
100%
de
igualdade
no
conteúdo
e
75%
de
similaridade
no
ordenamento/sequenciamento do conteúdo escolar, demonstrando que em geral os
professores: - utilizam o livro para ensinar, - utilizam a própria sequência do livro para
dimensionar o conteúdo ao longo do ano letivo, e – que o conteúdo ensinado [currículo –
sensu lato] é determinado pelo livro didático de Ciências. As similaridades são tamanhas que
os próprios tópicos listados no livro de Barros; Paulino (2006) estão transcritos nos Planos de
Estudos analisados. O exemplo pode ser mais evidente, assim a transcrição do plano:
DIVERSIDADE DA VIDA NA TERRA. A investigação científica. Reconhecendo
um ser vivo. A origem da vida. A evolução dos seres vivos. Biodiversidade e
classificação. Vírus: seres vivos sem organização celular (PLANOS DE ESTUDOS
Escola 3, 2010, [s.p.]).
revela o total espelhamento com o livro didático, inclusive quanto à formatação dos tópicos,
títulos e na sequência em que ocorrem tanto em um como em outro documento curricular:
UNIDADE I: DIVERSIDADE DA VIDA NA TERRA. CAPÍTULO 1- A
investigação científica. CAPÍTULO 2- Reconhecendo um ser vivo. CAPÍTULO 3-A
origem da vida. CAPÍTULO 4- A evolução dos seres vivos. CAPÍTULO 5
Biodiversidade e classificação. CAPÍTULO 6- Vírus: seres vivos sem organização
celular (BARROS; PAULINO, 2006, p. 6).
Outros aspectos podem ser verificados quanto à cópia quase completa dos planos;
também na relação ano do livro e ano do plano de ensino, pois é possível que muitos
conteúdos ensinados estejam no mínino desatualizados e defasados, senão contendo erros e
defasagens conceituais. É da própria dinâmica do PNLD em si que o livro usado em 2010 (e
utilizado para definir os Planos de Estudos da 6ª série – 7º ano)P foi produzido e submetido à
avaliação do MEC em 2006, catalogado para escolha no guia dos livros didáticos do ensino
fundamental – área de Ciências para os anos finais em 2007, e chegou à escola em 2008,
sendo utilizado no triênio 2008-2010, pois apenas em 2010 novos livros foram escolhidos
para uso em 2011.
90
Na perspectiva conceitual, observando apenas o primeiro bloco de conteúdo transcrito,
pode ser aventado certo questionamento técnico-científico, pois tratar vírus como organismos
sem organização celular é apenas um modo de tratar este assunto; nesse sentido, vale ressaltar
que este tipo de ser vivo tem, no mínimo, a organização suficiente para infectar e matar a
célula hospedeira. Não cabem explicações do ponto de vista do conteúdo, mas é evidente que
o modo de apresentá-lo será determinante da apropriação dos conceitos em Ciências.
O campo das pesquisas sobre currículo é muito vasto e diversificado. Ao selecionar
um autor, conceito ou defesa, sempre o faremos como estabelecimento de uma disputa,
também de conteúdo. Essa dimensão tem situado inúmeras pesquisas sobre currículo,
compreender em perspectiva histórica que, ao tecer qualquer análise de currículo, sempre se
está tomando partido de algo. Tomo parte, nessa parte da análise, por pesquisas que estão
organizadas por Sacristán (2000-a); Sacristán; Pérez-Gómez (2000); Sacristán (2000-b).
Ainda que seja importante discutir a natureza dos conteúdos do ensino, seu
surgimento, suas configurações e ainda que a própria literatura não separe uma coisa da outra,
acredito que possa me deter à discussão da perspectiva de currículo como expressão de
conteúdos, ou, como já afirmei, o currículo-conteúdo. Sacristán (2000-a; 2000-b) afirma que
as investigações pedagógicas ou pesquisas educacionais, abrasileirando melhor a expressão,
têm deixado de lado a preocupação com o caráter dos conteúdos e se debruçado mais aos
modos e formas de ensiná-los.
Pela análise empreendida no contexto, já situado, creio que seja prudente discutir que
o modelo operante na transferência dos conteúdos do livro didático para os planos de estudos,
institucionalizando-os como conteúdos, bem como a partir das apreensões trazidas das falas
dos professores no tocante que afirmam que o currículo é, de modo sumário, conteúdo, ou
ainda: “é todo o conteúdo que deverá ser ministrado numa determinada série” (Professora 1,
2010); são os “conteúdos trabalhados em sala de aula” (Professoras, 3; 5; 6; 8, 2010), ou
seja, revelam um modelo tradicional de currículo.
Sacristán (2000-a, p. 121) afirma que “geralmente, os conteúdos, por vias diversas, são
moldados, decididos, selecionados e ordenados fora da instituição escolar, das aulas, das
escolas e à margem dos professores/as” o que se confirmou na análise. Afirma também que:
outros raciocínios e práticas virão a justificar depois que as atividades dos
professores/as referem-se basicamente aos aspectos metodológicos do como ensinar,
enquanto que as decisões sobre os conteúdos - o que ensinar – serão vistas como
91
algo que pertence a outros: especialistas, administradores, políticos, editoras de
livros-texto, etc. (SACRISTÁN, 2000-a, p. 122 [grifos do autor]).
é, pois, “preciso ver o ensino não na perspectiva de ser atividade instrumento para fins e
conteúdos pré-especificados antes de empreender a ação, mas como prática, na qual esses
componentes do currículo são transformados” (SACRISTÁN, 2000-a, p. 123). Esse sentido,
que o autor tem atribuído e defende, o currículo como algo em transformação, é o que temos
de perseguir, especialmente frente à realidade que já descrevi.
As proposições mais recentes para denominar currículo, conforme Sacristán (2000-a,
p. 122), “buscam uma aproximação entre os temas curriculares e os didáticos”, a fim de
encurtar a distância entre proposição e efetivação de um currículo, de modo que algumas
pesquisas chegam a propor uma via que vislumbra “o currículo como estudo do conteúdo do
ensino”. Esse entendimento se alinha às preocupações de Kemmis (1988), ao afirmar que o
ensino transforma o currículo na prática ao perseguir aprendizagem. Na acepção de Kemmis
(1998), currículo está posto como um modo de compreender de que forma um projeto
educativo é realizado nas aulas.
Por trás da concepção de currículo-conteúdo, também está pautada uma via de
reprodução cultural das políticas, o tempo todo. Uma possibilidade de (re)pensar acerca desta
posição é o que apresenta Tura (2008, p. 162), que, após analisar uma escola municipal no
Rio de Janeiro (por isso resguardadas as proporções), aponta:
um documento oficial não pode ser entendido de per si como a política curricular.
Em primeiro lugar, porque ele não tem a possibilidade de abranger todo o conjunto
de problemas e questões que estão postos no campo educacional. Em segundo lugar,
porque pode-se perceber as políticas curriculares como estando inseridas em um
processo que articula diferentes tempos históricos e contextos ou arenas em disputa
e, nesse sentido, uma proposta curricular, ao dialogar com a esfera da efetivação, ou seja, em
contexto pedagógico, e no diálogo vivenciado no âmbito escolar, estará sempre havendo certa
“recontextualização do texto político no interior da prática pedagógica para onde este se
dirige” (p. 162). Acredito que seja nesse prelúdio em que se ancoram possibilidades que
podemos nos apoiar para (re)pensar a formação de professores, especialmente a formação
contínua destes. Nós, formadores, necessitamos ter em mente que, no contexto das práticas,
estas se tornam possíveis de transformação, pois, ao estabelecermos diálogos formativos,
ainda que a priori encontremos práticas que podem ser descritas como um tanto áridas ou
tradicionais na questão curricular, temos a possibilidade de transformação dos sujeitos em
formação.
92
Quais perguntas necessitam pautar a análise da dimensão curricular do ensino de
Ciências? Que currículo é esse? Quem o determina e como ele é determinado? Que razões o
fazem ser configurado/copiado/reproduzido? Que conteúdos cabem num currículo escolar?
Que tipo de Ciência ensinamos e que concepção de Ciência situa nossas práticas escolares?
Que Ciências - disciplina escolar, desejamos produzir? Algumas dessas questões serão
abordadas no capítulo 3 desta tese, a fim de melhor compreendê-las em detalhes através do
exame de processos desencadeados em episódios transcorridos, no percurso dos movimentos
formativos do GEPECIEM.
O elemento dos conteúdos é um divisor de águas, pois desencadeia uma série de
preocupações e (des)construções em torno da educação. Como sempre estamos em disputa
pelo conteúdo e este está intimamente vinculado ao enredo dos livros didáticos, esses dilemas
e entraves me fizeram optar por discuti-los, sob forma de uma dimensão curricular, não é a
única, mas é sem dúvida a mais efetiva do ponto de vista das práticas escolares. Insisti nessa
análise, para entender como essa correlação entre currículo-conteúdo e livro didático vai
encerrando o fazer docente de modo a ordená-lo, moldá-lo, reproduzindo-se através do ensino
a cada dia. A seguir, passo a discutir a natureza da relação entre professor e o livro didático
apoiado na tese principal de que é o livro didático quem adota o professor e, nessa dinâmica
de perversidade, aprisiona o seu fazer.
2.4 O livro impregnando sentido e significados no Ensino de Ciências: o contexto da
experimentação como proposta de análise do enredo do livro didático
Não cabe um tom denunciativo e nem tampouco desejo empreendê-lo ao tecer uma
crítica tão situada em torno do uso do livro e seu papel na determinação do ensino de
Ciências. Mas, a posição crítica exige garimpar elementos que permitam afirmar no que
concerne à tese que venho defendendo mais especificamente nesse capítulo, que tal
aprisionamento dos currículos e das práticas docentes tem se dado em função do livro
didático. Então, no exame dos achados na investigação, encontrei duas passagens que
remetem no mínimo ao peso do livro na determinação das práticas pedagógicas no âmbito
escolar, especialmente no sentido das práticas experimentais, que penso, servem no mínimo
de âncoras para justificar a análise do enredo do livro didático de Ciências no que se refere ao
seu papel na determinação do modelo experimental, no ensino adentro: “como sempre nas
quintas-feiras lá estava eu na Escola III. A manhã era como outra qualquer. A professora
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entrava na sala de aula, pedia aos alunos para retirarem o livro e abrir em tal página, que
seria estudado aquele conteúdo. Pois bem, no final “daquele” conteúdo, para a surpresa da
professora, havia uma sugestão de atividade prática que ela logo pediu para os alunos lerem
que na próxima aula a bolsista (que neste caso sou eu) providenciaria os materiais para a
execução desta atividade prática. Esta atividade prática era a construção de um terrário. A
meu ver, a professora não explicou aos alunos o motivo daquela atividade prática. Ela
simplesmente lhes disse que seria realizada aquela atividade por o livro sugerir e dessa
forma eles, ao ver da professora, aprenderiam mais. Mesmo sem entender direito o porquê
daquilo, os alunos adoraram a ideia, porque assim eles saíram um pouco da rotina de apenas
sentar ler” (Licencianda 2, 2010); “assim, muito o conteúdo a gente introduz com o próprio
livro. A gente faz leitura de trechos, comenta, a gente faz eles questionarem, de acordo com
o assunto do interesse deles, questionam outras coisas através do livro. Tu puxa outros
assuntos às vezes, o livro também traz alguns experimentos e na prática eu faço o que o
livro traz e assim leituras, às vezes um resumo, peço pro aluno fazer um resumo, explica um
pouco, as atividades do livro eles fazem em duplas e depois a gente corrige no quadro”
(Professora 1, 2010).
Percebendo que o livro tem assumido um papel preponderante no ensino de Ciências,
especialmente na prática dos professores de educação básica com os quais tenho trabalhado,
me arrisco, nessa parte da discussão, a propor um exame de como a concepção de Ciência
Reproducionista tem assumido forma em contexto do ensino, através da proposição de um
ensino experimental que reforça a visão simplista de docência e um ensino tradicional nas
Ciências, tomando a questão da experimentação no ensino de Ciências, como pano de fundo,
como exemplo.
A escolha por esta categoria de análise não foi neutra, decorreu das discussões dos
professores do GEPECIEM, de minha própria inserção na produção da área de Educação nas
Ciências, pesquisando e propondo discussões desde o ano de 2002, tendo o livro didático
como objeto de pesquisa e da necessidade de melhor discutir o tema a partir dos programas de
formação inicial que tenho coordenado, sejam eles: inicialmente a proposição do PETCiências
e mais tarde do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência (PIBIDCiências),
ambos projetos têm a experimentação como foco de inserção nas escolas e de iniciação à
docênciaQ.
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A posição ou ordem de um conteúdo no currículo também tem implicações no modo
como o conteúdo é trabalhado, como a Ciência é tratada, como a Disciplina Escolar Ciências
é desenvolvida. Ensinar antes como os cientistas trabalham é uma tentativa de imitar na
disciplina escolar o modo de produção da Ciência, ou seja, o uso do método científico que
fica evidente no livro é tratado como regra e modelo didático pelos professores, o que está
reforçado no discurso de professores do grupo sobre a experimentação: “que os cientistas
fizeram tudo com base na experiência ... a maioria das experiências foram feitas assim...”
(Professora 3, 2010); “acho que são importantes, as práticas. Para que o aluno aprenda o
porquê da teoria” (Professora 7, 2010). Essa concepção de ensino está sobremaneira baseada
no positivismo lógico, que é uma abordagem tradicional de Ciências, em que a Ciência é vista
como reprodutora de teorias, verdades e na perspectiva de comprovação da teoria (SILVA;
ZANON, 2000), afastando em boa medida uma dimensão mais contextualizada e
problematizadora do ensino.
Para além de assumirem que as práticas experimentais que são utilizadas para ensinar
Ciências são extraídas dos livros didáticos, como está circunscrito no discurso da professora 1
e da licencianda 2, em outras passagens a professora afirma: “... e também eu faço, eu tenho
outro...com animaizinhos pequenininhos de tudo que é tipo pra fazer a classificação, então
eles juntam quatro mesas, isso dá quatro grupos assim, mas cheio de figurinhas ... daí eles
[os alunos] têm que perceber ... como é que os cientistas usaram um sistema pra classificar,
porque esse[animal] foi colocado aqui nesse grupo ... eu faço eles separar todos...por grupo
zoológico (Professora 1, 2010), deflagrando ainda uma concepção de ensino de Ciências
atrelada apenas à concepção de Ciência experimental, almejando que seus alunos, pelo ensino,
repitam ações de cientistas para aproximar o conhecimento científico dos mesmos,
reproduzindo-o no Ensino Fundamental sem uma devida recontextualização para o âmbito
escolar. É em parte o que Weissman (1993) aborda como o interesse que muitos professores
têm de transformar os alunos em pequenos cientistas, tornando isso objetivo, equivocado, do
ensino de Ciências.
Em outra ocasião, se dá um diálogo entre professoras de Ciências, que selecionei
como central na compreensão das raízes dessa concepção por parte do grupo de professores
que investiguei.
Diálogo com Professoras:
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Professora 1 (2010): que os cientistas fizeram tudo com base na experiência ... a maioria das experiências
foram feitas assim... como é que a gente vai chegar a ...
Professora 1 (2010): claro, tem a experimentação, tem a pergunta, a hipótese, a experimentação das
hipóteses... tudo aquilo ali. Não atrapalha, que o cientista também faz a experimentação.
Professora 3 (2010): e eu estou justamente repassando o que ele fez pela experiência.
Professora 3 (2010): e nunca mais esquece...
Professora 2 (2010): eu ontem assisti uma reportagem, não sei o canal, quando voltei [de tal lugar], meu filho
estava assistindo, era um ouriço em cima de uma árvore e o professor deitado do lado dele, a noite inteira
filmando ele. Mas eu quis matar o homem!
Professora 3 (2010): mas é que para você falar tu tem que ter a prova, não é?!. ...
Professora 2 (2010): e ficou lá...
Professora 3 (2010): quem gosta de ciências gosta de prática...
Está muito nítida a justaposição entre a necessidade [objetivo do ensino] e a prática
[método de ensino] da experimentação, que estão alicerçadas no contexto amplo de que, para
se ensinar Ciências, haja, a priori uma necessidade de se repetir experimentos como os
cientistas os fizeram, ligando etapas do método científico a etapas da experimentação em
Ciências, de modo que pode ser compreendido como sendo no mínimo simplista.
Examinando o Guia de Livros Didáticos do PNLD 2010-2011, encontrei uma
passagem e uma figura que apontam para uma concepção de experimentação e de Ciência que
se não está equivocada, mas no mínimo caracterizada como positivista e possível de
questionamento. O discurso oficial, mais uma vez ao pronunciar uma proposta de ensino para
área, distorce os pressupostos pelos quais uma área de pesquisa, de conhecimento, tem se
esforçado para produzir e sistematizar. Assim, ao se referir ao ensino de Ciências, o texto traz:
“é um ensino que valoriza: a investigação, a observação cuidadosa, a experimentação, o
registro preciso, a comunicação, a interação, e demais procedimentos característicos utilizados
na produção científica” (BRASIL, 2010-a, p. 9).
Ilustrando a afirmação, o guia, na página 9 (BRASIL, 2010-a) mostra uma figura com
um menino empunhando uma lupa, sugerindo que a experimentação é um método de ensino a
ser seguido:
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Não é somente pela constatação na via discursiva, seja ela educacional ou oficial, que
a análise do enredo do livro se torna imprescindível, mas também pelo teor do enredo dos
livros didáticos de Ciências quanto à experimentação e seu papel na prática docente da área
em questão. Passo a apresentar alguns excertos que estão contidos no livro didático de
Ciências em uso nas escolas públicas que participaram da investigação, ou seja, o livro que os
professores utilizaram em 2010 e têm acesso, através das bibliotecas dessas escolas.
Iniciei a análise da categoria de Ciência Reproducionista no contexto do livro didático
num texto em que a descrevo como: “as experiências [experimentos e práticas] somente são
exercidas pela cópia” (p. 21), sendo que esta forma de acepção comanda o ensino e institui e
reforça uma visão de ciência neutra, verdadeira e empirista-positivista que também “reforça a
imagem de Ciência estática, que reproduz o conhecimento e não o cria, o recria e o
transforma” (GÜLLICH, 2004, p. 21). Esta categoria está frequentemente presente em livros
didáticos de Ciências. Trata-se dos enredos que indicam o trabalho com experiências que
deflagram ainda mais isto, com expressões do tipo: “coloque, observe, procure, pegue”, ou
seja, enfatizando um padrão único.
Ao identificar essa visão de Ciência como Cientificismo Exagerado, Amaral (2006)
nos permite avançar e exercer um olhar mais maduro a fim de melhor compreender a
dinâmica dessa categoria. Em seu texto, o autor aponta que tal visão incorpora uma Ciência
apresentada:
- como instituição capaz de modificar e controlar a natureza para o ser humano e
capaz de solucionar todos os exageros e desvios da tecnologia;
- sem correlações claras com a Sociedade, como algo intrinsecamente bom e neutro,
separada do uso que se faz do conhecimento que produz e isenta de influências
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externas na produção desse conhecimento; o uso prático do conhecimento científico
é que, eventualmente, torná-la-ia maléfica;
- [com] desvinculação e supremacia inquestionável do conhecimento científico em
relação a outras formas de conhecimento;
- [com] adoção de pressuposto de que, conhecendo-se cientificamente a natureza por
intermédio das pesquisas e dos currículos escolares, gera-se uma irreversível
consciência ecológica e uma sociedade necessariamente respeitosa e
conservacionista em relação ao ambiente (AMARAL, 2006, p. 104-5).
Os livros didáticos de Ciências usualmente apresentam essa visão de Ciência, que
podemos enquadrar como essencialmente experimental. Muitas vezes o aluno nem se
interessa por esse tipo procedimental, pois, se o experimento não saiu como estava no livro, o
aluno se reprime, acreditando que o seu trabalho não deu certo. Nesse sentido, Hodson (1994)
alerta para o fato, também discutido por Silva e Zanon (2000), de que uma das razões
atribuídas por professores de Ciências para realização de aulas experimentais seja apenas para
motivação dos alunos.
Para se contrapor a essa situação, é preciso que o professor de Ciências tenha
entendimento de que as práticas pedagógicas de experimentação no ensino necessitam ser
conduzidas pelo diálogo; que o importante é o processo e não somente os produtos de uma
prática; que a escrita e o questionamento são possibilidades de registro e exercício da crítica;
e, por fim, que reconheça o papel da experimentação contextualizada e não apenas como um
momento de comprovação de teorias.
Quanto aos livros didáticos, a maior parte deles não condiz com os avanços científicos
que aconteceram nos últimos anos, nem tampouco traz correlação com aspectos da cidadania
exercida em sociedade e como os reflexos da Ciência podem modificá-la, o que os próprios
PCN de Ciências (BRASIL, 2001) prescrevem e atentam que deva ser trabalhado na
disciplina escolar em questão. Isso porque as atividades, exemplos e textos não fazem
referências a descobertas atuais e as práticas pedagógicas sugeridas nas obras são
extremamente tradicionais, reforçando uma perspectiva unicamente mecanicista de ensino,
calcada basicamente na racionalidade técnica - positivismo, o que reforça, também, uma visão
simplista de docência (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2000).
Ademais, são incluídas grandes quantidades de exercícios, denominados “estudos
dirigidos”, que ocupam os alunos em boa parte do tempo das aulas, apenas para transcrever
trechos do próprio texto dos livros (KRASILCHIK, 2004). Neste sentido, também, são
excessivas as indicações de experimentos meramente repetitivos com a pretensa ideia de que
praticando se aprenda e se comprova a teoria. Em Silva e Zanon (2000, p. 121) está posto um
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alerta a um modo muito recorrente de apropriação da experimentação no ensino de ciências,
que corrobora essa afirmação:
pesquisas revelam a prevalência de visões essencialmente simplistas sobre a
experimentação no Ensino de Ciências. Muito se tem discutido a esse respeito e,
como sabemos, ainda é amplamente vigente a acepção de experimentação como
mera atividade física dos alunos [manipulam, “veem a teoria com seus próprios
olhos”], em detrimento da interação e da atividade propriamente cognitiva-mental
(grifos das autoras).
Para Hodson (1994), muitos docentes utilizam aulas experimentais com objetivo de
motivar seus alunos à aprendizagem, o que implica uma visão simplista de docência e
distorcida da experimentação em ciências. Em geral, os livros didáticos de Ciências
transmitem preconceitos contra minorias sociais e étnicas, apresentam valores controvertidos
sobre as relações entre CTS e entre os pesquisadores e a comunidade. “Em sua estrutura,
servem muito mais a interesses comerciais do que aos objetivos educacionais ligados à
melhoria da qualidade” (KRASILCHIK, 2004, p. 49). Desse modo, por vezes, caricaturizam
imagens de cientistas como malucos trancados em laboratórios e executando experimentos
que, na maioria dos casos, explodem ou apresentam profundas modificações em substâncias,
como mudança de cor, aumento de volume, para fantasiar a ciência escolar, com a equivocada
intenção de torná-la mais prática e acessível.
Apesar de todos os esforços empreendidos até o momento, ainda não se alterou o
tratamento dado ao conteúdo presente no livro que configura erroneamente o
conhecimento científico como um produto acabado, elaborado por mentes
privilegiadas, desprovidas de interesses político-econômicos e ideológicos, ou seja,
que apresenta o conhecimento sempre como verdade absoluta, desvinculado do
contexto histórico e sociocultural. Aliás, usualmente os livros escolares utilizam
quase exclusivamente o presente atemporal (presente do indicativo) para veicular os
conteúdos. Desse modo, apresenta-os como verdades que, uma vez estabelecidas,
serão sempre verdades (MEGID-NETO; FRACALANZA, 2003, p. 151).
Essa tensão entre o modo como os livros didáticos de Ciências apresentam a
experimentação e a discussão da área de Educação em Ciências, tendo presente o movimento
nacional e internacional para reconstrução desta área de ensino, é que dá certa provocação em
apresentar novos argumentos e acalorar a discussão em questão.
A experimentação tida como atividade prática nos livros didáticos é em geral
apresentada como um modo de reforçar a visão de Ciência Reproducionista e também como
uma maneira que impõe certo fazer científico, o qual, necessariamente, passa por aulas
experimentais que precisam comprovar na prática os conceitos e enunciados (a teoria)
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apresentados pelos livros. Isso fica claro e tende a ser tacitamente aceito pelos professores que
se utilizam do recurso didático para planejar suas aulas e ministrá-las, conforme o Livro
(BARROS; PAULINO, 2006, p. 9): “como os cientistas trabalham? O cientista, ao usar um
método científico, costuma seguir as etapas: - observar...; - levantar um problema; formular uma hipótese...; -realizar experimentos; ... Nessa unidade, você entrará em
contato com vários outros exemplos de aplicação do método científico e verá que a ciência
está sempre procurando respostas para os fenômenos...”. É notório o reforço de uma
determinada concepção de ciência, deliberadamente tecnicista, ao preconizar que a ciência
trabalha exclusivamente com o método científico em sua forma baconiana (CHALMERS,
1993). Mas, como afirmam Silva e Zanon (2000, p. 122):
quando um professor encara a ciência com a visão ‘do conhecimento verdadeiro, do
definitivo, do certo’ ele vai exigir que seu aluno reproduza tal visão, apresentando (e
assumindo que há) uma única resposta verdadeira-correta para qualquer questão que
lhe for posta.
Esse arcabouço procedimental que o livro didático apresenta e o professor vai
incorporando em sua prática, vai se transformando em conceitual, e, mais que isso, em
atitudinal para o aluno. Desse modo, aos poucos a disciplina de Ciências que é ensinada e que
é aprendida torna-se um modelo retórico de Ciência, a qual reforça a experimentação como
modelo de produção de conhecimento, e, sobretudo, uma experimentação dissociada do
contexto de produção de conceitos, tão almejado pelos professores e pela academia. Posso
afirmar que os objetivos do ensino são deturpados em razão da adoção, por vezes ingênua,
desse modelo.
O modelo de ensino usualmente reproduzido no texto didático reproduz uma Ciência
que tem em seu bojo muitas influências do positivismo. A experimentação do modo como é
apresentada nos livros didáticos de Ciências tanto serve para frisar um modelo de Ciência
como um modelo de ensino que mantém e reforça o positivismo em sua natureza ou
concepção. Amaral (2006) reitera essa ideia, ao afirmar que durante longo período a educação
esteve sob o pensamento positivista e suas derivações, “pautando-se em sua organização e
funcionamento pelo que se denominou de racionalidade técnica” ([grifos do autor], p. 107).
Continuando essa ponderação, Amaral (2006, p.107) aponta que:
currículos escolares e materiais didáticos assimilaram seus fundamentos e
princípios, identificados com uma visão de Ciência neutra, objetiva, capaz de
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produzir conhecimentos verdadeiros e definitivos. Tais conhecimentos eram
decorrência da aplicação do método científico, considerado como um conjunto de
procedimentos padronizado e invariável, que incluía em sua pauta permanente a
experimentação controlada.
Do discurso social do ensino, ao material didático e deste último até a prática docente
o caminho sempre foi rápido e tacitamente incorporado. Desse modo, a experimentação no
sentido positivista de pensamento científico vai sedimentando uma visão simplista de
docência e de ciência (SILVA; ZANON, 2000).
A experimentação como modelo de ensino científico fica reforçada nos livros
didáticos analisados frequentemente, como no fragmento: “mãos à obra... atividade prática
ou experimental ... fervam... acrescentem... distribuam... envolvam... guardem...
coloquem...” (p. 102); “Trabalhando com atividades práticas ou experimentais. Esse
trabalho é muito importante para o desenvolvimento de habilidades de raciocínio no aluno e
motivá-lo para o aprendizado do tema” (BARROS; PAULINO, 2006, p. 12 [manual do
professor]). A ideia de repetição controlada, imposta pelo modelo didático de experimentação
presente no livro citado, confirma que nos livros está muito presente a marcação de uma
categoria que intenciono chamar de Ciência Reproducionista, concepção esta sempre
reforçada pela experimentação. Por isso, como afirmam Silva e Zanon (2000), é importante
que sejam desenvolvidas formas de superar essa concepção de ciência pretensamente neutra,
objetivista, quantitativista, cumulativa, linear, elitista, sobre-humana, a-histórica, ainda tão
presente nos contextos escolares.
Acrescento ao já exposto que a linguagem expressa no enredo dos livros, quando se
refere à experimentação em ciências: “- cubra...; - amarre... - observe, observe a figura; explique...; - anote...; - tenha sempre...” (BARROS; PAULINO, 2006, p. 153), torna o
discurso científico extremamente autoritário, mandatário e, com isso, alinha-se ao modelo de
ensino tradicional, em que o questionamento, a discussão e o diálogo são deixados em
segundo plano. Esse modo de impor as ações procedimentais, sempre se utilizando do
imperativo afirmativo, transmite uma ideia de que a Ciência somente pode ser feita, realizada,
com a repetição de procedimentos que são imutáveis, reforçando o modelo de Ciência
Reproducionista, baseada na racionalidade técnica e no positivismo lógico, que também tem
seus tentáculos enraizados no ensino tradicional de Ciências. Reforça também a noção de que
pela repetição se aprende, ou seja, que a memorização adquirida pela execução ordenada dos
procedimentos seja promotora de aprendizagem. Por detrás desta concepção é reforçada
101
também uma visão simplista de docência, em que o professor aceita o processo e o modeliza
em classe e uma visão de, que ao reproduzir a teoria com aparato experimental, esteja o
professor melhorando a qualidade de ensino e facilitando a aprendizagem em Ciências.
O contexto pedagógico criado pelo uso do livro didático, o qual apresenta uma Ciência
Reproducionista que vai se impondo especialmente pela experimentação – modelo científico
adotado nos livros para se preconizar o bom ensino de ciências, fazendo com que os
conhecimentos sejam reproduzidos e apresentados como sinônimo, também, de cópia, de
verdades absolutas, desconsiderando-se a produção de sentidos e significados necessários à
aprendizagem em Ciências. Assim, ao serem constantemente reproduzidos os experimentos,
vão sendo, também, reproduzidas teorias, repetidos equívocos, por repetidas vezes, de modo a
produzir no contexto escolar uma visão distorcida da produção da ciência e do trabalho
científico.
O conteúdo dos livros didáticos de Ciências tem sido causador de equívocos no
processo de ensino e aprendizagem, tendo em vista que a didática do professor tem sido
aprisionada pelo livro em si, que imprime ordenamento e sequência aos conteúdos e ordena
também o fazer docente. A partir do contexto de pesquisa, é possível afirmar que o cuidado
com o tratamento da temática deva ser redobrado na formação inicial e contínua de
professores, momentos estes em que não podemos deixar esta temática como periférica, já que
nós, formadores de professores, temos o compromisso de reiterar a discussão crítica em torno
dos fundamentos da educação, especialmente frente às amarras docentes, tais como os
recursos do ensino e o seu conteúdo-currículo.
O enredo dos livros didáticos é tão determinante do ensino de Ciências, quanto os
professores o permitem, mas o sistema educacional tende a essa determinação, seja por seus
mecanismos implícitos nas políticas, seja pela reprodução dos discursos educacionais que
forçosamente têm implicado a questão, seja ainda pela formação dos professores da área, por
vezes inadequada. Tão importante quando analisar seu enredo é conhecer os procedimentos de
adoção de tais materiais, como tem sido chamado o processo de escolha dos livros didáticos.
A partir daqui me prendo a descrever e analisar tal processo para perceber a natureza da
relação entre o livro didático, o professor e o ensino de Ciências.
102
2.5 A escolha do Livro Didático de Ciências PNLD 2010/2011 - um dia diferente?
Para situar o contexto da escolha do livro didático, situação que sempre mostra certo
desconforto quando professores são entrevistados, pela alegação de que a escolha e chegada
do livro à Escola são duas coisas muito diferentes, irei me apoiar nas transcrições de
entrevistas que coletei com duas professoras supervisoras de rede municipal de ensino, uma
supervisora escolar e duas professoras de Ciências (sendo uma municipal e outra estadual)
para triangular as informações, a fim de empreender uma análise que pudesse auxiliar no
entendimento da questão, tentando perceber por que decorrem determinadas distorções no
discurso de cada segmento educacional.
É notório, e a trajetória como professor da educação básica permite afirmar, que
existem entraves entre a proposta oficial expressa na política do PNLD e a prática da escolha
e chegada dos livros até as escolas.
Ao que pude perceber na fala das supervisoras municipais, havia sempre presente um
argumento que de que a escolha dos livros em 2010 seria de modo diferente, pois a unificação
do currículo era uma grande razão, e, a meu ver, isso também impôs certa ordem em que o
município ficaria sob a guarda do Estado. Esse dilema que percebi nas entrevistas com os
professores será melhor evidenciado em um dos episódios que analisei no capítulo 3 desta
tese, acerca da organização dos planos de estudos, que no ano de 2010 também foram
unificados pela mesa razão: a necessária padronização dos conteúdos entre as redes para
facilitar o trabalho, transferências e a formação docente, em outras palavras: “fazer uma
escolha unificada a nível de escolas públicas, escolas ... de Cerro Largo... e por razões
assim: a primeira porque os livros vêm pelos anos anteriores, sempre falta, tu tem que pedir
... até que venha aquela reserva técnica, já foi um bom andamento do ano letivo. E outra
razão principal foi justamente porque nós ainda estamos reformulando os referenciais
curriculares e eles, não vou dizer assim que é a base principal, mas eles se tornam referência
pra construção, também. Então, por esse dois motivos, nós resolvemos fazer, acabamos de
fazer na semana passada, e deu 100%, assim de todas as áreas, chegaram num consenso.
Achei que ia dar mais polêmica ...” (Supervisora 2, 2010).
Em entrevista e no diálogo com as supervisoras municipais e professoras, estão
presentes os elementos que configuram o modelo de escolha que a municipalidade defendia, o
modo operante na escolha dos livros didáticos do PNLD 2010/2011 e as reais condições de
escolha.
103
Diálogo com Supervisora Municipal:
Professor Formador 1 (2010): Então, na verdade, foi feita uma escolha única daí?
Supervisora 2 ( 2010):Isso é porque assim, procurou-se ... ver os livros que estão trazendo, mais em formas de
competências e habilidades ... mas nós somos medidos por um IDEB e ainda é uma única forma de avaliação e
aonde a matriz referencial tá saindo disso. Então, nesse sentido, a gente pensou em trazer algo mais próximo.
Professor Formador 1 (2010): Que tipo de orientações vocês passaram pra eles, pra que eles fizessem a escolha?
Como é que foi Superviora 1? [pausa e continua respondendo a própria pergunta] Foi assim: quando chegaram
todos, no primeiro momento estavam todos reunidos. A seguir, repassamos essas orientações de forma indutiva
que eles pensassem que está sendo mexido nas propostas políticas, estamos montando esse ano a nova, novos
referenciais de 5º ao 9º ano que não tem ... a implantação do ensino dos nove anos...
[...]
Professor Formador 1 (2010): ... e depois dessa apresentação de motivos, aconteceu o quê?
Supervisora 2 ( 2010): Daí, eu fiz colocações das editoras também, que nos deixaram alguns recados... assim
sabe... mas isso não foi o que levou... eu percebi claramente, às vezes a editora nos coloca: “escolhendo a nossa
editora... pedindo um professor, um visitante... eles vem fazer o treinamento”... não foi o que levou, eles
realmente analisaram o conteúdo, a apresentação do conteúdo...
Professor Formador 1 (2010): E como é que eles analisaram os livros? Que livros eles tinham na mão pra
analisar?
Supervisora 2 (2010): De todas as editoras e os guias também.
Professor Formador 1 (2010): Então eles tinham na mão guias do PNLD...
Supervisora 2 (2010): ...e todos os... os exemplares...
Professor Formador 1 (2010): E todos os exemplares que as editoras mandam...
Supervisora 2 (2010): ...aprovados pelo MEC... Então tem editoras que às vezes uma área não é aprovada,
outra é... e a novidade pra esse ano... não sei se isso cabe na tua colocação...
[...]
Supervisora 2 (2010): ...apesar de só termos apenas primeira e segunda opção, só foram duas editoras ... não
tiveram muita escolha... mas é a novidade desse ano...
Professor Formador 1 (2010): Na tua visão, o que tu pode observar, já que você estava lá... estava coordenando
a escolha... você acredita que eles se detiveram no livro em si, no exemplar físico, que eles tinham na mão ... de
cada editora que acaba mandando pra gente fazer a escolha; ou que de fato eles se detinham ao guia... pra mim
compreender a escolha; pelo guia ou pelo livro?
Supervisora 2 (2010): Ao livro.
[...]
Professor Formador 1 (2010): que critério de fato tu acredita que eles usaram pra definir esse e não aqueles
outros 9 que poderiam ter sido? Quando tu olha pra Ciências ...
[...]
Supervisora 2 (2010): ...é... o conteúdo que eles têm a ser trabalhado naquela série... então que veio ao
encontro disso.
Na entrevista estão destacados momentos em que ficam expressos: - uma falsa ideia de
que os professores conheciam o guia de escolha do PNLD e que o utilizaram na escolha; - um
crédito sobremaneira na condição de que todos tiveram acesso a todos os livros; - que as
editoras não influenciaram na escolha, mas visitaram escolas e professores prometendo
“treinamento”; - a ligação da escolha dos livros com a mudança curricular e a possível
vinculação com o referencial curricular do RS – Lições do Rio Grande, que já era do interesse
da supervisora que fosse adotado como currículo para todas as escolas de Cerro Largo-RS,
pois assim no pacote teriam o mesmo livro e o mesmo plano para o ano de 2011. A própria
supervisora, em outro trecho da entrevista, posiciona-se como professora também da rede
estadual. Como nas escolas estaduais seguiriam a regra dos referenciais, que vinham sendo
impostos, ela também acreditava ser melhor investir na mesma regra no município, unificando
104
todas as ações e iniciativas, conforme segue: “eu tenho minha experiência de escola estadual,
sempre foi direto na escola” (Supervisora 2, 2010), ainda que não intencionalmente, mas a
experiência vivenciada pela supervisora conduziu de algum modo para que ela aceitasse mais
facilmente a unificação, o que de todo modo facilitaria o trabalho de todos.
Os diálogos da entrevista com a Supervisora 2 (2010) deixaram-me muito duvidoso de
que de fato os professores teriam tido acesso a todos os livros do catálogo de escolha – Guia
do PNLD e também ao próprio Guia. Nesse sentido, ao passo que eu visitava cada escola, ia
entrevistando supervisores e diretores de escola (nas que não tinham supervisoras) quanto ao
processo de escolha do livro didático 2010 do PNLD 2011. Então, selecionei um dos diálogos
que transcorreram em uma biblioteca escolar, enquanto estávamos procurando pelos guias,
livros e propagandas das editoras, durante uma dessas entrevistas que se passou na Escola II.
Diálogo entre formador, supervisoras e professoras:
Professor Formador 1 (2010): Na tua visão, tu achas que o guia do PNLD, o guia do MEC que apresenta o
livro, tem a resenha e a avaliação, ele é eminentemente utilizado pelo professor na adoção ou é mais a cópia
física do livro, o professor na verdade olha o quê, para escolher?
Supervisora 4 (2010): Eu acho que o professor, agora já está mais espertinho, ele não olha tanto o livro que traz
uma visão mais avançada. Ele busca integrar o seu conteúdo a sua realidade dentro da sua comunidade e usar
o livro como um complemento para estudo. Então assim ... eles analisam o todo do livro, inclusive assim, o, se
não existe muita poluição visual dentro do livro, muita propagandinha; o professor já está bem inteligente
para escolher o livro didático.
Professor Formador 1 (2010): E, você já me frisou que o guia também veio e foi de acesso aos professores. Você
ainda tem algum guia na escola?
Supervisora 4 (2010): Eu tenho todos na biblioteca. Estão todos na biblioteca.
(então todos os presentes foram até a biblioteca para ver os guias e continuarmos a dialogar sobre a escolha dos
livros didáticos)
Professor Formador 1 (2010): A minha pergunta aqui com as professoras da escola e a diretora e professora 1,
é quanto à escolha do livro, se elas tiveram acesso ou não ao guia de escolha do MEC- PNLD:
Supervisora 4 (2010): Não, nós recebemos as propagandas que estão na sala dos professores (acho que não
foram recolhidas ) e nós recebemos todos os livros de algumas editoras, inclusive nós recebemos visita de uma
editora, da editora x que veio o próprio representante da editora, veio fazer a visita para nós.
Supervisora 2 (2010): quero fazer uma colocação, eu também sou nova (na SMEC). O pedido do município é
feito na Secretaria de Educação [sim na Secr. de Educação – disse a Supervisora 4 (2010)]. Na Secretaria de
Educação não chegou. Mas com Escola III, que é do estado que eu falei com outra professora, ela disse que elas
estavam analisando o guia do PNLD, agora me fugiu a palavra porque tu tá gravando, então assim eu peguei de
duas escolas para levar livros. Eu não vim aqui no interior. Elas já tinham alguma opinião formada, também
foi em cima do guia. [dá uma olhada na sala das profes – disse a Supervisora 4 (2010)]. Então é nós no
município, professor formador 1, que não recebemos ainda [- porque eu recebi a carta branca – disse a
Supervisora 4 (2010)]. Na secretaria eu tenho certeza que não. Mas eu achei que chegava nas escolas
municipais.
Professor Formador 1 (2010): a meu ver, é bem costumeiro não vir os guias e vir apenas os livros para o
professor olhar.
Supervisora 4 (2010): Não, nós é o primeiro ano que recebemos os livros diretamente na escola, primeiro ano
que recebemos os livros.
Supervisora 2 (2010): ô, viu, o que eu falei. Nós sempre recebíamos apenas o guia, com, com ...
Supervisora 2 (2010): E eu tenho minha experiência de escola estadual, sempre foi direto na escola, por isso
que eu também tenho essas dúvidas, quando a gente coloca
Supervisora 4 (2010): Porque nos tínhamos....É que assim, a gente reorganizou a biblioteca esse ano, e...
Supervisora 2 (2010): Supervisora 1, a senhora no passado...
105
[chega a professora 1, de Ciências, com as propagandas das editoras, da sala dos professores e constata:]
Professora 1 (2010): é, são os guias da Editora!, é...piss..
Supervisora 2 (2010): então assim, ó, eu pensei, né?
Professora 1 (2010): a professora 7 sempre adotou esse, a professora 7 sempre queria. Que livro bom.
E nós de Ciências também conseguimos. Todas as escolas chegaram com a mesma proposta aqui. Meu Deus,
que bom!
Professor Formador 1 (2010): Que livro é o que vocês adotam em Ciências?
Professora 1 (2010): Vou te mostrar aqui. Sabe que o último que veio eu não gostei da 8ª série, e eu continuei a
usar esse velhinho, que era do outro ano ainda e era o que todo mundo escolheu agora.
Supervisora 2 (2010): pois é, né, professora 1, porque às vezes nem sempre vem a primeira opção.
Professor Formador 1 (2010): nem sempre vem a opção que a gente quer!
Professora 1 (2010): mas assim era muita misturança de conteúdo, sabe, era uma coisa mais... eu acho que ...
Esse autor aqui ...
Professor Formador 1 (2010): O autor de livro ...
Professora 1 (2010): até o professor 14, todo mundo, escolheu esse aqui. Claro, eu complemento muito ele, dou
todas, dou além dele, sabe. Muito bom!
[a professora 7 estava presente na ocasião e nada afirmou durante a entrevista]
Num universo de contradições, esse é o contexto em que estávamos imersos, num
contexto em que as afirmações se confundiam com práticas e que não condiziam com a
realidade que estávamos presenciando. Posso afirmar que esse é um quadro bastante comum
nas escolas dessa região, pois tenho pesquisado a educação e os professores dessa
macrorregião desde 2001. E, por mais que o quadro fosse inesperado, de algum modo não
fiquei impressionado com o que presenciei. Em geral, os livros sequer chegam às escolas dos
municípios, especialmente nos com menor número de habitantes. Os guias são apenas
disponibilizados eletronicamente pelo MEC, e num contexto em que a internet ainda é
novidade, senão distante da realidade, o que está no acesso dos professores é o catálogo de
propaganda das editoras, que apresenta todas as obras como uma fábula maravilhosa, em que
tudo parece fácil e bom.
Diálogo com a professora municipal:
Professor Formador 1 (2010): ... como foi a escolha e por que vocês escolheram este livro didático?
Professora 1 (2010): Ah, tá, anteriormente a escolha foi mandado para a escola vários exemplares de várias
editoras, a gente foi dando uma olhada na escola e a gente tem esses encontros na escola II. Então o grupo em
si, porque a escola II também recebeu os livros. Eu já tinha previamente olhado lá na minha escola, então ali
nós voltamos. A nossa turma de Ciências e Matemática voltou a dar uma olhada nos mesmos livros que estavam
lá na escola. Então a gente olhou, analisou junto e a gente viu o tipo de atividade, como era exposta, os
conteúdos, até um pouco a sequência também que a gente tá interada e, tá, aí a gente optou por uma coleção,
essa do autor. Daí a gente teve a oportunidade, um convite da secretaria para todos os professores das escolas
municipais, estaduais, particulares, para fazer uma coisa assim única, que todo mundo pudesse participar.
Os alunos que saem da nossa escola vão pras estaduais, pro ensino médio, na escola VII ,escola VI, daí mais ou
menos eles têm a sequência. Daí eles teriam o mesmo livro que nós, no caso. Daí por isso é mais fácil, por isso
eles quiseram unificar, e assim, quando a gente chegou na prefeitura, todos os professores que estavam lá, das
escolas municipais, estaduais e particulares tinham optado pelo mesmo que nós. Achei bem interessante e os
que não puderam vir mandaram um bilhete com o nome do professor.
Professor Formador 1 (2010): Não foi uma escolha integrada.
Professora 1 (2010): Não foi, nós não tínhamos nem falado com eles. E eles vieram também e acharam assim
por unanimidade que aquela coleção era melhor, então foi uma coisa bem fácil pra nós no primeiro momento
da reunião, nós já estávamos prontos com a escolha, não tinha muita escolha.
106
As razões reapresentadas retomam a contradição de que houve escolha, foi única,
todos concordaram, mas, ao mesmo tempo, não foi uma discussão integrada. Também está
claro nas repostas que não havia muitas opções, ou seja, não eram muitos livros,
provavelmente não eram as doze coleções que estão no guia para a área de Ciências.
Diálogo com a professora estadual: o contraponto
Professor Formador 1 (2010):está bem, então você não participou da escolha?
Professora 10 (2010): não.
Professor Formador 1 (2010): mas, você sabe que foi escolhido o livro didático para 2011, tu imagina que seja
para todos, é isso?
Professora 10 (2010): sim.
Professora 10 (2010): cheguei, mas já estava na reta final. Então o que aconteceu? Cheguei aqui e daí já tinha.
As editoras mandaram para a gente olhar pra conhecer o material e vendo assim, nós escolhemos um da
editora Y... Mas assim veio muitos[livros], aqueles com visão interdisciplinar, sabe, então, conversando com os
outros colegas, por que a gente não decide mesmo se vai em cada série, se vai escolher um?
Professor Formador 1 (2010):coleção diferente ...
Professora 10 (2010): uma coleção diferente. Então, o pessoal achou melhor se ficar com essa da editora y
que eram modelo padrão, assim digamos que já que o pessoal tá habituado a trabalhar, não quis entrar muito
nesse interdisciplinar que porque daí quinta série trazia conteúdos de quinta, sexta, sétima, oitava, mas a nível
mais conforme a idade do aluno. Então, a gente não se achou ainda preparado pra trabalhar dessa forma,
preferiu manter o[livro] tradicional.
A professora 10 (2010), na verdade, não participou da escolha, discordava da coleção
escolhida, mas, por fim, concordou e deixou de ousar em sua escolha por um livro com
abordagem mais interdisciplinar, ficando com o mesmo de todos, demonstrando que ela
mesma parecia fazer parte da escolha quando afirma: “nós escolhemos” (Professora 10,
2010). Mais adiante no texto (capítulo 3) poderá ser percebido, pela análise empreendida dos
encontros de formação, que a adoção do livro didático comum a todos foi um indicativo que,
mais tarde, determinou boa parte das escolhas e mudanças realizadas quanto aos planos de
estudos de ambas as redes: municipal e estadual.
Ao ser aplicado o questionário (apêndice A), vários professores informaram em suas
respostas que não conheciam os critérios utilizados pelo PNLD para avaliação das coleções.
Quando se referem a que critérios utilizam para escolha, alguns remetem à sequência dos
conteúdos e sua correlação com os planos de estudos, como fica claro nas passagens: “o livro
didático é escolhido em reunião com professores da área e segue os conteúdos exigidos nos
planos de estudos” (Professora 1, 2010); “verificando o conteúdo que estou acostumada a
desenvolver em cada série, se o livro contém este eu escolho” (Professora 12, 2010),
provavelmente não se dando conta de que ocorre o inverso: os conteúdos são transcritos para
os planos, que por sua vez seguem o livro e induzem o fazer docente. Quando questionados
sobre o conhecimento dos critérios do PNLD, os professores foram unânimes em afirmar que
107
não conheciam nenhum dos critérios, e alguns afirmam que: “não. Nunca entendi porque
geralmente vem a 2ª opção. Isto já desmotiva, pois a aula bem preparada é tudo” (Professora
2, 2010); “não lembro no momento, mas já li ‘faz tempo’” (Professora 4, 2010); “acho que
devem estar de acordo com os Planos Curriculares da Educação Básica” (Professora 9,
2010) e uma última afirma: “eu li muito ‘por cima’, vagamente, a avaliação feita pelo MEC”
(Professora 12, 2010). Sendo que 12 professores entrevistados afirmam que sequer conhecem
o PNLD e dois apenas conhecem em parte o programa. Um não respondeu.
Quando questionados quanto ao acesso que têm ao catálogo do MEC, ou seja, ao guia
de escolha do PNLD, os professores afirmam na sua grande maioria que na verdade se
utilizam do: “catálogo das editoras” (Professoras 1; 6; 8; 10; 11; 12, 2010), e a Professora 5
(2010) afirma que: “a gente se detém mais ao catálogo das editoras, pois são elas que nos
fornecem exemplares”, o que corrobora a ideia que perpassou o diálogo com os professores já
apresentado, clarificando ainda mais a posição de que os professores não têm acesso ao
material que é desenvolvido para avaliação das obras e coleções e que tem como função
contribuir na escolha dos livros, uma vez que é feito por consultores que analisam
profundamente os livros e compõem resenhas que podem auxiliar ou até conduzir a uma
leitura mais crítica das obras avaliadas, bem como servir de parâmetro para escolha.
O material que chega às escolas é tão somente as propagandas das editoras, que por
vezes vem acompanhado de propostas de formação, computadores, televisão, entre outros
prêmios, dependendo do tamanho da rede ou escola. A maioria dos professores também faz
referência que, mesmo escolhendo o livro, o processo é moroso, geralmente chegando até a
escola somente a 2ª opção e muitas vezes um livro que sequer foi escolhido, como segue:
“muitas vezes escolhemos o livro didático e a escola não foi contemplada com a escolha”
(Professora 2, 2010); “quase nunca vem a 1ª opção, geralmente nos é enviada a 2ª opção”
(Professora 5, 2010); “tem escolha de 1ª e 2ª opção. Geralmente é enviada a 2ª opção, o por
quê, não sabemos” (Professora 6, 2010).
Decorre certo desconhecimento, por parte dos professores entrevistados, acerca do
PNLD, critérios de avaliação do Livro didático, Guia de Escolha, pois na verdade a escolha
ocorre em meio a certo cerceamento do grupo de organização (supervisores) e em meio a
tantos outros enganos que foram destacados nessa parte da análise. Essa situação parece
favorecer a adoção do livro único em todas as escolas e reforça a noção de currículo comum,
advinda da ideia de base nacional comum, concepção de currículo mínimo e de currículo
108
prescrito, conceitos que foram incorporados na vivência destes professores de tal modo, que
por vezes sequer ousam pensar diferente. Esse entrave-dilema também está demarcado na
posição – opção por ser organizado um currículo único para o município de Cerro Largo-RS,
que trato a partir da análise de episódios que decorreram durante a revisão dos planos de
estudos das escolas em que trabalham os referidos professores.
Os elementos que apresentei me parecem retirar parte da autonomia tão bem
estabelecida pela Lei 9394/96 - LDBEN, mas tão distante das escolas brasileiras, pois há
muita imposição que vem dos sistemas. A autonomia talvez não esteja na necessidade de
mudança ou em fazer diferente, mas sim no processo decisório, no coletivo, na autoria dos
conteúdos, nos procedimentos, nos objetivos do ensino e da área de conhecimento. Acredito
que, para formar sujeitos cidadãos, nas ementas dos planos de estudos, colocamos nossos
sonhos e desejos, esperançamos, mas a lista de conteúdos tem se mostrado um mero
ordenamento pela cópia do livro. Assim, cabe perguntar: como atingir um novo sonho
(ementa constituída pelo grupo) com uma velha lista de conteúdo, com a cópia de um
programa distante do qual não participamos e do qual não nos sentimos parte e nem
representados?
O dia de escolha do livro de fato foi bem diferente, a meu ver, do que se espera de
uma escolha, que em princípio deveria ser de cada professor, de cada professora, que com seu
entendimento e com base em critérios de avaliação (inclusive utilizando-se dos que o MEC
oferece), fizesse a sua escolha, quiçá uma escolha de coleção mais interdisciplinar, como
intencionava a Professora 10 (2010). Acredito que esse modelo de escolha tem e terá reflexos
mais intensos que os que estão postos nos diálogos, pois a escolha unificada também encerra
o fazer docente, que já é sobremaneira demarcado pelo uso do livro didático, em apenas um
determinado livro, que melhor representa o currículo-conteúdo. Sobre essa determinante - a
relação entre livro didático e o professor de Ciências - é que passo a circunscrever a análise.
2.6 O livro didático e o Professor de Ciências: uma relação perversa?
Os professores que participam do GEPECIEM, os quais entrevistei um a um sobre a
questão do livro didático, concebem o uso e a adoção do livro de Ciências como algo tácito
em sua prática, tão acoplado a ela que alguns desacreditam que existiria um ensino sem ele.
Nesse sentido, vale ressaltar o conhecimento acerca dos saberes docentes, em especial os
109
saberes da tradição pedagógica (GAUTHIER, 2006) e os saberes provenientes dos programas
e livros didáticos usados no trabalho (TARDIF, 2005). Acredito que as raízes deste sentido,
que deixa tão estreita a relação entre o professor de Ciências e o livro didático, podem ser
melhor compreendidas através do exame da literatura pertinente, sempre tendo em perspectiva
de análise dos resultados apreendidos nos documentos curriculares e no discurso educacional,
muitos já discutidos nesse capítulo.
Ao examinar o discurso oficial a respeito do papel do livro didático na educação,
apreendi uma passagem que suscita reflexões sobre o uso do livro e por que ele deve ser
adotado, na visão do MEC-PNLD:
5. um LD, seja qual for sua área específica, deve preencher várias funções
simultâneas:
5.1.Do ponto de vista do aluno:
5.1.1. transmissão de conhecimentos;
5.1.2. desenvolvimento de capacidades e competências;
5.1.3. consolidação de conhecimentos práticos e teóricos adquiridos;
5.1.4. avaliação dos conhecimentos práticos e teóricos adquiridos;
5.1.5. referência para informações precisas e exatas (BRASIL, 2010-b, p.14 [grifos
do autor]).
O trecho selecionado é trazido aqui na perspectiva de compreender o modo pelo qual a
política pública amarra a prática docente, empreende a obrigatoriedade do uso do livro
didático como o melhor formato para o ensino, uma vez que explicita vários argumentos para
qualificar a necessidade do uso do livro como ferramenta que cumpre “várias funções
simultâneas” (BRASIL, 2010-b, p. 14), especialmente no que se refere aos alunos. Entre as
funções apresentadas, a “transmissão de conhecimentos” e a “referência para informações
precisas e exatas” (ibid, p.14) reforçam uma visão simplista de docência e uma concepção de
Ciência Reproducionista balizados por um ensino tradicional. Ambas, na minha visão, são
compreensões equivocadas e que estão muito ligadas ao ensino na área de Ciências.
Mais intrigante do que apresentar muitas funções e tentar atribuir todo o sentido da
educação e da prática docente ao manejo de um livro didático é o fato de que o discurso
oficial impregnado pelo PNLD assume que para o professor os benefícios são maiores ainda,
pois apresenta informação científica e geral, ajuda a gerir as aulas e a efetivar avaliação de
conhecimentos teóricos e práticos adquiridos e faz sua própria formação pedagógica, de modo
a deixar claro que o professor deve adotar livros: “que ofereçam maiores oportunidades para o
seu crescimento profissional e pessoal” (BRASIL, 2009, p. 15 [grifos do autor]). O
atrelamento da formação ao uso do livro didático é um forte indício do discurso educacional
110
oficial de que o livro vai aprisionando o professor pelo seu mecanismo todo, como programa,
ou, como Geraldi (1993) afirma, o livro vai transformando a sala de aula pela maquinaria
pedagógica que vem junto com o uso do livro, ao se referir que o currículo, o
encaminhamento da aula e as atitudes do professor vão incorporando gradativamente as
feições às práticas pedagógicas ditadas pelo livro didático.
O uso [praticamente] exclusivo do livro didático pelos professores pode ser situado em
no mínimo três tipos de discursos educacionais que selecionei como sendo: - um o dos
gestores/supervisores escolares, - outro o dos próprios professores, e ainda - um terceiro que
está contido nas descrições narrativas dos licenciandos em formação, presentes nos diários de
bordo. Estes distintos discursos é que passo a situar para discutir a fim de compreender a
natureza da relação entre professor e livro didático de Ciências, tendo como base as falas dos
sujeitos de minha pesquisa.
O discurso pedagógico dos supervisores escolares traz à tona, quase que de modo
denunciante, que o uso do livro se dá de modo exclusivo nas áreas de Ciências e Matemática,
e de outro modo também expressa certa delação, relegando que ocorre certo descompromisso
por parte dos professores da área. Esse tom denunciativo parece culpar muito o professor. Nas
falas transcritas do diálogo que segue, parecem ficar claras essas feições.
Diálogo entre as Supervisoras:
(Supervisora 1, 2010): [O livro didático] Eu acho que muito, quase que exclusivamente... única e
exclusivamente. É, em geral...
(Supervisora 2, 2010): ...porque Ciências e Matemática é quase que exclusivo.
(Supervisora 1, 2010): Exclusivo e... . O motivo... se vai ver com a professora, alegam falta de tempo de ir em
busca, não é?... seria falta de tempo mesmo, mas eu acredito também que há um pouco de acomodação... hoje
com a tecnologia e os recursos disponíveis, eu acho que o professor poderia dar um pouco mais de si ...
No discurso educacional dos licenciandos em formação na área de Ciências, fica
expressivo o uso de livro didático em suas vivências como alunos. Também fica demarcado
um certo descrédito na mudança em relação à situação do uso quase exclusivo do livro
didático nas aulas de Ciências que a Licencianda 2 (2010) menciona: “este tema sempre será
muito polêmico, acredito que, mesmo se algum dia o uso do livro didático fosse
compreendido, os professores não conseguiriam retirá-lo da sala de aula porque ele está
muito enraizado na cultura escolar”; “refletindo sobre o ensino de ciências pelo qual fui
submetido, lembro de aulas expositivas como método de transmissão do conhecimento, o qual
era consolidado com a resolução de exercícios propostos pelo livro didático adotado pelo
professor, assim como por outros complementares elaborados pelo docente. [...] Lamento o
111
ensino de Biologia que tive no primeiro ano, o qual era regido exclusivamente pelo livro
didático adotado. Inclusive as avaliações eram baseadas nas atividades propostas pelo
material de apoio, sendo algumas questões cobradas nas avaliações idênticas às propostas
pelo livro” (Licenciando 3, 2010).
A professora de Ciências, ao se expressar quanto ao uso do livro didático nas aulas,
deixa claro o quanto no discurso educacional dos professores essa relação entre professor e
livro é fortemente marcada. Ela refere o uso do livro nas atividades diárias, como fonte de
conteúdo e planejamento das aulas, bem como no que ela descreve como uso do texto do livro
para: “ter mais noção do conteúdo”, por certo aprofundando-o, como segue: “eu procuro
assim ver a forma mais fácil, mais simplificada, dos alunos compreender, entender, eu
procuro conteúdos nele que seja mais acessível, não é?, e daí eu programo minhas aulas,
atividades, eu também tenho caderninho de atividades de outros livros e assim eu vou
preparando minhas aulas [...]. Eu peço pra eles sempre lerem, porque eu às vezes, como eu
toco assim o conteúdo, temas, folhas, quadro, eu sempre peço pra eles acompanharem o
conteúdo e lendo no livro e outro dia eu cobro que tem os livros, o que eles entenderam,
para ampliar o conhecimento, pra eles ter mais noção ainda do conteúdo; pra
complementar eles fazem a leitura do livro, claro que os exercícios do livro a gente faz”
(Professora 1, 2010).
Outro reforço ao aprisionamento docente do professor pelo livro está situado no
discurso oficial que também oferece suas razões para o uso e a escolha do livro didático,
como rotina e atrelado, acrescentando uma nova condição, a educação cidadã: “um LD bem
escolhido, do qual professor e aluno possam fazer um bom uso, é essencial para o
exercício da cidadania própria da ''república das letras", imprescindível para a plena
conquista da outra” (BRASIL, 2010-b, p.14 [grifos nossos]).
Esses entraves, que se revelam nas falas e documentos oficiais, parecem concorrer
sobremaneira para uma expropriação do trabalho docente, nas palavras tão atuais de Geraldi
(1994, p. 119), que, ao se referir ao livro didático como parte concernente do currículo em
ação, afirma: “é ele que imprimia direção ao processo pedagógico” e mais adiante reafirma,
baseada em pesquisa e contexto da época que: “o livro didático ‘adota’ o professor e não o
inverso”. A afirmação contundente de Geraldi (1993; 1994) acaba sendo, no sentido amplo da
pesquisa com o livro didático no Brasil, um modo diferente de compreender a questão,
recolocando-a noutra perspectiva de entendimento, não pensada até então.
112
Elucidando pelo campo empírico, é como bem afirma a Professora 10 (2010): “o livro
[é visto] como único guia nas disciplinas”. Esta expropriação se dá de muitos modos e formas
e parece bem demarcada, nas falas dos entrevistados, como se pode perceber ao fazerem
referência aos motivos do uso do livro didático na aula de Ciências: “... principalmente a
falta de tempo para a pesquisa de outros materiais. Há professores que trabalham até 60h”
(Professora 11, 2010); “eu não compro mais revistas ou outros livros de ciências, meu salário
está sendo usado somente para as despesas da casa” (Professora 12, 2010); “com certeza,
pois torna mais prático, não havendo necessidade de buscar novos recursos e diferenças à
aula” (Professor 14, 2010). As afirmações caracterizam um certo abandono docente,
denunciam o descaso do Estado, e fazem referência a uma sensação de desmotivação que
concorre para a desqualificação da aula, ao deixar de usar outras fontes no planejamento da
aula. Para Ossak e Bellini (2009, p. 3), os livros “por uma série de dimensões políticas na
escola (excesso de aulas, a não institucionalização de aulas práticas [...], a supremacia política
dos livros didáticos como recurso exclusivo do docente entre outras), são considerados o
instrumental” nas aulas de Ciências.
O uso do livro didático de algum modo desqualifica o trabalho do professor, no
sentido da expropriação do trabalho docente. Essa “expropriação não se evidencia (somente)
pela divisão do trabalho na escola (entre o especialista e o professor, entre os Guias
Curriculares, que propõem, e o professor, que executa), mas também pelo tipo de uso feito do
livro didático no currículo em ação” (GERALDI, 1994, p. 126 [grifos da autora]).
Esse uso do livro didático, que Geraldi (1994) caracteriza como parte do “currículo em
ação”, está evidenciado na investigação que procedi, de tal forma que os professores afirmam
que o livro didático: “o livro didático para mim é um suporte de conhecimentos e de
métodos para o ensino e serve como orientação para as atividades de produção e
reprodução de conhecimentos” (Professora 11, 2010); “ele é peça diária em sala de aula”
(Professora 12, 2010); “ajuda a compreender e aprofundar o conhecimento e também sua
pesquisa” (Professora 3, 2010); “o livro didático auxilia no desenvolvimento do nosso
trabalho”(Professora 7, 2010); “ele é um instrumento que auxilia” (Professora 10, 2010).
Nas falas transcritas, parece ocorrer certa diversidade, que se reveste de um mesmo sentido, o
livro manifestando-se intensamente na prática docente, aparelhando a aula. A autora afirma,
ainda, que “o livro didático, nos diferentes usos que são feitos, ‘tem certo poder’ de, nessas
classes e em muitas situações descritas, comandar o processo pedagógico” (ibid, p. 126).
Esses resultados também são evidenciados em pesquisa realizada em São Paulo em que “os
113
professores salientam que o livro didático é utilizado como fonte bibliográfica, tanto para
complementar seus próprios conhecimentos, quanto para a aprendizagem dos alunos”
(MEGID-NETO; FRACALANZA, 2003, p. 148).
No mesmo sentido vão as afirmações de Krasilchik (2004, p. 27): “o estudo das
Ciências naturais de forma exclusivamente livresca, sem interação direta com fenômenos
naturais ou tecnológicos, deixa enorme lacuna na formação dos estudantes”. Cabe destacar
que devemos ter especial atenção ao tratar desse recurso didático na formação de professores.
Em entrevista individual, uma professora afirma sem medos: “eu uso o livro, eu sou
livreira” e mais adiante dá sentido ao uso do livro de modo muito peculiar, referindo que o
mesmo tem “o papel de orientar o trabalho do professor” (Professora 12, 2010). Com base
nas afirmações apresentadas, é possível afirmar que Geraldi (1994) está ainda tão atual. Essas
dimensões que se afirmam, amarram o professor ao uso indiscriminado do livro no ensino de
Ciências, na minha visão aprisionando-o ao livro fortemente. O livro é, pois, o motor do
processo pedagógico.
Os próprios professores que fizeram parte da investigação, quando questionados sobre
uma possível dependência que o livro poderia causar a sua prática docente, manifestaram
concordância com essa suposição [a da pergunta]. Alguns afirmaram: “ o professor muitas
vezes tornar-se refém do livro” (Professora 4, 2010);”acho que sim, pois o professor se
habitua ao livro”(Professora 5, 2010); “há professores que seguem apenas o livro didático”
(Professora 11, 2010); “acho que vai depender do professor, que o livro didático pode
acomodar o professor, sim” (Professora 12, 2010); “de certa forma, alguns professores se
fecham àquela rotina ...”(Professora 13, 2010); “pode tornar o professor dependente,
perdendo sua identidade, tornando-se um mero divulgador de um autor ou grupo de autores”
(Professor 14, 2010).
A suposta escolha consciente acaba por comandar o processo pedagógico, e o
professor, refém de uma prática informada pelo livro didático, reduz a prática ao
desencadeamento que o livro apresenta, seguindo-o e quiçá até utlizando-o para sua formação.
Essa perspectiva do livro como espaço-tempo formativo é muito evidenciada nos discursos
educacionais oficiais, especialmente expressos no PNLD. Tomo esta ligação para analisar
como a prática (sobremaneira atrelada ao livro didático) e a formação estão contribuindo na
relação de aprisionamento do professor pelo livro e ao mesmo tempo tentando apreender na
formação docente um caminho possível de enfrentamento a essa relação, que é de ordem
114
perversa, na minha forma de enxergar a questão. A partir dessa análise acredito que fica mais
deliberadamente clara a tese que estou defendendo e está planificada ao longo da investigação
em distintos momentos da escrita: existe uma relação de aprisionamento do professor de
Ciências pelo livro didático e a formação, pela via reflexiva, torna-se um caminho possível
para o enfrentamento dessa relação.
2.7 O livro didático no contexto da Prática e da Formação Docente
No contexto da atual produção das pesquisas educacionais brasileiras, especialmente
no que se refere à proposição de programas de formação inicial e continuada e dos avanços
que temos galgado gradativamente com os resultados de intervenções colaborativas, é um
retrocesso afirmar que podemos atribuir ao livro didático a formação do professor, conforme
segue:
5.2. Do ponto de vista do professor:
5.2.1. informação científica e geral;
5.2.2. formação pedagógica diretamente relacionada à disciplina em questão;
5.2.3. ajuda na gestão das aulas;
5.2.4. ajuda na avaliação dos conhecimentos práticos e teóricos adquiridos.
Assim, procure sempre as obras que subsidiem mais adequadamente o seu trabalho,
assim como as que ofereçam maiores oportunidades para o seu crescimento
profissional e pessoal (BRASIL, 2010-b, p.15 [grifos do autor]).
Ao examinar as respostas dos professores à entrevista e ao questionário que utilizei
para melhor perceber as dimensões que envolvem a problemática do livro didático de
Ciências, em especial com referência ao seu uso, deparei-me com falas que nos remetem
exatamente à noção que transcrevemos do discurso que se efetiva na política oficial, já citado.
Tais como o livro: “...pode ser um suporte que o professor faz uso no momento de facilitar a
aula” (Professora 2, 2010); “me auxilia no planejamento e preparação das minhas aulas”
(Professora 5, 2010); “auxilia no planejamento das aulas, escolha de exercícios e avaliação”
(Professora 6, 2010); “continua sendo o mais utilizado, em especial, no ensino de Ciências,
pois constitui um dos grandes organizador do trabalho pedagógico em sala de aula”
(Professora 11, 2010). “É através do livro que os alunos estudam a maior parte do conteúdo
dado em minha disciplina” (Professora 13, 2010), essas afirmações acabam por corroborar a
ideia de planejamento, prática e formação pela via do livro didático, uma vez que o professor
115
se apoia demasiadamente no livro didático, utilizando-o como fonte de seu próprio
conhecimento.
O livro em contexto educacional tem impregnado o que entendo por programação da
ação docente. O processo de relação entre livro didático e o professor se estende a tal ponto
que deixa rastros que percorrem percursos formativo-constitutivos dos sujeitos professores,
aprisionando e, por conseguinte, tornando-se constitutivo de suas práticas. Quando
questionados sobre o crédito dado às sugestões do livro didático de Ciências como atividades
pedagógicas que se tornam a própria prática dos professores, responderam: “muitos
professores estão desmotivados e acabam seguindo o livro na íntegra, deixando de lado aulas
que poderiam ser mais criativas, diversificadas, etc.”(Professora 1, 2010); “muitas vezes pela
falta de tempo, o professor segue apenas o livro didático” (Professora 8, 2010); “muitas
vezes, sim, é mais cômodo ficar baseado no conteúdo de um livro do que preparar aulas de
maneira diferente” (Professor 15, 2010). Em certa medida, reportam-se a diferentes
causalidades, mas atrelados ao uso do livro e de alguma forma o livro tem determinado as
suas práticas. Geraldi (1994, p. 119) constata que a “‘adoção’ não se dá somente pela
presença física do livro”, mas também pela “‘maquinaria didática’ que o constitui e o
extrapola, incorporando-se ao saber-fazer do professor, independente da presença física do
livro”.
Os professores de Ciências, no que se refere à formação docente, expressaram suas
impressões quanto a três conjuntos: a presença do livro didático na sua formação, a presença
da temática em sua formação inicial e a necessidade de que este tema seja discutido na
formação inicial e continuada e sua vinculação ao conhecimento que possuíam em relação ao
tema.
Apenas dois professores referiram ter tido acesso, durante a formação inicial, à
discussão acerca de currículo e livros didáticos de Ciências como parte de sua formação
pedagógica, exprimindo: “nossos professores falavam dos melhores livros” (Professora 9,
2010) e “artigos publicados por pesquisadores, legislação vigente” (Professora 13, 2010), o
que permite afirmar que a temática foi abordada de forma reduzida e pouco eficiente.
Quanto à questão ao uso do livro didático durante sua própria formação escolar, a
Professora 1(2010) externaliza que o livro é importante como fonte de estudo, e que isso
remete a sua formação no ensino médio, de onde recorda que seu professor usava e ensinava
baseado nos livros didáticos, o que está presente na sua constituição, como segue no diálogo.
Diálogo com Professora:
116
(Professor Formador 1, 2010): Deixa eu te perguntar mais, voltando à questão do livro: se você fosse situar na
tua formação, que peso que tua acha que livro didático teve? De modo geral?
(Professora 1, 2010): Todos esses anos?
(Professor Formador 1, 2010): É, na formação, não na prática como professora, mas na tua formação?
(Professora 1, 2010): Mas é pelos livros que a gente vai atrás, estuda, eu acho que é muito importante.
(Professor Formador 1, 2010) Mas eu tô tentando situar, por exemplo, aquele livro da graduação, o livro
didático em si, quando você foi aluna, você lembra dele ou não? Será que quando você era aluna, você utilizava
e em que medida?
(Professora 1, 2010): Sabe, eu lembro mais, sabe que no primário nós não tínhamos, tínhamos alguns livros
sim, que eu me lembro é no ensino médio científico, no caso, nós tínhamos um livro grosso, o professor sempre
usava os livros, baseado fundamentado nos livros didáticos.
(Professor Formador 1, 2010): eu vou te perguntar mais uma coisa...
(Professora 1, 2010): E na faculdade nós tínhamos muita apostila, também livros, também muita bibliografia,
assim recomendado para leitura.
A Professora 10 (2010) também fez menção a certo peso que o livro teve em sua
formação como aluna ao longo da vida escolar e reflete que: “às vezes encontra dificuldade
de se desprender dele, porque ele esteve sempre muito presente”, referindo-se a sua trajetória
como aluna. A literatura (GAUTHIER, 2006; TARDIF, 2005) e pesquisas na área da
formação de professores e saberes docentes têm promulgado que a profissão professor tem
suas raízes já em tenra idade. É uma profissão que inicia a sua aprendizagem desde quando
nós, professores, somos alunos. Com isso, quando as professoras se reportam a sua formação
para significar processos de uso do livro didático, estão buscando referências em distintos
momentos de sua aprendizagem docente. Ambas as professoras fazem registro acerca dos
livros didáticos em sua formação na educação básica e, mais tarde, na licenciatura, durante a
formação inicial como professoras: “ele sempre teve presente, sempre que eu me lembro toda
vida foi o livro e a gente naquela época. Hoje eles estão mais acessíveis, mas quando eu
estudava ele era mais um artigo de luxo, porque quem tinha ... como tu vê, eu estudava em
escola estadual, então nós tínhamos o ensino médio e nunca teve livro, tínhamos se os
professores davam a lista e mandavam comprar, chegava a custar R$300 ou 400 reais e nem
todos. Tu fazia alguma apostila, alguma coisa, mas ele sempre foi um instrumento presente
na graduação. E, então, não tem como dizer que a gente não tem um vínculo e é isso que a
gente às vezes encontra dificuldade de se desprender dele, porque ele esteve sempre muito
presente” (Professora 10, 2010).
Em meio à discussão de contextos de prática e formação, garimpei nas entrevistas
algumas falas de professoras que identificam que muitos colegas são dependentes do uso do
livro, que têm dificuldades para selecionar os livros didáticos, que não se sentem preparados à
escolha, mas ao mesmo tempo percebem a necessidade de buscar formação e melhor entender
a questão, como um caminho para amenizar tais problemas: “sinceramente encontro
dificuldades, escolher e usar são duas coisas diferentes, procuro escolher o melhor”
117
(Professora 2, 2010); “acho que não... não fomos preparados para fazer esta análise
meticulosa das obras” (Professora 10, 2010); “analisar os conteúdos qual a profundidade
deles para o crescimento do aluno” (Professora 3, 2010); “inclusive expondo os critérios do
MEC para que os docentes sejam mais criteriosos e não se levem somente pela editora X ou
Y” (Professora 4, 2010); “avaliar os livros que mais são adotados pelas escolas” (Professora
12, 2010).
Outros modos de pensar, analisar e pesquisar o livro didático, por outras vias, têm sido
apresentados. Esses distintos modos de perceber o papel do livro na determinação do
currículo, e por conseguinte das práticas escolares, é encarado por Martins (2006, p. 118),
quando “propõem que se faça um novo olhar para o livro didático, baseado em uma
abordagem discursiva para o ensino de ciências; para além da constatação de erros
conceituais”. Amorim (2004, p. 187), ao se reportar à análise do livro como espaço-tempo de
aprendizagem, e ao se utilizar do referencial da pedagogia-filosofia da diferença, propõe que
se perceba, mais que o livro, as práticas diversas, diferentes e descontínuas e afirma que “o
que gera as diferenças são as maneiras de olhar os fenômenos do ensino”. Com isso sempre há
um devir de práticas possíveis, mesmo que o livro, em geral, prescreva práticas. Está, pois, na
possibilidade das diferenças, situadas as práticas individuadas, pelas distintas interpretações
de cada sujeito professor.
Olhar para o conjunto da análise encerrado nesse capítulo e perceber quais perguntas
respondi, quais novas emergiram desse contato tão profundo entre a investigação e uma parte
de meu campo empírico, faz-me acreditar que em boa medida pude resgatar, a partir de
discursos oficiais, literatura e falas dos sujeitos (seus interesses, suas práticas e concepções
iniciais), elementos que concorrem para afirmar que é possível corroborar, parcialmente até
aqui, a tese que tenho defendido de que o livro didático aprisiona o professor, e esse fato
decorre dos processos de formação.
Acredito que seja prudente afirmar, também, que os livros didáticos têm sofrido
alterações ao longo da história, e que de algum modo também trouxeram melhorias à
educação. Se pensarmos um cenário sem nenhum material didático, sem textos, sem imagens,
com a possibilidade de minimamente mostrar um esboço de seres vivos microscópios, por
exemplo, é no mínimo algo melhor ter o livro-texto, sem que essa afirmativa desqualifique a
crítica que teci ao longo do capítulo, porque não é pelo fato de existir determinando material
didático [o livro], que este cumpre com seu papel no ensino e na aprendizagem. Megid-Neto;
118
Fracalanza (2006; 2003, p. 150) oferecem o contraponto ao possível reconhecimento que fiz
anteriormente, empreendendo que: “é possível afirmar que, nos últimos anos, as coleções de
obras didáticas não sofreram mudança substancial nos aspectos essenciais que derivam de
fundamentos conceituais, os quais determinam as peculiaridades do ensino no campo das
Ciências Naturais”. No sentido da qualidade tipográfica e mesmo conceitual, os livros
didáticos têm melhorado sua qualidade gradativamente pós PNLD 2004, como reflexo das
avaliações que o programa fez intensificar.
Várias coleções surgiram após o PNLD de 2004, algumas delas com a abordagem de
CT, CTS, CTSA e outras com uma abordagem com vistas à compreensão do cotidiano.
Também é importante salientar que obras que continham preconceito racial, erros conceituais
graves foram e têm sido excluídas dos Guias de Escolha do PNLD anualmente para todos os
níveis de ensino. A avaliação por pareceristas ad hoc de Universidades tem sido intensificada
nos últimos anos.
Também cabe frisar o esforço de grupos de pesquisa de Universidades em produzir
materiais didáticos (como textos, sites, livros) para acesso aos professores como modo/forma
de inovação curricular e/ou inovação metodológica como suporte ao trabalho docente em
Ciências. Alguns destes materiais se configuram como textos paradidáticos. Entre os grupos
amplamente divulgados e conhecidos estão os que trabalham como Situações de Estudo
(UNIJUÍ), Unidades Didáticas (Universidade Federal do Rio Grande (FURG)), Sequências
Didáticas (Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)), Conceitos Unificadores
(Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)), Abordagem de conteúdos por CTS e
CTSA (Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); também são conhecidas propostas
desenvolvidas pelo poder público em conjunto com assessores e consultores como o caso das
Situações de Aprendizagem (Secretaria Estadual de Educação de São Paulo), e produzidos em
conjunto com professores da rede como os Livros Didáticos do Paraná (Secretaria Estadual de
Educação do Paraná). Essa diversidade de livros, propostas e, por conseguinte, de textos
didáticos disponíveis leva a uma hibridização de discursos e práticas em contexto do ensino
de Ciências, pois as possibilidades de ressignificação de propostas, modelos e textos torna-se
maior, mais aberta/diversa/híbrida. O Chile tem se dedicado a produção de um evento na área
das ciências experimentais e/ou da natureza: Biologia, Física e Química e das matemáticas
dedicado exclusivamente ao debate em torno de propostas de textos, textos abertos. O evento:
“Seminário Internacional de textos escolares”, promovido pelo Ministério de Educación do
Chile é parte de uma política de Estado que está inovando do ponto de vista dos materiais
119
didáticos, desafiando a academia na produção de materiais alternativos ao livro didático
tradicional.
O conjunto de análises em torno da relação do livro didático com o ensino de Ciências,
o professor e sua formação, que apresentei neste capítulo, configura o esforço para
compreender de que modo decorre o aprisionamento do professor pelo livro didático, parte da
tese que tenho defendido ao longo dessa discussão. Determinadas falas-respostas dos
professores permitem afirmar de antemão que, para além de toda essa dinâmica pouco
produtiva e que consubstancia uma imagem não muito boa da docência em ciências, de certo
modo, também encontrei nessas mesmas entrevistas e diálogos as pistas, as raízes para um
profícuo diálogo formativo, pois, se de um lado, muitos afirmam usar o livro mais que tudo e
quase exclusivamente, de outro alguns afirmavam estar dispostos à discussão da questão e não
apostavam tanto assim no livro como única estratégia de produção da aula de Ciências. Os
próprios documentos analisados dão forma a esta segunda via, pois, quando analisados de
modo particular, também se revelam mais propositivos do que mandatários, como ficou claro
na análise posta em discussão. Por fim, vale a pena ressaltar que essa condição de discursos,
que gradativamente foram se tornando mais híbridos é que tornam o contexto rico e possível
de análise na perspectiva formativa, especialmente olhando pelo viés da investigação-ação,
que se pretende crítica e possível de transformação.
Das falas dos professores 11 e 15 (2010), respectivamente, é possível depreender esse
outro sentido que desejo (re)afirmar: “o livro didático tem como objetivo facilitar o
planejamento de aula. Porém é imprescindível a criatividade do professor e a busca por
outros recursos que diversifiquem as aulas”; “existe
muito pouca relação entre livro
didático e currículo, pois geralmente não se usa a sequência utilizada nos livros didáticos”.
Acredito que é do próprio aprisionamento docente pelo livro que emanam as
necessidades formativas. Ao final do ano de 2010 a Professora 1, afirmou numa entrevista, da
qual transcrevo uma parte do diálogo.
Diálogo com Professora:
Professora 1 (2010): Eu espero que continuem os encontros, que isso dá mais motivação. A gente pode trocar
ideias com outros professores, não fica só em torno de si, o que tu sabe, tu pode trocar ideias, experiências,
tirar suas dúvidas e tudo a gente tem. Eu acho importante esses grupos que a gente tem lá na Escola II, já acho
de fundamental importância, como a gente se troca material, ideias, não fica só isolado. Então a gente sempre
aprende, se aperfeiçoa, eu acho muito importante, espero que seja permanente.
Professor Formador 1(2010): Também (risos), eu acho que esse é grande desafio agora pra dar continuidade.
120
Professora 1(2010): E qualquer coisa que possa surgir, sei eu uma maneira de repente poderia ser melhor uma
aula, que pode buscar, pode trocar ideias, vai conhecendo outras técnicas, outras maneiras de expor, colocar o
conteúdo e de compreender.
Assim, imbuído desse sentimento de desafio e em meio a um grupo com desejos
formativos diferenciados, iniciamos um movimento formativo que foi a implementação do
GEPECIEM, parte de minha investigação-ação de doutorado, de meu trabalho docente e de
minha própria formação como tal. É dessa interação, em contexto já situado, que o capítulo 3
trata. A partir de diferentes episódios, que a meu ver eram mais significativos e permitiam a
análise dos objetivos dessa investigação, apresento e discuto os movimentos formativos que
transcorreram dentro de alguns ciclos formativos que se articularam no ano da implantação do
GEPECIEM.
M
No encontro, a SMEC propôs uma assessoria parcial para mediar a mudança dos conteúdos de ensino nos
planos de 6º ao 9º ano, tendo como base os PCN e o Referencial Curricular do Estado do Rio Grande do Sul –
Lições do Rio Grande. Foi discutida a obrigatoriedade de seguir as Lições, o que a SMEC tende a fazer. Foi
alertado acerca do peso das decisões, solicitamos tempo, mas o desejo e a necessidade de refazer os planos neste
ano têm sido maiores. Observei o quanto o discurso docente revela suas amarras com o ordenamento das
políticas, o quanto o professor é refém do Sistema e como ele reage cegamente, sem questionar, fazendo-se
cumprir as “orientações com leis” e “regras”. Fiquei com medo e confuso ao mesmo tempo. Os professores
desejam mudar os planos? Em que as mudanças vão interferir? As mudanças têm sido direcionadas à unificação
de currículos e conteúdos, por quê? Será bom para quem? Tenho esperança de que o grupo de professores de
Ciências faça uma reflexão sobre o processo antes de (re)pensar os conteúdos (28.10.2011, às 12h).
N
Quando fui Secretário Municipal de Educação de Giruá-RS, o financiamento da educação era um tema que me
incomodava muito. Naqueles anos eu ficava me perguntando como os recursos da educação eram tão pouco
direcionados à formação docente e por que eram tão direcionados à distribuição de Livros Didáticos, por
exemplo. Também não conseguia enxergar, de modo mais claro, como a valorização profissional não conseguia
melhorar o ensino, pois faltava muito mais que salário, faltava formação, faltava entendimento de que pela via da
formação podemos, quiçá, transformar o ato de ensinar (04.08.2011, 9h e 18min, escrevendo a tese).
O
Procedendo leituras e verificando documentos na perspectiva de encontrar a reprodução do discurso das
políticas educacionais curriculares, meu estado de indignação foi muito grande ao encontrar uma similaridade
tamanha entre sumário do livro didático e a lista de conteúdos dos planos de estudos de uma escola pública
estadual. E, pensar que existe o desejo de se unificar a lista de conteúdos, bem como o ordenamento dos mesmos
entre as duas redes (28.10.2010, às 18h).
P
A data de hoje 19.10.2010, é no mínimo, emblemática para minha constituição. Pesquisar currículo, livro
didático e formação docente, tem como via natural a perspectiva histórica, mas mal sabia eu que me encontraria
com os resultados de um trabalho que colaborei como autor e organizador no ano de 1999 e 2000, quando no RS
era imposta uma revisão curricular tendo como base o padrão referencial de currículo e a necessidade de serem
organizados, pela primeira vez, no RS, os planos de estudos. Na época, fui supervisor da área de Ciências em
Giruá-RS, na SMEC[...] Este processo foi sendo encerrado em 2000 e rapidamente posto em prática em 2001.
Nesse período a Secretária de Educação de Giruá era a representante presidente da Região das Missões na área
de Educação, na Associação dos Municípios das Missões - AMM, com 29 municípios na sua abrangência.
Quando tive acesso aos Planos de Estudos de Cerro Largo-RS vigentes até 2010, fiquei extremamente
incomodado e impactado, pois, tal qual eu organizei para Giruá, eu os encontrei, sendo o quadro dos planos de
trabalho de minha autoria e estavam lá tão velhos, tão novos, tão intactos, robustos, enfraquecidos, desgastados
com o tempo e ao mesmo tempo tão atuais. Transcorreram disquetes, CDs e chegaram aos pen drives e à
internet. Fiquei muito feliz e decepcionado num só tempo, me fazendo (re)pensar tantas coisas, que um turbilhão
de emoções me tomou por longas horas até dormir. Após esse sono, hoje, dia 20.10.2010, me pego a pensar no
121
quanto o discurso de autoridade fez reproduzir, com repercussão em toda a região das Missões, algo que na
época (um Licenciando em Ciências Biológicas) me pareceu tão simples de fazer: aplicar as diretrizes, mostrar
ideias renovadas aos professores, aprovar mudanças nos conteúdos, criar um modelo de plano que era diferente e
tantas outras ações. Quanto engano o meu.
Q
A dinâmica que tem sido imposta a minha ação, como professor pesquisador, tem sido muito frenética e está
presente como um turbilhão que me emociona, me faz caminhar e ir em frente, me faz parar e refletir, mas que
exige vigilância, leituras, práticas e de algum modo me coloca em meio a muitas situações e interações, mas de
toda forma também me faz sentir solitário.
122
CAPÍTULO 3: NO CONTEXTO DA CONSTITUIÇÃO DOS PROFESSORES DE
CIÊNCIAS (RE)CONHECENDO CONCEPÇÕES, PRÁTICAS E
MOVIMENTOS
FORMATIVOS
E Pê I esSe acento agudo ´ Ô Dê I Ô esSe: Episódios ...
soletrar para entender bem;
Episódios, encontros, um momento;
Teoria, ação e pensamento;
Reflexão é instrumento;
Formação e prática: constituição e espelhamento;
No contexto, os sujeitos e a prática em movimento.
Este capítulo foi organizado no intuito de contribuir com a melhor compreensão dos
processos formativos que transcorreram no processo da investigação-ação desencadeado pela
implementação do GEPECIEM. A dimensão que investiguei durante o processo foi o modo
como a reflexão pode se tornar um caminho para o enfrentamento de uma perspectiva
tradicional de ensino muito presente no discurso dos professores de Ciências. No transcurso
do primeiro ano do GEPECIEM ocorreram momentos formativos que articularam ensino,
pesquisa e extensão. À medida que os encontros transcorreram, pude perceber como o
contexto mostrou-se um efetivo espaço-tempo para movimentos reflexivo-formativos.
A partir dos encontros do grupo de estudos e pesquisa em Ciências e Matemática,
pude
transcrever
e
analisar
alguns
movimentos
e
contextos
formativos
vivenciados/empreendidos por professores formadores, professores da Educação Básica e
licenciandos em Ciências. Estes movimentos formativos estão articulados em contextos com
os ciclos reflexivos que foram delineados à razão dos acontecimentos, à luz da teoria e em
perspectiva de reflexão. O objeto primeiro da análise foi a compreensão de como a reflexão
compartilhada é articuladora da formação continuada. Nesse sentido, foi indispensável a
análise de episódios transcorridos durante o processo de formação.
123
O exame dos contextos formativos transcorridos nos encontros do GEPECIEM foi
configurado a partir de episódios que se mostraram mais significativos para a compreensão da
tese em questão. Trata-se de episódios identificados a partir de encontros do grupo ou
subgrupos do GEPECIEM, chamados de movimentos formativos. A constituição dos
professores, suas concepções, suas práticas e os detalhes de cada processo, a partir das
interações vivenciadas nos diálogos, foram sendo expressos em diferentes situações
contextuais por meio da análise microgenética, tendo como referencial a abordagem históricocultural.
Os movimentos reflexivo-formativos em relação às concepções, rotinas e práticas
docentes podem ser identificados nas falas dos sujeitos, discursos do grupo que de início não
eram percebidos, diálogo e escuta de todos os participantes. Nesse sentido, à medida que os
processos formativo-reflexivos foram avançando, gradativamente, progressivamente, mas
também com retrocessos, retornos e resistências, foi possível perceber, através de indícios, de
suaves nuances, pequenas alterações e minúcias do processo entre o desejo formativo e o real
trabalho docente que o processo evidencia/implica constituição dos sujeitos (SMOLKA;
GÓES; PINO, 1998; SMOLKA; GÓES, 1994; FONTANA, 2000).
A seleção e o ordenamento de cada episódio têm em seu próprio bojo uma explicitação
que justifica sua análise mais pormenorizada no contexto desta investigação-ação. Os
episódios, todavia, sempre resultam e se constituem em recortes. Nesse sentido, cabem as
palavras de Góes (2000, p. 15), para uma compreensão desse aparato de análise:
em resumo a análise não é micro[genética] porque se refere à curta duração dos
eventos, mas sim por ser orientada para minúcias indiciais – daí resulta a
necessidade de recortes num tempo que tende a ser restrito. É genética no sentido de
ser histórica, por focalizar o movimento durante processos e relacionar condições
passadas e presentes, tentando explorar aquilo que, no presente, está impregnado de
projeção futura. É genética, como sociogenética, por buscar relacionar os eventos
singulares com outros planos da cultura, das práticas sociais, dos discursos
circulantes, das esferas institucionais.
Os
episódios
são,
portanto,
mecanismos
de
apreensão
e
análise
do
percurso/movimento que sinalizam transformações pormenorizadas que em contexto ficam
impossíveis de serem compreendidas/apreendidas. Assim, os “aspectos intersubjetivos e
dialógicos” são recortados em poucos ou muitos episódios que se tornem significativos ao
estudo, de modo a propiciar melhor explicação dos processos formativos/constitutivos dos
sujeitos. Acentuam-se “a dimensão intersubjetiva dos acontecimentos” e o “caráter
compreensivo-interpretativo das discussões” (GÓES, 2000, p. 17).
124
Os recortes dos episódios partiram das transcrições, leituras e olhares em busca de
indícios que evidenciassem a reflexão como categoria formativa de professores de Ciências.
Com a tese em mente, parti para o processo de escolha de manisfestações/falas/diálogos dos e
entre os participantes do grupo de professores de Ciências em formação, selecionados a partir
da presença de indícios de que a reflexão estava sendo desenvolvida e era articuladora do
processo.
Estive o tempo todo procurando marcas, pistas, sinais que me permitissem
compreender a dinâmica formativa em que estive imerso, pois, como pesquisador e
responsável pela organização do grupo, participei ativamente do mesmo, não apenas na
condição de quem “olha de fora”. Toda observação, síntese e reflexão-análise do processo de
investigação foi, também, formativa para mim, como professor pesquisador.
Percebi que a abordagem histórico-cultural, utilizada para compreender os episódios e
os fenômenos dos processos neles transcorridos, é um modo de compreender o exame desses
processos e que estou utilizando-a em perspectiva. Essa perspectiva assumida como um modo
de melhor compreender como os processos reflexivo-formativos acontecem, se mostram, são
suscitados, procedem, são desencadeados durante a ação-formação docente, que implica
constituição dos sujeitos quando o processo está em movimento.
Ginzburg (1989) apresenta os indícios como as marcas deixadas pelo processo, que,
nesse sentido, evidenciam o percurso transcorrido. Ela aponta que, na realidade complexa e
em geral obscura, existem regiões/zonas privilegiadas que permitem decifrá-la, nas quais
estão contidos os sinais, os indícios. A busca por sintomas, sinais e minúcias dos processo
assume sempre um caráter individual no paradigma indiciário, porém a busca por
compreender os fenômenos na sua totalidade é o grande desafio interposto, pelo qual o
paradigma situa sua epistemologia (GINZBURG, 1989; GÓES, 2000). Os indícios precisam
ser explicitados a fim de evidenciar o processo formativo que transcorreu pela via da reflexão,
ou que foi buscado modular-se por esta via, como aposta para enfrentamento dos problemas
práticos assumidos no e pelo grupo de professores participantes da investigação-ação.
A presença dos indícios determinou o recorte dos episódios dentro dos movimentos
formativos, que em geral se deram nos encontros de professores de Ciências em formação. A
partir da escolha de seis encontros de formação, dentre dez transcorridos, pude selecionar
alguns episódios que demarcavam, pela análise das falas e diálogos, um percurso que
desencadeou o processo reflexivo, demarcou o papel da formação no contexto analisado, bem
125
como a centralidade dos conteúdos na prática docente e desenvolvimento profissional e ainda
pode evidenciar como o diálogo (raiz da reflexão coletiva) torna-se um caminho possível para
uma utilização do livro didático de modo mais equitativo no que se refere ao universo das
práticas docentes.
Os primeiros dois movimentos formativos apreendem momentos dos encontros de
formação transcorridos no GEPECIEM. Eles tratam de micropocessos que desencadearam a
contextualização das práticas docentes e apresentam indícios de que, em situação de formação
continuada, a reflexão torna-se um caminho possível para o enfrentamento de práticas
tradicionais, como o uso exclusivo do livro didático de Ciências.
3.1 O movimento formativo mediado pelo texto Joãozinho da Maré: No espelhamento
das práticas a ancoragem de um problema prático
Um episódio é sempre um recorte realizado a fim de nos apropriarmos do contexto em
que ocorreram processos constitutivos, de interação, de internalização, que contêm indícios da
situação que pretendemos discutir, analisar e melhor compreender.
O recorte que foi apreendido no episódio que passo a analisar se deu em função de
certo espelhamento das práticas. Para o encontro de formação em que se deu o diálogo que
transcrevi para este subcapítulo, foi preparada previamente a leitura e discussão do texto: O
Joazinho da Maré6, que induziria à recriação de um contexto de sala de aula. Ao ler, era
esperado que cada professor pudesse se enxergar em sua prática ao refletir sobre a narrativa
do texto, ou mesmo refutar a imagem empreendida pelo texto, ou ainda encontrar no texto
pretensas razões para aproximar ou justificar práticas que podem ser, então, explicitadas.
Silva e Schnetlzer (2000, p. 52), ao analisar o uso deste recurso para favorecer a reflexão
sobre as práticas, já depreenderam que é possível que os professores, através da ‘sala de
espelhos’, “reflitam como eles as [situações] têm recriado através de suas teorias no contexto
da prática. Assim, o profissional pode ‘ver de fora’, distanciando-se da situação, o que
anteriormente havia vivenciado dentro de sua própria experiência”.
Após a leitura completa do texto, foi dado início à rodada de discussão com um
convite a todos para que se sentissem à vontade e fizessem uso da palavra. Nesse encontro de
formação, que foi o segundo do GEPECIEM, houve também a primeira gravação em áudio,
6
O Joãozinho da Maré é texto de um dos capítulos do livro: CANIATO, Rodolpho. Com ciência na educação:
Ideário e prática de uma alternativa brasileira para o ensino de ciência. Campinas, SP: Ed. Papirus, 1987.
126
pois no primeiro foram expostos os princípios éticos da pesquisa e foi solicitada a autorização
para tais gravações. Nesse primeiro encontro, por solicitação dos professores, não houve
gravações.
T 1: Está aberta a rodada de discussão...lembrando que todo mundo que for falar, diga o seu nome antes de
falar. Então quem desejar, comente. Que lhes parece? (Professor Formador 1, 2010).
T 2: Vou começar falando assim. Voltado para matemática, geralmente os estudantes, geralmente tu tem essa
experiência quando tu está trabalhando com polinômios. Os alunos perguntam para que aprender? Onde a
gente vai aproveitar isso? E a gente não sabe dar uma explicação onde está a realidade de se pôr, então tu vai
desenvolver um raciocínio, vai isso, vai aquilo, mas não tem uma explicação concreta para explicar o porquê
de eles ter que aprenderem isso (Professora 9, 2010).
T 3: Mas eu também acho que a experiência de vida de Joãozinho fez com que ele observasse porque ele
estava atento ao que conhecia a sua volta. Era aquilo que ele tinha, ele convivia com aquilo, enquanto que a
professora, nós corremos e às vezes nós comparamos, eu vejo isto porque a minha família... Então ele
tinha....ela o conteúdo, mas ele tinha a prática ... e por isso que os dois não se entendiam, eles falaram na
mesma língua, na mesma coisa mas não se entendiam, não é? (Professora 2, 2010).
T 4: Eu sou muito parecida com ele também, na minha infância, especialmente nas primeiras semanas de vida
de colégio, aliás. Eu via essas coisas e não conseguia entender, porque eu sou mais ligada ao concreto e pra
mim o abstrato é muito complicado pra tu imaginar como é que entra e enxerga como é isso. E a gente tem visto
que a gente não consegue mostrar aquilo que a gente está estudando, história por exemplo, tinha coisas que pra
mim não tinha sentido, decorar datas, coisas que não tinha nada a ver com o que eu vivi, era muito complicado
isso. Eu vejo que muitos alunos também é da mesma forma, assim como a gente não consegue explicar certas
coisas, isso fica lá dentro, eles ficam se questionando, e na nossa época não podia perguntar, não podia fazer
essas perguntas que o Joãozinho fazia. Então, lá dentro de mim eu tinha mil questionamentos. Queria entender,
queria saber e não tinha respostas e isso te gera um aborrecimento. Isso perde até a graça de estudar, de querer
aprender (Professora 3, 2010).
T 5: Eu acho que assim que, quando tu tá encurralada, às vezes te perguntam uma coisa que tu nunca
pensou, não vejo mal nenhum em chegar, e dizer oh, pessoal, amanhã sem falta eu vou explicar bem certinho
pra vocês, isso que realmente é uma dúvida e eu vou trazer pra vocês (Professora 1, 2010).
O espelhamento decorre tanto no sentido de que as professoras estabelecem vínculos
entre a história de vida do Joãozinho com as suas e de seus alunos (T3, T4, T5), como quando
fazem menção às distorções que o discurso pedagógico implica, pois muitas vezes a
linguagem do professor (científica) traduz o conteúdo, quer dizer, o tema não é
contextualizado para uma forma escolar que facilite a aprendizagem. Podia-se inclusive
articular a noção cotidiana do aluno com relação ao conteúdo com o conhecimento científico,
utilizando-se dos conhecimentos cotidianos para mediar a produção do conhecimento escolar
(LOPES, 1999).
Pelo processo de espelhamento que a professora 9 (2010) descreve no T2, é possível
colocar em discussão não somente a questão do como ensinar, mas também a questão do por
quê ensinar os conteúdos ou, nas palavras de Chaves (2007), “por que ensinar Ciências às
novas gerações?”. O texto referido pauta sua argumentação no necessário resgate de uma
abordagem epistemológica acerca da formação de professores para compreender essa questão.
Chaves (2007) reposiciona a própria abordagem de que não se trata de tentar transformar os
alunos em pequenos cientistas, já defendida por Weissmann (1993), expressando que a via da
127
apropriação de linguagens e códigos de uma área (cultura científica) contribui para uma
alfabetização científica necessária, o que penso que possa ser expresso de modo a permitir ao
aluno olhar o mundo com os olhos [óculos, referenciais, códigos] da ciência. A própria
Chaves (2007, p. 18) alerta que:
nessa perspectiva, ensino Ciências não para dar ao aluno o conhecimento do mundo
ou melhorar sua forma de conhecê-lo, mas para acrescentar, adicionar uma outra
forma de interpretá-lo. Forma essa que ao longo da História da humanidade tornouse hegemônica, assumiu uma aura de sacralidade, imunidade social e por isso
agregou poder em torno de si e de quem domina seus códigos. São esses códigos que
precisamos tornar acessíveis às novas gerações para que não se constituam
consumidores cegos dos bens tecnológicos produzidos pela Ciência, mas que,
compreendendo seus mecanismos de dominação e persuasão, possam rejeitá-los,
quando estiverem em contradição com seus valores éticos, estéticos, políticos... .
A questão que está em xeque e sendo reposicionada é o modo de perceber o papel do
conhecimento científico, não como o mais importante e sobretudo transmitido na cultura
escolar de modo impositivo; mas como mais um conjunto de ferramentas possíveis de
articular uma leitura de mundo possível, não sendo, pois, a única, a melhor. A articulação do
modo pelo qual percebemos o papel do conteúdo científico no ensino escolar pode ser
encarada como uma possibilidade de compreensão para a professora e o grupo em questão,
reposicionando também o modo como encontramos os possíveis papéis ou razões para ensinar
ou não ensinar determinados conteúdos (CHAVES, 2007; NOGUEIRA, 1999). Entender que
o conhecimento científico permite a compreensão do cotidiano, ou seja, o conhecimento
acerca do cotidiano é fazer com que essa seja a real necessidade de ensinarmos ciências, dar
ferramentas para que o sujeito possa compreender a realidade, isso é conhecimento escolar.
A formação de professores precisa estar alerta e disposta a essa discussão, no que se
refere a pautar o como e o por quê ensinamos os conteúdos, pois simplesmente a afirmação de
que os conteúdos são necessários não dá mais conta. Trata-se de compreender que os
conteúdos podem estar em pauta, ou seja, podem ser discutidos, (re)significados, alterados,
mas devem ser sobretudo compreendidos no tocante a perceber seu papel na formação
humana através do ensino de Ciências.
T 6: Geralmente a criança aprende vendo o concreto (Professora 2, 2010).
T 7: Tu associando, dando exemplos (Professora 3, 2010).
T 8: Acho que aqui entra uma questão que não se levanta, que é a valorização das hipóteses que as crianças
trazem pra sala de aula, ou a ideia dos conhecimentos prévios, que eles têm e que muitas vezes a gente também
não explora e a questão é que a professora falava. O professor tinha a teoria e ele [o aluno] tinha a prática da
observação do dia a dia, quer dizer, ele tinha um contexto rico pra ser explorado (Professora Formadora 3,
2010).
128
No turno T8, uma professora formadora, ancorando sua afirmação numa perspectiva
teórica, expressa uma ideia que pode ser objeto de questionamento, ao afirmar que os
“conhecimentos prévios, que eles têm e que muitas vezes a gente também não explora e a
questão é que a professora falava, o professor tinha a teoria e ele [o aluno] tinha a prática
da observação do dia a dia”, recorrendo à perspectiva teórica ausubeliana para explicar certo
valor que deva ser atribuído ao (re)conhecimento de conceitos para o ensino em questão. Não
obstante, mais tarde a professora formadora afirma que: “ele [o Joãozinho] tinha um
contexto rico pra ser explorado (Professora Formadora 3, 2010), salvaguardando a
perspectiva da contextualização que, nesse caso, parece indispensável ao ensino de Ciências.
O grupo de professores formadores também estava se conhecendo, se apresentando,
explicitando seus referenciais e situando suas práticas, pois o GEPECIEM é também um
espaço-tempo de formação contínua aos professores formadores, que, quando passam a
planejar e participar do GEPECIEM, iniciam um novo ciclo de reflexão e formação para si
próprios.
T 9: Eu vejo por suas ações uma que está no primeiro parágrafo [do texto lido] onde nos temos aí a ideia que
as pessoas têm em relação à Universidade, que é quando estuda os gêneros e aí o pessoal está mais longe. Isso é
uma situação que hoje está terminando, eu coloco isso porque eu tenho uma experiência de trabalho com uma
escola da periferia, dá pra dizer do bairro, onde eu sempre digo que o bairro não termina na ponte seca, para
eles terem uma visão a mais pro caminho da universidade, e a questão quando falta [os conhecimentos] se diz
assim é científico, está nos livros e está encerrado. Isso a gente percebe que ainda existe, a falta dessa situação.
É científico, alguém escreveu e aí encerra o assunto e o elemento e toda aquela curiosidade que acaba sendo
abafada (Professora 4, 2010).
T 10: Vamos tentar ir acertando esse discurso, todo mundo pode continuar falando na discussão. A ideia é essa.
Quero fazer uma colocação quanto ao que a professora 4 disse que é muito interessante, esse discurso sobre a
ciência com fé que ele revela aí ... E em geral às vezes a gente acaba se aproveitando disso pra justificar, como
disse a professora 1, por vezes a gente se sente apertado também, então não precisa. E a professora 4 ainda
coloca mais adiante que não é só o discurso da fé científica pra se safar. Quanto a esse discurso que em alguma
etapa aí está, se está no livro é assim, o livro didático me persegue e persegue a nós porque por vezes usa
como saída ... pra essa explicação, sem na verdade termos pensado nisso. Me senti em uma situação destas, eu
consegui me sair em várias outras, que às vezes eu me usei do livro ou da fé científica... E me lembro de uma
quando eu estudei microbiologia, ninguém me disse que bactérias aeróbicas respiravam por uma estrutura da
bactéria. Bom, eu sabia que tinha aeróbicas e anaeróbicas e sempre mostro um desenho geral de bactérias com
um monte de estruturas e a gente diz isso pros alunos. E um aluno me perguntou pra mim: Professor, mas como
é que pode, como as bactérias aeróbicas respiram? Eu na hora fiquei pensando na estrutura de uma bactéria e
disse que eu achava, acreditava que fosse um mesossoma. Mas nunca ninguém tinha me dito isso, sorte que
antes de vir para aula eu tinha lido e estava escrito em algum lugar, eu não me lembro onde, até hoje. Faz muito
tempo, foi lá em 1999, mas ninguém tinha me ensinado ou me mandado saber que aeróbicas precisavam de uma
estrutura pra respira, e os anaeróbicos óbvio não respiravam com oxigênio, vão fazer trocas, mas fermentação,
outras coisas, e aeróbicas como é que respiram? Então essas enzimas respiratórias os mesossomos vão fazer
isso. Eu tive que pensar assim, na hora, e eu me lembro dessa situação que me fez na hora me desafiar e
repensar tudo que eu tinha aprendido que não servia para o que o aluno desejava, a minha formação não me
ajudou, não contribuiu, não consegui dar conta da explicação que eu precisava pros meus alunos. Isso é uma
questão importante de entender que a formação inicial e na continuada junto não é, quando não é suficiente
o conhecimento dado, além do livro didático e da formação inicial. Isso acho que vai além da formação, onde
a professora 4 falou. Vou devolver a palavra (Professor Formador 1, 2010).
129
T11: Eu leciono Matemática, na escola I de 5º a 8º série, eu acho que devo ser bem flexível com o aluno,
porque tipo assim, eu passo sistemas mas eu não sei fazer desse jeito eu vou fazer de outra maneira, tudo bem,
desde que haja o mesmo resultado e desde que seu cálculo seja certo (Professora 7, 2010).
T 12: Outro aspecto que para inserir juntamente as influências do meio de sua vida. O Joãozinho tem toda
aquela falta de estrutura talvez familiar, econômica etc e tal. Muitas vezes, não sei daria pra dizer, justificam
algumas coisas, mas pelo menos assim da para entender o aluno, mas...e assim também aprofundando, mas
também a professora está exposta a uma série de problemas: excesso de aulas, excesso de carga horária e que
também fazem com que a gente pense sobre este cotidiano do professor, assim como também é preciso pensar
no cotidiano do educando (Professora Formadora 5, 2010).
T 13: É... mas em relação ao texto, nessa associação do texto científico é ele, é bastante representativo, né,
acontece nas nossas escolas. Talvez o Joãozinho aqui tá conseguindo abstrair mais do que as crianças das
nossas escolas, mas não de fazer essa associação com o contexto... É comum entre as crianças elas fazem e por
sua vez o professor são levados a trabalhar com a ciência e muitas vezes a pensar na ciência, realmente
distanciada por questões de linguagem, pra concluir os contextos que muitas vezes não são trabalhados. E …
acontece de dizer assim, eu não sei isso, amanha eu te trago essa resposta, ela é extremamente prudente porem
eu não acredito que no caso de uma professora com esse pensamento como tá no contexto ela consegue no outro
dia da a resposta correta. Porque tá mostrando assim, né...essa discussão, mesmo que ela tá fazendo a leitura
do livro custa a pensar de outra forma. Se a gente perceber as primeiras observações que as crianças fazem
elas tão muito ligadas às informações que os primeiros cientistas nos deram. Só que essa sistematização desses
conhecimentos são representados na questão do livro, são questões que nos vamos ver de forma equivocada
muitas vezes nos queremos dar enfoque em algum conhecimento e aí exageramos pra que facilite o
entendimento e isso às vezes traz outras consequências. Então a gente aprende um item, vamos dizer assim, do
conhecimento, mas ao mesmo tempo estamos construindo outros em função do que foi colocado aí. Os livros
trazem muitas figuras e a imagem é uma informação muito forte. São colocadas informações para que se
entenda. Eu trouxe até uma figurinha que "mostra" as leis da fisica que são trabalhadas. Existe na física a Lei
de Kepler, lei das órbitas, que diz que a órbita dos planetas ao redor do sol são órbitas elípticas. Então são
colocadas nos livros representações de elipses bastante "achatadas", o que não é a realidade que acontece com
a Terra. Nesse tipo de informação, os livros colocam a terra passando em orbitas próximas ao sol, embora não
seja. Então esse erro, na verdade, o livro não tá dizendo isso muitas vezes, mas a figura tá (Professor Formador
4, 2010).
T 14: Eu li um texto e me ativou muito a questão da linguagem, porque a professora usava o sol a ponto de
pino, que ela diz e outro conceito que sempre vão contar. A isso se aplica na terra, será que isso é igual onde eu
vivo? Eu li também do Chassot, ele trata a alfabetização científica, aí ele trata a questão da linguagem a gente
tem que ter um cuidado na hora de transformar a linguagem científica que é só para alguns,que hoje em dia, a
maioria. Pra uma linguagem esotérica, seria como uma linguagem mais ampla que todos poderiam entender. E
eu acho que isso acontece muito no texto e Joãozinho tenta entender a linguagem da professora, mas ele não
consegue muitas vezes aplica ela no contexto que ele vive. E na química, por exemplo, a gente usa muito, muitas
palavras que nem a professora fala, na quinta nos usamos muito átomos moléculas tudo é, então se tem que
trabalhar modelos, aí a questão da linguagem é mais importante ainda né... (Professora Formadora 6, 2010).
A sala de espelhos parece ter promovido uma efetiva correlação entre práticas
descritas e práticas vivenciadas, facilitando a explicitação em alusão ao texto lido. No
contorno das falas, é possível perceber como as professoras veem a prática no espelhamento:
“eu vejo por suas ações uma que está no primeiro parágrafo, onde nos temos aí a ideia que
as pessoas têm em relação à Universidade, que é quando estuda os gêneros e aí o pessoal
está mais longe” (T 9); “mas também a professora está exposta a uma série de problemas:
excesso de aulas, excesso de carga horária e que também fazem com que a gente pense
sobre este cotidiano do professor” (T 12); “é... mas em relação ao texto, nessa associação do
texto científico é ele, é bastante representativo, né, acontece nas nossas escolas” (T13); “me
senti em uma situação destas, eu consegui me sair em várias outras, que às vezes eu me usei
do livro ou da fé científica...”( T 10). Ao externalizar como percebem suas ações, os
professores vão delineando um problema prático, ou seja, percebendo, aos poucos, que suas
130
práticas têm determinados elementos que podem ser compreendidos, examinados,
contextualizados e, com isso, melhorados.
O uso do livro didático de Ciências entra em discussão. Mais que isso, foi colocado
em xeque quanto de crédito nos acostumamos a dar às tais “verdades científicas” que são
reproduzidas no enredo dos livros, situação que discutimos no capítulo 2 dessa tese, pela via
do conteúdo expresso nesses enredos. Ao iniciar a discussão, logo uma professora percebe
que o livro é um obstáculo à aprendizagem, ao focar-se através da prática da professora de
Joãozinho, que era, sobretudo, também, baseada no uso do livro para explicar os conceitos. A
Professora 4 (2010) afirma: “e a questão quando falta [os conhecimentos] se diz assim é
científico, está nos livros e está encerrado... É científico alguém escreveu e aí encerra o
assunto e o elemento e toda aquela curiosidade que acaba sendo abafada” (T 9). Quando a
professora explicita que o livro favorece para ‘abafar’ a curiosidade dos alunos, ela coloca na
pauta do diálogo formativo o peso que o livro tem na determinação de conhecimentos e no
aprisionamento dos professores. Além disso, o diálogo recoloca o lugar e o papel do professor
na aula de Ciências, chamando a atenção no indício presente na fala: ‘é científico, alguém
escreveu’. Essa marca é também propulsora da reflexão, do pensamento acerca do que ela
frisa, ao fazer referência a esse argumento de autoridade.
Os formadores também aproveitam para fortalecer o olhar sobre o papel que o livro
exerce no fazer docente, em analogia à acepção de Arroyo (2001), para que haja certas
mudanças ou rompimentos na estrutura e na dinâmica escolar (currículo, ações, formação). É
preciso colocar em dúvida ‘certos deuses’ que se fizeram constituir ao longo da história da
educação, quando o autor faz referência à forma de organização escolar fragmentada e
cristalizada por séries. Essa forma torna-se obstáculo à escola plural que o autor defende, na
visão de professor transmissor/reprodutor de informações. No contexto situado, é preciso
também colocar em discussão que, por detrás da tendência a manter o ensino tradicional, um
dos deuses é o próprio livro didático, que aprisiona o professor ao seguimento da velha lista
de conteúdos; outros deuses, como os conteúdos, a Ciência e o conhecimento científico
também cercam as práticas.
Parece-me que, ao trazer o livro para a discussão, ele é olhado de modo diferente
como um instrumento que causa distorções, que tem presença forte, mas há mais um
instrumento. A afirmativa nos turnos de diálogo T 9, T 10, T 11 de que o livro tem imposto
práticas de ensino em Ciências (através dos conceitos), também aponta, mais adiante, no
131
discurso do professor formador 4 (2010): “que ela [a professora do Joãozinho] tá fazendo a
leitura do livro custa a pensar de outra forma” (T 13). Então, para além de reafirmar um
certo aprisionamento do livro em relação ao professor, esse diálogo formativo também põe
em movimento que é possível pensar sobre, ‘pensar de outra forma’.
A formação sobre a qual estamos debruçados no GEPECIEM é uma formação que tem
como pretensão pensar o contexto da área de Ciências da Natureza (CN) e Matemática. Essa
formação nunca deixa de considerar o conteúdo, e talvez seja nesse ponto que os teóricos da
educação (em geral) não compreendam ou custem a compreender a produção das pesquisas
que têm no seu bojo a questão do conteúdo, indissociada da formação.
Acredito que nos turnos T 2, T 10, T 13, T 14, estão evidenciados, para além da
preocupação com os conteúdos específicos, o potencial que temos ao reunir as três subáreas
das CN, que se encontram pela aproximação que a dinâmica curricular da Educação Básica e
do Curso de Graduação em Ciências: Biologia, Física e Química - Licenciatura nos impôs,
mas, para além disso, estão dialogando num grupo com a Matemática, porque esses sujeitos,
professores formadores, acreditam e desejam compreender melhor como os processos
formativos se contornam, podem ser construídos numa perspectiva interacionista, sobressaem
às próprias áreas. Tendem, pois, a meu ver, a uma percepção de como esses processos sobre,
na e para a formação de professores podem partir de um diálogo reconstrutivo no que se
refere à área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias (CNT) e um diálogo formativo que
aos poucos tende a ser caracterizado como interdisciplinar. Essa é parte de minha aposta
quanto ao grupo de formadores.
T15: Então, portanto, acho que a professora formadora 6 levantou uma questão bem primordial ... que a gente
poderia olhar para essa aula e ver e perguntar algumas coisas relacionadas a isso. A aula desse professor
ainda era muito monóloga, só ela falava até o dia que o Joãozinho começou a incomodar, não é, porque, se não
incomodasse, continuaria sendo uma aula extremamente monológica, não havia diálogo nas aulas dela, não é?
E temos que observar isso, mesmo que não esteja escrito pelo discurso que ela vai se colocando e o incômodo
que ela sente na pergunta. Então ela não tem hábito de... abrir para a pergunta e aí vem a questão da
professora formadora 6, que disse: a ciência em geral é muito nominalista, e ao ser nominalista, não é
conceitual, e uma aula muito monológica não permite que haja mediação para a produção do conceito, porque
a professora fala, diz o que está prescrito e é aceito... e esse prescrito às vezes é só um nome, não é um conceito
e não é um diálogo sobre o que significa para cada um, aproveitando o cotidiano, o científico, para fazer uma
linguagem mais compreensível ou para fazer o que a gente tentar buscar que é uma recontextualização desses
conteúdos científicos, para transformar em conteúdo escolar, porque a aprendizagem de conhecimento escolar
não é do conhecimento científico e isso é uma coisa que nós devemos ter claro, o conhecimento que está no
livro didático já é um conhecimento escolar para dar acesso [a compreensão] ao conhecimento científico, mas
o que não é conhecimento científico, não está a ciência, está uma didatização da ciência, nós temos que ter
esse processo, como processo educativo de tentar recontextualizar os conceitos científicos. Daí, sim, dos livros
científicos, para os alunos em conhecimento escolar, mas essa parte educacional do conhecimento científico ao
conhecimento escolar passa pela linguagem e o que a professora formadora 6 disse é muito importante para
questão, ou, se usamos um conhecimento extremamente científico do início ao fim da aula, por vezes a maioria
não entende nenhuma palavra, não entende a palavra porque não tem conceito, só tem palavra, são somente
132
nomes... e eu acho que isso tem a ver com, em geral a ciência ser muito nominalista... Tem a ver e aí, se não usa
o contexto, com certeza não contextualiza, não significa. Isso não é uma coisa da educação básica apenas, uma
coisa aqui da graduação, da pós-graduação, aulas extremamente monológicas (Professor Formador 1, 2010).
Os conceitos, a linguagem científica, o livro didático, são temas que perpassam o
processo de formação dos professores de Ciências e Matemática que se iniciava. Os
formadores, de modo especial, tendem a ir situando a teoria. Essa referência está presente e
vai lastreando o discurso dos professores formadores, muitas vezes de modo disfarçado:
“assim como também é preciso pensar no cotidiano do educando” (Professora Formadora 5,
2010); outras de modo mais explícito: “Chassot, ele trata a alfabetização científica”
(Professora Formadora 6, 2010), porém presente.
O Professor Formador 1(2010), ao final da discussão, tenta resgatar a questão dos
conteúdos e sua forma escolar no que se refere à aprendizagem, ao afirmar: “que o
conhecimento que está escrito nos livros, ainda que venha dos conhecimentos científicos, o
conhecimento que está no livro didático já é um conhecimento escolar para dar acesso [a
compreensão] ao conhecimento científico, mas o que não é conhecimento científico, não está
a ciência, está uma didatização da ciência, nos temos que ter esse processo, como processo
educativo de tentar recontextualizar os conceitos científicos”. Ao (re)situar uma questão que
permeou o diálogo, o formador faz menção clara acerca do tipo de conhecimento que está
sendo recontextualizado no livro, no âmbito escolar, para contribuir na compreensão de que
estas ‘supostas’ verdades científicas em que os professores tendem a se apoiar são, na
verdade, conhecimento escolar e não científico, no sentido de sua produção. Ao fazê-lo, penso
que estava tentando, de algum modo também, retirar do crédito do livro didático o lugar de
(in)formação aos professores, sobretudo se configurando muitas vezes como um recurso que
contém o próprio conteúdo que o professor necessita saber para ensinar.
Penso que o diálogo pôs em movimento teorias e práticas que se revelam possíveis de
melhoria, de exame, e com isso, de transformação, possíveis também de reflexão processual e
formativa. Não se trata de qualquer reflexão, como afirma Zanon (2003, p. 258), pontuando,
com base no argumento de Zeichner (1993), que se trata, pois, de uma reflexão em
perspectiva formativa.
Algumas questões importantes para pensar no reflexo e autorreflexo como
profissionais são colocadas em discussão por Arroyo (2001, p.13) quando afirma que:
sabemos bastante sobre o que pensam sobre os professores(as) seus governantes, as
políticas de renovação curricular e as propostas dos centros de formação e
133
requalificação. São as imagens dos outros, projetadas sobre o magistério. E nossa
autoimagem e autoprojeção? Como a categoria pensa em si mesma? No espelho dos
outros ou no próprio espelho?
Arrisco afirmar que nas entrelinhas o pensamento de Arroyo (2001) tem certo
encontro com o espelhamento das práticas, pois, através de nossa autoimagem refletida a
partir dos nossos próprios pares, podemos perceber a profissão docente, seus dilemas, dores,
sabores, entraves e expectativas que vão sendo explicitadas e facilitando a compreensão no
contexto reflexivo-formativo.
Muitos dos professores participantes se autorizaram a falar no encontro de formação
do GEPECIEMR. Acredito que as promessas com o diálogo franco, aberto e crítico já eram
grandes desde o início das atividades e até mesmo estavam externalizadas nos desejos
formativos iniciais, indício que evidencia como o processo formativo foi desencadeando a
reflexão, a autonomia, como pode ser evidenciado na transcrição da fala de uma professora
em um dos encontros ao final do primeiro ano de existência do GEPECIEM: “eu estou aqui
me coçando, mas é uma situação assim, ó, eu vou dar quase que um depoimento que, na
realidade, quando tu recebeu um convite pra participar do grupo, eu pensei, que legal, é
terça-feira, no meu dia de folga, eu vou preencher, vou fazer, mas assim ó, eu tenho, a
professora 10 coloco o que nós vamos fazer, nós vamos rever, cada vez que eu venho pra cá
essa troca de informações eu vou pra casa sempre com aqueles bichinhos. Então passam
coisas e eu tenho que mudar, algumas coisas eu tenho que fazer diferente, hoje eu tento aqui,
amanhã ali e isso é umas das cosias que eu estou dizendo, que sirva de exemplo pros
licenciandos que na realidade aquela questão da formação continuada do professor, né, o
que faz a gente gera uma pergunta pra que a gente possa alcançar melhor os alunos... então
com essas coisas, e eu estou levando algumas coisas daqui que eu pego no grupo .. mas
agora eu mostro pra vocês, licenciados hoje: já vão levar uma bagagem pra quando vocês
forem pra escola que nós não tivemos, mas isso gera uma inquietude, mas é uma inquietude
que faz com que você se mexa” (Professora 4, 2010).
O espelhamento, como afirmam Silva e Schnetzler (2000), respaldadas por Schön
(2000), Nóvoa (1992), Carvalho; Gil-Pérez (1993) e Zeichner (1992; 1993), é um mecanismo
que favorece a reflexão, pois através desse: “os formadores podem auxiliar os
profissionais/professores a se questionarem sobre os problemas da prática através da
demonstração de situações homólogas”. Desse modo, revelam-se as teorias, discutem-se as
concepções e práticas presentes na ação e a “a análise que o profissional/professor faz da
situação homóloga permite-lhe visualizar aspectos problemáticos da sua prática que podem
134
tornar-se objeto de reflexão individual e coletiva”. O espelhamento, como prática propulsora
da reflexão acerca das práticas, contribui “para a promoção da formação reflexiva de
professores” (SILVA; SCHNETZLER, 2000, p. 52).
A ancoragem situada no espelhamento das práticasS, que afirmo ter decorrido no
episódio, revelou que, ao analisar situações como problemas práticos que são vividos e
sentidos em nossas trajetórias docentes, sejam eles o uso do livro ou a relação entre tal e o uso
e os dilemas na significação dos conteúdos, foi sendo permitido no grupo o espelhamento de
um no “mirar-se” do outroT, o que parece estar de acordo com que manifestaram Silva e
Schnetzler (2000, p. 44), como uma premente necessidade dos programas de formação
continuada: “conceber a prática pedagógica cotidiana como objeto de investigação, como
ponto de partida e de chegada de reflexões e ações pautadas na articulação teoria-prática”, que
pode aos poucos estar sendo revertida em processos que vão gradativamente “promovendo a
transformação de um professor transmissor/reprodutor de informações para um professor
reflexivo e pesquisador de sua própria prática”.
3.2 O movimento formativo da Experimentação: (re)dimensionando a experimentação
pelo diálogo crítico e constitutivo dos sujeitos professores
A experimentação é sempre um tema que vem à tona quando discutimos o ensino de
Ciências. Dessa forma e não diferente do que se esperava nos encontros com o grupo de
professores, na entrevista com supervisoras da Rede Municipal e no planejamento das
atividades do GEPECIEM, esse tema tomou forma com força e intensidade, de modo que se
tornou inevitável abordá-lo. Aqui trago trechos de episódios que abrangeram a discussão do
tema no subgrupo 1. Através dele é possível identificar diferentes concepções acerca da
experimentação e o modo como estas expressam práticas que estão ligadas ao uso do livro
didático e são predominantemente tradicionais, baseadas numa Ciência Reproducionista que
torna a aula copiada, reproduzida e pouco produtiva de interações.
Ao longo do episódio também estão expressos momentos que mostram que, ao pôr em
discussão as teorias e práticas, os professores vivenciam processos de reflexão compartilhada.
Movimentam no grupo momentos caracterizados como reflexivo-formativos e estes são a
própria constituição acontecendo, em contracorrente a outros momentos já vivenciados na
135
formação inicial, na prática docente com uso do livro e nos cursos de formação ao longo da
carreira.
O episódio transcrito já expressa logo de início o prestígio que as práticas
experimentais têm por parte dos professores, como fica evidente no T 4: “acho que o
experimento é a visualização, ensina muito mais” e no turno T 6, a correlação das práticas
com o uso do livro, o que já foi discutido no capítulo 2 pela via do conteúdo e da reprodução
de teorias através das práticas presentes no enredo dos livros de Ciências.
T 1: Eu C., acho que, pra mim experimentação é conhecer algo novo, algo que a gente ainda não viu se tá
certo, se... se é bom, se é ruim, se dá pra adaptar, se não, se é pra tirar fora, se é pra colocar coisas novas
(Professor 9, 2010).
T 2: E no sentido da tua prática, tu tem utilizado a experimentação? Como? Sim, não? Em que medida? É
possível?...(Professor Formador 1, 2010).
T 3: Sim, tenho, a gente sempre vai procurando desde uma atividade, um exercício novo, uma coisa mais
prática pra aumentar o conhecimento dos nossos alunos (Professor 9, 2010).
T 4: Eu, pra mim, professora 2, acho que o experimento é a visualização, ensina muito mais. Eu acho que a
visualização, o experimentar, supre muitas palavras, né... o aluno tira suas próprias conclusões, né, ele pode
ir até além da sua imaginação, né? (Professor 2, 2010).
T 5: na nossa escola, na Santo Antônio, como nós temos laboratório lá, eu faço bastante técnicas práticas com
eles porque eles têm bastante, eles demonstram muito interesse, eles gostam demais, “quando é que vamos no
laboratório?” então eles aprendem assim, eles perguntam, eles querem saber... Eu acho também que é muito
válido, de só teoria, teoria, então quando tem uma coisa diferente, uma prática, uma técnica, então eles... eles
se interessam parece mais e perguntam mais e todos querem fazer, todos querem manusear, todos querem...
acho que é uma complementação né da teoria (Professor 1, 2010).
T 6: Eu não sei, eu não vejo experimentação como algo assim tão importante pra a aquisição do conhecimento.
Eu acho que é mais uma mudança de dinâmica... que a gente tá em sala de aula, trabalhando muito com texto,
ou é aula expositiva, ou são textos discutidos com os alunos, pra mim ir pra uma sala de aula prática é uma
maneira de mudar a dinâmica como tá acontecendo, mas no final eles vão ter que ler os mesmos textos e no
fundo a experimentação que a gente usa é mais... bom, eu dou aula de citologia, é mais observar lâminas,
observar material, às vezes preparar o próprio material, acho que é mais de mostrar de onde e que veio aquele
material que tá sendo observado e o que... e observar que numa lâmina citológica e não numa foto de um livro.
Então dá pra ter uma ideia de ajudar a complementar o material que já tão estudando num livro, olhando
num slide... (Professora Formadora 2, 2010).
As concepções dos professores e licencianda estão marcando as interações no
encontro de formação do qual foram registrados e transcritos os episódios que me proponho a
analisar. É situado por um momento inicial, em que todos são desafiados a explicitar suas
ideias acerca da experimentação e de como fazem uso dela. Nesse momento inicial, são
possíveis de percepção concepções distintas que no diálogo progridem, regridem,
assemelham-se, diferenciam-se e no seu conjunto acaloram a discussão sobre a temática,
causando confortos e desconfortos que parecem ser formativos aos participantes do grupo.
T 7: Mas não acha que ajuda a memorizar? Quando eles fazem alguma coisa, eles não esquecem tão fácil, que
nem pegar só a teoria e... quando eles enxergam... agora é difícil tu trabalhar com criança pequena também só
teoria, eles sentam ali, eles não ficam, sabe, eles começam fazer outra coisa, fica uma aula monótona
(Professora1, 2010).
T 8: eu sempre na verdade dou uma aula teórica-prática junto, que eu já dou a teoria e ao mesmo tempo
mostrando a lâmina..porque nunca pego... oh, vamos olhar tais lâminas e desenhar tais coisas. Eu explico tudo
de novo, de onde é que veio esse material... lembra do órgão tal, tal e vai... e ainda assim às vezes dá pra
136
perceber que não funciona, então... por isso que eu digo, é uma mudança de dinâmica, é um jeito mais...
(Professora Formadora 2, 2010).
T 9: ...as crianças querem uma coisa... (Professora 9, 2010).
T 10: ...sair de uma sala de aula normal e fazer uma outra coisa numa outra sala, num outro lugar... em grupos
menores (Professora Formadora 2, 2010).
T 11: o encaminhamento da aula também é importante porque aula prática pode ser muito legal... e também
pelos alunos, que tem alunos que adoram.... ficam ali, olhando; “ah finalmente to vendo”.... agora tem uns que
detestam; “o que que a gente tá perdendo tempo aqui”... ainda mais quando a gente pede... a ideia da
memorização, da fixação, a gente pede pra eles desenhar tudo o que tão observando no microscópio... e a gente
não deixa eles sozinhos desenhando, a gente fica acompanhando pra ver se tão, se não estão entendendo errado
a lâmina, olhando pros desenhos depois. A ideia do desenho é mais olhar, depois, se eles entenderam o que tão
observando. A gente cobra o desenho, porque eles fazem o desenho, mais tarde a gente vai analisar: “olha, ele
pelo menos sabia mais ou menos o que que tava procurando” o aprender, olhar pro pessoal é porque eu não
posso aprender a olhar por ele. A única maneira da gente saber é olhando o desenho pra ver... não precisa
desenhar direito, a gente só quer saber na verdade... (Professora 1, 2010).
T 12: bom, no meu ponto de vista, acredito que é um complemento da teoria, né, que o professor não fica só
detido no conteúdo, ele usa a ideia da experimentação pra tentar proporcionar ao aluno um melhor
entendimento. É que nem, como foi falado, pra não ficar uma aula, tipo... sempre a mesma coisa... (Licencianda
1, 2010).
T 13: eu acho que tá bem certinho, eu acho que é complementação mesmo (Professora 1, 2010).
T 14: sou fã número um das aulas práticas porque elas fazem com que o aluno experimente, com que o aluno
enxergue, com que ele vivencie aquilo que ele está aprendendo... teoricamente, na teoria, né, então isso faz com
que facilite o aprendizado, ele se empolga mais pelo estudo, se envolve mais... então eu vejo assim que a prática
pra mim é fundamental, caminhar junto com a parte teórica, né? Eu vejo que isso enriquece muito o
aprendizado do aluno (Professora 3, 2010).
Os trechos do episódio contidos nos turnos indiciam modos distintos e
complementares entre as concepções dos professores de Ciências, licencianda e formadores
que estavam presentes na discussão-reflexão acerca da experimentação. É importante destacar
que no discurso de alguns professores está contida mais de uma concepção diferente, o que
traduz certo movimento (oscilação) discursivo, pois na medida em que vamos nos
expressando pela fala, vamos externalizando nossos modos de pensar. Os discursos/as falas
produzem pensamentos, que são internalizações parciais concretizadas na fala de cada sujeito.
Os pensamentos são as múltiplas vozes que ainda não são totalmente próprias (conscientes)
que são emitidas no diálogo para ou no desencadeamento do processo conceitual e consciente.
Somos constituídos por uma matriz histórico-cultural, ou seja, no embate de nossa
experiência, pela formação, pelas leituras e desse modo vamos também nos encharcando
dessas marcas discursivas com as quais aprendemos, nos constituímos. De todo modo,
podemos observar que não pensamos estritamente de acordo com essa ou outra concepção ou
teoria. Na verdade, podemos buscar alinhar nossos esforços a uma linha de pensamento, mas,
ainda assim, vamos indo e retornando de um extremo a outro, e essas possibilidades que
conformam nossa constituição não desaparecem, ou vão substituindo umas às outras, à
medida que vão (re)surgindo. Por isso, encontramos distintos modos de perceber o papel da
experimentação no discurso de um mesmo professor/professora.
137
A experimentação é vista, nos turnos T1 e T4, como sinônimo de (re)descoberta; já
nos turnos T4 e T14 a experimentação é considerada como comprovação de teorias, sendo
que nos turnos T3, T4, T13, T14 a ideia de experimentação é a complementação da teoria, e
nos turnos T5, T 7 e T8 estão marcadas passagens que demonstram uma concepção de
experimentação como atividade de motivação e dinâmica para as aulas. Cabe ressaltar que em
duas passagens a ideia de comprovação de teorias também é correlacionada à função da
experimentação como atividade que facilite a memorização e fixação de conteúdos, como no
trecho: “a ideia da memorização, da fixação” (T11), o que também traduz uma concepção de
ensino tradicional provavelmente alicerçada no tecnicismo, que tem suas raízes no
positivismo lógico. Ramos, Antunes e Silva (2010) também encontraram concepções
semelhantes ao entrevistar professores em início de sua formação continuada num grupo com
arranjos, objetivos e sistemática semelhantes. No trabalho, os pesquisadores enfocam o
reconhecimento de concepções de Ciência mais atreladas ao positivismo lógico, ligadas às
práticas de ensino da área.
As diferentes concepções dos professores trazem presente o modo como os mesmos
pensam e (re)produzem a Ciência em seu ensino. Também estão contidas nelas suas
concepções de docência, em geral reforçando uma visão simplista de docência (CARVALHO;
GIL-PÉREZ, 2000; CARVALHO et all., 2007). O modo como traduzem o encaminhamento
da experimentação imprime direção à separação entre teoria e prática. A experimentação é
posta como regra que motiva e melhora o ensino pelo simples fato de ser desenvolvida. Por
vezes, deixa-se claro o valor inquestionável da experimentação para ensinar, o que revela um
discurso ingênuo e pouco reflexivo, resguardado aqui o fato de que estão transcritos trechos
iniciais do episódio, em que os professores deviam contar o que pensavam sobre a
experimentação, antes da mediação teórica acerca dessa temática.
O ensino tradicional das Ciências tem sido o modelo clássico e o mais utilizado no
Brasil, especialmente pelo sentido que a Biologia, Física e Química têm adquirido ao longo
dos anos. Esses componentes são considerados Ciências duras, porque em geral são vistas
como ciências naturais, com raízes no desenvolvimento das áreas exatas, especialmente
desenvolvidas como Ciências que dependem do laboratório, da parte experimental, para serem
produzidas. Essa concepção de Ciência se reflete num ensino que tende a reproduzir sua ação
a partir da execução do método científico, e por revelarem um ensino tradicional a partir da
repetição e da cópia. Em geral, as pesquisas na área da Educação nas Ciências apontam que:
138
a pouca familiaridade dos professores com as contribuições da pesquisa e inovação
didática e, mais ainda, pode ser interpretado como expressão de uma imagem
espontânea do ensino, concebido como algo essencialmente simples, para o qual
basta um bom conhecimento da matéria, algo de prática de alguns complementos
psicopedagógicos (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2000, p. 14).
Essa concepção simplista de docência se assenta num ensino que é tradicional e, desse
modo, torna-se acrítico e pouco qualificado. Nesse sentido, carecemos de uma formação mais
adequada, que deixe de lado o ensino concebido como mera transmissão de “conhecimentos e
destrezas” (p. 14) e que assuma como proposta um “trabalho coletivo de reflexão” (p.15).
Nesse contexto, os “conhecimentos que a pesquisa aponta como necessários” (p.15), bem
como a “inovação didática” (p.14), inseridos em programas na perspectiva formativa de
professores, podem contribuir para desconstrução e rompimento de visões simplistas de
docência em Ciências, especialmente a partir da análise crítica do ensino tradicional
(CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2000, p.14-5).
Uma questão que foi (re)surgindo no grupo foi o tipo de uso que se faz da
experimentação, ou seja, o encaminhamento da aula, sua produção, a busca pelas interações.
Essa busca também foi situando tanto as concepções - reforçando-as e explicitando-as - como
a possibilidade de, ao compreendê-las, repensá-las. Estes movimentos podem ser
evidenciados através do exame de outros turnos: “eu sempre, na verdade, dou uma aula
teórico-prática junto, que eu já dou a teoria e ao mesmo tempo mostrando a lâmina... porque
nunca pego... oh, vamos olhar tais lâminas e desenhar tais coisas. Eu explico tudo de novo,
de onde é que veio esse material... lembra do órgão tal, tal e vai... e ainda assim as vezes dá
pra perceber que não funciona” (T 10) e “a gente pede pra eles desenhar tudo o que tão
observando no microscópio... e a gente não deixa eles sozinhos desenhando, a gente fica
acompanhando pra ver se tão, se não estão entendendo errado a lamina, olhando pros
desenhos depois. A ideia do desenho é mais, olhar depois se eles entenderam o que tão
observando ” T13. Nesse caso, podemos perceber que a ideia de aula teórico-prática já traz
claros indícios de que a professora em questão tem pensado em articular a teoria à prática de
modo a não apenas reproduzir a teoria na prática; de outro lado, a ideia de relatório já é
trazida à tona pela outra professora, ao mencionar os desenhos.
A análise do(s) episódio(s) anterior(es) permite a identificação de no mínimo quatro
concepções diferentes que se intercomplementam no discurso dos professores e licencianda e,
uma outra, mais periférica, que podemos situar como contextualizada ou desejada ao processo
de evolução conceitual no sentido da experimentação. Essa última, por ser a concepção de um
139
dos professores formadores, pode ser compreendida como um esforço de mediação teóricometodológica no sentido de buscar a reflexão acerca do processo de experimentação e de
aproximar teoria da prática, no sentido de, através do diálogo, forçar um processo de
conceitualização, pois o professor formador, no grupo, leva consigo suas intencionalidades,
assumidas desde o início do processo. Esta concepção mais contextualizada está expressa no
episódio que segue:
T15... [uso da fala não autorizado pelo sujeito de pesquisa].
T16... [uso da fala não autorizado pelo sujeito de pesquisa].
T 17: Mas numa perspectiva importante, sempre que vai utilizar a experimentação é: do que é que isso, ou pra
que é que isso está sendo utilizado e o que é que isso vai gerar. Fiquei pensando naquilo que a professora 1
falou do relatório; bom, que condições de escrita, porque daí na escrita de relatório... oral poderia ser também
que comunicação desse conhecimento que eles vão fazer. Porque, ao sistematizar na escrita, eles vão de algum
modo restabelecer as conexões, que são difíceis (Professor Formador 1, 2010).
[produção do conhecimento e intencionalidade do professor]
T18: ...professora, desculpa, então, ah... vão restabelecer ligações com o cotidiano, principalmente se nós
pudermos fazer interações e perguntas o tempo inteiro, com essas relações que nós queremos que eles
resolvam, que eles pensem... então, eu acredito que o encaminhamento da aula prática precisa sempre ter...
trazer consigo um encaminhamento do que é que vamos produzir com isso. Me parece que o mecanismo, se
vai ser aula prática, ou se vai ser aula teórica, se vai ser aula de campo, se vai ser uma simulação no
computador... talvez não é... ele é o mote, ele é algo diferente que vai acontecer. Mas a grande jogada é
perceber o que fazer com cada uma dessas coisas. E aí me parece que tem duas condições bem importantes na
educação científica, pra garantir talvez até essa imersão de cultura, que era sempre de um jeito e agora, se eu
pensar na prática, se eu pensar em como colocar, como a professora que não autorizou o uso dos dados já
reforçou, pra fazer isso talvez a gente precise o tempo inteiro estar argumentando com duas coisas, ou
pensando com duas coisas, que são: a escrita na minha visão e a leitura... a leitura e a escrita... a produção da
leitura e escrita (Professor Formador 1, 2010).
[a elaboração conceitual e as interações]
T19: Porque isso vai fazer dele articular essas conexões que nós estamos desejando, vai fazer interações com
referencial, vai fazer interações com o dialogo, com o crítico porque tão... se ele vai ter comunicação oral, o
colega pode dizer que não, que está errado. Talvez uma outra coisa importante, que daria pra acrescentar, é:
não ter sempre um roteiro premeditado ou a priori muito pronta, é bom ter um roteiro, mas não tão fixo que
tenha que ser aquele, até pra não ocorrer lá no final de chegar ao resultado, a um resultado não ideal do
experimento e dizer que tá errado, que é uma das tendências que nós temos, Não é? ... e os alunos mesmos,
quando terminou o experimento, se não deu o resultado esperado: “professora, não mudou de cor, deu
errado...”, qual de nós não teve essa resposta como argumento? Eu acho que ali permite que eles possam
argumentar novamente sobre isso. Mas eu acho que talvez isso é uma coisa que eu gostaria de situar; a
produção de leitura e escrita dentro de cada atividade é o que define a intensidade, o valor que ela vai ter na
constituição dos conceitos pra esse aluno, porque ao reescrever ele vai repensar aquilo que ele a priori já
pensava, né... e de algum modo ele vai poder argumentar. Então essa aula acaba sendo só uma
experimentação, mas uma aula, eu poderia dizer teoricamente, com pesquisa, porque daí ele está discutindo,
ele está escrevendo, ele está lendo também. Claro que isso tem todo um tempo, quanto tempo precisamos para
fazer uma aula assim? É uma boa pergunta! Seria... eu queria dizer isso daí... (Professor Formador 1, 2010).
A decisão de abordarmos, em novembro de 2010, num dos encontros de formação do
GEPECIEM, a questão do referencial do educar pela pesquisa, partiu também dessa
necessidade formativa, que fomos percebendo ao longo dos encontros que iam sendo
vivenciados. Uma das formadoras, em reunião do Subgrupo 2, fez referência ao tratamento da
pesquisa em sala de aula, especialmente da escrita. Outros formadores se reconheceram com o
referencial que parecia ser uma primeira aproximação entre os participantes do Subgrupo 2
quanto à teoria que estávamos adentrando.
140
Após o momento inicial do encontro-episódio que estamos analisando, encaminhamos
a leitura de um capítulo de livro sobre a experimentação no ensino de CiênciasU (SILVA;
ZANON, 2000)7, que foi cuidadosamente escolhido para mediar teoricamente a reflexão que
seguiu. Também adotamos, como modelo, a discussão durante a leitura, o que possibilitou
paradas para reflexão e maior interação entre os participantes do encontro.
Nos turnos T 11 e T 17 vai sendo resgatada a importância do registro escrito, “os
desenhos”, “o relatório” e com isso o papel da escrita. No turno T 18 é explicitada a
necessidade de outras leituras e produções, o que se contrapõe à leitura do livro, à aula
livresca: “talvez a gente precise o tempo inteiro estar argumentando com duas coisas, ou
pensando com duas coisas, que são: a escrita na minha visão e a leitura... a produção da
leitura e escrita” (Professor Formador 1, 2010). A literatura da área, especialmente o
movimento ligado à alfabetização científica pela via do educar pela pesquisa, bem como os
pesquisadores que se declinaram a compreender o professor pesquisador, tem apontado para o
resgate do lugar da leitura e da escrita, bem como do diálogo crítico e da argumentação, que
no seu sentido amplo possibilite elaboração própria, ou seja, autonomia aos alunos (DEMO,
2000; MORAES, 2004; MORAES; GALLIAZZI; RAMOS, 2004; CHASSOT, 2001;
MALDANER, 2006; NOGUEIRA, 1999). A meu ver, esse movimento fez pela educação
científica uma cruzada, saindo do olhar meramente repetitivo das ‘Feiras de Ciências’ para
um campo de produção científica que foi apresentado como no mínimo três grandes vertentes
ou possibilidades para o uso da teoria/metodologia/referencial produzidos, a saber: 1- a
pesquisa como metodologia de ensino: aula com pesquisa, no sentido amplo como se revela o
educar pela pesquisa; 2- os mecanismos de produção da pesquisa docente, no que se refere a
compreender o que é pesquisa e como o professor se torna pesquisador pela
sistematização/pesquisa da própria prática; 3- o referencial do educar pela pesquisa como
proposta de formação, através de grupos que se reconhecem como produtores e pesquisadores
de práticas, mediados teoricamente, conscientes de que nos grupos podem fazer, através desse
mecanismo, sua própria formação, inclusive como professores pesquisadores, senão
empreenderam também, no discurso educacional corrente, a dimensão de que pesquisar faz
parte da profissão professor, e por isso o constitui, o forma, o transforma.
7
O texto referido trata-se do capítulo: “Experimentação no Ensino de Ciências” que está publicado na
referência: SILVA, Lencie Heloísa Arruda; ZANON, Lenir Basso. Experimentação no ensino de ciências. In:
SCHNETZER, Roseli P.; ARAGÃO, R. M. R. (Orgs.) Ensino de Ciências: fundamentos e abordagens.
Campinas: V Gráfica, 2000. p. 120-153.
141
No grupo que analiso, posso perceber que o diálogo é formativo, pois facilita o
movimento de trazer à tona outras impressões, como outras aulas e metodologias possíveis;
outros entendimentos e teorias que circundam o grupo, da literatutra, pessoais, da experiência,
dos formadores, entram em jogo para serem (re)significadas.
Outro aspecto importante a se frisar é que em ambos os turnos (T 11 e T 17) podemos
encontrar marcas da posição preponderante que deve ocupar o professor na sala de aula, como
alguém que está disposto a mediar, que tem objetivos claros e que conduz sua aula na
perspectiva da produção do conhecimento, assume assim um papel sumário na produção
conceitual, no ensino e no processo de aprendizagem de seus alunos. O professor, nesse
sentido, traz para si o papel de articular o processo de produção de conhecimentos em sala de
aula e se utiliza dos recursos, da linguagem, da aposta na interação intersubjetiva entre os
sujeitos da aprendizagem.
À medida que o texto foi sendo lido e que os diálogos do grupo foram aprofundando
questões, fomos negociando sentidos e significados (VIGOTSKI, 2001; 2002). Inicialmente
essa negociação parecia não ser muito profícua, reforçando as concepções iniciais, como
expressam os turnos que seguem:
T 20: é uma complementação (Professora1, 2010).
T 21: eu trabalhei muitos anos com a prática, e eu vi uma diferença muito grande nos alunos na questão da
aprendizagem, na questão deles se desenvolverem mais... eu sou muito disso porque, quando eu fiz a minha
curta, a gente teve meia manhã teórica, meia manhã prática (Professora 3, 2010).
T 22: a gente nota nos alunos... porque, se for só teoria, né... (Professora1, 2010).
T 23: não pode ser só teoria, não pode ser só prática ... porque essas duas coisas têm que caminhar...
juntas?!.. (Professora 3, 2010).
T 24:...é uma complementação... (Professora1, 2010).
T 25: é uma complementação... o que você pode fazer, mostrar na prática... é diferente... (Professora1, 2010).
[...]
T 26: porque é importante... como diz a professora 3, a criança visualiza e memoriza melhor... pelo relatório eu
sinto isso. E aqui no texto eu achei que elas, não sei... ou eu não entendi direito... (Professora 1, 2010).
T 27: ...nunca vai esquecer, depois da prática ela não esquece mais... (Professora 3, 2010).
A própria complementação de teorias é tida como memorização, ou seja, os
professores não percebem o gatilho das aulas práticas para possibilitar aprendizagem. Os
movimentos formativos, as interações, a mediação são constitutivos do professor. Então, à
medida que líamos o texto, também foram novamente retomados aspectos sobre a postura do
professor e conceitos na/da experimentação, pois foi sendo possibilitada a reflexão
compartilhada, aspectos esses pautados no diálogo:
T 28: muito bem, então vamos discutir o texto até aqui. Vou devolver a palavra à professora 1, ou à professora
2, que talvez foram as primeiras a começar ...(Professor Formador 1, 2010).
142
T 29: eu só acho assim que...é..? mas é bem como tu falou ali, que a prática em si tem que ser repensada,
precisa ser melhor compreendido seu papel... (Professora1, 2010).
T 30: mas eu ainda não concordo com ela... (Professora 2, 2010).
T 31: ...pois eu também... (Professora1, 2010).
T 32: ...eu não consigo concordar com a professora formadora 2, eu me desliguei do texto e fiquei pensando,
mas eu não consigo concordar... eu não concordo com ela, ela diz que... (Professora2, 2010).
T 33: não é que, eu acho que a prática não é tudo! Eu acho que é a maneira como tu vai utilizar a prática...
(Professora Formadora 2, 2010).
T 34: nesse sentido, sim. (Professora 2, 2010).
T 35: mas é que depende muito da maneira como tá sendo usado, não dá pra encarar isso como salvação das
aulas. Aprender uma mudança de dinâmica, aprender a explicar o conteúdo de uma maneira diferente
(Professora Formadora 2, 2010).
A aprendizagem é um jogo de interações, é um diálogo profícuo mediado pela
linguagem, que vai atribuindo sentido e significado às palavras, contribuindo na
conceitualização, à medida que para um e para outro as palavras vão adquirindo novos
significados, as palavras vão sendo recheadas de significados, vão sendo internalizados
conceitos. Na malha social, o diálogo flui e o sujeito vai se individualizando, se constituindo,
tornando-se professor, pela via do conhecimento. Nas “minúcias do jogo intersubjetivo [...] os
significados se transformam num movimento heterogêneo de conceitualização dos
participantes”, afirma Góes (2000, p. 18), ao se referir também que o exame da apropriação
dos distintos discursos “presentes e da impregnação do processo por discursos outros permite
identificar diversas condições sociais imediatas e contextuais das elaborações e reelaborações
dos
interlocutores,
que
vão
se
constituindo
como
sujeitos
cognoscentes”.
Os
conceitos/concepções estão sempre presentes e, ao discuti-los, é explorada uma via
constitutiva, pois dela pode ser desencadeado o diálogo reconstrutivo da formação e
constitutivo do sujeito.
T 36: eu me desiludi com esse texto um pouco aqui! (Professora1, 2010).
[...]
T 37: na verdade elas começam fazendo uma crítica a um modelo único de experimentação, como reprodução
da ciência, né... para depois também justificar que a intenção no experimento, o processo em si, que pode
acontecer da interação durante o experimento, é maior. Até pra situar uma outra pergunta que eu anotei aqui
que é, que elas apontam no início que ainda não discutiram, talvez vão discutir mais adiante, vamos ver com o
texto, mas que é “qual é o papel do professor dentro dessa aula prática?” né, que interações... (Professor
Formador 1, 2010).
T 38: ele orienta o experimento, eles vão fazendo e ele vai orientando[o professor]. (Professora1, 2010).
T 39: isso é a partir de quê?! De questionamento... e da pergunta do professor o aluno vai interagindo com
ele... (Professor Formador 1, 2010).
T 40: ...claro (Professora1, 2010).
T 41: e eu acho que é isso que elas tão tentando suscitar. Que interações essa aula com experimento revela? De
outro modo, será que não é uma cópia de um experimento que foi feito, por exemplo de Louis Pauster, a gente
vai lá e tenta representar pra ver se entende o conceito. Isso elas tão tentando contrariar, combater essa visão
de que a gente pode ir lá e simplesmente combater o experimento que está sendo realizado, na verdade... repetir
o experimento, desculpa, o experimento que está sendo realizado. Na verdade, a gente pode traduzir diferente,
refazer, fazer outros ... conduzir de modos que suscite diálogo, interação, questionamento dos alunos... não só
nós?... talvez é um pouco isso pra tentar, assim, salvar a compreensão do texto... (Professor Formador 1, 2010).
T 42: ...ver se isso ali é verdadeiro, ver se é realmente como tá ali... estimular eles a entender o que é a
experiência... até às vezes tu pode... não dá certo, muito bem... (Professora 3, 2010).
143
O texto lido, aos poucos, também ascende na discussão, toma parte no diálogo, pois,
como teoria circulante, vai sendo discutida e posta em pauta. Nos turnos T 38 e T 39 está
recolocada uma questão que Silva e Zanon (2000) abordam no texto, quanto ao papel do
professor na mediação da elaboração conceitual que deve ser possibilitada na aula
experimental. Esta questão também está apontada por outros estudos na literatura da área
(GONÇALVES; GALIAZZI, 2004; FAGUNDES, 2007; ROSITO, 2008)
O diálogo reflexivo vai permitindo que os sujeitos compreendam as posições de seus
pares, e também as suas. Nos turnos T 26: “e aqui no texto eu achei que elas, não sei... ou eu
não entendi direito...” e T 36: “me desiludi com esse texto um pouco aqui!”, a Professora 1
(2010) traz consigo a questão de que se vê desconfortável com a provável posição contrária
do texto e de alguns pares, o que a põe em reflexão. Ela põe em movimento suas concepções,
suas verdades, abrindo-se para o diálogo reflexivo-formativo.
Na continuidade do diálogo, novas mediações a partir do contexto teórico se deram e
foram possibilitando que no esforço de explicitarmos concepções, mediasse teoricamente e
refletisse sobre estas concepções, de modo a ser possível verificarmos no contexto formativo
algumas marcas discursivas (nuances/indícios na fala dos sujeitos professores) que ampliam,
aprofundam e modificam (em parte) as concepções iniciais. A análise microgenética propõe
que pelo andamento dos episódios é possível traçar o curso de determinadas transformações.
Assim, à medida que foi sendo desencadeada a conversação/diálogo, as concepções foram
postas em xeque e a reflexão permitiu aproximações, distanciamentos e deslizamentos em
direção a concepções buscadas, especialmente afetas ao sentido da interação, compreensão
das próprias concepções, como ficam denotadas nos turnos que seguem:
T 43: ...as semelhantes tudo, né, eu faço isso em grupo também, isso eu tenho lá... eles gostam muito dessas
técnicas, né... mas sempre eu vou questionando eles, vou, né... nunca dou prontas as coisas assim... eu faço
assim, não sei se tô certa... tô louca pra que venha um professor lá pra me orientar melhor... ...melhorando...
(Professora1, 2010).
T 44: ...não, não tem certo nem errado, na verdade nós vamos modificando nossas práticas... (Professor
Formador 1, 2010).
[...]
T 45: ... é isso aí! Com tempo vamos melhorando, aprofundando, ao explicitar nossas práticas, professora 1,
isso é uma coisa que a gente tem que ter clareza. Nós todos, cada um por si inclusive, vai fazendo uma reflexão
crítica sobre a sua própria prática. Quando eu venho contra o meu exemplo, eu começo a entender melhor o que
é que eu estou fazendo, ... todos nós... na verdade, o nosso interesse como grupo é também fazer essa interação
conosco mesmos. Por exemplo, vocês podem até pensar “será que a ... vem combinados?” não! Assim, ninguém
combina o que vai dizer, nem nós lá no grupo, embora a gente tenha um subgrupo de todos os professores na
formação, a gente define o que cada um vai apresentar como tema, mas não define concepções duras “nós só
vamos falar nessa perspectiva!”. Pelo contrário, nós também queremos divergir para se entender, ou seja, ao se
explicitar e ao participar do grupo, nós, professores da universidade, também vamos percebendo as nossas
práticas, melhorando, ampliando e conhecendo melhor elas. A ideia é que, ao conhecer a prática e ao estudar
a própria prática, a gente aprofunde o conhecimento dela e com isso vai, ou não, causado modificações, a
144
medida que cada um vai percebendo isso, não é?! E às vezes as modificações são pra melhor, recuam, voltam e
às vezes nem são modificações, são aprofundamentos mesmo... que a gente já tá numa linha muito desejável no
ensino de Ciências... (Professor Formador 1, 2010).
T 46: eu gostaria de ouvir outras pessoas o que é que fazem, como fazem... eu me aprendi meio sozinha a fazer
tudo desse jeito, eu fui do meu conhecimento, que eu tinha de cursos que a gente faz, que diz que a gente tem
que partir do conhecimento do aluno, então desse jeito eu me viro e faço do jeito como eu acho que tá certo!
(Professora1, 2010).
[...]
T 47: ...mas veja como... (Professor Formador 1, 2010).
T 48: ...partir do como ir em direção à lâmina citológica... (Professora Formadora 2, 2010).
T 49: por isso que eu tava frisando, que medida tentar interpelar que, e vocês perceberam que na verdade elas
não acabaram com a aula de experimental, na verdade elas traduziram pra um outro universo, que é do
questionamento, da pergunta, da interação, que é o que a gente almeja, na verdade ... mas, fazendo um resgate
também da crítica, de que talvez ela possa estar acontecendo sobremaneira descontextualizada, carente de uma
leitura mais pontual... (Professor Formador 1, 2010).
T 50: ...de repente dava pra explorar mais a experiência, mais o … e eu (Professora1, 2010).
T 51: isso, e a gente chega num limite porque a gente tá acostumado a fazer muitas vezes... (Professor Formador
1, 2010).
T 52: ...às vezes podia até questionar muito mais em cima dessa... experiência... (Professora1, 2010).
T 53: ...claro, claro... (Professor Formador 1, 2010).
T 54: eu nunca tinha contextualizado isso, agora que tu perguntou, fiquei pensando, né... como transformar
aquela célula em algo maior... (Professora Formadora 2, 2010).
T 55: mas acho que justamente, oh... esse momento interativo aqui nosso é que vai mexendo com a nossa
constituição. Então quem é... como será a aula que eu vou dar a partir daquilo que a professora 1 me fez pensar
né ... (Professor Formador 1, 2010).
T 56: agora que tu falou isso, até quando for dar aula de novo de biologia celular, agora citologia, pensei outra
coisa... eu não tinha pensado nessa prática de... ah, eu teria mostrado as lâminas, ou pegar alguma coisa
que... agora fiquei pensando de como uma coisa vai se transformando na outra (Professora Formadora 2,
2010).
T 57: e acho que outra marca importante do texto no movimento de hoje, por exemplo, é que a gente vai
aprofundando a compreensão da experimentação e vai olhando diferente pra essa nossa aula experimental, né,
ela vai se tornando mais possível inclusive do que antes, do que agora, né. Eu acho que aí cabe dizer também o
papel da teoria na nossa reflexão; o que a professora formadora 2 acabou de fazer e o que a professora 1
acabou de fazer, as duas alternadamente, agora nesse minuto, e eu tô tentando fazer e nós todos fizemos em
algum minuto dentro aqui do grupo, é uma reflexão da própria prática, mas agora, nesse momento, inclusive
mediada pela teoria, então nós não estamos aqui sozinhos nós estamos com o peso da formação científica, por
isso, nossa formação é pela reflexão e pela reflexão crítica... e fazer reflexão crítica implica, sim, em refletir
sobre a prática, mas teoricamente embasados, discutir com os pares, colegas... pegar a concepção das
professoras... hoje talvez nós fomos pegando mais de uma ou de outra pessoa... cada dia a gente vai pegando
um ... mais falado de alguém, né... e quando eu calo mais eu estou na verdade escutando, quando eu falo mais
na verdade eu tô sendo ouvido e essas nossas vozes vão nos constituindo por esse discurso, melhorando a nossa
prática (Professor Formador 1, 2010).
Por vezes o próprio professor se desautoriza, nesse contexto, o que é de se esperar,
uma vez que governo, mídia, livro didático, as escolas teóricas, todos desautorizam o
professor. Para Facci (2004, p. 125-6), as escolas teóricas parecem concorrer para um certo
‘esvaziamento do trabalho do professor’, uma vez que tanto os reflexos do construtivismo
como a perspectiva assumida na via do professor reflexivo parecem facultar a necessidade
“da apropriação do conhecimento” e do entendimento do ensino como processo e colocam o
professor com mero “facilitador”, contribuindo para uma acepção no sentido do “aprender a
aprender”. No turno T 43, a Professora 1 (2010) diz que deseja a presença de outro professor:
“que venha um professor lá pra me orientar melhor”, pois ainda acredita que esteja errando,
ou seja, teve muitas de suas concepções descontruídas, e por ora parece difícil encontrar o
145
caminho. Depois, a professora salienta que “gostaria de ouvir outras pessoas, o que é que
fazem, como fazem...” (T 46) demonstrando que, no grupo, podemos discutir, aprender,
refletir, dialogar e em conjunto encontrar o caminho. Nesse sentido, cabe ressaltar o valor da
reflexão compartilhada e mediada. Nesse contexto, o texto (teórico), os formadores, e os
professores e licencianda no grupo puderam trocar experiências, discutir posições e
concepções. Acredito que esse modelo de formação, que aproxima Universidade e Escola,
parte dos contextos reais e busca ampliar o diálogo e a reflexão crítica, tem possibilitado
amplas e profícuas reconstruções formativas para os sujeitos participantes, que aos poucos
demonstram estar dispostos a negociar sentidos, aprofundar significados/conceitos acerca da
Prática de Ensino em Ciências, especialmente.
Mais tarde, a mesma professora, nos turnos T 43, T 50 e T 52, percebe que, ao
discutir, podemos ir: “melhorando”[as práticas]; “de repente dava pra explorar mais a
experiência, mais … e eu”; “às vezes podia até questionar muito mais em cima dessa...
experiência...”. Estas reflexões vão nos mostrando que, ao discutir com o grupo, o professor
reflete sobre sua prática, repensa, reorganiza suas posições e com isso mexe em sua
concepção de experimentação, percebe que pode aprofundar suas compreensões e isso
refletirá em suas práticas positivamente. A Professora Formadora 2 (2010) também explicita
sua reflexão quando percebe que, ao dialogar com o grupo, repensou sua ação V, suas
possibilidades de intervenção futuras através da experimentação, conforme segue: “ ...partir
do como ir em direção à lâmina citológica...” (T 48); “eu nunca tinha contextualizado isso,
agora que tu perguntou, fiquei pensando, né... como transformar aquela célula em algo
maior...” (T 54); “agora que tu falou isso, até quando for dar aula de novo de biologia
celular, agora citologia, pensei outra coisa... eu não tinha pensado nessa prática de... ah, eu
teria mostrado as lâminas, ou pegar alguma coisa que... agora fiquei pensando de como
uma coisa vai se transformando na outra” (T 56).
A partir de Schön (2000), é possível compreender que o modo de pensar a prática da
professora em questão foi sendo rearticulado à medida que ela explicitava como eram suas
aulas e como podem ser, no tocante que, ao olhar para elas retrospectivamente [as aulas
práticas], a professora passou a refletir-na-ação, e prospectivamente vislumbrou outras
formas de ação. A reflexão decorreu de modo individual, e atingiu para a professora o status
de um certo desenvolvimento profissional, mas como ela estava imersa na condição coletiva,
atmosfera criada por conta do GEPECIEM, posso depreender que os demais professores se
afeiçoaram no diálogo com a experiência da professora formadora. A formação (o processo
146
formativo) permitiu o pensamento sobre a ação/sobre o modo de fazer da Professora
Formadora 2, e pôs em movimento suas concepções que possibilitou constituição docente por
uma via mais contextual, esse movimento da professora indicia a reflexão dos sujeitos
envolvidos, bem como seu papel(formativo) na formação de professores. Góes (2000), com
base nos estudos de Vigostki, situa que o “homem enquanto ser que se constitui imerso na
cultura – nas experiências coletivas e práticas sociais”(p. 12), tendo em vista que as relações
sociais, construídas e articuladas pela malha social e coletiva, são premissas da constituição e
singularização do humano. Assim, no grupo recriam-se as condições sociais da profissão
docente pela verbalização dos sentidos sociais que, ao estarem em disputa, são também
(re)significados no e pelo grupo.
As teorias que compõem a análise que venho propondo têm um ponto forte de conexão
na medida em que refletir não é apenas pensar sobre, mas implica transformar. É nesse
sentido que afirmo que os turnos T 54 e T 56 parecem mostrar delineamentos de uma reflexão
no sentido que propõe Schön em relação à prática, mas no sentido da transformação, como
propõem Carr; Kemmis (1988), pois a professora fez um movimento de duplo sentido e
direção: um retrospectivo e outro prospectivo; no tocante à teoria, me permito afirmar que
elas se correlacionam desse modo. Adianto também que no sentido teórico também estas
perspectivas teóricas podem ser compreendidas quando se deflagram olhares em torno da
situação, ou seja, que têm preocupações com o sentido das transformações, que são de cunho
social, por isso histórico-culturais. Nesse ponto é que o referencial vigotskiano permite tais
compreensões sobre o modo como enxergamos o contexto.
Compreendendo esse processo, baseado na análise microgenética da perspectiva
histórico-cultural (GÓES, 2000), foi no momento em que a professora se deu conta de sua
ação que ela pôs em movimento suas formas de articular o conteúdo ao ensinar. Ao pôr em
movimento seu modo de pensar, estava, pois, se constituindo professora. Góes (2000, p. 11)
afirma: “a análise minuciosa de um processo, de modo a configurar sua gênese social e as
transformações do curso dos eventos”.
É o próprio sentido que é assumido no T 45 pelo Professor Formador 1 (2010): “ou
seja, ao se explicitar e ao participar do grupo, nós, professores da Universidade, também
vamos percebendo as nossas práticas, melhorando, ampliando e conhecendo melhor elas. A
ideia é que, ao conhecer a prática e ao estudar a própria prática, a gente aprofunde o
conhecimento dela” que o grupo tem perseguido o referencial da investigação-ação na
147
perspectiva da reflexão crítica, especialmente como foi assumida por Carr; Kemmis (1988). É
também no sentido da formação que o GEPECIEM tem assumido forma e propósito no
desenvolvimento profissional dos professores formadores da Universidade, como formação
continuada, na e para área de Ciências e Matemática. Essa passagem mostra também o
quanto os formadores se colocaram como aprendentes no grupo, o que implica dizer que todos
aprendem nesse coletivo.
O professor formador tenta retomar a todo momento o papel da teoria, explicita que
processo o grupo está perseguindo, e vai clarificando que a reflexão é um caminho possível e
necessário à formação docente, como fica claro nos turnos T 49 e T 54, especialmente na
passagem: “ ... outra marca importante do texto no movimento de hoje... é que a gente vai
aprofundando a compreensão da experimentação e vai olhando diferente pra essa nossa aula
experimental...acho que aí cabe dizer também o papel da teoria na nossa reflexão ... por isso,
nossa formação é pela reflexão e pela reflexão crítica... e fazer reflexão crítica implica, sim,
em refletir sobre a prática, mas teoricamente embasados, discutir com os pares, colegas...”
(T 57).
Em que implica refletir? De que decorre o processo de reflexão? Os indícios dos
turnos que pormenorizei nesta análise são discursos que se estabeleceram no coletivo de
formação docente. O que situa a análise é a ideia de compreender como a reflexão coletiva (o
grupo) e compartilhada (diferentes sujeitos em formação) se torna um caminho mais viável à
formação de professores de Ciências. De que ordem precisa ser tal reflexão? O que embasa
uma reflexão crítica? Qual o estopim da reflexão nos processos formativos? Embebido de tais
questões, da teoria e do contexto empírico, penso que no capítulo 3 são evidenciados os
índicos que dialogam com tais questões e no capítulo 4 vou apresentar elementos que
facilitaram a minha compreensão destas questões tendo em vista a razão formativa.
Além de situar o modelo de formação e o papel da teoria no processo, o Professor
Formador 1 (2010), no turno T 57, também ressignifica a questão do formato de grupo de
estudos e pesquisa em caráter colaborativo. A questão do caráter compartilhado e colaborativo
(TRIPP, 2005), que marca o nosso grupo, supõe a presença de mais de uma categoria de
sujeito em formação, nesse caso uma tríade de interação. Abordada por Zanon (2003, p. 253
[grifo da autora]), essa perspectiva trata a reflexão como possibilidade de mediação e
interações entre os sujeitos, e acrescenta: “a tríade contribui para tal formação, na medida que
cria condições para os formadores aproximarem-se de práticas profissionais exercidas em
148
escolas”. Através deste contorno, professores formadores, licenciandos em formação inicial e
professores de Ciências da educação básica dialogam em perspectiva formativa, num espaçotempo que prioriza a reflexão em torno das práticas pedagógicas, e ao constituí-lo assumem
no conjunto do grupo, deliberadamente, a sua própria formação. Nesse sentido, Rosa (2004,
p.57) afirma: “o conceito de educação como processo formativo traz no seu bojo a ideia de
que ‘ser’ é mais importante do que ‘ter’. Isso redimensiona o papel do professor no cenário
educacional, valorizando-o como sujeito das transformações”. Tal afirmação corrobora os
objetivos e razões pelas quais o GEPECIEM foi instalado e é uma marca que traz fortemente
a ideia do processo formativo, na qual vou ancorar a discussão do capítulo 4, reposicionando
o lugar da formação na investigação-ação.
Ainda que a participação da Licencianda 1 tenha sido muito tênue no encontro, num
único turno de fala registrado, ela esteve presente, e essa presença demarcou no grupo um
novo modo de se fazer a formação. Os professores começaram a perceber que também eram
corresponsáveis pela formação dos licenciandos, e isso foi se tornando a cada encontro mais
efetivo. Para a licencianda que participou, através do projeto de iniciação acadêmica, das
sessões, o momento foi declarado como: “no primeiro momento, cada um relatou seu ponto
de vista sobre o que é experimentação. Logo após, começamos a leitura do texto,
intercalando com nossas discussões. A conversa foi prazerosa, as professoras nos relataram
como utilizam a experimentação na prática e demonstraram entusiasmo ao falar sobre o
tema... Afinal, a UFFS quer contribuir para aprimorar essas aulas e não necessariamente
julgar o que está certo ou errado. Mas com o decorrer do diálogo, as profes.
compreenderam qual o nosso objetivo e por fim aceitaram o 'desafio'” (Licencianda 1, 2010
[excerto extraído do diário de bordo da licencianda]). A Licencianda 1(2010) estava cursando
o primeiro ano de sua formação e fazia uso do diário de bordo desde o início de seu processo
de formação-orientação no projeto que desenvolvia. Na descrição do que havia acontecido,
ela frisa que o diálogo levou à compreensão, e sente-se partícipe da discussão. Em outra parte
do excerto selecionado é demarcado que: “a UFFS quer contribuir para aprimorar essas
aulas e não necessariamente julgar o que está certo ou errado”. Ao produzir tal escrita, a
licencianda está refletindo e percebendo o sentido da formação, está de algum modo
despindo-se do ser aluna, para investir-se no ser professora, deixa a crítica severa e
improdutiva sobre as aulas que vivenciou e assume o lugar de, ao compartilhar dos momentos
formativos, compreender a profissão, os dilemas, a formação em si.
149
Acredito que esse(s) episódio(s), que propus discutir como um momento formativo
que desencadeou reflexão, movimentos em direção ao exame das práticas (e com isso das
teorias e concepções que as permeiam) e a constituição dos sujeitos pelo diálogo em que a
linguagem foi o modo interativo que se fez mais presente, trouxe à tona uma possibilidade
formativa, que não é pela via do livro didático, que se contrapõe a esta como um
enfrentamento desse provável esvaziamento docente que a prática mais tradicional determina.
Houve uma metarreflexão, à medida que durante o encontro de formação, a partir de uma
temática, os distintos momentos formativos colocaram em disputa, em movimento e em
reflexão, um ciclo reflexivo. Desse modo, o problema foi se transformando, ao serem
apresentadas as concepções que permeiam e sustentam as práticas, ao lermos o texto, e o
encontro em si fez fluir um caminho em outra direção a partir da realidade apontada, pela via
da reflexão coletiva e compartilhada, mediada teoricamente, situada no campo da formação
continuada, com objetivo e intencionalidades claros, planejamento da ação.
Talvez o encontro tenha ido mais adiante no processo de formação do que
percebemos, tenha possibilitado certa intervenção do ponto de vista que, se acreditarmos que
os momentos formativos se revelaram como constitutivos dos sujeitos, pelo foco da
investigação-ação posso afirmar que estávamos em processo reflexivo-formativo. Acredito
que compete afirmar também que a experimentação se tornou mais periférica do que a
formação/constituição em si, mas, através da temática, fomos à formação, nos constituímos,
nos tornamos professores. Desse modo, em formação, através do diálogo crítico e reflexivo, o
grupo se sobressai ao uso do livro de modo tradicional e os indícios apontam o que eu, em
particular, aposto que é um caminho possível: a reflexão em processo coletivo como
mediadora da formação continuada. A mudança de concepções, como produto de um
processo, não nos interessa e sim o processo que se deu durante a formação, especialmente no
que se refere aos episódios analisados, em que os movimentos, as diferenças, no diálogo, na
reflexão coletiva e compartilhada, fazem fluir a formação.
Os quatro movimentos que passo a analisar foram selecionamos a bem de
compreender, no seu conjunto, como um processo de (re)organização curricular das redes de
ensino, em que estão inseridos os professores que pesquisei, foi articulado através de entraves
formativos, mudanças nos planos de estudos de Ciências do Ensino Fundamental e momentos
decisórios quanto à definição dos conteúdos a serem ensinados por um grupo de professores,
sob coordenação de supervisores de ensino e em parceria com a Universidade. No decorrer
dos processos analisados, discussões que situam alguns retrocessos no sentido da ação e
150
formação docente e avanços que, se não são no sentido de melhorar ou informar de modo
mais qualificado a ação docente, são empreendidos no sentido da formação/constituição dos
professores e de sua autonomia, quando conseguem explicitar as razões de suas escolhas.
3.3 Movimento formativo da Organização Curricular: o discurso ingênuo das
competências como entrave na formação docente
O processo formativo é cheio de armadilhas. Se, por um lado, o próprio referencial da
área propõe que, ao se trabalhar na perspectiva de desenvolvimento profissional e formação
de professores, especialmente, pela via da investigação-ação, façamo-lo através da
investigação e/ou inovação/(re)organização curricular, tendo-a como premissa ou como
finalidade; por outro, a discussão acerca de currículo supõe “uma arena de luta” e andar por
essa direção pode incorrer em (re)conhecer barreiras e armadilhas, se não curriculares,
também, em última análise, formativas. É com esse sentimento que passo a analisar episódios
sobre a organização curricular, como um possível entrave que se dá à medida que os gestores
forçam um discurso que implica certo aparelhamento do Estado através da justaposição de
políticas curriculares e programas de governo sobre currículos. Tal justaposição se dá através
de uma atitude ingênua, alicerçada numa concepção eminentemente prática do fazer currículo
e da compreensão de currículo como conteúdo presente no discurso dos supervisores das
escolas dos professores que participam do GEPECIEM, como foi analisado no capítulo 2 e
está em discussão nesse movimento formativo.
O discurso das supervisoras escolares acerca da organização curricular parece de um
lado ingênuo e de outro mandatário; de toda forma, tem contribuído sobremaneira na
determinação do modo como se reorganiza um currículo e na formação de professores,
especialmente no contexto que me propus a analisar. Nesse contexto, as necessidades de
mudanças nos planos de estudos de Cerro Largo-RS têm seu nascedouro mais no intento de
atender a legislação, pois a municipalidade estava obrigada a alterar a organização do Ensino
Fundamental de oito para nove anos. É como diz o velho adágio: ‘a ocasião faz o ladrão’.
Parece-me que, no caso em questão, foi o que aconteceu. Pela necessidade de se fazer cumprir
a lei, fez-se conjuntamente a proposição de mudança nos planos de estudos, com isso às
pressas, sem a devida e necessária discussão (o turno T 1 dá margem para esta afirmação,
quando situa no tempo a data de 28.10.2010, para a primeira reunião do grupo que teria a
tarefa de assessorar a mudança dos planos para o ano de 2011). Outra situação, que concorreu
151
fortemente para que a mudança se desse, foi a institucionalização da proposta curricular do
RS – Lições do Rio Grande, que a partir do ano de 2011 passavam a ser ‘obrigatórias’ na rede
estadual, ainda que como referência curricular. Aliada a tudo isso, estava a decisão, por parte
dos gestores municipais, de fazer o que chamaram de ‘unificação’ dos currículos, que já havia
sido iniciada por ocasião da escolha dos livros didáticos do PNLD 2010/2011 de modo
conjunto entre as redes em 2010.
Os turnos e episódios selecionados da transcrição foram trazidos para ilustrar como se
deu o processo de planejamento da reorganização curricular, nas conversas entre professores
da UFFS e supervisores de escolas públicas municipais e estaduais. Na discussão é possível
perceber como as marcas desse processo deflagram condições de produção curricular e em
que medida isso parece comprometer até mesmo a formação docente, pois se desarticula da
mesma.
T 1: hoje é dia 28 do 10 de 2010, reunião na UFFS com a SMEC. Eu queria só fazer duas perguntas ou três
rápidas para eu poder resgatar. Como eu não vim na primeira reunião, o motivo da mudança mais ou menos, a
minha pergunta seria: por que vocês estão articulando as mudanças dos planos agora, nesse ano, qual o motivo
da mudança? (Professor Formador 1, 2010).
T 2: ..., desde que foi implantado no nosso Estado, em 2007, o ensino fundamental de nove anos, nós já tivemos
que fazer, num primeiro momento, um planejamento do 1º ao 4º ano dos planos de estudo do novo regimento, da
nova proposta pedagógica. Agora, então, é o ano de nós planejarmos o restante, que é do 5º ao 9º ano, então os
novos referenciais curriculares, que nós temos como proposta nos nossos novos planos de estudo, veio ao
encontro através dessa proposta do Lições do Rio Grande, que nas escolas estaduais foi a forma que eles
adotaram pra que realmente a gente conseguisse concretizar, trabalhar habilidades e competências
(Supervisora 2, 2010).
T 3: tá, deixa eu fazer uma pergunta: vocês já vinham fazendo as alterações com as professoras nos grupos ou
não? (Professor Formador 1, 2010).
T 4: não, nos planos de estudo de 5º ao 9º ano, não. Vinha sendo trabalhado, seriado, como tem os planos de
estudos já existentes até 8ª série, estava sendo seguida essa proposta... (Professor Formador 1, 2010).
[...]
T 5: eu ainda tinha mais duas perguntas, daí eu acho que nós podemos continuar, mas acho que ainda até tá
sendo importante para todos nós agora (re)situar essa dinâmica que elas estão contando. Como que vocês
tinham pensado que seria esse processo de mudança, na verdade? (Professor Formador 1, 2010).
T 6: assim como nós estamos fazendo (Supervisora 2, 2010).
T 7: me explica... (Professor Formador 1, 2010).
T 8: desde o começo a nossa ideia era fazermos um planejamento em conjunto com as nossas redes estadual e
particular, porque a gente percebe, assim, oh, que mesmo às vezes até no mesmo município, ou até em nível de
estado, alunos que vem pra nós ou os nossos que vão pra outras escolas transferidos, a gente nota que, assim...
os mesmos conteúdos, ele tem até uma outra sequência, que se trabalha no 1º bimestre, trimestre num... num
lugar, num município, numa escola... na outra já é diferente. Entre nós aqui temos essas diferenças. Quando
nos falavam dos novos referenciais curriculares, é o norte que estávamos precisando, nós até entendemos que
isso viria num sentido de conteúdos, meio assim prontos e não foi o que aconteceu.... e a ideia também, que
acho que esse é o desafio e, querendo ou não, nós estamos sendo medidos por um IDEB, que são as nossas
avaliações externas e que a proposta dessas avaliações, nós não estávamos mais adequados, geralmente as
nossas avaliações em sala de aula é, no meu ponto de vista, de professor, que vou lá e dou uma nota ou que eu
vou lá e avalio... e nós temos que ter, pra nós como professores e tal, nós temos que abrir essa visão, esse leque e
aquela história simples que a gente resume numa frase: é aquele conteúdo com significação, como, ... e
realmente o aluno não saber só o conteúdo decorado, mas que dentro das situações ele saiba, ele tenha esse
conhecimento pra sair dessa situação-problema (Supervisora 2, 2010).
T 9: então, nós teríamos aqui, nós temos as três redes de ensino, então, a particular tem a linha deles, então nós
faríamos esse trabalho juntando a rede estadual e municipal. No momento de uma transferência, que a gente
152
sentia que o aluno ficava com lacunas quando ele saía de uma escola, dentro do município mesmo, ... ele saía de
uma escola ia pra outra, lá já tinha trabalhado um conteúdo e quando ele chegava perdia. Então nessa... essa é
a intenção de trabalhar … e até o nosso município assim... em Santo Ângelo, foi o único que se manifestou,
sabe, o interesse de fazer um planejamento único a nível municipal desses planos de estudos pra mudar essa
situação (Supervisora 1, 2010).
T 10: ... não é sistema. Então a gente, a nossa mantenedora acaba sendo também... (Supervisora 2, 2010).
T 11: ...estado... (Professor Formador 1, 2010).
T 12: coordenadoria, entende. Então por que não?! (Supervisora 2, 2010).
T 13: sabe, por isso, que pela tua fala eu entendi, achei que era isso, sabe... (Supervisora 1, 2010).
T 14: ...até porque assim, a presença dos planos de estudo do estado foi um indício, a presença do referencial
do Rio Grande foi um indício... e agora quando eu encontrei a professora supervisora 5, que é a supervisora da
escola estadual junto chegando, eu disse talvez tenha a ver com isso. Eu até acredito que dá pra resgatar aqui,
vocês podem me corrigir aqui se estou enganado, talvez foi por isso que vocês escolheram os livros didáticos
esse ano em conjunto as duas redes, ou não? (Professor Formador 1, 2010).
T 15: também (Supervisora 1, 2010).
T 16: também (Supervisora 2, 2010).
T 17: também... tudo vai fechando... (Supervisora 1, 2010).
T 18: a ideia de unificar as redes... (Professor Formador 1, 2010).
T19: ...vai fechando... (Supervisora 1, 2010).
T 20: é bom pra nós ter essa noção... (Professor Formador 1, 2010).
T 21: ...ter essa noção... (Supervisora 2, 2010).
T 22:; ...que às vezes a gente faz um juízo até de valor ou de, uma leitura que não é a real. Só por isso que eu
queria saber. E eu a mim me interessa na minha situação de pesquisa isso (Professor Formador 1, 2010).
[seguiram apresentações de cada professor, área e pesquisa]
T 23: eu posso colocar um pouquinho assim, talvez dar uma... assim, oh. Bem, praticamente como nós pensamos
na assessoria de vocês assim, oh; em cada disciplina, nós já iniciamos uma caminhada no final do ano passado,
em dezembro, até eu poderia passar o que já... mais ou menos ... isso até foi uma coisa assim, supervisora 2,
assim… veio aquelas coleções das Lições do Rio Grande, então as referenciais curriculares ... aí a gente
pegou em nível de, conseguimos uma coleção e em nível de secretaria a gente fez, comecei a fazer esse
estudo... montei uma planilha em cima do que dizia ali... montei uma nossa na intenção de elaborar esses
novos... novos planos de estudo e trabalho em cima dos referenciais, baseado naquele conteúdo. Mas depois
veio surgindo a ideia de, no estado eles não tinham feito o estudo na verdade, sei lá por que situações que o
estado se atrasou nessa situação aí de, de passar para...então o que é que aconteceu, daí em nível de município
a gente pegou e, porque eu tava sozinha, ...então a gente fez isso: dividiu por disciplina os professores e eles em
cima desse, a gente reconhece que assim faltou muito de caminhar... pra eles caminhar sozinhos teriam que ter
um estudo mais aprofundado dessas lições ...então, bem praticamente o que se quer hoje, que nós temos vocês
aqui, um assessoramento assim de terem cada grupo de professores uma, alguém que assessore, entende...
assessorar no sentido, assim, oh, esses conteúdos: o que colocar no plano de Matemática; não
necessariamente nós temos que pegar tudo que está ali dentro desses referenciais... (Supervisora 1, 2010).
T 24: ...não sei se vocês conseguiram perceber, porque o tempo foi mínimo pra vocês estarem em contato com o
material, o que a Lições do Rio Grande é?... é uma proposta porque até inclusive... porque até existem os
conteúdos embasados legalmente*******e eles vão continuar existindo, nós não vamos mexer nisso, mas
assim oh, bem isso o que a senhora coloca; adequar e eu entendo que a proposta das Lições do Rio Grande é
como fazer na prática, trabalhar de forma diferente habilidades e competências... que a gente vem falando,
isso tá.... em dois anos pra cá a gente vem falando muito disso, mas na realidade estamos conseguindo? E outra
coisa que nós percebemos de habilidades e competências nessas propostas é trabalhar na pedagogia de
projetos, ... quando puder... não é sempre que tu vai conseguir ter essa interdisciplinariedade acontecendo. Nós
percebemos que ela acontece nos projetos, algumas disciplinas afins que vão conseguir, nem sempre tu vai
mover todas e isso até tu contemplando ali no plano de estudos como pedagogia de projetos e tal, tu não precisa
colocar como um conteúdo, mas até no teu planejamento anual, que tem nos nossos planos pedagógicos do
ano... ali tu define teus projetos desse ano dentro de... nesse sentido. E isso... ah... talvez a gente faz todo um
jogo de palavras e não consegue... mas a nossa clareza que nós queríamos, que os nossos professores sentissem,
que a gente sente que eles tão assim oh... é esse corte mesmo, todos vamos trabalhar tais conteúdos, vamos
incluir..., vamos trabalhar... outra coisa ... (Supervisora 2, 2010).
Houve todo um direcionamento, no modelo dos planos: “comecei a fazer esse
estudo... montei uma planilha em cima do que dizia ali... montei uma nossa na intenção de
elaborar esses novos... novos planos de estudo e trabalho em cima dos referenciais, baseado
153
naquele conteúdo” (Supervisora 1, 2010), no uso dos referenciais como leitura básica para as
reuniões: “...até porque assim, a presença dos planos de estudo do estado foi um indício, a
presença do referencial do Rio Grande foi um indício... e agora quando eu encontrei a
professora X, que é a supervisora da escola estadual junto chegando, eu disse talvez tenha a
ver com isso” (Professor Formador 1, 2010) e esse direcionamento compõe um cenário, que a
meu ver foi produzido para indução das decisões. Parece que a decisão pedagógica era, além
de pouco referenciada, por vezes ingênua. Sem perceber que por detrás do discurso do ensino
por competência tem uma maquinaria que extrapola a lista de conteúdos, que é uma
determinação externa, relacionada à educação para o trabalho – ligada à produção e o
mercado – visão globalizante da educação, que tem predominado nos países com a educação
financiada pelo BID e BIRD (LOPES, 2008), a exemplo do que fazem e fizeram o Chile, a
Argentina, em contexto latino-americano. As supervisoras tendem à direção do uso da
proposta curricular estadual como melhor forma de atender às necessidades e solicitações
prementes de mudanças.
O que é um currículo por habilidades e competências? Ou seria um ensino por
competências? São questões que podem nortear uma interpretação dos turnos que sucederam
à discussão inicial sobre uma necessária mudança dos planos de estudos, na qual muitos dos
participantes do GEPECIEM estiveram imersos. Corazza (2010, p.143) traduz com uma
expressão algo que parece facilitar o diálogo investigativo a que me proponho nesse
movimento de interpretação, seja ela: “diga-me com quem um currículo anda e te direi quem
ele é”. A afirmação, no contexto em que pretendo analisar, pode ser compreendida como as
companhias que nos constituem, ou, nesse caso, que constituem um currículo. Acredito, pois,
que as supervisoras que participam dos diálogos não conhecem as raízes da educação por
competência.
A ideia de unificar as redes aparece fortemente ligada à justificação da intenção de
usar as lições, porque tem as habilidades e competências prontas. Tal unificação, que atingiria
o que se queria necessário na visão das supervisoras, parece carecer de análise mais profunda.
No RS, já em 1998, através de proposta promulgada para o exercício 1995-1998, é criado o
Padrão Referencial de Currículo (RIO GRANDE DO SUL, 1998), que já trazia em seu enredo
as expressões saber, ser saber/fazer (p. 16), fazendo alusão ao relatório da UNESCO
(DELORS, 1998) que teve repercussão no mundo todo, especialmente em países como Brasil,
Chile e Argentina, os quais têm políticas públicas de educação, como o PNLD, financiadas
pelo BID. Esta menção direta no texto já traduzia em boa medida uma necessidade de
154
reposicionamento dos currículos quanto à noção de competência, que na época era muito
atrelada à competência de mercado, de ordem globalizante e competitiva, como afirma
também Lopes (2008).
Na época muitas redes de ensino adotaram o modelo de planos de estudos através dos
pilares da educação, que eram baseados nas competências, já mencionadas, de saber, saber
fazer, ser conviver ou com outras roupagens semelhantes. Mais tarde, em 2009, o Referencial
Curricular do RS traz à tona novamente uma proposta a partir de competências,
reposicionando inclusive a interpretação do conceito de competência pelos autores do
documento. Mas, no contexto investigado, isso pouco ou nada teve a ver com as
interpretações feitas, uma vez que, mesmo se dizendo ‘afetos à leitura’ do material, quando
transcrevi e analisei as falas, pouco ou nada se nota do referencial nestas. Está presente, por
outro lado, a necessidade de ‘se fazer cumprir a lei’, ainda que não sejam força de lei as
mudanças e nem tampouco fique obrigatória a adoção. Ademais, como o cenário político do
RS acenava com mudanças logo à frente, parecia quase improvável se acreditar na adoção da
proposta estadual como única para o contexto, no entanto era o que se encaminhava, como
ficam claros os turnos T 8, T 9, T 16, T 17, T 18, T 19 e T 24.
A sensação de que, mudando os planos, na perspectiva de currículo-conteúdo, pode
ser resolvido o modelo de ensino, seus objetivos e fins, transformando assim a educação, é
uma ideia ingênua que estava presente nos turnos T 2 e T 24, e contribui para sedimentar uma
falsa sensação de segurança, de possibilidades, de mudanças, de qualidade, de melhoria de
práticas do ensino. Essa mesma ideia de mudança tinha contornos em relação à unificação das
redes, de um lado, e, de outro, ao cumprimento de determinações com relação a adotar o
discurso das competência para estar de acordo com o solicitado (na visão das supervisoras).
Acredito que a ingenuidade, que estou afirmando existir no discurso educacional que está
expresso nos turnos e episódios, se dá à medida que não conhecem as raízes históricas do
processo de implantação do ensino por competências ou aprender a fazer fazendo, que advém
da incompreensão do que seja uma educação mais voltada à profissionalização e à preparação
para o trabalho (DELORS, 1998).
As inúmeras ligações entre currículo como sinônimo de lista de conteúdos e de
competências, que se fazem presentes no discurso dos professores, especialmente àquelas
afetas na fala das três supervisoras, denunciam, o tempo todo, uma sobrecarga de
incompreensões e leituras equivocadas, a meu ver, inclusive das propostas, como Lições do
155
Rio Grande, PCN, entre outras políticas públicas curriculares, que não se pretendem
determinantes, mas norteadoras das discussões de currículo no Brasil.
A ideia de unificação entre as redes e noção de currículo articulado por competências
presentes nos diálogos, parecem se tornar barreiras ao processo de reorganização curricular,
especialmente porque dão margem à interpretação de que basta saber fazer para que se tenha
uma efetiva melhoria no ensino.
T 25: ... só que professor formador 1, nós vamos mexer, mexer... (Supervisora 1, 2010).
T 26: ...nós só queremos acrescentar... (Supervisora 2, 2010).
T 27: ...que tem... (Supervisora 1, 2010).
T 28: ...só dá pra orientar, ainda a minha visão seria em grupos que nós vamos assumir a construção desse
conteúdo a partir do ano que vem. E assim, resgatar duas coisas que nós queríamos propor. Na verdade nós
estaríamos propondo pra vocês, somente alterar da série que será executada no ano que vem, ou seja, ano, só o
5º ano porque a gente achava que era o 6º porque ia iniciar isso, fosse apenas do 5º ano e aí com calma, com
tempo, com qualidade. Para o ano que vem, sim, nós ajudaríamos nos grupos uma alteração. E eu vou dizer
porque que seria nossa legação, temos uma dúvida de que talvez, as Lições do Rio Grande, que seria, como
você bem colocou, uma norma não em si uma orientação, talvez não vire política de estado, tenham sido
apenas uma política de governo. Como vocês sabem, o governo mudou drasticamente de partido... (Professor
Formador 1, 2010).
T 29: ... ontem até nós perguntamos pras... claro... (Supervisora 2, 2010).
[...]
T 30: ...é... com a ajuda de vocês, ... da UFFS... então assim, mas as demais, a partir desse ano, já foi lançado
pras escolas... as demais, cada escola é livre, vai ser assim livre, vai se adequar... entende... eu acho que não
tem mais volta em questão de plano de estudo (Supervisora 1, 2010).
T 31: eu também acho... não tem acho... (Supervisora 2, 2010).
T 32: ...eu acho que já, cada escola... (Supervisora 1, 2010).
T 33: vocês trazem o discurso da região, que vocês vão na AMM, vou resgatar aqui, vão escutando, como que os
outros tão fazendo... (Professor Formador 1, 2010).
T 34:...é professor formador 1, nós fomos, eu e supervisora 2 de enxeridas, fomos nos encontros do Estado...
(Supervisora 1, 2010).
T 35: …do estado... (Professor Formador 1, 2010).
[...]
T 36: ...únicas... (Supervisora 2, 2010).
T 37: ...querendo... (Supervisora 1, 2010).
T 38: ...mas assim eu acho que ainda fica de pé, vocês entenderam? A nossa proposta seria apenas se déssemos
essa olhada... essa ajuda para esse ano... na série do próximo ano; alterações apenas mediadas por nós no 5º
ano... vocês entendem porque, que a proposta toda assumir hoje, primeiro acho que as pessoas não dariam
conta dessas... eu entendo que vocês já têm uma coisa andando... ou então a gente não daria uma assessoria, a
gente faria o que na proposta de vocês; olharia esses conteúdos que já estão numa planilha mais ou menos
prontos e daria um parecer... pelo que eu entendi que é o que elas desejam... dai teria que perguntar se os
professores topam ou não porque eu assim, quero dizer... (Professor Formador 1, 2010).
T 39: ...eu acho que isso daí tem que ser construído com eles que estão aí na realidade... (Supervisora 2, 2010).
T 40: ...aí é que e tô dizendo, tem que ser com o professor... (Professor Formador 1, 2010).
T 41: ...teria que ser com o professor... (Supervisora 2, 2010).
T 42: ..professor formador 1, ... seria então, deixa eu ver supervisora 2, assim oh, não sei, a nossa, nós
trouxemos a supervisora 5 junto que ela, pelo estado ela participou anteontem da reunião da 14ª em Santo
Ângelo reuniram novamente as estaduais pra dar encaminhamento, mas o que você traz a nível de estado?
Porque nós, já que queremos fazer juntos com as estaduais eu acho que nós temos que nos adequar também
ao que pedem no estado ... o que é... (Supervisora 1, 2010).
T 43: ...nós temos, assim, um compromisso de rever os planos de estudo que estão correndo não é? que são esses
que a gente já construiu do 1º ao 4º e esse de 5ª a 8ª esse nós temos que rever e dar uma reestruturada...
(Supervisora 5, 2010).
[...]
T 44: ...tá, mas, assim, vocês teriam que lembrar o seguinte: para isso as estaduais vão vir extremamente
encaminhadas em seguir como lei as Lições do Rio Grande. Nesse para... por exemplo, para explicar, a área,
156
cada área em uma discussão diferenciada sobre isso, teriam que entender assim... o estado vai vir orientado pra
assumir as lições como referência. Por exemplo, em Ciências, se eu participar da assessoria, eu não vou estar
adequando isso à discussão, eu na verdade vou levar uma discussão, supervisora 1,de repensar se isso é próprio
ou não. Que minha pergunta é: por que essa? Como está? Que conteúdo?... e a minha interpretação é que um
referencial sempre sirva de referência e orientação e não como efetivação da política porque o estado
orientado e tanto que esse discurso a supervisora 5 me revela que o estado está preocupadíssimo porque
perdeu a eleição e tem que implantar. Por isso essa pressa, vocês entendem... que eu acredito que vocês, como
município que só vão terminar a administração em 2012, não tem essa pressa... (Professor Formador 1, 2010).
T 45: ...só um pouquinho, supervisora 2, eu vejo, deixa eu colocar assim como eu vejo assim oh... lá nesses
encontros deram total liberdade, você não é obrigado a seguir tal e qual, você adequa a sua realidade, a tua...
como nós aqui professor formador 1... e outra assim oh, essas lições na verdade, veio aqueles livros, acho que
veio... não veio pra cá o do aluno... então eu achei tão engraçado em março... o estado recebeu aqueles livros
do aluno e entraram pra aplicar naquela nova metodologia ali que o livro oferece. Muito bom, muito bom
por sinal... só que o professorado não estava preparado, então o que já está sendo trabalhado e os planos não
estão prontos. Eu vejo diferente, que nós ainda, estamos atrasados, entende, em nível de estado, nós estamos
atrasados... esse ano já trabalharam dentro da nova proposta, só que não tem plano pronto. Isso não pode
também, os planos tem que ser... (Supervisora 1, 2010).
Em meio ao encontro entre gestores e professores da Universidade, surgem as questões
ligadas à organização do processo. Nesse contexto, é possível perceber um cenário de
contradição e que congrega um discurso determinista, no T 25: “... só que, professor formador
1, nós vamos mexer, mexer...” (Supervisora 1, 2010) e T 26: “...nós só queremos
acrescentar...” (Supervisora 2, 2010), já vai sendo atribuído, desde o início do processo, o
tom de mudança obrigatória e de que será seguido o Referencial Curricular do RS. A
contradição fica muito nítida no turno T 30: “ ...é... com a ajuda de vocês, ... da UFFS...
então, assim, mas as demais, a partir desse ano, já foi lançado pras escolas... as demais,
cada escola é livre, vai ser assim livre, vai se adequar... entende... eu acho que não tem mais
volta em questão de plano de estudo” (Supervisora 1, 2010), pois, ao mesmo tempo que a
supervisora descreve que cada escola pode ser livre nas adequações ao referencial, ela reforça
que deve haver mudança e que não tem mais como retroceder na decisão de unificar os planos
de estudos das duas redes.
Seguindo, a Supervisora 1(2010) impõe certo direcionamento ao processo quando
afirma: “porque nós, já que queremos fazer juntos com as estaduais, eu acho que nós temos
que nos adequar também ao que pedem no estado ... o que é?...”. Acredito que é possível
perceber, além da determinação clara em unificar as redes, que esta unificação seja pela
proposta estadual desde o planejamento da ação. Confesso que, como participante, esse
encaminhamento me amedrontava, pois de algum modo rompia com as discussões que o
grupo de professores de Ciências vinha procedendo, em função dos conteúdos e objetivos do
ensino na perspectiva de como encaminhá-los e não somente quanto à decisão de quais
conteúdos abordar. As questões que perpassavam o grupo eram mais de ordem do porquê dos
conteúdos e como abordá-los.
157
Por várias vezes, como professor formador no GEPECIEM e como participante da
discussão acerca dos planos de estudo, tentei recolocar a discussão numa perspectiva mais
crítica, analisando o peso das decisões para a municipalidade, como fica evidente nos turnos T
28, T 40 e T 44. Nas diferentes vezes, acabei não logrando êxito na discussão, pois a decisão
já estava tomada, restava-me, no andar do processo, fortalecer o diálogo com os professores
da área de Ciências.
Outra situação que particularmente incomodava foi declarada pela Supervisora
1(2010), no turno T 45: “o Estado recebeu aqueles livros do aluno e entraram pra aplicar
naquela nova metodologia ali que o livro oferece. Muito bom, muito bom, por sinal... só
que o professorado não estava preparado, então o que já está sendo trabalhado e os planos
não estão prontos. Eu vejo diferente, que nós ainda, estamos atrasados entende, em nível de
estado, nós estamos atrasados... esse ano já trabalharam dentro da nova proposta, só que
não tem plano pronto. Isso não pode também, os planos tem que ser...”. Mesmo percebendo
‘certo atraso’ em relação à rede estadual no que diz respeito à formação de professores,
preferem seguir a postura que o RS adotaria. No mesmo excerto é possível perceber que a
supervisora em questão diz da falta de preparo, ou seja, formação, para implantação de tal
proposta. Aqui talvez esteja a raiz da outro entrave/barreira que pude depreender da análise do
processo de mudança de planos de estudos que acompanhei: a questão da dissociação entre
mudança ou inovação curricular e formação de professores (SCHÖN, 1992; PÉREZ-GÓMES;
1992; NÓVOA, 1992; ZEICHNER, 1992; 1993; STENHOUSE, 1985; 1993; CARR;
KEMMIS, 1988).
T 46:...Então deu a coincidência e nós sabíamos desde o começo, no outro momento é de 5º ao 9º e deu a
coincidência da troca de governo na eleição. Eu acredito que não é, posso tá sendo ingênua, mas eu acredito
que é uma proposta de planejamento, sim, em cima de uma base legal, que não se permite assim como tu tá
falando... como eu digo, nós somos um sistema e recebemos orientação deles também... (Supervisora 2, 2010).
T 47: ...não, pois é... mas é que... aí que tem que entender que o Estado aí de algum jeito... (Professor Formador
1, 2010).
T 48: ...até podemos nos impor... (Supervisora 2, 2010).
T 49: ...impor a orientação, vocês me entendem?! A gente tá só tendo esse cuidado de não utilizar ela como
regra. Entendeste?... (Professor Formador 1, 2010).
T 50: ...mas mesmo com... (Supervisora 1, 2010).
[...]
T 51: ...não é novo, pegar o que nós temos, o de 6ª, 7ª e 8ª nós temos, em cima dele, analisando ali se tem algo a
acrescentar, se tem algo a mudar, o que pode só adequar a eles, adequar... melhorar, na intenção de melhorar
(Professor Formador 1, 2010).
T 52: professor formador 1, eu cheguei a questionar a inspetora, e ela da coordenadoria, não tem como a gente
fazer só o 5º ano, que é o que seria, deixar os outros pra depois,, ela disse não. Daí eu disse assim: mas, e por
que que nós vamos ficar fazendo... atrás... são anos que a gente não tem na escola (Supervisora 5, 2010).
[...]
T 53: ...e a inspetora que é a nossa, viu, professor formador 1, a inspetora que é a nossa assessora, que tu fez a
pergunta essa é... ela é... (Supervisora 2, 2010).
T 54: ...ela fica... (Supervisora 5, 2010).
158
T 55: ...ela é nomeada lá... (Supervisora 2, 2010).
T 56: ...ela não sai... (Supervisora 5, 2010).
T 57: ...ela sabe o que diz... (Supervisora 2, 2010).
T 58: ...entra governo, saí governo, ela fica... (Supervisora 1, 2010).
T 59: ...é inspetora... então? (Professor Formador 1, 2010).
T 60: ...essa sempre esteve lá e tem todo o, de todo o (Supervisora 2, 2010).
T 61: ...quando a gente precisa de uma orientação, é ela que... (Supervisora 1, 2010).
T 62: ...talvez então, isso também que... (Professor Formador 1, 2010).
T 63: ... no fundo, no fundo assim outra dúvida que nós tínhamos e que agora pra mim tá concretizando aqui
que é e a gente achou que não era... na verdade o que é o 6º ano?...a 5ª série, o 7º ano a 6ª série... infelizmente...
nós achamos que ia ter todo... (Supervisora 2, 2010).
T 64: ...na verdade o que acontece... (Professor Formador 1, 2010).
T 65: ...nós nem podemos querer ser tão audaciosos de querer mexer tanto nessa... porque em nível de estado
não vai mudar... entende... (Supervisora 2, 2010).
[...]
T 66: ...mesmo porque assim, oh, nós temos que reconstruir também e construir novo regimento e nesse novo
regimento tem que ter contemplado as regras de convivência e sanções então se tem contemplado regras de
convivência tem que ter também nos planos de estudo alguma coisa que tá... sabe, que vai... então assim oh, tem
que fazer do 1º ao 9º ano. Ela foi clara comigo, eu cheguei a perguntar, não sei onde que eu anotei porque eu
anotei até a respiração dela... só eu vou entender... no momento que ela respirava eu anotava né que eu tinha
esse compromisso mas assim oh, ela foi clara comigo, eu cheguei no final da reunião e fui atrás dela e ela
disse: - nãosupervisora 5! Não tem como fazer só do 5º ano, tem que fazer tudo... (Supervisora 5, 2010).
Nos turnos T 46 e T 65, estão postos os dilemas da obrigatoriedade de o Estado do RS
refazer os planos em 2010 para vigência a partir de 2011, e que a plenitude deveria ser
assumida pelas escolas da rede estadual. Mesmo não percebendo, a Supervisora 5 (2010), no
turno T 66: “não tem como fazer só do 5º ano, tem que fazer tudo...”, afirmou que é
obrigada a refazer e seguir as regras, anotar tudo o que a inspeção de ensino determinava.
Essa diferença entre os que gestam e coordenam as ações e os professores que articulam em
suas escolas as alterações curriculares dos planos de estudos é um modo de expropriação do
trabalho docente, à medida que se delega aos gestores a determinação, e aos professores a
execução do processo. Geraldi (1994) e Mazzotti (1986) apontaram essa divisão do trabalho
com base no excurso da Didática Magna comeniana e, ao fazê-la, os sistemas de ensino
contribuem para expropriação do trabalho do professor. Acredito que esse movimento de
planejamento da ação continha muito dessa expropriação, ainda que me force a acreditar que
não de modo intencional, explícito ou deliberado.
T 67: ...inclusive... só um minutinho... inclusive ela colocou assim, que as resoluções que tem que contemplar,
a parte dos PCN que tem que... aquela... ela deu tudo pra nós direitinho... e as Lições do Rio Grande que não
é assim uma coisa mandatória... (Supervisora 5, 2010).
T 68: ...é uma proposta que... (Supervisora 2, 2010).
T 69: ...vejam, eu quero fazer uma incursão, eu não posso perder, quando ela diz “tem que” contra os PCN...
não! (Professor Formador 1, 2010).
T 70: ...não tem que? (Supervisora 1, 2010).
T 71: ...essa é a questão. Tu tá entendendo, supervisora 5? E vocês do estado são obrigados a fazer o que elas
dizem... e eu quero alertar vocês do município, vocês não são... (Professor Formador 1, 2010).
T 72: ...não somos, não... (Supervisora 1, 2010).
T 73: ...então eu acho que vincular-se ao estado, desculpa se eu te... mas eu preciso dizer isso... se vincular ao
estado, na minha visão, não é bom! Não é uma boa companhia o estado. E... do ponto de vista... eu fui
professor estadual muitos anos, o estado chega lá e na hora a inspetora de ensino te obriga a escrever
159
daquele jeito. E o município não é obrigado, por força legal, a seguir. Vocês entendem o que eu quero dizer?...
mas, se desejarem , podem seguir. Então, eu não sei se é uma boa filiação do estado nesse momento de decisão,
eu só to alertando isso. Eu não tô dizendo... mas vocês podem fazer em conjunto, só que elas vão vir com essa
obrigatoriedade que vocês não têm... (Professor Formador 1, 2010).
T 74: ...mas eu acho que... eu sei, entendi... mas não é bem assim. Não é que nós vamos nos integrar, nós
queremos o plano que não seja tão diferente...alinhados só, o resto como nós vamos trabalhar, como nós..
(Supervisora 1, 2010)..
T 75: ...é mais no sentido dos conteúdos... (Supervisora 2, 2010).
T 76: ...só, conteúdos... definição de conteúdos básicos, mínimos ou essenciais dentro de cada disciplina...
(Supervisora 1, 2010).
[...]
T 77: ...e como lições é uma proposta, nós podemos trazer o estadual para o município. Entendeu? Pra nossa
proposta no sentido de conteúdo, entendeu? E outra coisa, nós temos muitos professores em comum que
trabalham nas duas redes e ele não trabalha diferente lá na sala do estado e na... (Supervisora 2, 2010).
[...]
T 78: ...agora eu acho que tem que só decidir como vai ser... (Professor Formador 1, 2010).
T 79: ...a questão assim que a gente tem que analisar ... redesenhar os planos... (Professor Formador 4, 2010).
T 80: …tem que avançar depois... (Professor Formador 1, 2010).
T 81: ...não é a partir de uma folhinha que vai se estudar, então esse trabalho tem que ser ao longo do tempo,
por isso nós pensamos que isso deva ser feito com o tempo... (Professor Formador 4, 2010).
T 82: ...gradual... (Professor Formador 1, 2010).
T 83: ...gradualmente, assim... procurando pra que realmente a gente consiga arrumar a alteração, assim...
porque se vocês vão pensar em índices, que a gente pode discutir isso um pouquinho também, mas a questão de
aprendizagem ela não passa só pelo que está escrito naquela folha, o que acontece na sala de aula e como o
aluno está respondendo isso... muitas vezes essas questões que vocês iniciaram levantando aqui, que têm
preocupação com o outro aluno que vem de uma outra escola, quando se trabalha habilidades e competências
não significa que vai se seguir linearmente uma relação de conteúdos e isso pode acontecer mesmo que tenha os
mesmos planos... de repente tem alguém e diz: oh, “vou dar um enfoque inicialmente nisso” e outro professor
pensou uma estratégia diferente ao mudar a estratégia, ele muda também a ordem daquele pensamento. Então,
tudo isso tem que ser analisado assim, no momento em que se quer construir uma nova proposta e é por isso a
nossa preocupação aqui, em colocar isso que foi inicial e entender como uma questão de assessoria porque a
assessoria ela demanda de ações muito maiores do que simplesmente fazer... (Professor Formador 4, 2010).
T 84: ...uma troca de conteúdos... (Professor Formador 1, 2010).
T 85: ...então, essa é a nossa preocupação, nesse nosso momento de universidade aqui, em construção aqui,
como a gente iniciou o trabalho..., então, a gente tem algumas limitações ainda, acredito que, digamos assim,
que nós até desejamos até fazer isso por..., pra toda região... nós precisamos ainda nos organizarmos, nós
estamos aqui... cada um veio de uma origem aqui então a gente precisa também ter uma unidade de ação. Não
adianta nós chegarmos lá, falar aos professores linguagens completamente diferentes. No momento que os
professores se reunir vai virar uma confusão maior ainda ... então, nós não podemos fazer dessa forma. Por isso
a gente tem meio uma reserva assim nas formas de agir que mesmo... querer contribuir, nós queremos contribuir,
só que a gente tem que analisar quais as possibilidades e o que realmente a gente assim precisa fazer agora sem
que isso traga prejuízos até na hora da aprendizagem do aluno... a gente não tem que pensar só na questão
documentação legal aqui assim... isso a gente ajeita, vocês sabem que essas coisas a gente ajeita e o que tem
que fazer faz. Agora, simplesmente fazer disso aí por fazer, manter o mesmo que tá sendo feito, não é o que
vocês querem também...então nós precisamos assim, oh... (Professor Formador 4, 2010).
[...]
T 86: ...não, são só temas... (Professor Formador 1, 2010).
T 87: ...são temas, como eu... (Supervisora 1, 2010).
T 88: ...eles estão chamando de temas estruturantes... (Professor Formador 1, 2010).
T 89: ...exato. Eu não saberia dizer; nesse tema estruturante eu posso dar isso, isso, isso... eu não posso, não
saberia dizer... português, matemática... tem essa assessoria, essa a gente quer. Desse tema aqui pra daí...
porque nós temos que fazer a listagem (Supervisora 1, 2010).
T 90: eu acho que assim oh, tem que marcar duas coisas; porque vocês vão ter que fazer de qualquer modo,
ponto. É um fato, irão fazer (Professor Formador 1, 2010).
T 91: teremos que fazer (Supervisora 1, 2010).
Que obrigatoriedade é essa? “inclusive ela colocou assim que as resoluções que tem
que contemplar, a parte dos PCN que tem que... aquela... ela deu tudo pra nós direitinho... e
as Lições do Rio Grande que não é assim uma coisa mandatória...” (T 67). Uma
160
obrigatoriedade que parece estar disfarçada, mas se revela presente no discurso, que é negada,
mas é assumida, que parece não existir, mas conduz a própria ação.
O discurso dos conteúdos mínimos também parece apontar para mais um problema no
sentido da vinculação da noção de currículo apenas como sinônimo de lista de conteúdos. A
compreensão de currículo como exclusivamente conteúdo. E, ainda, denotando que os
conteúdos sejam ‘apenas conteúdo’.
Cabe uma análise também no sentido da formação. As supervisoras são pedagogas
com experiência na área de atuação. Tiveram, inclusive, experiência na área de direção.
Então, uma questão que pode ser suscitada na análise é: como a formação inicial tem tratado a
questão curricular? Pois, via de regra, a falta de formação adequada parece concorrer para os
equívocos de interpretação legal que se notam ao longo da discussão aqui apresentada, bem
como para certa noção ingênua quanto à determinação e obrigatoriedade relativa aos
procedimentos. Outra situação que pode estar atrelada à formação é a concepção de currículoconteúdo que está situada, por exemplo, no turno T 89: “...desse tema aqui pra daí... porque
nós temos que fazer a listagem[de conteúdos]”.
Essas incompreensões, à medida que se tornam barreiras ao processo que poderia
ascender da discussão entre os sujeitos professores de modo compartilhado, parecem manter
muita relação com questões da formação de professores. Pois, à medida que está sendo
separada a produção de um novo currículo sem a necessária proposição dos meios de
articulação deste na prática docente, a perspectiva de inovação curricular ou de reorganização
e integração está há tempo perdida. Ao ser limitada à discussão da suposta nova organização
curricular em torno dos conteúdos, perde-se parte do sentido pressuposto à formação docente.
Resgatar a via da formação docente no contexto de constituição dos professores,
buscando autonomia, desenvolvimento profissional e reflexão sobre as práticas, é o que
propõe o referencial da investigação-ação defendido por Carr; Kemmis (1988). No que se
refere ao motis propulsor do processo, os autores sugerem, através de suas pesquisas, que a
reforma curricular é uma perspectiva que tanto mantém os docentes dispostos à reflexão como
dá suporte às possíveis transformações das práticas, ou seja, não se faz uma coisa
desarticulada da outra.
Nas falas dos turnos T 79, T 80, T 81, T 82 e T 83, num diálogo entre os professores
formadores 1 e 4 (2010): “...a questão assim que a gente tem que analisar ... redesenhar os
161
planos...” (Professor Formador 4, 2010); “…tem que avançar depois...” (Professor Formador
1, 2010), é possível perceber que procede uma preocupação para além das alterações nos
planos, que é de cunho formativo. Os professores formadores fazem alusão a que, para que o
processo transcorresse de modo mais viável e eficaz, seria necessário mais tempo, e que a
proposta deve estar articulada à formação e não meramente aos conteúdos. Noutro turno, um
dos formadores já havia feito menção à necessidade de ser um processo desenvolvido com os
professores da área de Ciências. Essa preocupação, que parecia circundar a discussão, está
mais premente nos turnos que seguem, bem como pode ser situada no diálogo com uma das
professoras do grupo, que foi entrevistada na mesma época em que se dava início ao processo
de mudanças nos planos de estudos de Ciências.
T 92: ...precisa... (Supervisora 1, 2010).
T 93: ...que o município está assumindo o referencial das Lições do Rio Grande, não nos cabe dizer não. Eu não
tô... eu não faço essa, assim esse... eu fico marcando o discurso porque eu pesquiso essa área, porque eu sei que
existe uma determinação. Agora, o município assume a postura que quer usar os referenciais das Lições, muito
que bem, tá assumida. No futuro vamos ver se estava melhor ou pior. A segunda coisa é: se fizermos no caso,
nossa área tem que ser assim compartilhado e lá no grupo que vocês já conhecem, que eu acho que é
interessante, sei que elas já estão olhando lá. E ainda eu acredito que em Ciências, da minha parte, poderia
dizer que seria uma revisão a partir de perguntas com elas, não unicamente do conteúdo neste momento
(Professor Formador 1, 2010).
T 94: exatamente, é isso aí (Supervisora 1, 2010).
T 95: porque o grupo de Ciências talvez vai aos poucos, a longo prazo, causar alteração na prática das
professoras, tanto que vocês vão percebendo isso, como registraram hoje nos discursos. Mas, nós como grupo,
inclusive pra vocês saberem, não temos pressionado mudanças na prática. A gente não tem se inserido na
prática e é uma luta minha pessoalmente, do grupo inclusive, de que vai chegar esse momento, mas que não
haja uma... (Professor Formador 1, 2010).
T 96: ...pressão... (Supervisora 2, 2010).
T 97: ...direção... pressão em direção à prática... isso não!. Isso vai se transformando devagar pela própria
reflexão. Então, se vamos assumir essa revisão, eu chamaria, de conteúdos... (Professor Formador 1, 2010).
T 98: ...foi o que a professora chegou... (Supervisora 2, 2010).
T 99: ...num momento de grupo, não sei se é isso que eu entendi (Professor Formador 1, 2010).
[...]
T 100: ...vocês têm que ter a clareza que isso não funciona dessa forma, a gente tá entendendo que, né... como
parâmetros, Lições do Rio Grande... mas nós não podemos nos comprometer aqui a fazer Lições do Rio Grande,
assim, oh, nós assumirmos isso como algo nosso aqui ... (Professor Formador 4, 2010).
T 101: ...não... (Supervisora 1, 2010).
T 102: ...nem queremos... (Supervisora 2, 2010).
T 103: ...então isso, essa preocupação que levanta de incluirmos o estado, no sentido de que se o estado exigir
'vocês tem que ser isso aqui' talvez a gente tenha confrontos de ideias... (Professor Formador 4, 2010).
T 104: ...não, isso...entende? Nós podemos chegar aqui e tomar totalmente outra coisa... (Supervisora 2, 2010).
[...]
T 105: ...eu posso até pensar diferente, entendeu, eu trabalho no setor e eu vou ter que fazer... (Supervisora 5,
2010).
T 106: ...não é que tem que ser diferente... (Professor Formador 4, 2010).
T 107: ...a coisa vai chegar lá e não vai ser... (Supervisora 5, 2010).
T 108: ...mesmo no estado há essa possibilidade de pensar ... parâmetro. Só que quantos professores estão
dispostos a comprar essa briga, vamos dizer assim, oh... então é por isso que normalmente acaba sendo feito
assim: ou adotar dessa forma, que também dizendo que... por isso ela acaba se impondo, porque muitos têm às
vezes embasamento pra poder pensar de uma forma diferenciada. Nesse sentido que acaba se impondo ... não
é uma imposição oficial, mas é uma imposição... (Professor Formador 4, 2010).
T 109: ...de estrutura... (Professor Formador 1, 2010).
T 110: ...a estrutura até de que tá... dos professores que não conseguem às vezes... não têm nem como buscar
formas diferentes, né, então... nesse sentido que a gente sabe que acaba acontecendo... eu trabalhei no estado,
162
às vezes é bem diferente que era proposto na escola, mas eu estava muito seguindo o exemplo exatamente do
que... o currículo que a escola tinha eu seguia... (Professor Formador 4, 2010).
T 111: é que assim oh, professor Y, assim como o professor formador 4 colocou há pouco, pelo que eu entendi
assim oh... (Supervisora 1, 2010)8.
T 112: ...talvez nós assustamos vocês... (Supervisora 2, 2010).
T 113: ...vocês estão assustados assim que já vem o... eu vou chamar o depois... no primeiro momento é a
listagem do conteúdo, deveria... o que nós... é necessário dentro daqueles... como diz ali, dos... como eles
chamam?... (Supervisora 1, 2010).
Os turnos T 95 e T 97 mostram que a preocupação para com a formação que está em
andamento através do GEPECIEM é premente. Mas, continuava em questão a adoção do
referencial do Estado do RS como única via possível, como fica esclarecido no turno T 105: “
...eu posso até pensar diferente, entendeu, eu trabalho no setor e eu vou ter que fazer...”.
Nos turnos T 93 e T 103, os professores formadores fazem um convite à reflexão,
como também em outras passagens, mas o grupo de supervisores não está imerso na formação
continuada como estavam os professores de Ciências. No diálogo com este grupo de gestores
educacionais, a discussão para além do conteúdo, da estrutura, da forma parece não fluir.
Nos diálogos: - a ideia de currículo como sinônimo de conteúdo é predominante; - o
comando e as intencionalidades na arena de discussão acerca de uma possibilidade de
organização curricular (os novos planos de estudos) se dá em torno da lista dos conteúdos e o
planejamento é idealizado por um certo padrão pré-estabelecido, seguir as Lições do Rio
Grande em nome da possibilidade de unificação; - a condução do processo de decisão em
torno da articulação como e por quê ensinar não parece estar muito presente. Ainda que
houvesse possibilidades de se fazerem diferentes arranjos para proposição curricular, isso
dependeria eminentemente dos professores.
O diálogo é formativo. As discussões, ainda que pareçam mostrar certos limites nas
compreensões, são constitutivas dos sujeitos, pois, ao colocar em diálogo intersubjetivo seus
conceitos e crenças, todos interagem. Nessa interação, o diálogo entre os sujeitos propiciou
certo movimento sobre a organização curricular, para além disso pôs em movimento as
concepções dos professores (supervisoras) sobre currículo, sobre ensino, sobre formação de
professores e coloca em xeque a necessidade de se fazer a alteração no coletivo, para que ela
seja processual e de autoria do grupo de professores da área de Ciências. Esse movimento,
propiciado pelo diálogo coletivo acerca de uma razão formativa, é constitutivo dos
professores em formação.
8
Alguns professores da UFFS que não participaram do GEPECIEM estiveram presentes no processo de
alteração dos planos de estudos para assessorar outras áreas do conhecimento, como não eram sujeitos de
pesquisa não utilizei suas falas na análise e por isso, nas transcrições, são citados como professor X ou Y.
163
Nestes contextos formativos com base na experiência, a expressão e o
diálogo assumem um papel de enorme relevância. Um triplo diálogo, poderei
afirmar. Um diálogo consigo próprio, um diálogo com os outros, incluindo os que
antes de nós construíram conhecimentos que são referência e o diálogo com a
própria situação, situação que nos fala (ALARCÃO, 2010, p. 49).
Nessa parte, penso que seja pertinente resgatar um diálogo que mantive ao entrevistar
uma das professoras do GEPECIEM. A entrevista se deu em meio ao processo em que a
gestão escolar municipal anunciava a mudança nos planos de estudos. Nas falas transcritas a
Professora 3 (2010), pertencente à rede municipal, externaliza sua visão sobre o processo de
organização curricular que está prestes a vivenciar e resgata os já vivenciados, demonstrando
descrédito no processo e retomando a necessidade de cautela, discussão e tempo para que o
processo transcorra.
Diálogo com a Professora 3
Professor Formador 1 (2010): Eu te perguntaria assim se houve, como e quais mudanças de propostas, plano,
currículo, para dizer assim de conteúdo que ocorreram ao longo dos anos que você é professora, que você
poderia situar?
Professora 3 (2010): Agora houve mudanças, esse que nós temos atualmente aconteceu faz uns 8 anos atrás,
que nós sentamos para elaborar esse plano. Outras épocas...
Professor Formador 1 (2010): Mais ou menos em 2001?
Professora 3 (2010): é por 2002, 2003 ali na época que eu tive na direção. Eu participei bem e tive de
participar, então nessa época. Anteriormente acontecia, mas não acontecia com tanta frequência. Eu entrei em
1986, não aconteciam tantas mudanças. Era aquele um pronto e a gente seguia aquele muitos anos. Então, eu
participei de poucas mudanças, na verdade, sabe?
Professor Formador 1 (2010): Tu acha que de lá até 2002 você tem lembrança de alguma que tenha acontecido?
Professora 3 (2010): Uma, duas talvez, muito poucas mudanças. Aquilo era feito e ficava eternamente assim, ó, e
a educação falha muito nesse sentido, ela faz as mudanças, mas não entra profundamente nessas mudanças,
não discute e se deu certo, deu certo, e se não deu certo, o aluno que sai perdendo com isso. Eu vejo muito isso
na educação, a gente faz as mudanças sem saber se isso vai dar certo ou não vai dar certo e dali a 8 anos a
gente vai mudar, vamos ver, não é? Então, eu acho assim: a educação falha, peca um pouco nesse sentido de
não discutir profundamente, de não questionar, que nem agora essa mudança que você vem levantando eu
acho assim, muito positiva que tem que ter esse questionamento. Para que vamos mudar, também é
necessário mudar que nem vem lá de cima pra baixo e a gente tá correndo tudo corrido, tudo não para. Eu
nem sei o que é esse plano do estado, o que eles tão querendo mudar, eu ainda nem sei, não tô ainda por
dentro e eu tenho que ajudar a mudar um plano. Os professores, no geral, os meus colegas, ninguém sente o
que o estado está propondo, nós, o município, não, mas o estado, de repente. Os professores já sentaram e já
sabem o que é essa mudança, nós não. Então isso é muito perigoso, a gente nem sabe o que eles querem e a
gente tem que ir ali sentar. Então, tá, vamos mudar, porque tão dizendo que tem que mudar.
Professor Formador 1(2010): É? Quem está dizendo? De onde vem essa ideia de que tem que mudar?
Professora 3 (2010): É e eu fico por dentro fervendo, assim sabe, angustiada (risos). O que é isso tem que
mudar, pra quê?
Professor Formador 1 (2010): E nesse sentido, assim até, professora 3, é bem essa reflexão que a gente tem que
começar a fazer. Para pensar nessas mudanças, se tem que acontecer e como elas são? Lá de 1986 pra 2002,
que é ali que tu lembras dessa última mudança que houve, mas o que tu lembra nesse período, dessas mudanças
que você chegou a afirmar que talvez tenham acontecido uma ou duas, no máximo. Se houve participação do
professor, como é que foi?
Professora 3 (2010): Sempre aconteceu, como eu te falei, tudo corrido, tudo vem assim há tempo que muda,
mudar às vezes até dois, três professores se reúnem e faziam o grosso e depois vinham e apresentavam pra
nós, a gente não tinha discutido nada, dizia Amém, pronto. Sabe, essa mudança aconteceu muito corrido,
muito superficial, muito assim dois, três, quatro fazendo, sentavam lá numa salinha, faziam um esboço,
apresentavam pra um grande grupo e aprovava, não aprovava.
[...]
[mais ao final da entrevista, a professora afirmou:]
164
nós fazíamos esse encontro, mas não acontecia o que eu esperava, eu queria discutir a educação, sabe? Assim
tem que haver mudanças, abrir o leque, hoje eu vejo que esses poucos encontros que nós fizemos agora todo
mundo dos meus colegas estão empolgados, sabe, tô vendo que dá para fazer diferente e que pode ser diferente
que esses poucos encontros dá um entusiasmo, dá um ânimo.
A desconfiança manifestada pela Professora 3 (2010) é em relação à fluidez do
processo, bem como ao modo de discussão, que pode não conseguir captar os desejos de
todos. A partir do diálogo, também é possível perceber que a professora se refere aos
encontros do GEPECIEM e recoloca a discussão que as mudanças [de conteúdo], às quais ela
se referia durante a entrevista, deveriam perpassar o grupo de formação. Acredito que o
diálogo contém indícios que possibilitam depreender que, no contexto formativo, a professora
sente que a discussão não se dará apenas pela via de quais conteúdos, e sim do como e por
quê trabalhá-los. Isso parece incorrer nos propósitos que o GEPECIEM tem alicerçado e na
literatura da área, sejam eles refletir sobre as questões curriculares na perspectiva formativa.
Parece que do discurso dos professores do grupo pode estar emanando a
contracorrente ao próprio modelo de mudança dos planos curriculares. Desse modo, de um
lado, os supervisores escolares culpam os professores que, por falta de formação adequada,
tendem a seguir ingenuamente as políticas públicas como se fossem leis. Além disso, não
participam e não acompanham efetivamente os processos de formação dos professores e
compreendem o currículo apenas como conteúdo. De outro lado, os professores que
participam ativamente de um contexto de formação continuada desconfiam que os processos
de mudança curricular possam estar apresentando limitações e demonstram insegurança ao
participar de uma mudança tão rápida e ordenada apenas à mudança de conteúdos. Esse
movimento contém indícios que levam a considerar que o contexto reflexivo-formativo em
que os professores de Ciências se inserem tem desencadeado um caminho de enfrentamento a
possíveis entraves e barreiras como os situados nessa análise, pois o coletivo impõe a
discussão e o diálogo que, a meu ver, são os embriões da reflexão, não qualquer reflexão, uma
reflexão formativa.
O referencial da reflexão crítica, ou teoria educacional crítica, diz que é pela via da
inovação curricular que os processos de (trans)formação dos sujeitos e processos ocorre. A
literatura da área da educação em Ciências (ZANON, 2003; SILVA; SCHNETZLER, 2000;
ROSA;
SCHNETZLER,
2003;
ROSA,
2004;
PANSERA-DE-ARAÚJO;
AUTH;
MALDANER, 2007) aponta que uma saída possível para uma formação continuada eficaz é
discutir a reorganização curricular e fazer a formação de modo compartilhado. Assim, nas
interações o processo reflexivo vai fluindo e oferecendo um caminho de transformações que
165
vão constituindo os sujeitos participantes do processo (ROSA, 2004). Desse modo, ao pensar
o desenvolvimento curricular surgem necessidades formativas, pensa-se o como fazer
(metodologia), não apenas o quê ensinar (currículo-conteúdo) e discute-se o currículo em ação
na perspectiva de transformação curricular e melhoria das práticas.
Maldaner (2006) põe em pauta o modo de empreender uma formação de professores
articulada à pesquisa e ao seu ensino, rearticulado à inovação curricular. Nesse modelo de
abordagem dos conteúdos, as proposições são dos próprios participantes, revertendo em
formação e aprendizagens tanto para os professores em formação como para os alunos
participantes do processo.
Segundo Pansera-de-Araújo; Auth; Maldaner (2007), todo o desenvolvimento
curricular leva em consideração as vivências dos estudantes e situações cotidianas e desse
modo se aposta numa perspectiva com potencial integrador, interdisciplinar e que faz sua
função no ensino, ao invés de apenas criticar currículos tradicionais. Os autores também
alegam que “de uma forma ou outra, mesmo quando os professores tentam aplicar currículos
produzidos por outros, eles criam seu próprio esquema de abordagem do conhecimento
escolar” (PANSERA-DE-ARAÚJO; AUTH; MALDANER, 2007, p. 5), e isto implica autoria
curricular sempre, pois a aula é única, e os sujeitos também, o que permite sempre
reconstruções na prática de ensino em Ciências. Para que essa aposta tenha êxito, é importante
focarmos numa formação inicial e continuada qualificada e que permita a constituição de um
professor que se forme reflexivo e pesquisador, pois, desse modo, terá mais condições de
reconstruir propostas e programas de ensino, deixando de fazer uma execução linear de livros
e modelos.
O professor é peça-chave na proposição e implementação das mudanças
educacionais. Nesse sentido é fundamental que ele esteja inserido em ações coletivas
na parceria e na mediação com outros, como forma/ espaço/ meio eficaz de intervir e
transformar a realidade (BOFF; FRISON; PINO, 2007, p. 72).
Os processos formativos podem dar subsídios ao professor, que, de posse destes e em
interlocução com seus pares, pode construir um campo mais profícuo e receptivo às mudanças
curriculares. Por isso, o coletivo sobressai nas propostas de formação de professores a partir
da investigação-ação, como garantia de um processo mais pleno e assumido de modo
deliberado pelos participantes. No coletivo, a ação se torna mais responsiva, o diálogo
166
formativo qualifica a reflexão sobre as práticas e as tomadas de decisões que podem ir em
direção à transformação ou melhoria dessas práticas.
O currículo, como discurso, é sujeito a muitos processos de recontextualização que
possuem regras que “regulam a formação do discurso pedagógico específico de um dado
contexto" (LOPES, 2005, p. 5). Nesse sentido, o currículo em ação passa por diferentes
reinterpretações de sujeitos que o vivenciam em seus contextos, o que garante, de certo modo,
que cada professor o incorpore de forma única e diferente no momento de sua
aplicação/produção em classe.
As apostas do referencial aqui trazido não são unicamente teóricas, antes, pelo
contrário, são produtos de uma construção na práxis, da qual decorrem as discussões, que
antes de tudo brotam de situações reais, de pesquisa, de investigação-ação. Nos distintos
contextos, a tendência de se acreditar na viabilidade das proposições teóricas aqui
apresentadas fica mais evidente ou, ainda, possível quando os professores dos contextos com
os quais nos deparamos estão envolvidos em processos de formação continuada, o que nem
sempre é a realidade das escolas brasileiras.
Um dos entraves presentes no processo de reorganização curricular que vivenciamos
foi (para além do atropelo da implementação dessa reorganização) a concepção, ainda
presente no grupo participante, especialmente entre as professoras supervisoras, de que
currículo é apenas conteúdo. Para além disso, também o fator de que o grupo de estudos e
pesquisa constituído estava no início de sua implantação e com isso não tinha condições
satisfatórias de fazer uma ampla discussão de conteúdo articulado à metodologia do ensino e à
sua própria formação, nos moldes propagados pelo referencial da investigação-ação crítica
(CARR; KEMMIS, 1988). Não obstante, acredito que os participantes puderam vivenciar um
modo diferente de fazer a mudança nos planos de estudos, especialmente se compararmos ao
relato da Professora 3, já discutido nesse capítulo. Esse modo diferente do que estavam
acostumados a fazer pôs em movimento suas compreensões, suas teorias e práticas, o que
pode ser notado na análise dos episódios subsequentes sobre esse processo de mudanças nos
planos de estudos. A articulação do coletivo docente, o fato de ser um grupo envolvido com
sua própria formação, foi, a meu ver, o estopim das discussões desencadeadas que, como
resultado, deu mais clareza às decisões dos participantes.
167
3.4 O movimento formativo dos Planos de Estudos I - O currículo do Livro ou o Livro
do Currículo?W
Os episódios que serão analisados nesse movimento de formação apresentam
passagens de um encontro entre os professores de Ciências, supervisoras, licencianda e
professores formadores sobre a definição dos Planos de Estudos com vigência a partir de
2011. Nesse encontro, os professores formadores e licencianda optaram por participar apenas
como observadores.
A qualificação dos professores e pesquisadores da Universidade presentes em grupos
que estão desenvolvendo um processo de investiga-ação é tida como externos (TRIPP, 2005;
PIMENTA, 2005) ou assessores (ROSA, 2004; ROSA; SCHNETZLER, 2003). A definição
do papel destes está posta nos termos de um co-adjuvante que possa instituir o processo,
facilitá-lo e ao mesmo tempo transferir e produzir coletivamente tecnologia, teoria,
fundamentação. À medida que o processo vai progredindo, os externos podem sair de cena ou
não, em razão de suas escolhas e ligações com o processo.
No caso peculiar do GEPECIEM, não se trata de sermos assessores, nem tampouco
um externo, distante da realidade, que está presente sem propósitos, sem afinidades ou sem
necessidades formativas. O externo aqui está pautado numa relação de proximidade e de
cumplicidade muito grande, pois a Universidade, através de seus professores formadores, tem
necessidades formativas comuns a esses professores, bem como tenta manter laços fortes com
o campo prático de atuação de seus egressos, para além de outras intenções em jogo nesse
processo, como as necessidades/desejos de ensino, pesquisa e extensão dos próprios
professores formadores. Isso qualifica em boa medida o tipo de externos que nos tornamos no
processo. Porém, nesse conjunto de episódios que sucedem, mantive uma condição de
investigador que observou, esteve presente, mas não contribuiu com falas e discussões, a fim
de que o processo de mudança dos planos pudesse fluir de início sem ajuda dos formadores,
com diretrizes a partir da reflexão dos próprios práticos, ou seja, dos professores de escola
envolvidos no processo de ensino de Ciências.
No diálogo formativo, é possível perceber como as marcas iniciais deixadas pelos
antigos planos, pelo livro didático e pelas intenções da gestão escolar em aplicar uma proposta
estadual como ideal e comum se configuram como prática de unificação de um currículo,
como possível forma de ação conjunta entre as redes estadual e municipal de ensino de Cerro
Largo-RS.
168
T 1: Acho que eles meio impuseram, esse ano. Foi trabalhar realmente aquela modalidade de aula competências
e habilidades que ..., mas agora, no planejamento, nas formas de estudo, aí já entre o que eles trouxeram, talvez
foi até isso, obrigar fazer a proposta, ver como que é a proposta... direciona pra escolher... (Supervisora 1,
2010).
T 2: A intenção foi aplicar aquilo ali, deu discussões, eu fui uma que tava que nem uma barata tonta
(Professora 12, 2010).
T 3: Então assim, ó, acho que a forma como chegou foi que os professores não estavam preparados para,
chegou até um desconhecimento bastante grande, o que pode ser o material que veio, veio o livro para o
caderno do aluno, né, depois foi ficando esclarecido que esse seria o material, a forma de operacionalizar as
aulas em formas de projetos e toda aquela questão começava aqui. Nós, em nível de município participamos
em junho, julho dos encontros dos estudos, né, onde a gente já foi nesse com esse objetivo de ouvir e também
com a esperança de que viesse de lá já ... os conteúdos trabalhados em cada série, cada disciplina e o que não
ocorreu. Assim, eles deixaram bem claro, nesse sentido eu quero ver se fecha, deixaram bem claro , ele foi
semana passada e conversou um momento com ela. Ela colocou que não, que nós não temos que seguir as
estaduais, nós a princípio, seguir essa linha aqui, são sugestões, vamos dizer, dos conteúdos, que tem liberdade.
Então se, por exemplo,o grupo optar por seguir o que os estágios têm uma estrutura como vocês tem, nos
planos antigos é de seguir, adaptar ali alguma coisa, não tem problema, não é necessário que seja assim: seguir
o que eles apresentam aqui. Então deixaram bem claro que … (Supervisora 1, 2010).
T 4: Pra quem estava no nosso grupo, ela deu a entender isso aí, que era uma sugestão, só que no primeiro
momento que veio para nós nas escolas foi assim... (Professora 12, 2010).
T 5: Mas não se deixou de lado o plano de estudo, professora 12? (Supervisora 1, 2010).
T 6: Nós tivemos que ver o referencial curricular, estudar o referencial curricular... (Professora 12, 2010).
T 7: Ou foi esquecido aquele... (Supervisora 1, 2010).
T 8: Não. Não por que nós, eu pelo menos, eu não estou numa formação tão profunda assim de trabalhar
aquele modelo … (Professora 12, 2010).
T 9: a nível regional, a Universidade x, a gente sentiu também, que também não estava preparado pra essa
revisão dos trabalhos, veio assim meramente repassar um livro que nós já tínhamos estudado (Supervisora 1,
2010).
T 10: Eu sei que no ensino de Ciências, eu conheço a professora, que também foi professora do professor
formador 1 e é a autora do material, que tem essa linha mais ou menos da maneira como ela colocou ali no
livro. Tinha uma linha de ir mais profundo, começar do complexo para as partes, mais do que tu estava
pensando ainda, mas mesmo assim... não sei se conseguimos dar conta, precisa formação (Professora 12,
2010).
A Supervisora 1 (2010), no início do encontro formativo do qual está recortado o
episódio acima, faz questão de situar que a proposta das Lições do Rio Grande é a opção mais
pretendida como modo de unificar os planos de estudos entre as redes municipal e estadual,
seguindo a proposta do Estado do RS. Ainda salientando que os conteúdos são de livre
escolha dos professores.
A questão da formação (ou a falta de) emerge da discussão e põe em avaliação o modo
como a proposta Lições do Rio Grande foi discutida nas escolas, a falta de tempo para tal
discussão e a falta de preparo que tanto os professores da Universidade como os da escola
apresentaram frente à nova proposta. Pôs também em avaliação o papel do próprio
GEPECIEM, como grupo que está presente e em processo de consolidação, no sentido de que
o grupo precisa ter seu caminho sólido e fundamentado, tomando decisões com cautela e se
apropriando de modelos de ensino à medida que estes vão sendo discutidos e construídos
no/pelo coletivo
Interfaces ente conteúdo, formação e organização curricular estão presentes no diálogo
169
que é mantido no episódio, ainda que não de modo articulado ou explícito. O caminho
necessário para que essa formação se dê em articulação com o processo de inovação
curricular é longo e deve, no futuro, atingir patamares que deem conta de inovação curricular.
Propostas externas aos coletivos e encaminhadas de cima para baixo, mais do que nunca, não
estão sendo bem aceitas, seja pela falta de discussão ou pela mera falta de aceitação causada
pela sensação de obrigatoriedade, pois parecem chegar como (in)formação, o que não reflete
as condições desejadas. É importante registrar que, do ponto de vista técnico-científico, ou
seja, da área de educação em Ciências, o material para o Ensino Fundamental traz uma
proposta contemporânea e adequada aos objetivos preconizados pelas políticas públicas
educacionais nacionais, bem como pela literatura da área.
Na sequência, o episódio apresentado também demonstra a necessidade de processos
formativos qualificados.
T 11: Na avaliação dos outros grupos, colocaram que isso daqui é muito bom, a forma de como trabalhar, de
como desenvolver o conteúdo, essa operacionalização. O conteúdo é um caminho, é justamente o que se cobra,
a forma como se cobra nas avaliações externas, então na verdade essa mudança de postura do professor em
sala de aula em relação à operacionalização dos conteúdos. Os conteúdos são aqueles, mas como
operacionalizar? Como trabalhar o conteúdo em sala é que deve ser mudado. E aqui ele [Lições do Rio
Grande] põe como foi colocado, seria assim tipo a mostra de como o professor deve trabalhar, desenvolver os
conteúdos na sala de aula, uma nova postura, uma nova visão. (Supervisora 1, 2010).
T 12: O que eu noto em Ciências é que se acomoda, tá ali com o livro didático na mão e, se é mais fácil, tu
acaba seguindo aquele roteiro do livro, tu fica com essa preocupação de que eles tão, que eles propõem ali de
ler, sabe todos esses itens que diz, as competências, as habilidades. Tu realmente prepara tua aula, mas tu não
fica estudando, será que eu estou desenvolvendo todas as habilidades necessárias? Todas as competências?
Inclusive eu cheguei, eu pelo menos assim ainda tenho dúvidas: isso é uma habilidade? Isso é uma
competência? (Professora 12, 2010).
T 13: E outra coisa, Professora 12, que fica bem claro para gente, sendo assim, que não adianta, a base de tudo
tá no conhecimento, isso que tu está fazendo, ter conhecimento, buscar, exercitar seja através desses nossos
grupos, dessa nossa troca, eu acho que tem que existir, porque, se a gente ficar só naquele mundinho, nós na
nossa escola, eu acho que a gente vai se acomodando cada vez mais. (Supervisora 1, 2010).
T 14: Eu sou muito individualista. Quando eu preparo minha aula, eu dou minha aula, eu fiz o que eu precisava,
mas eu acho que o que ele está propondo é justamente não é só você ficar em Ciências, é você ir pra história,
você ir pra Geografia... E ai como fazer isso? Como reunir? Como colocar isso realmente do papel pra fazer
português, todas..., a matemática, todas as outras disciplinas? E isso que eu tenho dificuldade, eu pelo menos.
(Professora 12, 2010).
T 15: ... a interdisciplinaridade e o trabalho em forma de projetos… Acho que a proposta é essa, esse grupo de
estudos continuar ampliando com a participação, em vez de um encontro mensal de todos, acho que a escola
pode se organizar. Eu não sei, pessoal, se vocês querem? Eu não sei se mais alguém tem algo a ser colocado?
Então a gente pode dividir os grupos, agora, Ciências e Matemática, e até fazer mesmo isso que a nossa
proposta seria essa dar uma comparada nos nossos conteúdos, como que tá entre as nossas escolas municipais e
estaduais. Esse trabalho, por enquanto, até porque a gente tem aí a mesma rede, mas não trabalha da mesma
forma, até nessa sequência... É possível fazer esse tipo de unificação. Primeiro lugar, a gente teria que ter, como
as municipais, um planejamento conjunto, as escolas da rede. Vocês concordam em fazer assim? Alguém trouxe
a proposta já do livro didático também? Não, ninguém trouxe. (Supervisora 1, 2010).
T 16: Para nossa escola não veio, porque foi mudada a opção do livro, nós não temos esse livro, esse que foi
optado. (Professora 11, 2010).
T 17: Estado e município não escolheram os mesmos? (Supervisora 2, 2010).
T 18: Sim, mas tem escolas estaduais, que não vou dizer estaduais, tem escolas que não receberam as mesmas
coleções, entende, não veio igual pra todos. (Supervisora 1, 2010).
T 19: Na Escola X [municipal da zona rural] não vieram os livros, não vieram as obras escolhidas nem de
Matemática, nem de Ciências. (Professora 1, 2010).
170
Existe uma forte definição presente nas falas, de que o currículo é a lista de
conteúdos, mesmo que por vezes propostas sejam mencionadas. A razão desses encontros
sobre os planos de estudos (ao menos para as professoras supervisoras- gestoras) está na
alteração dos conteúdos e preferencialmente na unificação das listas das redes públicas
estaduais e municipais. Como professor formador e participante do processo, tive que conter
muitas vezes (ao menos nesse movimento formativo) a minha voz, pois, apesar de discordar
profundamente do encaminhamento tomado, também havia uma combinação de que
inicialmente a Universidade faria uma papel mais externo, para depois incluir-se na discussão
dos (currículos-)conteúdos. A necessidade recorrente de se ter em mãos os livros didáticos
deflagra mais uma vez a provável dependência que a maioria dos professores tem desse
material didático.
Um aspecto importante que esse episódio traz à tona é a valorização do grupo de
estudos, do processo de formação que estava transcorrendo, por parte de professoras e
supervisoras, como pode ser evidenciado nos turnos T 12, T13 e T 15, o que salienta uma
intencionalidade, a de que a formação melhore as práticas, ainda que em algumas
manifestações essa melhoria se volte apenas à discussão equivocada de que os conteúdos são
o caminho, como em “o conteúdo é um caminho, é justamente o que se cobra, a forma
como se cobra nas avaliações externas, então na verdade essa mudança de postura do
professor em sala de aula em relação a operacionalização dos conteúdos” ( T 12).
As exigências às adaptações presentes e alegadas pela Professora 12 (2010):
“Inclusive eu cheguei, eu pelo menos assim ainda tenho dúvidas: isso é uma habilidade? Isso
é uma competência?” são definições não de conteúdo, mas de abordagem do ensino. Nessa
manifestação podemos verificar como as alterações, em um modelo sem a devida formação,
podem deixar o professor perdido em sua ação. A professora participa da discussão se
apoiando na ideia de que os conteúdos são o caminho (T 14), assim como as supervisoras (T
11 e T 13), sem se dar conta de que, no modelo de ensino por competências, são estas que são
o objetivo e a maneira de se buscar o caminho, deslocando o conteúdo para uma posição mais
periférica, ou seja, o ensino para aprender a fazer, aprender a conviver passa por aprender o
conteúdo, mas sobressai a aprendizagem da aplicação e uso deste conteúdo (DELORS, 1998).
Esse universo de contradições em que habitam as escolhas e (des)escolhas de um
livro didático, a busca do conteúdo a ser listado e as necessidades formativas do grupo, tanto
para sua formação de longo prazo como para a compreensão dos processos vivenciados,
configuram a realidade em que se deram as mudanças nos planos de ensino.
171
T 20: eu posso fazer assim professora 1: eu posso até ir, enquanto vocês se reúnem separado, agora,
comparando os planos de estudo, eu posso verificar trazendo os livros (Supervisora 2, 2010).
T 21: só que eu não sei, pessoal, não tem livro perfeito, nós temos que sentar e estabelecer como nós vamos
trabalhar, porque, eu sou assim, ó, o livro tu joga com as páginas. Acho que independente do livro, tu vai fazer o
teu planejamento, porque o livro não vai ser meu guia. Eu puxo o conteúdo daqui, quando tu vê, tu tá
trabalhando isso porque tá aqui, tá ali. Mas os conteúdos a gente tem que passar igual, e se nos colocar na
ordem, eu acho melhor na ordem que está no livro (Professora 1, 2010).
T 22: não, eu discordo (Professora 2, 2010).
T 23: porque os conteúdos vão ter que ser dados mesmo... vai lá no fim, volta lá na frente, lá no meio
(Professora 1, 2010).
T 24: vocês trabalham na ordem do livro, gente? (Supervisora 1, 2010).
T 25: eu trabalho.. (Professora 1, 2010).
T 26: eu também.. (Professora 12, 2010).
T 27: apesar de que não trabalho só com esse livro, mas eu sigo porque os conteúdos que estão alí tem que ser
dados, então sabe, eu trabalho com esse... (Professora 1, 2010).
T 28: mas e de dar aquele projeto no meio e tem que fazer? (Professora 10, 2010).
T 29: mas ai nós não estamos trabalhando no projeto ainda... (Professora 1, 2010).
T 30: Mas é que tá rolando? A proposta não é fazer? (Professora 10, 2010).
T 31: Então, temos que nos juntar com todas as áreas pra ver como é que nós vamos trabalhar, como é que
nos vamos trabalhar Ciências no ou sem projeto... (Professora 1, 2010).
T 32: realmente não segue uma ordem, que eu vi das outras disciplinas não seguem uma ordem, não sei
também agora.. (Supervisora 1, 2010).
T 33: mais ou menos.. (Professora 1, 2010).
T 34: mas os conteúdos que têm que ser trabalhados (Supervisora 1, 2010).
T 35: vai trabalhar a água, vai trabalhar em todas as disciplinas. Como vão trabalhar, tem que estar aqui o pessoal
de História, Geografia, Português. Como é que nós vamos fazer em forma de projeto, tendo só o projeto água e o
pessoal de Ciências? (Professora 1, 2010).
O episódio faz com que as professoras de Ciências e as supervisoras se deem conta
de que deve haver uma discussão maior que a da área. Essa discussão de mudança nos planos
de estudos precisa ser de escola, para que haja uma articulação curricular. Então, mesmo que
se situem pelo livro, entendem que essa organização não dá mais conta do que desejam fazer
e, a meu ver, é no e através do diálogo que os professores participantes do GEPECIEM
começam a compreender isso. O diálogo estabelece um jogo de perguntas que força respostas
e pensamento sobre a ação, uma pergunta desencadeia um processo individual e coletivo que
vai tornando a decisão de mudar os conteúdos mais clara, com seus entraves e possibilidades.
À medida que o diálogo se estabelece entre os pares em formação, a discussão do conteúdo
leva a pensar sobre como abordá-lo e desse modo são questionados os projetos que
perpassarão o currículo e a abordagem interdisciplinar necessária, mas distante ainda da
realidade. Esse conjunto de falas presentes no diálogo vai esclarecendo para a tomada de
decisões. Daí um diálogo-formativo, estabelecido pelo processo que encaminha a discussão
para um nível de reflexão sobre e para as ações (docentes), que leva em conta que a tomada de
decisões terá de ser um ato responsivo (BAKHTIN, 2010), pois recai sobre outrem.
Esse processo dialógico e interativo vai desencadeando autonomia aos professores
participantes, possibilitando que se pensem como atores do processo decisório acerca dos
conteúdos. De algum modo também ocasiona questionamentos sobre a formação e abordagem
172
dos conteúdos como questões que devem andar juntas, em mesmo sentido e direção. Desse
modo, o episódio serve para desencadear também a ideia de que a reorganização curricular
(mudança nos conteúdos dos planos de estudos) precisa se dar levando-se em conta a
formação necessária sobre o modo de abordar tais conteúdos, como objetivam os preceitos da
investigação-ação defendida por Carr; Kemmis (1988), entre outros autores.
T 36: mas nós podemos estabelecer a sequência nos conteúdos e que não vai fechar a minha opinião com o
livro. Se nós seguir o livro, nós estamos trabalhando gavetas e não é essa a proposta das Lições do Rio Grande
e acho que não é essa a proposta vista aqui. Mas eu ainda não entendi como é que nos vamos listar conteúdos,
também vão estar numa ordem...vai estar o conteúdo, vai ali na outra ordem, não nesta... (Professora 1, 2010)
T 37: mas assim, o que está sendo questionado é se só o livro vai ser a base da aula... porque conforme tu
coloca, parece que só o livro vai ser a base de aula... (Professora 10, 2010).
T 38: eu digo assim, a ordem do livro tem uma sequência e, se nós formos listar, fazer uma outra lista de
sequência, dá no mesmo, isso que eu acho... (Professora 1, 2010).
T 39: eu acho que tinha que sentar todo grupo agora, não adianta só Ciências e Matemática, vai ser diferente
a discussão (Professora 12, 2010).
T 40: eu acho importante as outras disciplinas. Se vão trabalhar realmente de forma de projetos, todos deviam
estar aqui. (Professora 1, 2010).
T 41: as outras disciplinas não sabem qual é a base que têm …(Professora 12, 2010).
T 42: ...mas vamos listar os conteúdos, mas como é que nos vamos saber História, Geografia, porque lá na
nossa escola vão querer seguir esse conteúdo... como é que vamos listar o conteúdo, eu não entendo. Quem vai
seguir quem aqui, como sequência? (Professora 1, 2010).
T 43: tu não vai trabalhar tudo em forma de projeto, professora 1, nem tem como, tu não vai conseguir pegar
toda tua lista de conteúdos e vai trabalhar tudo em forma de projeto, não dá. O que nós queremos é uma
estruturação de conteúdos, que nós vamos trabalhar mais ou menos igual no município, que tu se encaixe ali,
quando vai ter a elaboração de projetos na escola, tu vai trabalhar projetos lá na tua escola. Daí assim o
conteúdo dessa disciplina tu nem sempre vai conseguir incluir todas no projeto, mas o que tem de afim, que pode
entrar Matemática, Ciências, Geografia, Português. Até a nossa ideia seria essa um ou dois projetos durante o
ano, no primeiro semestre e no segundo. Tu vai ter a tua individualidade dentro da tua disciplina, entende, e nem
pode ser diferente, as outras também não podem interferir no teu norte, vamos dizer assim, na Matemática.
(Professora 12, 2010).
T 44: a sequência, como falar em listar o conteúdo, que é o que eu disse. Que conteúdo dar, primeiro isso,
quem é que diz que vem esse e depois o outro? (Professora 1, 2010).
T 45: não, isso vocês vão decidir junto. Eu não vou dizer... (Supervisora 1, 2010).
T 46: a proposta de interdisciplinariedade eu sei como é que é, tranquilo, eu só não entendi o esquema dos
conteúdos. Quem é que diz que tem que trabalhar primeiro esse do que esse? (Professora 1, 2010).
T 47: em Ciências, tu pode começar com os micro ou tu pode começar já nos mamíferos, tu pode fazer isso.
(Professora 11, 2010).
T 48: na quinta série, não, na sexta. Na quinta nós estávamos dando plantas, que é conteúdo da sexta
(Professora 1, 2010).
T 49: é, eles dão plantas...os vegetais, na quinta... (Professora 11, 2010).
T 50: mas já não demos esse conteúdo esse ano? (Professora 1, 2010).
T 51: e os mamíferos na sexta. Nós demos? (Professora 11, 2010).
T 52: esse ano, não. (Professora 1, 2010).
T 53: e animais na sexta, enfim, enquanto que os colégios estaduais não faziam isso, o aluno era transferido, ele
perdia esse conteúdo. (Professora 11, 2010).
T 54: é isso que a gente gostaria que acontecesse aqui hoje, sabe, até nessa ordem que a gente tem falado de
conteúdo ela tá boa assim pro teu aluno?... Não sei se eu tô correta em colocar isso e daí assim esse gancho
que a gente vai fazendo com o aluno, eu penso assim de estruturação dele mental pra ir adiante. É um dos
questionamentos que a gente queria levantar aqui hoje ou essa ordem que tu coloca é melhor pro aluno? Não
que tu vai deixar coisa importante de fora, jamais, eu acho que é importante que ele tem que saber e isso que a
professora colocou aqui eu tenho conteúdo e até aonde eu vou aprofundar ele, eu acho que é assim que a gente
tem que sair daqui hoje. (Supervisora 1, 2010).
T 55: tem uma sequência, sexta série, porque assim tu começa nos microorganismos e vai pelo grau de
complexidade do animal, então eu acho que fica mais fácil na sexta série. (Professora 1, 2010).
T 56: isso é válido a gente discutir... (Supervisora 1, 2010).
T 57: sabe, por que ele vai evoluindo, então como vai ficando o coração.. é um método comparativo, eu sou
173
muito de educação pelo exemplo, pela comparação, pela associação. Eu acho que o aluno grava bastante,
sabe..associa uma coisa com outra, então sexta série é evolução do ser, e tipo ali nos tava falando da quinta
série. Foi dado as plantas (Professora 1, 2010).
T 58: pois é, gente, é isso que eu digo assim: eu acho se nós estamos só na nossa escola, a gente não vai para
essa discussão maior (Professora 12, 2010).
T 59: tá mas e aí nós vamos seguir o conteúdo aquele do livro de sempre ... (Professora 1, 2010).
T 60: eu digo assim, eu trouxe aqui o que vocês estão usando... (Professora 10, 2010).
T 61: mas isso é o meio, não é? Atual? (Professora 1, 2010).
T 62 : atual, vocês vão precisar ter um plano também, trouxeram um modelinho? Então eu acho assim, a
partir do que vocês tem mais o livro didático, infelizmente não se desliga dele, né. (Supervisora 1, 2010).
T 63: esse aqui é sexto ano, é o sétimo ano que seria a sexta. A questão que a senhora fala é isso aqui que nós
estamos fazendo, habilidades, competências, conteúdos e a forma que a gente vai trabalhar (Professora 11,
2010).
T 64: esse é plano de trabalho, o plano de estudo a principio inicia pela planilha... (Supervisora 1, 2010).
As mudanças são possíveis, põem em movimento a ideia de mexer na lista de
conteúdos existente. A discussão se abre, perdura, o campo de disputa fica atribulado, mas ao
final parece que a intenção é ordenar os conteúdos em lista a ser seguida. Nada muito
diferente do que é, do que está nos livros, nos antigos planos; por outro lado, também esteve
presente na discussão que a aula não deve ser exclusivamente baseada nos livros didáticos,
que em Ciências temos, no mínimo, mais de um modo de abordar a complexidade e evolução
dos organismos vivos. Foi também colocado em xeque o poder decisório, ou seja, os
professores se perguntam quanto ao papel de decidir sobre quais conteúdos ensinar e por quê?
Nesse processo os professores tendem a retomar sua figura de professor, seu ofício,
seu poder, sua imagem que vai sendo expropriada, inclusive pela presença efetiva das
supervisoras escolares no processo de alterações dos conteúdos do ensino, em detrimento da
não participação em muitos outros encontros de formação. Acredito que as perguntas
frequentes e recorrentes sobre quem decide a ordem dos conteúdos sugerem que os
professores iniciam tentativas pela via reflexiva de enfrentar a expropriação do trabalho
docente, causada pelo uso do livro didático (Geraldi, 1993; 1994), pela recontextualização
discursiva unidirecional, que passa a sensação de que as listas de conteúdos devem perpetuar
e que as políticas estejam ditando arbitrariamente esses conteúdos e currículos a serem
seguidos. Essa sensação é causada também pela fala social que tem visto o professor como
um profissional desvalorizado, feio, indiferente, com baixos salários, que não sabe o
conteúdo, por isso precisa do apoio do livro didáticoX, como alega Fontana (2000).
Nesse episódio já está explícito, pelas manifestações nos turnos T 59, T 60, T 61 e T
62, que os professores vão se utilizar da lista que está no livro. Mesmo assim, a partir desse
momento formativo desencadeia-se que a decisão por seguir uma proposta que aparece nos
turnos T 11, T 36 e T 63 (as Lições do Rio Grande) e o livro adotado para o próximo ano não
é de outros, é dos professores participantes (do conclave) ou seja, os pares começam a
174
encaminhar a decisão, que agora parece clarificada, explícita. Essas perguntas são indícios de
que o pensamento dos professores estava em torno da decisão de mudar ou não os conteúdos;
nesse sentido, o ambiente formativo propiciou espaço e tempo para que o jogo de perguntas
fizesse seu curso e progredisse num caminho de autonomia inicial. A formação continuada
dos professores em questão foi um fator que alterou o curso das ações tradicionais referentes
às mudanças de planos de estudos que estavam postas no contexto anterior, fazendo um novo
percurso, que levou o grupo ao questionamento reconstrutivo, que iniciou um processo
decisório mais informado, mais autônomo, refletido.
O encontro do grupo que principia as decisões sobre os planos de estudos reserva
para o final um episódio que coloca em pauta questões da vida e do ofício de professor, como
segue.
T 65: é isso que eu quero saber, depois que a gente... quinta série, eu não sei, eu levanto a hipótese da
mudança dos vegetais, eu não sei se as colegas que estão aqui aceitam... (Professora 10, 2010).
T 66: trazer os vegetais pra onde? (Professora 1, 2010).
T 67: para quinta (Professora 10, 2010).
T 68: mas nós tínhamos na quinta, mas esse ano nos não demos, aí ano que vem, sim... (Professora 1, 2010).
T 69: é isso que eu perguntei pra ela, se o que for definido aqui é o que vai servir, eu assim... pra mim, eu acho
melhor assim, porque eu acho muito conteúdo a sexta (Professora 10, 2010).
T 70: mas fora o livro ... ele não vai ter nada (Professora 2, 2010).
T 71: ele não vai ter, não vai ter nada? A nossa preocupação é de preparar... (Professora 10, 2010).
T 72: tu faz uma apostila, uma coisa diferente pra eles, atividades... (Professora 1, 2010).
T 73: mas o alunos não vão ter no livro didático deles aquele conteúdo (Professora 2, 2010).
T 74: nunca, é como a professora 12 colocou antes, não tem como ter tudo no livro. No caso tu não tá na série
(Professora 10, 2010).
T 75: é o primário? Então, se é assim, ali nós tinha que mudar as plantas (Professora 1, 2010).
T 76: pois é isso que eu acho. Não sei vocês, gurias, o que acham? (Professora 10, 2010).
T 77: ...foi uma luta, e aí o que que eu fiz. Eu deixei de trabalhar com a quinta, aí eu fui trabalhar com outras
séries, quando eu retornei já era a aula e só, então isso que tem que ficar, porque o professor tem a liberdade,
se esta sendo adotado esse livro na quinta de buscar outro que tenha o conteúdo, ou o professor esqueceu o
conteúdo combinado, pegou o livro e foi aplicar? (Professora 12, 2010).
T 78: segue com o livro... (Professora 10, 2010).
T 79: foi isso que aconteceu, e daí vou estar eu sempre brigando, sozinha.. não, não vou mais me estressar.
Então assim no município tem essa consciência, eu acho que dá pra gente fazer, mas tem que ser
todos…(Professora 12, 2010).
T 80: e outra gurias, se nossos alunos saírem daqui e ir pra outras escolas, eles pulam essa parte... (Professora
10, 2010).
T 81: alguns professores não assumem. (Professora 1, 2010).
T 82: aqueles não vai se integrar, aderi porque eu acho interessante, assino em baixo, vamos colocar os
vegetais na quinta, aí tu pode trabalhar a questão assim prática... (Professora 12, 2010).
T 83: professora 12, vocês não trabalham os vegetais na quinta? (Professora 1, 2010).
T 84: não (Professora 12, 2010).
T 85: pois é, agora nos já estamos voltando para pegar vocês, vocês já estão voltando pra pegar nós...
(Professora 1, 2010).
T 86: Sabe assim, não é uma coisa assim que tem que tomar decisão hoje, pode ser no próximo encontro,
amadurecer a ideia, mas é uma boa (Professora 12, 2010).
T 87: nosso quinto, por exemplo, eu vejo assim, vamos dar vegetais (Professora 2, 2010).
T 88: com calma, não é uma coisa assim toda atropelada... (Professora 10, 2010)
T 89: uma coisa de ar, de água, de solo porque os vegetais vivem nesse ambiente , sabe..mas é uma folga a mais
para sexta que vai ser o sétimo ano, não é... (Professora 12, 2010).
T 90: eu gostava das plantas na quinta, tu faz o terrário também... (Professora 1, 2010).
T 91: Essa questão é uma mudança na forma curricular da educação e a gente tem que ser mais consistente
175
com aqueles que não querem mudar, estão acomodados, é mais fácil tu ter aquele plano de aula que tu segue
há dez, quinze anos que se mexer lá e procurar uma coisa nova. Assim é uma coisa, até coloquei a tecnologia,
a informática, hoje a gente olha, é facil tu encontrar um programa, mas tem professor que olha e pensa: é um
bicho! (Professora 10, 2010).
T 92: é tanta coisa nova, métodos diferentes, é só buscar (Professora 1, 2010).
T 93: mas aí está a disposição de buscar, se mexer, também essa questão está muito ligada à questão salarial,
tu não é professor de uma escola, tu é professor de duas, três, quatro, às vezes. Daí não tem tempo, em nosso
caso, a gente é professora, é mãe, é esposa, tem que administrar todo o contexto (Professora 10, 2010).
Para além do processo decisório, que é retomado novamente no episódio através de
um diálogo que pode alterar a disposição dos conteúdos (nos turnos T 65, T 66, T 67, T 75, T
86, T 87 e T 88), incorrendo no risco de que a alteração não seja seguida por todos os
professores (como mencionado no T 77, T 78 e T 81), porque estaria em dissonância com a
organização/disposição dos conteúdos que o livro apresenta para a 5ª série/6º ano do ensino
fundamental. Acredito que o fato de parte do grupo dispor-se a discutir a mudança de
conteúdos para adequar a quantidade ao ano/série, deixando de se preocupar apenas com o
conteúdo do livro didático, já é um movimento importante para desencadear novas discussões
sobre a prática de ensino, entre outros temas que permeiam o processo.
A discussão suscita elementos centrais quanto ao ofício de ser professor, a carreira, o
salário, a formação, a valorização. Ser professor implica uma busca contínua de
desenvolvimento profissional. Por vezes, por falta de uma formação adequada e reflexiva, o
uso do livro se torna tão arraigado à profissão, um uso tão indiscriminado e até mesmo
exclusivo, como ficou claro em várias entrevistas já analisadas nesta tese.
A situação de discussão dos conteúdos levou à discussão do modo de abordar tais
conteúdos, que exige pensar em planejamento, conhecimento e formação, possíveis com a
adição de estrutura escolar, carreira consolidada e condições salariais adequadas. Com isso, o
grupo de professores fez uma ponte necessária que está na discussão da profissão e sua
dimensão ética e política, questões que têm sido deixadas de lado, muitas vezes, em
programas de formação. Ao professor interessa sua carreira, pois nela está refletida também
sua profissionalização.
No percurso do processo de discussão-formação está um forte indício da hibridação
de discursos em relação ao uso do livro. Os professores em formação tendem a se distanciar
do uso exclusivo e deliberado (aprisionante) do livro didático. A questão do uso do livro
parece que vai sofrendo alterações/transformações, que nesse episódio se mostram possíveis
de serem pormenorizadas.
A fala da professora 2(2010), ao pronunciar que “... fora o livro ... ele não vai ter
nada”, atribuindo ao livro todo o conteúdo existente e necessário à formação de seus alunos,
176
faz com que as demais se posicionem de modos diferenciados, progredindo no processo de
transformação que o discurso vigente vinha sofrendo no processo formativo em que estavam
todas imersas, como é possível de ser percebido nos turnos, T 72: “tu faz uma apostila, uma
coisa diferente pra eles, atividades...” (Professora 1, 2010), T 74:
“nunca, é como a
professora 12 colocou antes, não tem como ter tudo no livro. No caso, tu não tá na série”
(Professora 10, 2010) e reforçado no T 77: “...porque o professor tem a liberdade, se está
sendo adotado esse livro na quinta de buscar outro que tenha o conteúdo...” (Professora 12,
2010). O diálogo força um reposicionamento dos professores frente à questão do livro que,
mesmo não sendo central, permeou a discussão sobre as mudanças do conteúdo.
O movimento em torno dos planos de estudos, sem a participação efetiva dos
professores formadores e licenciandos, que nesse encontro adotaram a posição de
observadores, assume uma forma aberta que pouco encaminhou modificações ou revisões da
ordem dos conteúdos, mas pôs em debate várias questões formativas e tornou-se o nascedouro
de discussões que estão na raiz da reflexão e tomada de decisões que estará sendo apresentada
e discutida em episódios posteriores.
3.5 O movimento formativo dos Planos de Estudos II – Necessidades formativas e o livro
didático em questão: conversando entre professores
Nos episódios desse movimento formativo estão discutidas as necessidades formativas
para o ensino de Ciências, na perspectiva dos conteúdos curriculares, e a questão de como o
conteúdo de um currículo pode ser redimensionado no diálogo. Nas tentativas dos formadores
em recolocar em pauta a discussão dos conteúdos biológicos, físicos e químicos do Ensino
Fundamental, através da reflexão sobre a relevância e justificação para listar e ordenar temas e
conteúdos, as barreiras como a tradição pedagógica de ensinar, o livro didático e a vontade de
unificar os planos vão se tornando mais prementes. Mesmo frente às discussões, o peso das
decisões fica por vezes em torno da tecnocracia e dos hábitos e costumes de um grupo que
resiste em pensar o diferente, o novo, o outro, e por vezes, se rende ao pronto, ao dado e ao
currículo prescrito.
Encaro a sequência dos episódios desse movimento formativo como um bloco de
transição ao movimento final acerca dos planos e estudos. A conversa franca e sincera entre
os pares escancara questões já apontadas nos episódios analisados no movimento apresentado
177
no item 3.4, e acrescenta a elas o contexto prático, das necessidades tanto formativas como
laborativas, por vezes mais fortes as últimas, como segue.
T 1: essa é uma grande questão. Será que é o caminho certo? Eu acho que a Professora 3 traz bem a questão,
mas eu queria até dizer uma coisa, talvez a questão do por quê unificar o conteúdo, que aqui já foi abordada,
também me parece que seja para facilitar o planejamento e a formação de modo conjunto. Essa é uma razão,
que pra mim é uma razão menos custosa, me parece ser mais plausível. Se é pra nós unificarmos o
planejamento, se com isso podemos sentar mais vezes, refletir sobre o conteúdo, como fazer e fazer melhor,
talvez entender se é bom seguir ou não e por eu seguir alguma linha, me parece que serve, seria muito
justificativa mais sensata para unificar os conteúdos. Eu posso estar enganado também, eu tô aqui aventando
algumas questões... (Professor Formador 1, 2010).
T 2: ...trabalhar sozinha é uma coisa, penar sozinha é uma coisa diferente do que você trocar ideias, buscar
em conjunto (Professora 12, 2010).
T 3: ...no grupo... (Professor Formador 1, 2010).
T 4: ...no grupo e cresce muito mais que sozinha (Professora 12, 2010).
T 5: ...eu entendo educação dessa forma: você trabalha de um jeito, nós trabalhamos de um jeito. A educação
tem que ser no conjunto, então aprendemos... (Professora 3, 2010).
T 6: sozinhos, nós não vamos chegar a lugar nenhum (Professora 12, 2010).
T 7: Então, eu vejo que aconteceram duas coisas, ou estão acontecendo duas coisas que já levam vocês a uma
história de unificação: - houve a escolha do livro em conjunto, entre o estado e município nesse ano; - está
havendo a unificação dos planos, a ideia de unificar os planos é também do por quê unificar os conteúdos.
Nesse sentido, eu acredito que por isso nós tenhamos que discutir os conteúdos para que eles não pareçam que
sejam da professora 3, da professor 2 ou da professora 11, eles precisam ser nossos, de todos os que estão aqui
e que estão nas escolas trabalhando, principalmente no nível de ensino de Ciências. Do contrário, nós podemos
não nos acertar e não querer fazer isso também. Eu ouvi na secretaria de Educação que a maioria de vocês têm
o desejo, sim, de unificar, mas também havia uma preocupação: será que as escolas vão de fato seguir este
plano que nós estamos aqui elegendo, adotando, fazendo, construindo? Essa é uma pergunta, não é?
(Professor Formador 1, 2010).
T 8: ... Não vai ter outro. Vai ser esse! Vão ser esses, né... (Supervisora 1, 2010).
T 9: ...então, vão ser esses! (Professor Formador 1, 2010).
T 10: ... na sala de aula? (Professora 1, 2010).
T 11: é, se o professor quiser! (Professor Formador 1, 2010).
T 12: se o professor quiser; ...então assim, se nós fizermos, se nós assumirmos um compromisso (Professora
12, 2010).
[...]
T 13: havia uma possibilidade de mudança que não aconteceu lá com a inserção dos PCNs, como alegam as
professoras 12 e 3. Analisando o plano de ensino do município que foi implantado em 2002, que é o vigente até
hoje, é um plano orientado do ponto de vista da orientação internacional das competências, ele já era por
competência, mesmo assim ele não foi de algum modo adotado, implantado, aceito, o plano vigente nas escolas
municipais é orientado pelas competências, você sabe por quê? (Professor Formador 1, 2010).
T 14: mas nesse sentido, o professor que não aderiu, que não quis... (Professora 3, 2010).
T 15: ...é, talvez ele nem sabia como trabalhar. Eu imagino que não foi uma coisa intencional de cada um. Na
verdade, às vezes acaba sendo a prática em si que leva pra outro caminho e aí o estado, se eu for olhar os
planos que me passaram até agora, os planos do estado têm uma lista que fecha basicamente com a sequência
do livro didático. Hoje, então se a gente for olhar o tipo de modelo de plano, talvez já nos conte o modelo ou de
onde deve ser copiado o novo plano. (Professor Formador 1, 2010).
T 16: Professor Formador 1, outra coisa assim que eu... como eu tenho colegas no município faz bastante
tempo, ah, que eu vejo elas comentando, que fazem reuniões para discutirem os PCNs e coisa assim, pra
estudar e como fazer e isso no estado não acontecia e não acontece, por exemplo. Agora está acontecendo da
gente, às vezes, pegar, por exemplo, nós fomos fazer das Lições do Rio Grande, coisa assim que tu tem que
estudar, mas às vezes tu não tem esse tempo, essa disponibilidade, essas orientações e tu vai lá, meu Deus, eu
chego lá, tá vindo de novo de cima pra baixo, não houve condições... (Professora 12, 2010).
T 17: tu não tem condições de discutir (Professora 11, 2010).
T 18: não tem, e aí tu nota a diferença no município. Você mesmo disse, tá uma forma estruturada, mais ou
menos de acordo, mas faltou os professores também querer, mas houve essa discussão, professor tem uma ideia
do que está se passando. E nós do estado, eu sinto essa falta, assim, de aprofundar realmente essas coisas. Daí
você chega encaminhando ou não, ou simplesmente você está passando o conteúdo que está no livro. Assim
eu me sinto, uma livreira, vou lá, copio do livro e pronto (Professora 12, 2010).
178
T 19: é muito real isso. Eu vou ir continuando ir fazendo perguntas, vocês vão se sentindo bem ou não de
falarem, daí vai chegar uma hora que nós todos vamos ter que falar, que é lá no conteúdo, então a ideia, volto a
perguntar quem de fato determina o currículo em ação? Então, na verdade quem pode determinar o currículo
somos nós, os professores, não é o Ministério da Educação, não são os PCNs, ou lugar nenhum. Bom, mas a
gente vê que, por conta da nossa formação, por conta talvez da nossa formação continuada que as muitas vezes
é escassa, como a professora 12 acabou de dizer, acaba que nós tomamos determinados rumos que parecem
mais claramente ligados ao uso eminentemente do livro didático; a determinação do currículo tá muito ligada
ao livro, não é? O conteúdo está no livro, não estamos negando isso, eu também ensinei usando o livro, não
estou aqui me colocando fora desse contexto, antes pelo contrário. Bom, mas quem determina o currículo e a
sequência desses conteúdos são os professores, porque eu vou dizer uma coisa, quando terminar tudo isso:
quem vai ser cobrado efetivamente, se é que vai ser cobrado um dia pela avaliação por algum lugar, é só o
professor. (Professor Formador 1, 2010).
Ainda que, por vezes, de modo mais implícito [no coletivo], o processo de formação
transcorrido pela implementação do GEPCIEM, foi desencadeando reflexão, que parece estar
desafiando os professores participantes do grupo a não quererem andar mais tão sozinhos ou
isolados, parece começar a fazer mais sentido a decisão coletiva, a organização, o
desenvolvimento de um processo formativo para o grupo.
Nas passagens: “...trabalhar sozinha é uma coisa, penar sozinha é uma coisa
diferente do que você trocar ideias, buscar em conjunto.” (Professora 12, 2010); “...no
grupo...” (Professor Formador 1, 2010) e “no grupo e cresce muito mais que sozinha.
(Professora 12, 2010) fica evidente a sensação de que existe um desejo de que o coletivo
prevaleça e seja bem articulado; também, por outro lado, pela fala do Professor Formador 1,
fica expressa a condição de que a Universidade se apresenta como parte do processo, do
grupo.
Acredito que estava em jogo também um processo de (des)confiança em relação a
outros processos de formação já vivenciados. De um lado, as professoras municipais que já
tinham a experiência de um grupo que por vezes funcionou e por vezes não, sem a presença
de uma diretriz, de um direcionamento no processo de coordenação. De outro, as professoras
estaduais, que em geral não têm acesso a nenhuma formação continuada, que não sejam
cursos de curta duração e palestras. A presença de uma Universidade comprometida com o
processo de modo e compartilhando razões formativas, com certeza, causou a sensação de
(des)confiança nos participantes, o novo os intrigara.
As necessidades formativas parecem não coincidir com as necessidades laborativas,
como fica expresso nos turnos T 17 e T 18, especialmente deflagrado na manifestação da
Professora 12 (2010): “...que eu vejo elas comentando, que fazem reuniões para discutirem
os PCNs e coisa assim, pra estudar e como fazer e isso no estado não acontecia e não
acontece, por exemplo...”. A necessidade de um coletivo articulado, que possa refletir de
modo compartilhado, está presente nas manifestações do episódio, mas, por vezes, o modelo
179
de formação que o Estado dispõe não dá conta do grande número de professores que precisam
de formação continuada, a questão é contingencial.
No contexto educacional brasileiro, e tendo presente o contingente de professores em
serviço, é improvável que a curto prazo as condições para formação em serviço fiquem
melhores a ponto de atingir patamares sonhados e modelados pela literatura de referência.
Assim, parece que o professor precisa ser desafiado a tomar em suas mãos o seu processo
formativo. Ressurge, também, uma questão ética e política da reflexão, que, segundo
Contreras (2002), tem que ser retomada pelos próprios: é a dimensão da autonomia dos
professores. Assim como afirma García (1992), é necessária uma reflexão no nível crítico,
independente do processo em si, mas que parte e flui do sujeito professor.
A discussão no grupo (o coletivo) exige o compromisso de todos. As decisões ficam
fortalecidas e reforçadas, tornam-se um acordo que precisa valer, pois emana da convalidação
dos pares. Parece-me que é nesses termos que Marques (1992; 1996; 2000) põe a questão da
validação epistemológica do que é conhecimento válido/produzido, é na manifestação, em
diálogo aberto e conjunto, que se dá esta convalidação. Sujeitos intersubjetivos que se
comunicam fazem, de seu diálogo, ação. Aqui parece estar presente esse sentido de
convalidação defendido por Marques (1992; 1996; 2000), ainda que de modo embrionário,
como está traduzido no T 12, em que a professora ressalta : “se o professor quiser; ...então
assim, se nós fizermos, se nós assumirmos um compromisso” (Professora 12, 2010).
A Professora 12 (2010), quando expõe que: “nós do estado, eu sinto essa falta, assim
de aprofundar realmente essas coisas. Daí você chega encaminhando ou não, ou
simplesmente você está passando o conteúdo que está no livro. Assim eu me sinto, uma
livreira, vou lá copio do livro e pronto”, dá condições para sejam retomadas questões centrais
da tese que tenho defendido, de que o professor acaba aprisionado no seu fazer pelo livro
didático, numa relação que se torna perversaY e que a formação, através de um modelo que se
paute na reflexão, pode ser um caminho de enfrentamento ao processo. Quando a professora
deflagra o uso do livro como cópia e como algo que está pronto e acabado, ela também traz
presente que sente a falta da formação para encontrar outro modelo de ação, ela traduz o
dilema e a resolução. É, pois, nestes termos que podemos evidenciar, através da manifestação
da professora durante o processo, que é de todo modo indicial, no contexto de formação aqui
investigado, que a formação no coletivo compartilhado dá condições para que a reflexão traga
à tona as respostas aos dilemas formativos, que vão sendo encaminhados/transformados no
percurso da investigação-ação. Como professor formador, pude articular e retomar repetidas
180
vezes questões centrais da formação, tais como o lugar do professor nesses contextos, o peso
de suas decisões, os modos de ensinar e o conteúdo a ser ensinado, como está pautado nas
falas do turno T 19.
Nesse movimento e contexto formativo estavam em discussão os conteúdos do ensino.
Nos episódios que sucedem à discussão, ficam explícitas as necessidades formativas
decorrentes de aprendizagens a serem feitas sobre o conteúdo específico, presentes entre os
participantes.
T 20: as algas talófitas nas plantas, sim, com certeza. Agora, o que eu estava falando na reprodução, então pra
mim reprodução é importante por isso porque ela vai de fato diferenciar/distinguir vegetais mais simples de
vegetas mais complexos, vegetais mais organizados do ponto de vista celular de vegetais menos organizados.
Porque que a gente fala lá [na Universidade] para os alunos de musgos e hepáticas, eu me deparei com uma
situação bem séria esse ano ensinando na biologia numa turma de Ciências, em geral meus alunos já ouviram
falar de hepática, como todos nós já ouvimos falar, mas talvez vários de nos só viram fotos de hepáticas, vários
de nós talvez nunca pegaram uma hepática, não é? (Professor Formador 1, 2010).
T 21: ...eu só vi em foto! (Professora 1, 2010).
T 22: nunca pegou uma hepática?... é fato. Porque que eu sei que isso é fato, porque os meus alunos a grande
maioria jamais viu uma hepática na frente. Isso não é uma crítica ao nosso ensino, que fique claro, isso é uma
constatação (Professor Formador 1, 2010).
T 23: quando a gente consegue poder mostrar, quando tu tem acesso, tu mostra, quando não tem...
(Professora 12, 2010).
T 24: ...isso... quando não tem tu faz o quê?! Mas aí eu acho que vem a questão do encaminhamento. Por
exemplo, uma hepática eu consigo controlar num terrário. Os terrários não têm mais o efeito que se tinha
naquela vez que a gente aprendeu. Eu aprendi que terrário era uma biosfera, isso está errado, mas no terrário
podem guardar todas as etapas da reprodução de um vegetal. Se vocês encerrarem dentro do terrário uma
avenca ou uma samambaia bem rudimentar de barranco ou de mato, todas as etapas da reprodução dos
vegetais podem ser filmadas, fotografadas e explicadas para um aluno de ensino fundamental (Professor
Formador 1, 2010).
T 25: ...hepática é um tipo de samambaia? (Professora 1, 2010).
T 26: não! É um tipo de briófita, é um outro grupo de briófita é antes de samambaia, as pteridófitas,
lembras? ... (Professor Formador 1, 2010).
T 27: ...eu conheço... (Professora 12, 2010).
T 28: ...olha aí, que faz mais um contorno de uma folha para cima?Dá a ideia de um fígado, daí o nome
hepática (Professor Formador 1, 2010).
T 29: é, compridinha e tal... (Professora 12, 2010).
T 30: ...ela pode ter variações, ela tem dois, três tipos... se eu olhasse eu identificaria com certeza... aqui no
campus da Universidade, felizmente, nós temos uma coleção de hepáticas, que eu pude descobrir (Professor
Formador 1, 2010).
T 31: nós poderíamos ir lá pra olhar (Professora 12, 2010).
T 32: … é... pois é, mas então... nós nunca tínhamos situado os conteúdos de ciências até agora né, acho que isso
é uma parte importante que nós temos que fazer; vamos discutir a abordagem dos conteúdos específicos no
ano que vem? É uma decisão que nós vamos ter que tomar daqui alguns dias... porque me parece que isso
muda o encaminhamento. Essa discussão é carente para todos nós. Precisamos retomar os conteúdos.
(Professor Formador 1, 2010).
Entra em xeque a questão dos conteúdos e sua abordagem, o conhecimento específico
de cada um. Com isso, vem à tona a questão da formação, com necessidades formativas, que
vão para além do conteúdo, estão incluídas no âmbito do modo de ensinar ( T 20 e T 24), mas
são também de conteúdo (T 21, T 22, T23, T 25, T 26 e T 27). A discussão em torno da
identificação de um ser vivo denominado, na Biologia (Botânica), como hepática, do grupo
181
das briófitas, faz com que os participantes percebam que o conteúdo biológico também tenha
que ser retomado no processo de formação continuada.
Nos diálogos, muitas outras questões de conteúdo com relação a Química, Física,
Astronomia e Geologia tornaram-se pauta de discussões. Aqui não interessa a análise
conceitual, mas foram ficando cada vez mais explícitas as necessidades de atualizações sobre
o conteúdo de Ciências a ser abordado em classe. Alguns professores são da área da Biologia,
outros da Química e alguns da Física, o que implica dilemas que têm contornos na formação
inicial. Em geral, a formação inicial tem deixado de lado a abordagem dos conteúdos do
ensino, preparando os licenciados com profundo conhecimento das áreas, inclusive dando
acesso a pesquisas e descobertas de ponta, e não tem se preocupado com os conteúdos que
esse egresso, como professor, precisará ensinar. Outros dilemas podem estar condicionados a
uma formação com poucas práticas, em geral noturna, com poucas horas de curso,
desfavorecendo a qualificação profissional necessária à área das Ciências, tão complexa e
vasta. Ainda podemos situar o contexto formativo a que são submetidos os professores na
área de Ciências, por vezes desconexo da planificação e desenvolvimento curricular para o
ensino.
Como professor formador, mais uma vez passo a rearticular as perguntas frente à
formação, remetendo às participantes a decisão de aprofundarmos questões correlatas aos
conteúdos. Ainda que tenham ficado evidentes essas necessidades, a decisão cabe ao coletivo.
Nesse sentido, como articulador, me cabia o desafio de perguntar, pois, ao exercer a função de
professor coordenador no grupo, tinha como premissa impulsionar o mesmo no
redimensionamento dos olhares frente às questões que surgiam no contexto formativo (T 32).
Desenvolver o processo de formação pela via reflexiva e crítica é também estar
constantemente em indagação; em meu caso, era adicionar ao grupo perguntas que fizessem
professores pensar.
As barreiras/dilemas correlatos à formação dos professores em áreas diversas e aos
conteúdos estão presentes em outro episódio, em que a Química está destacada. A formação
inicial no curso de Ciências Biológicas tem implicações que perduram por toda uma vida
profissional. Nesse contexto (do episódio analisado), nenhum professor era licenciado em
Química, o que dificultou o processo de escolha dos conteúdos, mais uma vez prevalecendo a
adoção da lista de conteúdos prontos do livro didático, como segue.
T 32: ...dentro dessa área nós fomos só... (Professora 2, 2010).
T 33: ...simplesmente nós pegamos e copiamos (Professora 12, 2010).
182
T 34: ...outra coisa que tem aqui, oh...substâncias, misturas e soluções... na verdade soluções são uma mistura
homogênea... então, se trabalha misturas, não sei por que colocaram substâncias, misturas e soluções...
(Professora Formadora 6, 2010).
T 35: ...porque tava assim no livro... vou ser bem sincera...vou dizer...é aquilo que eu disse logo no início...que
nós fizemos no 9º ano, como foi... não foi?... (Professora 12, 2010).
T 36: ...eu fiquei pensando uma coisa aquele dia, agora esse conteúdo vou procurar. Se estava assim aqui ou
não... na verdade, isso tá assim lá no livro também... (Professor Formador 1, 2010).
T 37: ...é... (Professora 12, 2010).
T 38: ...na verdade, quem fez isso aqui também copiou de um livro... então como é que tá escrito aqui
“substâncias, misturas e soluções”... (Professor Formador 1, 2010).
T 39: ...foi isso aí... (Professora 12, 2010).
T 40: ...e isso aqui não está escrito só aqui, está lá no livro didático. Se nós abrir no 9º ano, que é antigo 8ª
série, que vai tá bem nesse nome, mas também acho que vale a pena nós recontextualizar isso, sabe... eu fiquei
olhando alguns títulos aqui de Biologia, por exemplo “a célula como unidade básica dos seres vivos”. Com
certeza, esse título está no livro didático... (Professor Formador 1, 2010).
A discussão em torno dos conteúdos químicos é, de um modo, também nossa grande
confissão, entregamos nossa formação toda de Licenciatura em Ciências, em Biologia, Física
ou Química a uma lista de conteúdos que alguém determinou como sendo boa e escreveu para
ser um livro didático. Mas essa constatação parece que foi sumariamente importante,
analisando de fora, quando analiso/penso o processo de investigação-ação no qual estive
imerso, percebo que estes momentos eram/foram mais que flagrantes de uma prática que eu
não acho a melhor ou que eu não desejava mais enxergar (do uso exclusivo do livro, do livro
determinando currículos)Z; eram pois, momentos de desvelamento, de elucidação, encarar e
explicitar a prática que é vivenciada. Passamos, pois, a olhar, perceber, analisar a seleção,
proposição e ordenamento dos conteúdos que tem sido pela cópia do livro, sem sequer serem
questionados, apenas sendo reproduzidos.
Mais adiante, nos episódios do movimento decisório quanto à revisão dos planos de
estudos, parece que as passagens desse pequeno episódio fazem um sentido maior na
compreensão dessas decisões. Essa discussão preconizou um alerta quanto à tomada de
decisão que desencadeou um processo que, tornado claro, deixa de velar ações, práticas
docentes. Isso permite a tomada de decisões mais informadas, compreendendo o sentido das
coisas que estão fazendo, senão autônomas (ver movimento 3.6).
T 40: Então assim, a preocupação é de deixar prontos os planos de estudo do 6º ao 9º ano e o plano de trabalho
do 6º ano, ao menos pro próximo ano, no início do ano letivo em março, abril. Ali a gente daria continuidade
nos planos de trabalho da 7ª, 8ª e o 9º ano (Supervisora 1, 2010).
T 41:...eu acho que já está bem adiantado, se o pessoal conseguir resolver com tempo algumas decisões dos
conteúdos está bem adiantado... imagino que o grupo, talvez até o final da manhã, pode dar conta de terminar
os planos de estudo e fica praticamente pronto, só decidir se fica, não fica e se fica um... Os planos de
trabalho, gente, eu não vi que tenha uma estrutura muito difícil e nem diferente da que existia, é uma coisa
parecida, eu acho que dá pra vocês tentar terminar até hoje. Não. Se vocês querem também, esse também é
outro desejo, fazer o plano de trabalho em conjunto, né? Porque ele vai especificar um monte de coisas, agora
talvez 6º ano, se vocês precisam para ano que vem, acho que conseguem fazer ainda agora (Professor Formador
1, 2010).
T 42: então seria porque o plano de estudo, e o de trabalho? deixa eu ver aqui um modelinho, então. Aqui o de
trabalho modelo era o que estava exposto (Supervisora 1, 2010).
T 43: ...eu acho assim oh... vamos fazer e fechar os planos …(Professora 12, 2010).
183
T 44: ...terminar os planos de estudo e depois tentar começar o de trabalho do 6º ano... (Professor Formador 1,
2010).
T 45: ...o que dá para gente fazer, vamos fazer, senão nós não vamos fazer organização metodológica ...
(Professora 12, 2010).
T 46: é, também acho que aí tem a ver com encaminhamento mesmo... (Professor Formador 1, 2010).
T 47: ...então, sei lá, se alguém digita, quer digitar aqui? (Supervisora 1, 2010).
T 48: ...não, acho que primeiro tem que tomar essa decisão quanto aos planos de estudo, nós não queremos
impor essas nossas contribuições... (Professor Formador 1, 2010).
T 49: sim... (Supervisora 1, 2010).
T 50: eu acho que aqui tem duas coisas iniciais. Primeira: 6ºano, ficamos com ecologia, astronomia,
geociência, geologia e não fica vegetais ou não? Vocês querem permanecer com os vegetais no 6º ano?... vocês
entenderam que eu encaminhei diferente, que os vegetais iriam de volta para o 7º ano? Para vermos como fica
de fato (Professor Formador 1, 2010).
T 51: eu concordo contigo nisso aí, porque ele tem... se tu está fazendo um sistema de classificação evolutivo
biológico, tu tem um cronograma... (Professor 14, 2010).
T 52: é, nesse sentido... (Professor Formador 1, 2010).
T 53: ...biologia evolutiva... tu tem uma célula, um tecido, um órgão, um conjunto... (Professora 14, 2010).
T 54: ...porque até... (Professora 12, 2010).
T 55: ...tu tem uma base de coisas, daí plantas e animais... bom, tanto faz se tu joga animais na frente, planta
depois, porque eles ficariam cada um para um lado então, mas se eles têm que vir depois... você não pode
trabalhar plantas e é muito mais difícil trabalhar plantas do que... então coloca vírus no 6º ano porque é muito
mais simples... é muito mais fácil você fazer com que uma criança aprenda o que é uma gripe do que uma
criança aprende o que é um anterozoide, por exemplo, são nomes muito mais complexos e difíceis, a botânica
tem essa coisa difícil... (Professor 14, 2010).
T 56: ...a linguagem... (Professor Formador 1, 2010).
T 57: ...difícil trabalhar a linguagem botânica. Então eu acho que não trabalho com 5ª série eu trabalho sempre
na 6ª série porque eu acho botânica difícil, complicada pra um aluno de 5ª... (Professor 14, 2010).
T 58: professor formador 1, ali no 6º ano tem fungos também? (Professora 12, 2010).
T 59: no 6º ano, não (Professor Formador 1, 2010).
T 60: só a parte... (Professora 12, 2010).
T 61: ...fica toda a diversidade biológica no 7º ano... toda a biodiversidade biológica no 7º ano; bactérias,
Reino Monera, Reino Protista, Reino Fungi, Reino Plantae e Reino Animallia... (Professor Formador 1, 2010)
T 62: ...a única coisa que faltaria os vírus? (Professora 12, 2010).
T 63: não! Estão lá também, tudo junto, ok? (Professor Formador 1, 2010).
T 64: tão lá também, isso eu concordo. (Professora 2, 2010).
T 65: eu também acho melhor assim (Professora 3, 2010).
T 66: ...agora, tem outras discussões. Mas vamos ver se cabem? (Professor Formador 1, 2010).
T 67:...foi colocado sistemática e outras coisas... (Professor 14, 2010).
T 68: ...oi...? (Professor Formador 1, 2010).
T 69: ...foi colocado sistemática? (Professor 14, 2010).
T 70: sim, princípios e classificação de sistemática (Professor Formador 1, 2010).
T 71: ...mas no 6ºano ou 7º? (Professor 14, 2010).
T 72: no 7º, tudo no 7º, toda a diversidade biológica, classificação. Talvez daria para acrescentar de um modo
mais especificamente, antes do reino monera, vírus, então como uma palavra, não deixar de ser colocada...
(Professor Formador 1, 2010).
T 73: … seria virologia, aí... depois parte de monera, daí... (Professor 14, 2010).
T 74: ...protistas e fungos... (Professor Formador 1, 2010).
T 75: ...fungos... (Professor 14, 2010).
T 76: ...depois plantas, depois animais (Professor Formador 1, 2010).
T 77: isso vai vigorar a partir do ano que vem? (Professora 12, 2010).
T 78: …a única colocação é que [eu] tiraria os biomas e passaria pro 6º? (Professora 10, 2010).
T 79: a alteração que bioma viria pro 6º e plantas viria para o 7º e no 6º a gente ampliaria um pouco aquelas
questões ambientais e ecologia, já estão lá. Sugestão aceita. Pelo que entendi, essa é a decisão de vocês. É
assim que ficou (Professor Formador 1, 2010).
T 80: ...e a carga horária? (Professora 10, 2010).
T 81: a carga horária de cada escola vai ser definida pelos sistemas, nós não mudamos a carga horária...
(Professor Formador 1, 2010).
T 82: supervisora 1, e como fica a carga horária? (Professora 1, 2010).
T 83: quantas vocês tem no estado? (Professor Formador 1, 2010).
T 84: é três, no mínimo três... (Professora 12, 2010).
184
T 85: tinham ainda que tentar conseguir três horas para o ano que vem... (Professor Formador 1, 2010).
T 86: ...como é que nós vamos dar conta com duas horas? (Professora 12, 2010).
T 87: ...pois é... (Professor 14, 2010).
T 88: ...nunquinha... (Professora 2, 2010).
O diálogo estabelecido no episódio levou os participantes a chamar as decisões para
eles mesmos ou a buscá-las. Nesse sentido, o papel dos “externos”, no sentido da IA, é
facilitar, mediar o processo, uma vez que, sem a presença da Universidade, talvez o grupo não
fosse articulado, sem as intenções dos formadores, que têm experiência e pesquisam o campo
da formação de professores em Ciências, Currículo, entre outros temas, talvez não fossem
possíveis avanços, tais como trabalhar na perspectiva da IA, com processo de formação pela
via da reflexão crítica. Mas a universidade, personificada pelos seus formadores, não pode e
não deve tomar para si a decisão, a qual deve ser do coletivo em formação. No turno T 48, o
Professor Formador 1(2010), ao expressar: “...não, acho que primeiro tem que tomar essa
decisão quanto aos planos de estudo, nós não queremos impor essas nossas
contribuições...”, faz exatamente esse papel, situa o campo da decisão, apresenta perspectivas
para o diálogo, mas não toma decisão, devolve ao grupo essa dimensão; nesse sentido, ele
força o desenvolvimento da autonomia no grupo. Essa atitude de co-responsabilizar os
professores em formação, especialmente os práticos (no sentido da IA), foi recorrente no
processo de mudança dos conteúdos, feita através de perguntas intermitentes como as
estabelecidas nos turnos T 41, T 48, T 50, T 66, T 85 e T 79. Essa atitude interrogativa
também pode ser evidenciada nos subcapítulos 3.4 e 3.5 (em outros episódios).
Nas manifestações, em cada fala, podem ser demarcados fragmentos/palavras que
apontam para esse caminho de autonomia que ascendia no grupo, como, por exemplo, nos
turnos T 43, T 49, T 64 e T 65, que estão mais evidentes em T 51: “eu concordo contigo
nisso aí, porque ele tem... se tu está fazendo um sistema de classificação evolutivo
biológico, tu tem um cronograma...” (Professor 14, 2010). O desenvolvimento da autonomia
foi sendo desencadeado dentro do processo de formação/constituição dos sujeitos (SMOLKA;
GÓES; PINO, 1998; SMOLKA; GÓES, 1994), que, ao se apropriarem do discurso coletivo e
iniciarem o próprio reconhecimento de suas intenções e de como essas iriam incidir sobre
suas ações futuras, foram sendo sensibilizados do problema e suas implicações.
Outra questão que despertou a discussão de todos foi a carga horária, que na rede
municipal é de apenas duas horas na sexta série – sétimo ano, o que dificulta assumir as
mudanças propostas, pois é uma barreira temporal e formativa, como pode ser observado nos
turnos T 80, T 82, T 86 e T 88.
185
Por que o processo decisório acerca das mudanças de conteúdos precisa passar pela
discussão dos professores? Essa questão pode ser respondida a partir do referencial sobre a
racionalidade prática na formação de professores. Os professores da rede básica de ensino, por
vezes, e os do grupo também, já haviam vivido em outras oportunidades essa sensação, são
tratados como acéfalos ou desprovidos de condições e conhecimento para participar das
decisões que envolvem o currículo e o ensino.
Para Schön (2000), o conhecimento prático que os profissionais detêm, advém de
construções simbólicas, que permitem elaborar e refletir sobre a prática, o cotidiano do
trabalho e a atividade laboral em si, de forma dinâmica e profícua, levando ao conhecer-naação através de fatos, de detalhes, que acabam por gerar, também, conhecimento na ação.
Essa “nova perspectiva de análise da profissão docente destaca a importância do estudo do
pensamento prático dos professores como fator que influencia e determina a prática de
ensino”, pois os professores possuem conhecimento e teorias (especialmente forjadas na
prática) implícitas na ação, “teorias práticas” sobre a natureza da Ciência, do ensino, currículo
e sua metodologia de ensino (GARCÍA, 1992, p. 61[tradução própria]). Essas concepções ou
teorias práticas precisam se tornar explícitas, conhecidas e compreendidas pelos professores,
ou práticos, como são chamados no referencial da IA.
A prática precisa ser informada. Esse sentido, atribuído por Carr; Kemmis (1988) e
outros autores da perspectiva crítica da IA, trata de uma prática que se descobre (em processo
de investigação) mediada teoricamente, que transforma teoria, que se utiliza da teoria para
melhor compreender e investigar os problemas práticos da ação docente, e por isso informa a
prática, num sentido retroalimentativo do processo que exige profundo diálogo entre teoria e
prática. Assim, exercitar o “fazer uma investigação reflexiva é produzir epistemologia da
prática” (MALDANER, 2006, p. 126), é compreender, no contexto da prática, a origem, o
desenvolvimento e a finalidade da ação. Nesse sentido, cabe apostar no desenvolvimento de
mecanismos para desencadear o processo de investigação das práticas, de modo a sistematizálas, o que vai contribuindo para torná-las possíveis de reflexão.
Os indícios presentes nas manifestações dos sujeitos evidenciaram que o processo
dialógico que se impõe no coletivo desencadeia uma ação reflexiva. À medida que o processo
avança, a reflexão vai fluindo no contexto, os participantes vão gradativamente se
constituindo mais críticos de sua prática, desse modo perfundindo também no coletivo uma
reflexão que é compartilhada, mediada pela teoria e intencionada.
186
O movimento formativo apresentado na sequência contempla a análise do processo
decisório final sobre os planos de estudos.
3.6 O movimento formativo dos Planos de Estudos III – Compreendendo um currículo
a partir de um processo decisório
A discussão presente no movimento formativo em torno dos conteúdos e planos
curriculares de Ciências compreende episódios que permitem reflexões e a tomada de
decisões que, se de algum modo possibilitam a cópia dos conteúdos do ensino de uma lista
proposta pelo referencial do RS; de outro, parece tornar essa adoção mais explícita e
consciente, por essa razão tende a mostrar que o diálogo revela-se reflexivo-formativo.
As intencionalidades são postas em xeque, ao serem discutidas. O diálogo aponta
indícios de autonomia docente e extrapola a discussão, ao situar também questões estruturais
das escolas e da profissão professor, elevando a discussão ao nível da reflexão sobre “as
considerações éticas”, que no entendimento de García (1992, p. 63[tradução própria]), “passa
pela análise ética ou política da própria prática, bem como das suas repercussões contextuais”,
nível este “imprescindível para o desenvolvimento de uma consciência crítica nos professores
sobre suas possibilidades de ação” (ibid).
Além dos episódios, resgatei uma entrevista da Professora 12 concedida ao Professor
Formador 1 para elucidar a necessidade, por parte dos professores investigados, de situar as
decisões, tendo presente os livros didáticos de Ciências adotados para o triênio 2011-2013,
conforme segue no diálogo.
Diálogo com a Professora 12 sobre a necessidade do livro didático
Professor Formador 1 (2010): Por que sentiram a necessidade de todas levarem o livro no próximo encontro
professora 12?
Professora 12 (2010): ...nós... o que eu senti assim do nosso grupo lá, que foi escolhido um livro, só que o
pessoal principalmente 6º ano e7º ano não sentou com... como se diz assim, não analisou, aprofundar, o
que há dentro desse livro, não se olhou assim se tem esse, esse, esses conteúdos?!.. Se tem e é da mesma forma
que nós vínhamos trabalhando?!... Para depois ver, é, então vai ficar isso aí! Porque, está, houve a discussão do
conteúdo, da forma como nós iríamos desenvolver. Primeiro a gente discutiu algumas coisas, depois houve a
parte da universidade, também fazendo as suas colocações e se fez uma relação e quando fomos colocar no papel
o pessoal começou a ver a questão das duas horas, a quantidade de informações ali presentes nos conteúdos [do
livro], fomos para casa e aí começou haver uma discussão. E eu fui uma que disse: gente, não adianta nós
discutir se isso tá certo, se isso não tá, se isso significa que nós estamos seguindo aquilo que foi a dez anos atrás
do mesmo jeito, só que mais atualizado, com mais informações... eu digo: não adianta se nós não tivermos o
livro aqui pra analisar, quem tem o livro?
Professor Formador 1 (2010): Quando nos reunimos, várias não tinham o livro na mão, não é? Muitos nem
tiveram acesso a este livro escolhido “por todos”, como já foi dito nos encontros anteriores.
187
Professora 12 (2010): Nós não tínhamos. Então ficou combinado assim: que cada professor buscasse o livro
da 5ª... do... do... do 5º ano... do 6º ano e do 7º ano e olhasse com atenção o que o livro estará trabalhando. E a
questão de duas horas ou três horas, ficou claro que o município vai ter três horas... só que os professores ainda
não entenderam isso... pelo menos eu entendi que o município também vai ter três horas. E aí os professores,
teve professores também que ficou assim; é muita coisa, muita coisa...mas não... não posso dizer se é mesmo
isso aí porque peguei o livro ontem de uma escola do 5º ano... do 6º ano e do 7º ano ela ia me alcançar... eu
vou pegar acho que aqui que venho, tem que pedir só permissão... então assim oh, ficou... porque... Professor,
assim oh, nós discutimos e aí toda a parte de plantas era pra ser no 6º ano e de repente na discussão, na fala e
coisa... não foi mais e aí tudo aquilo e mais sabe? E aí as gurias começaram se apavorar.
O fato de os professores de Ciências envolvidos na discussão acerca das mudanças nos
planos de estudos tomarem a decisão de trazer o livro didático no último encontro para o
fechamento dos novos planos e encaminhamento final do processo, já evidencia como a
autonomia dos professores vai sendo, aos poucos, resgatada. Não vejo essa implicação tão
forte como amarra no processo que poderia levar a uma provável cópia dos conteúdos do
livro. De certo modo, a decisão até pode demonstrar um retrocesso na construção iniciada nos
encontros que principiaram este último, mas o processo formativo é assim, ora avança, ora
estanca, ora retrocede, está, pois, em movimento e nesse movimento de ir e vir vai assumindo
uma forma também reflexiva: a de se pensar que as decisões não são imutáveis, tal como se
acreditavam ser os currículos, as diretrizes curriculares, as prescrições dos sumários dos
livros. Outro aspecto a ser considerado sobre a decisão de retomar o livro didático adotado
para o ano de 2011 está na questão contingencial, de que este será o material didático que
todos os alunos e professores terão para dispor em aulas de Ciências, senão o único, um dos
poucos. Também precisa ser acrescentado à discussão o fato de que a maior parte dos
professores não teve acesso ao livro antes da escolha do mesmo, o que dificulta o
planejamento das ações.
Nos episódios recortados do último encontro de discussão acerca das alterações nos
planos de estudos, para além do acordo final sobre os conteúdos, esteve em pauta a
corresponsabilização do coletivo docente que ensina Ciências nas redes estadual e municipal.
T 01: O que vocês vão fazer? (Professor Formador 1, 2010).
T 02: eu comecei a ler ali como as Lições colocam assim na questão da formação curricular, ele inicia com a
questão da formação do universo , as teorias, a origem da terra e o que é necessário para ter vida, ai vem o sol,
a água e o ar. Dai ele tem a questão da diversidade, ecossistema, habitat, problemas ambientais, características
dos ecossistemas , ciclo do oxigênio, a célula, bactérias, algas, protozoários e fungos, poluição do ar,
aquecimento global, água, reaproveitamento, lixo, doenças virais e a questão de antibióticos ... (Professora 12,
2010).
T 03: doenças humanas (Professor Formador 1, 2010).
T 04: isso no sexto ano? (Professora 1, 2010).
T 05: não, está para as duas séries, sexto e sétimo. Nas lições está junto, de dois em dois anos (Professor
Formador 1, 2010).
T 06: isto é nas duas, só que veja que me chama atenção, assim, seres vivos: ele não dá aqui nos blocos de
conteúdos, ele não tem referência a mamíferos, a répteis... (Professora 12, 2010).
T 07: mas não é ali, eu acho. É só ali? Não, não deve ter mais, deixa eu ver, eu já tinha olhado, acho que é em
outro lugar... (Professor Formador 1, 2010).
188
T 08: em nenhum lugar... (Professora 12, 2010).
T 09: então, estão todos os seres vivos em diversidade biológica, está tudo ali (Professor Formador 1, 2010).
T10: só que ele dá um enfoque especial, que é aí que eu quero chamar atenção, temos que nos definir
(Professora 12, 2010).
T 11: por isso que vocês têm que pensar o que vocês querem, se é aquilo... (Professor Formador 1, 2010).
T 12: ele dá um enfoque especial à questão das bactérias... ele dá coisas que pros outros, como se nós
fizéssemos parte disso ali...e aí, né? (Professora 12, 2010).
T 13: eu acho que vocês têm que perceber essa questão que a professora 12 coloca ali. É uma questão de
vocês tomar uma decisão. Primeiro, se vocês vão seguir o documento das Lições ou se vocês vão seguir outra
coisa, o que vocês vão seguir? Vocês vão ter que chegar num acordo, numa decisão… (Professor Formador 1,
2010)
T 14: nós vamos chegar na mesma tecla, o que a SMEC decidir e não adianta nós planejar e eles chegam e
dizem: - não, vocês têm que dar aquilo ou isso... (Professora 2, 2010).
T 15: não, mas quem... (Professor Formador 1, 2010).
T 16: têm que seguir os eixos temáticos, mas para os projetos, é coisa de escola (Professora 3, 2010).
T 17: tanto faz o plano, se tu quer seguir... vamos seguir conforme esse aqui.. E aí veremos o que nós
escolhemos. Vamos seguir conforme esse aqui. Vou lendo e vocês vão vendo se concordam ou não. A sétima e
oitava é a vida, então a organização, a matéria, a energia, como eles se reproduzem, evolução, origem da vida,
a classificação, bactérias, fungos... (Professora 12, 2010).
T 18: nós não tinha tudo isso, a sequência da evolução na sexta série? (Professora 1, 2010).
T 19: nós temos que tomar essa decisão, o que nós vamos abordar , o sistema solar, a origem da vida, o sol, a
água e o ar no quinto ano? (Professora 12, 2010).
T 20: mas compete a nós fazer do quinto ano? Vai pertencer às séries iniciais ano que vem (Professora 1,
2010).
T 21: não, acho que ela está falando do sexto ano. (Professor Formador 1, 2010).
T 22: vai ser uma competição esse ano. Porque o livro que nós vamos utilizar vai abordar isso aqui no sexto
ano. Isso que eu acabei de ler (Professora 12, 2010).
T 23: tá, então isso que tá no livro e tá ali, ótimo. É, não é? Se está nos dois, é ou não é, professor formador 1?
... Mas nos vamos ter um ano pra por isso em ordem (Professora 1, 2010).
T 24: a editora Z, ela adota isso aqui, sexto ano isso aqui. Procurando fazer integração (Professora 12, 2010).
T 25: sexto ano já é o de Ciências, ecologia (Professor Formador 1, 2010).
T 26: isso aí. E a tendência é permanecer (Professora 12, 2010).
T 27: é que nesse sentido, o sétimo ano seria os seres vivos, tanto os animais quanto as plantas, bactérias, tudo.
Oitavo ano é o corpo humano. E nono ano, Química e Física, essa é a sugestão que a Professora 12 está
dizendo, nessa proposta ficaria dividida assim (Professor Formador 1, 2010).
[...]
T 28: quer dizer que o sétimo ano pega as plantas e animais? (Professora 12, 2010).
T 29: nessa proposta, sim, no sétimo ano. Daí a professora 10 levantou a proposta de trazerem as plantas para o
sexto ano. Eu estou só levantando o que vocês disseram, eu não tô aqui tomando partido nenhum e nem vou
tomar ainda, eu só acho que vocês têm que ver que são coisas diferentes e ver o que vocês desejam fazer. Essa
é a decisão, vocês têm que tomar, na verdade vocês só têm duas propostas correntes: que uma é seguir essa
linha geral, que eu acabei de resumir, que no fundo é o mesmo, ou fazer o que os livros trazem, mas com
relação às plantas, trazer as plantas pra dentro do sexto ano e deixar só os animais dentro do sétimo ano e
outra é seguir as Lições, que, pelo que já foi explicado, está mais de acordo com o livro que vocês adotaram
(Professor Formador 1, 2010).
[...]
T 30: ...na quinta série, que vai ser o sexto. Então você trabalha com quinta? Tu também? (Professora 10, 2010).
T 31: e o que tu faz? (Professor Formador 1, 2010).
T 32: eu faço isso aqui que está no livro (Professora 10, 2010).
T 33: Agora vocês precisam tomar a decisão do que farão para o ano que vem ... (Professor Formador 1, 2010).
T 34: nós temos três votos que são a favor da mudança. Única coisa que eu digo assim, tu saiu daqui do estado,
quem não teve essa experiência vai esbarrar não no conteúdo, eles vão seguir o livro… (Professora 12, 2010).
T 35: vocês têm que ver o compromisso com as demais escolas e até com quem não está aqui. Até porque, se
vocês chegam lá e não acontece, vocês podem ter de fato um currículo no papel e um currículo em ação, que é o
que vocês estão fazendo. Tá escrito que é pra ser no sexto ano, na quinta série e vocês não estão dando, vocês
estão dando na sexta série, então não adianta escrever e depois fazer diferente (Professor Formador 1, 2010).
T 36: é o primeiro ano (Professora 1, 2010).
T 37: eu entendo, mas você entendeu? (Professor Formador 1, 2010).
T 38: porque nos queria ficar com tudo, porque o aluno sai dali da escola e fica com lacuna. Então foi a
primeira vez que não demos as plantas (Professora 1, 2010).
189
T 39: ele não quer dizer para nós (Professora 12, 2010).
T 40: não hoje, preciso facilitar a discussão, mas são vocês que irão trabalhar com estes conteúdos e com este
material (Professor Formador 1, 2010).
[...]
T 41: você tem quinta hoje? (Professora 10, 2010).
T 42: quinta a oitava, Ciências (Professora 1, 2010).
T 43: tu é a favor da mudança ? (Professora 10, 2010).
T 44: ah! eu já tô acostumada com a mudança, né? Só esse ano que não (Professora 1, 2010).
T 45: ...que nessa discussão uns concordando e outros discordando (Professora 12, 2010).
T 46: eu trabalhei até julho meio ambiente, lixo, reciclagem, preservação e julho em diante plantas, tudo sobre
as plantas. Eu trabalhei com bastantes folhas, atividades, porque não tinha livro (Professora 1, 2010).
T 47: mas aí que tá, de pegar e montar um material, usar os outros, tu não precisa ficar só com o livro...
(Professora 10, 2010).
T 48: isso, se nós continuássemos a nos reunir, gente, nós podia fazer uma big de uma apostila bonita, com
atividades, coisas assim, buscar coisas e fazer de plantas. Iria ser legal, todos trabalhar, já que nós vamos ter
essas oportunidades de nos encontrar (Professora 1, 2010).
T 49: Então, vocês estão se encaminhando para quê? (Professor Formador 1, 2010).
T 50: não, uma coisa tem que ser colocada assim: a tua preocupação é depois lá fora, o que vai acontecer? Mas
todo mundo foi avisado dessa reunião, as escolas liberaram nós pra reunião, então quem não tá aqui, tem que
acatar o que o grupo decidiu porque foi liberado, tinha permissão, era pra tá aqui hoje. Tanto que tava um auê
nas escolas de professor substituindo professor para ter esse grupo de estudo. Nós fomos liberadas, nós temos
autorização de estar aqui. Agora quem não está nem aí com o problema, não pode vim chiar [reclamar] e não
pode reclamar se não vem participar (Professora 10, 2010).
T 51: vocês têm um fórum de discussão que foi chamado pelo município e o estado atendeu. Então, na verdade,
aqui é o fórum de decisão, quem não está aqui, na verdade não poderia decidir sozinho. Este teu argumento tem
fundamento, sim (Professor Formador 1, 2010).
T 52: nós podemos questionar o porquê da não presença? (Supervisora 1, 2010).
T 53: isso aí. E se vai adotar, acho que isso é o mais importante também para perguntar: - vão adotar o que está
sendo feito nesse grupo? Porque esse que é o problema das meninas se decidir ou não por uma outra, porque
elas estão com medo de fazer uma outra coisa e depois na hora ninguém seguir, acho que é isso, não é? Eu não
conheço os professores que não estão aqui, por exemplo, então não sei o que eles pensam. Em tese eu só
conheço vocês (Professor Formador 1, 2010).
No que se refere ao conteúdo a ser abordado por séries/anos do Ensino Fundamental,
poucos foram efetivamente modificados/alterados do antigo modelo. A decisão do grupo
passou por duas propostas. No início do encontro, a busca pela adoção das Lições do Rio
Grande, como forma de inovação e de seguir o modelo já expresso nos planos de estudos, o
do currículo por competências, como está apresentado nos turnos T 02, T 05 T 13 T17 T 18, T
19 e T 23: “tá, então isso que tá no livro e tá ali, ótimo. É, não é? Se está nos dois, é ou não
é, professor formador 1? ... Mas nós vamos ter um ano pra pôr isso em ordem. (Professora 1,
2010).
Logo depois, surge no diálogo a ideia de manter uma modificação no conteúdo de
plantas, que sairia da posição atual 6ª série/7º ano para a 5ª série/6º ano, em razão de ter três
horas-aulas semanais. Essa decisão acarretaria falta do conteúdo no livro didático da
série/ano, com isso uma maior mobilização do professor em relação ao modo de
disponibilizar tal conteúdo aos alunos (T 29, T 30, T 31 T 32, T 33 e T 34). Essa proposta
estava sendo defendida pela Professora 10.
Mais adiante, a Professora 12 recoloca a discussão em torno da adoção da proposta das
190
Lições do Rio Grande, demonstrando que o conteúdo ficaria mais de acordo com o livro
didático adotado, dando a ideia de que era o melhor caminho a seguir. Desse modo, as duas
propostas são discutidas e, em meio a acordos e desacordos, o que ficou explícita foi a
necessidade da formação continuada (T 45 e T 48).
Um elemento importante que o processo possibilitou aos professores participantes foi
o entendimento de que, para serem abordados conteúdos diferentes do livro ou do que
cotidianamente se fazia, tornava-se necessária a formação continuada através do grupo em
que participavam, como fica expresso de modo contundente pela Professora 10 (2010), no
turno T 47: “mas aí que tá, de pegar e montar um material, usar os outros, tu não precisa
ficar só com o livro...” e pela Professora 1(2010) no turno T 48:
“isso, se nós
continuássemos a nos reunir, gente, nós podia fazer uma big de uma apostila bonita, com
atividades, coisas assim, buscar coisas e fazer de plantas. Iria ser legal, todos trabalhar, já
que nós vamos ter essas oportunidades de nos encontrar”.
Quanto ao processo decisório, acredito que a marca mais profunda da discussão esteve
em torno da corresponsabilização de todos os professores de Ciências do grupo que
participavam ativamente, como pode ser deflagrada no turno T 50: “Tanto que tava um auê
nas escolas de professor substituindo professor para ter esse grupo de estudo. Nós fomos
liberadas, nós temos autorização de estar aqui. Agora quem não está nem aí com o
problema, não pode vim chiar [reclamar] e não pode reclamar, se não vem participar”
(Professora 10, 2010) e da busca de sintonia com os participantes eventuais ou ausentes, mas
que ensinavam Ciências no município em questão. Essa atitude de responsabilizar a todos
pela autoria das decisões foi um mecanismo de defesa e de controle que a questão curricular
subjaz, pois o conteúdo de um currículo também imprime um saber-poder que determina
ações para além do ensino.
Num grupo que busca seu fortalecimento, a busca por fazer valer as decisões é uma
estratégia interessante de consolidação, o que leva uma professora do grupo a resumir as
intenções de todos como sendo: “todo mundo foi avisado dessa reunião, as escolas liberaram
nós pra reunião. Então quem não tá aqui tem que acatar o que o grupo decidiu, porque foi
liberado, tinha permissão era pra tá aqui hoje” (Professora 10, 2010),
daí também a
importância da expressão fórum de discussão-decisão que está presente num turno do mesmo
diálogo (T 51): “vocês têm um fórum de discussão, que foi chamado pelo município e o
estado atendeu. Então, na verdade aqui é o fórum de decisão, quem não está aqui, na
verdade não poderia decidir sozinho. Este teu argumento tem fundamento, sim” (Professor
191
Formador 1, 2010).
Na
condição
de
coordenador
do
grupo,
pude
exercer
o
papel
de
articulador/sistematizador, especialmente pelo jogo de perguntas que fiz uso no processo, na
tentativa de resgatar a discussão e encaminhar para tomada de decisões, sempre no sentido de
resgatar um diálogo crítico-reflexivo que permitisse avançar através da comunicação
intersubjetiva, daí dialógica e interativa, tal como fica explícito nas passagens: “O que vocês
vão fazer?”; “...uma questão de vocês tomar uma decisão. Primeiro, se vocês vão seguir o
documento das Lições ou se vocês vão seguir outra coisa, o que vocês vão seguir?”;
“...preciso facilitar a discussão...” e “... vocês estão se encaminhando para quê...”
(Professor Formador 1, 2010). A condição de formador e a necessidade de assumir uma
corresponsabilidade me mantinham em constante vigilância sobre as propostas a fim de
clarificar/explicitar os dois caminhos possíveis. Essa condição está bem assumida no T 33:
“Eu estou só levantando o que vocês disseram, eu não tô aqui tomando partido nenhum e
nem vou tomar ainda, eu só acho que vocês têm que ver que são coisas diferentes e ver o
que vocês desejam fazer. Essa é a decisão, vocês têm que tomar, na verdade vocês só têm
duas propostas correntes: que uma é seguir essa linha geral, que eu acabei de resumir, que
no fundo é o mesmo, ou fazer o que os livros trazem, mas com relação às plantas, trazer as
plantas pra dentro do sexto ano e deixar só os animais dentro do sétimo ano, e outra é
seguir as Lições, que, pelo que já foi explicado, está mais de acordo com o livro que vocês
adotaram” (Professor Formador 1, 2010).
Na sequência está apresentado o episódio que marca o encerramento do processo
investigado nesse movimento formativo.
T 54: então acho, assim, todos concordam com a questão de plantas? (Professora 12, 2010).
T 55: aquele dia da formação sobre as Lições do Rio Grande, eu não sei, o município não participou, foi só o
estado. Mas lembra que chamou a atenção que aqui, e esse município aqui do lado, o Z, que era o único que
era diferente do resto, o restante trabalhava plantas também, já na quinta (Professora 10, 2010).
T 56: eu vejo assim, que foi muito aonde a Universidade X conseguiu influenciar a formação… (Professora 12,
2010).
T 57: eu concordo que seja dado plantas ou então subir a carga horária (Professora 1, 2010).
T 58: aumentar a carga horária (Professora 10, 2010).
T 59: aumentar a carga no sétimo, se não eu concordo que seja plantas no sexto (Professora 1, 2010).
T 60: me digam que eu listo (Professora 10, 2010).
T 61: vê aqui com as gurias, cada um dá a sua opinião (Professora 1, 2010).
T 62: então, o que vocês optaram por fazer? Pra mim tentar entender. Vocês optaram por pegar, eu posso estar
enganado, vou tentar resumir o que vocês disseram. Vocês vão adotar a estruturação que a professora 12
apresentou mas alterando plantas para o sexto ano, que na verdade ainda é a estrutura do livro do que vocês
adotaram só que sem plantas no sétimo ano e sim no sexto ano, é isso ? (Professor Formador 1, 2010).
T 63: isso ai. Vocês concordam, gurias? Acham ruim? (Professora 1, 2010).
T 64: ...dar, eu não dou, eu trabalho numa escola, mas não no sexto ano, mas concordo que fica melhor assim
(Professora 11, 2010).
T 65: todas têm que concordar (Professora 1, 2010).
192
T 66: o que tem que ser feito é isso aí, para esse ano vai ser repetitivo, no caso eles vão ver essas coisas e não
podem ver duas vezes a mesma, ok? (Professora 2, 2010).
T 67: só que tem crianças que nem têm nada a ver com isso e nem vão ter o conteúdo (Professora 1, 2010).
T 68: eu sei, mas é que é uma unidade, a gente não vai trocar tudo (Professora 10, 2010).
T 69: gurias, lá no ensino médio a criança aprende tudo de novo, detalhado (Professora 1, 2010).
T 70: eu sempre penso: se nós não colocamos gosto nos alunos de Ciências, de quinta a oitava série, nunca mais
(Professora 12, 2010).
T 71: com certeza (Professora 1, 2010).
T 72: nós temos que fazer eles gostarem das ciências (Professora 12, 2010).
T 73: vai dizer que não tem aqueles alunos que dizem: profe, que quero ser professora de ciências, eu quero
fazer medicina, eu quero fazer não sei o quê... eu me realizo quando eles vêm... (Professora 1, 2010).
T 74: vamos fazer como está aqui ? (Professora 12, 2010).
T 75: Professora 12, eu não ouvi tu dizer sim, eu concordo (Professora 1, 2010).
T 76: deixa eu refazer a pergunta da Professora 12. A professora perguntou a vocês, se desejam fazer como
está nas Lições do Rio Grande e isto muda o encaminhamento até aqui. É essa a pergunta, porque ali não tá
descritivo o quanto, por exemplo, toda a descrição diversidade e seres vivos, está só diversidade e seres vivos
(Professor Formador 1, 2010).
T 77: mas subentende-se que são todos os seres vivos (Professora 1, 2010).
T 78: dai nós colocamos seres vivos e o nome das classes e grupos (Professora 12, 2010).
T 79: vamos listar... (Professora 10, 2010).
T 80: então está, decidiram pela lógica das Lições do Rio Grande. Diversidade biológica no sétimo ano, assim
como está no livro adotado? (Professor Formador 1, 2010).
T 81: [Em coro]: SIM. (todos os presentes).
[começam a listar o conteúdo]
T 82: sexto ano: formação do universo e do sistema solar, ... (Professora 12, 2010).
A decisão final do coletivo de professores foi seguir o conteúdo apresentado na
proposta das Lições do Rio Grande com pequenas alteraçõesAA (ver Anexo A). A proposta foi
definida de modo informado, claro, foi assumida pelos pares, consentida; nesse sentido, os
professores atribuíram um valor formativo ao processo, pois a reflexão foi sendo
desenvolvida, impulsionada por questões que emergiram dos conteúdos e formas de
abordagem, da carga horária, da busca de alternativas para ensinar outros conteúdos, da
necessidade de formação para ousar mais.
Mais importante que a própria decisão assumida pelo grupo, foi a explicitação do
caminho a ser seguido, a clareza de que a decisão tomada seria assumida por todos, podendo
ser seguida pelo grupo sem intervenções dos gestores e, a meu ver, acima de tudo a
implicação da formação, como processo/condição indispensável a uma transformação das
práticas, implicação na qual se apóia o referencial da IA, que mediou todo o processo.
A questão da autonomia emana do jogo de afirmações entre as professoras, como nos
turnos T 60: “me digam que eu listo” (Professora 10, 2010) e T 61: “vê aqui com as gurias,
cada um dá a sua opinião” (Professora 1, 2010) e do jogo de perguntas do Professor
Formador 1 (2010), como, por exemplo, a presente no turno T 62:“então, o que vocês
optaram por fazer?”. Esse movimento ascendente de perguntas e afirmações, presentes nos
diálogos do grupo, força a tomada de decisões e demonstra que as professoras participantes
193
vão assumindo um modo de condução da discussão, ou seja, os pares exigem uma posição
definida no coletivo, mas através do diálogo.
As exigências tornam-se contingenciais, ou seja, existe uma necessidade, advinda de
um problema prático, que faz sentido para os participantes do processo, a alteração dos
conteúdos parte das ações (docência em Ciências) e vão em direção a estas ações numa via de
mão dupla. Essa exigência de autoria curricular decorre do processo de formação, pela
investigação-ação, ou seja, no coletivo os atores que participam acabam entendendo que as
decisões cabem a todos e que a gestão do processo também, então participar, adquirir/resgatar
a autonomia é uma implicação de todos, torna-se a busca de uma prática social. Stenhouse
(1993) afirmou que a dinâmica de um processo de investigação e desenvolvimento curricular,
problema prático de uma IA, implica o desenvolvimento profissional do professor, que
adquire cada vez níveis/formas mais elevadas de reflexão, que incidem sobre um certo
compromisso de mudança e de aperfeiçoamento constante pessoal, profissional e das práticas
(CARR; KEMMIS, 1988; GARCÍA, 1992; ZEICHNER, 1992; LISTON; ZEICHNER, 1993;
STENHOUSE, 1993).
No último episódio acerca da tomada de decisões sobre as alterações, pude silenciar
mais, isso também implica que as professoras estavam falando mais, ou seja, estavam
assumindo seu papel na deliberação, condução e decisão em relação aos conteúdos. A meu
ver, esse movimento de tomar para si as decisões é também uma forma de os professores
iniciarem essa nova aprendizagem: aprender a refletir. Pois, assim como ensinamos botânica,
ensinamos a realizar experimentos, podemos ensinar e aprender a refletir. Essa aprendizagem
precisa ser desenvolvida em processos de formação inicial e continuada de professores, é uma
aprendizagem que está sempre em transformação e em movimento constante, pois indagações
são características do ser humano intersubjetivo, que pensa e reage ao seu processo de
constituição, nesse caso de constituição de sujeitos professores. García (1992, p. 64[tradução
própria]) expõe que “para mobilizar o conceito de reflexão na formação de professores é
necessário criar condições de colaboração e trabalho em equipe entre os professores, que
facilitem e justifiquem a aplicação de modelos e de estratégias reflexivas”. No processo de
aprender a refletir, as condições apresentadas por García (1992) parecem fazer sentido e
consubstanciam as afirmações que já fiz ao longo do texto.
O diálogo-formativo entre os pares é indício que evidencia o papel da reflexão,
especialmente porque os professores fazem um percurso próprio, autônomo, mediado pelo
coletivo no processo de decisão sobre a mudança nos planos de estudos.
194
O processo permitiu-me perceber marcas reflexivas mostradas pelo contexto
formativo, o que possibilitou compreender certos mecanismos que implicam rompimentos
com visões/concepções de docência; processos de conceitualização/significação dos conceitos
científicos; falas sendo apreendidas e depuradas pelo discurso coletivo do grupo; o repensar
de práticas situado num horizonte possível. Essas constatações levam-me a afirmar como uma
constituição docente é possível, pela via reflexiva, diferente e em contraposição à formação
técnica e tradicional que vinha sendo assumida pela via do livro didático, como outro
caminho, como modelo de enfrentamento ao aprisionamento do professor pelo livro, um
caminho refletido criticamente, teoricamente e na, para e pela transformação e melhoria das
práticas.
Buscando compreender melhor o processo de formação de professores em Ciências
como um processo de investigação-ação que aposta na reflexão crítica como categoria
formativa, me propus a desenvolver no capítulo 4 as contribuições que emanam da análise já
apresentada, da teoria pertinente e de uma reflexão sobre a investigação que vivenciei.
R
Os professores das escolas demonstraram diálogo intenso, o que me deixou feliz e desejando continuar com a
proposta do grupo (31.08.2011).
S
Observei diferentes leituras, visões, a partir do texto que pode ter causado o espelhamento: - assumir-se como
igual, ainda que seja dolorido; - enfrentamento da realidade tida como avessa; - espelhamento parcial, de modo a
suscitar um discurso sobre a prática de ensino de Ciências de cada um, ou seja, das próprias práticas (31.08.
2011, continuação).
T
O texto causou um efeito muito desejado, com discussão profícua. A reflexão coletiva e compartilhada
mobilizou a todos num diálogo crítico e bastante motivado (31.08.2011, às 12h).
U
A dinâmica se impôs por conta própria, emergiu do diálogo que o texto provocou. A respeito do texto em
questão, a discussão foi intensa, provocante, repressiva, libertadora, dura e suave, dolorosa e ao mesmo tempo e
do mesmo modo intensamente profícua e saudável. As interações se tornam indícios de autoria e reflexão, quiçá
crítica.
V
A professora formadora 2 faz uma reflexão acerca de sua própria constituição e isto – essa reflexão sobre a
ação – deslancha no grupo um movimento reflexivo que, no mínimo, facilita que mais uma professora passe a
refletir sobre sua compreensão inicial da experimentação. No diálogo e via discussão da fundamentação teórica,
aprofundamos compreensões, vislumbramos nossas práticas à luz do referencial, de algum modo houve um
processo, ainda que inicial, de teorização da prática (20.10.2010).
W
Já haviam me dito que o processo seria solitário, mas sentir tem sido diferente de ouvir. Não gosto de ser
solitário, não gosto de pensar e não compartilhar. Neste sentido, o diário de bordo tem sido um desabafo, um
ouvido que vai recolhendo minhas ansiedades e impressões do processo. (24.10.2010) Minhas inquietações
acerca dos movimentos formativos/constitutivos de minha trajetória. Tenho que parar, meu corpo pede,
felizmente é hora de parar e refletir. Ou simplesmente parar e ouvir. As dores musculares foram os sintomas....
estou atento, mas precisando parar. Ao estar... entender... e afastar-me dos episódios, percebi que a experiência é
de todo modo muito viva e precisa ser tomada com cautela (14.08.2011, finalizando a preparação do texto para a
Banca de Qualificação).
X
Mais uma etapa importante cumprida hoje, encerrei as entrevistas individuais com todas as professoras que
ministram aulas de Ciências e supervisoras escolares. Percebi que uma professora estava vermelha no rosto, com
respiração ofegante e com certo nervosismo aparente, parecendo apresentar certa desconfiança e desconforto ao
195
responder as questões. Durante a entrevista, a professora sentiu a necessidade de falar o tempo todo com o livro
didático nas mãos, então ela buscou o livro e o segurou por toda a entrevista (03. 12. 2010, às 7h e 30min).
Y
Preocupam-me as críticas frenquentes à experimentação em Ciências, pois como pode ser ruim e mal feita uma
prática que nunca se tornou comum, corriqueira e parte da rotina na vida escolar? Falamos muito em práticas,
mas será que praticamos na dinâmica das aulas de Ciências? No ensino de Ciências, o que pude observar é que
temos uma prática docente, extremamente livresca, em que o professor está mais para refém do livro didático.
Nesse sentido, perde seu papel como definidor do processo e assume a função de copiador/reprodutor de um
processo. Expropria-se de suas tarefas docentes, tais como o planejamento, a formação e a atualização, que ficam
delegadas ao livro. Este último vai assumindo o controle de todo o processo pedagógico, da aula de Ciências
(03.12.2010, às 10h e 30min, em visita nas escolas).
Z
Nesse momento, pude perceber o quanto os livros são indispensáveis à direção/a tomada de decisão, à
execução de um currículo e por isso mesmo fica indispensável sua produção. Desse modo, mais uma vez posso
afirmar que existem forte indícios no sentido de corroborar parte inicial de minha hipótese, de que o livro adota o
professor e que o perverte, o amarra, o obriga a seguir suas prescrições e, nesse sentido, determina que um
currículo –conteúdo determina o currículo em ação, as práticas ( 02.12.2011, às 9h).
AA
As professoras chegaram com os livros de Ciências. A tarefa da manhã era acertar os conteúdos do 6º ano em
diante e definir os planos. Os conteúdos dos planos foram questionados em função do livro, inclusive a ordem,
em que se notou possível ruptura. Quanto às competências, as professoras solicitaram que fossem copiadas das
lições, em razão do argumento de autoridade atribuído ao referencial curricular. Quanto às estratégias, houve
discussões das propostas que estavam no referencial Lições do Rio Grande, com poucos acréscimos. Um dos
objetivos gerais foi proposto por uma professora como cópia do livro didático, mas foi remodelado. Os livros e
os documentos oficiais foram sendo comparados e foi sendo definida a opção final. Acredito que houve pouca
inovação, mas muita discussão e com isso a decisão, ainda que me angustie muito, foi tomada em função da
reflexão transcorrida, da realidade (07.12.2010, às 8h).
196
CAPÍTULO 4: A REFLEXÃO CRÍTICA COMO MEDIADORA DA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE CIÊNCIAS: A INVESTIGAÇÃO-FORMAÇÃO-AÇÃO
Nas assimetrias, há interação;
nas diferenças, há aprendizagem;
nas sinergias, há ação;
nas falas, há reflexão;
no diálogo, o discurso;
do contexto, os conceitos;
no caminho, há constituição:
docência, pesquisa e formação.BB
Neste capítulo discuto a pesquisa e a formação de professores de Ciências,
especialmente no tocante à formação continuada, no sentido de que estou empreendendo
esforços para compreender como a reflexão se torna um instrumento mediador da formação e
num modelo de investigação-ação como um caminho possível para transformação das práticas
docentes. A partir da referenciação teórica pertinente e da apropriação dos resultados de
pesquisa apresentados e analisados nos capítulos 2 e 3 deste texto-tese, neste capítulo, tenho a
pretensão de avançar, com o aprofundamento da discussão do conceito de investigação-ação.
As explicitações aqui expressas estão de toda forma alicerçadas no contexto situado de
pesquisa, o qual circundou a criação/implantação de um grupo de estudos e pesquisa em
ensino de Ciências e Matemática – GEPECIEM, bem como na revisão da literatura da área de
formação de professores, corroborando a hipótese de que a formação se torna uma
possibilidade de enfrentamento do aprisionamento docente imposto pelo uso do livro e sua
maquinaria
pedagógica,
questão
que
venho
discutindo
em
todo
o
texto.
A
validação/corroboração da hipótese se dá à medida que o processo formativo investigado
demonstrou indícios que evidenciam a reflexão como categoria formativa que possibilita a
constituição docente e a própria ampliação da investigação-ação como modelo de formação.
197
Através de um conjunto de reflexões fundamentadas postas em discussão neste
capítulo, apresento uma proposição de aprofundamento no campo da compreensão conceitual
acerca da formação de professores, demonstrando como a investigação-ação pode ser
entendida como investigação-formação-ação (IFA). Entendo, desse modo, como o referencial
da IA pode ser ressignificado e ampliado para o contexto da formação de professores em
Ciências, tendo como orientação o referencial histórico-cultural, pois, ao me utilizar desse
referencial, pude perceber a natureza da reflexão em contexto formativo e como os sujeitos se
constituem em interações no contexto referido.
Abordagens e discussões teoricamente fundamentadas permitem-me afirmar
proposições no sentido de avançar e alargar o conceito de investigação-ação justamente pela
compreensão em profundidade do referencial da teoria educacional crítica e das percepções de
mudança nos conhecimentos, que fui apreendendo nas vivências junto à realidade investigada.
Este alargamento do conceito possibilita pensar na direção de um processo de investigaçãoformação-ação. Uma vez que, para além de sobre, é também para a formação que a
investigação-ação se configura e se torna efetiva, com sentido transformador das concepções e
das práticas pedagógicas, dos currículos, dos contextos escolares, quiçá das práticas sociais.
Assumi essa opção de delineamento desde o início da investigação, pois o referencial
me permitiu reconstruir o conceito para uma dimensão formativa, que interessava estudar. Isto
fez com que eu pudesse perceber e estar atento do início ao fim em/no como/quanto os
movimentos formativos e constitutivos do professor colocavam em movimento e em
construção os ciclos reflexivos que foram emergindo do contexto no GEPECIEM.
Aparecendo de modo discreto, mas situado desde o primeiro capítulo, venho acenando para
entendimentos com esta configuração conceitual, que gradativamente foi tomando forma e
proporção ao longo da tese. Esses contornos permitem chegar ao final da investigação de
modo propositivo, no campo conceitual e teórico da formação de professores, especialmente
da formação de professores da área de Ciências.
Inicialmente faço uma discussão sobre os processos de formação de professores como
modo de favorecer a crítica ao modelo técnico e tradicional. Depois apresento os indícios que
desencadearam o modo como a reflexão pode mediar o processo formativo de professores de
Ciências. Por fim, situo a reflexão como categoria formativa que passa a compor o conceito
de investigação-ação.
198
4.1 Formação de professores: compreendendo um modelo possívelCC
O conhecimento de professor como fator constituinte da sua profissionalização esteve
por longos anos mais atrelado à formação inicial em nível de graduação, antes ainda nos
cursos normais que formavam os professores primários. Já em meados do século XX, foi
verificado que o processo de formação inicial de professores não dava conta do universo das
inúmeras questões em que estavam imersos os professores em contexto educacional. Por
causa disso iniciaram-se os primeiros passos da formação continuada, que foi baseada (e
ainda tem sido em muitos casos) em cursos de curta duração, cursos de especialização,
palestras e oficinas (formação como sinônimo de eventos [MIZUKAMI et all., 2002]), muitas
vezes, apresentando receitas e novas metodologias de ensino, sem discutir os processos de
ensino e aprendizagem, o fazer docente nem tampouco os conteúdos do ensino; a esse modelo
dá-se o nome de técnico ou tradicional (NÓVOA, 1992; PÉREZ-GÓMES; 1992).
Schön (1992; 2000) descreveu e criticou esse modelo de formação apoiado no
acúmulo de conhecimentos científicos para posterior aplicação na prática como coerente com
a racionalidade técnica, por fazer parte de um processo que consiste basicamente na aplicação
de teorias e da técnica científica à resolução de problemas puramente instrumentais, sem a
reflexão sobre a prática necessária à melhoria da ação.
Os modelos de formação apoiados na racionalidade técnica, especialmente no tocante
à formação em Ciências, têm como agravante o absolutismo, o rigor científico e o positivismo
lógico muito presentes nos processos que envolvem a produção da Ciência na área das CN.
Esse modelo também foi tido e utilizado como eficiente e eficaz na formação inicial de
professores, no famoso modelo identificado como três mais um, que era entendido como três
anos de muita teoria e um ano de práticas e estágios pedagógicos ao final da formação.
A racionalidade técnica favorece, ainda, a adoção e o uso indiscriminado e quase
exclusivo do livro didático, ações estas que ainda parecem ser muito corriqueiras nas salas de
aulas brasileiras, como relatam pesquisas da área, já apontadas nos capítulos 1 e 2. Este
favorecimento é evidenciado pela ideia vigente de que o conteúdo dos livros didáticos está
correto e muitas vezes é considerado fonte única de apropriação da Ciência pelos professores
e alunos da educação básica.
Em contraposição a este modelo, Schön (1992; 2000) e Alarcão (2001; 2010) têm
defendido uma perspectiva denominada racionalidade prática, que visa, entre outros
elementos constitutivos, à reflexão sobre a ação.
199
Apontar para reflexão como possibilidade de mediação dos processos formativos é
vislumbrar outros caminhos possíveis à formação continuada de professores. Nesse sentido, a
formação inicial pode e deve estar também articulada a esse mesmo processo. A ação de
formação que vivenciei e que está analisada nesta tese fez com que fossem reunidos
professores formadores, licenciandos e professores da educação básica, todos em processo de
formação. Esse modelo parece favorecer a reflexão sobre a ação, como está posto na análise já
realizada
e
nos
indícios
que
demarcam
os
vestígios
do
processo
investigado/analisado/transcorrido.
A busca de um saber processual e de uma formação que dê conta da articulação entre
teoria e ação docente é defendida por Zanon (2003, p. 83), ao investigar processos de
formação inicial, apontando-o, com base em Alarcão (1996), Tardif (2005), Porlán (1989),
Porlán; Martín (1997) como um saber
complexo e dinâmico, que se constrói, desde cedo, na interação entre saberes
teóricos e saberes inerentes à prática profissional; um saber de interface entre
conhecimentos disciplinares teóricos e práticas docentes, que se constitua como um
sistema de ideias em evolução; um conjunto de representações a partir das quais os
professores interpretam, compreendem, (re)orientam e praticam a sua profissão.
Essa defesa também é pautada por Porlán; Martín (1997), Silva e Schnetzler (2000),
Alarcão (2010; 1996) e acredito que possa ser também aplicada às razões de uma formação
continuada qualificada que tanto é buscada.
A reflexão é também uma possibilidade de encontrar outro caminho para a
(re)significação do livro didático na constituição docente, pois a via da formação contínua,
refletida, fundamentada e compartilhada parece favorecer uma adoção menos imediatista,
pouco informada e deliberada, que impõe o uso exclusivo do livro didático em detrimento de
uma formação que vai se consolidando por meio de processos refletidos e adoção de práticas
docentes que visam à transformação da realidade e sua constante melhoria. A relação entre
professor e livro didático é tensionada pelo processo formativo em que o primeiro se inclui e
assim essa tensão exercida vai propiciando condições a uma prática refletida e reflexiva.
Os processos de formação continuada já testados e que podem dar respostas
positivas têm algumas características relevantes: os grupos de professores que
decidem “tomar nas próprias mãos” o tipo de aula e o conteúdo que irão ensinar,
tendo a orientação maior – parâmetros curriculares, por exemplo – como referência e
não como fim; a prevalência dos coletivos organizados sobre indivíduos isolados
como forma de ação; a interação com professores universitários, envolvidos e
comprometidos com a formação de novos professores; o compromisso das escolas
com a formação continuada de seus professores e com a formação de novos
professores compartilhando seus espaços e conquistas (MALDANER, 2006, p. 25).
200
Maldaner (2006), entre outros autores da área de Educação em Ciências
(CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2000), tem defendido uma formação que faça estabelecer pontes
entre contextos reais (da educação básica e das vivências dos sujeitos) e Universidade
(aspectos formativos, pesquisa na área), na tentativa de encurtar o distanciamento entre as
pesquisas educacionais e a prática docente que o modelo da racionalidade técnica impôs ao
longo dos anos.
O modelo de investigação-ação tem sido utilizado sobremaneira em propostas de
formação continuada de professores em Ciências que têm como perspectiva a racionalidade
prática. Com diferentes performances, as propostas apresentadas pela literatura da área de
Educação em Ciências tendem a respeitar o conhecimento dos práticos para reorganizar a
produção de uma formação que pesquisa essa prática e esse “conhecimento prático” a partir
de reflexão teórica e mediada em ambientes interativos.
Zanon (2003 [grifos da autora]), no que chamou de “tríade de interação”, acrescenta
a esse modelo, quanto às interações necessárias para que se leve a cabo uma formação
qualificada, a união de no mínimo três sujeitos que se envolvem com a produção de ensino:
licenciandos da área em formação, professores formadores da universidade e professores de
educação básica, configurando um ambiente interativo que favorece a aprendizagem e o
desenvolvimento profissional e curricular.
Cabe apontar, também, que o professor formador da Universidade ou pesquisador
acadêmico tem sumária importância nesse processo, pois dificilmente comunidades de
professores se organizam voluntariamente e sem ajuda da academia. A “tarefa do pesquisador
acadêmico é a de consolidar uma forma de pesquisa colaborativa que seja transformadora da
prática curricular e que, no processo, favoreça o desenvolvimento do professor no que se
refere à transformação de sua prática” (ROSA; SCHNETZLER, 2003, p. 30). Pérez-Gómez
(1992[tradução própria]) também enfatiza esse papel do formador, ao referir que “não é
possível ensinar o pensamento prático”. Desse modo, o professor formador “adquire uma
importância vital”, tornando-se “responsável pela formação prática e teórica do professor”,
sendo também “capaz de atuar e refletir sobre a sua própria ação como [professor] formador”.
Assim, o papel dos professores da Universidade pode ser evidenciado como de
iniciadores/desafiadores do processo num grupo que os pesquisadores têm interesse de
investigação, como assessores/consultores procurados por um grupo de professores
interessados em formação ou como agentes externos/observadores de um processo em que o
contexto vai receber uma formação ou, ainda, com um papel preponderante de professores
201
formadores na sistematização9 e planejamento das ações, mas que participa ativamente dos
processos, fazendo também sua formação, também sua pesquisa, porém de modo a
compartilhar teoria e prática no contexto processual da investigação-ação; é esse último papel
que defendo.
O papel do conteúdo, a concepção de Ciência, o ensino e a aprendizagem passam a ser
vistos de modo integrado, com objetivo de informar e fortalecer a decisão no contexto prático
em constante construção. Desse modo, os envolvidos se dão conta de que a formação através
de processos de pesquisa deixa acontecer Ciência, o que implica um ensino dinâmico,
transformador e pautado na inserção social dos sujeitos envolvidos, os quais, pela
participação, conseguem mediar significados em processos interativos (CARR; KEMMIS,
1988; ROSA; SCHNETZLER, 2003; CONTRERAS, 1994; ELLIOTT, 1990).
Em meio a entraves e contradições, uma possibilidade profícua que enxergo no campo
da formação de professores, vinculada à concepção de uma racionalidade prática e que vem
articulada à investigação-ação sobre as práticas (CARR; KEMMIS, 1988; CONTRERAS,
1994) é a reflexão como categoria formativa.
Importante salientar que a categoria professor reflexivo tem recebido críticas em
grande medida pelo caráter individual e entraves do ponto de vista do fazer-se no contexto
eminentemente prático educacional e da formação de professores, sendo confundida inclusive
como um modismo no Brasil (PIMENTA, 2002). Outros autores, como Contreras (2002),
tentaram levar a discussão pela via da formação reflexiva e formativa de intelectuais críticos;
apoiado em Giroux (1998), posiciona a necessidade da autonomia dos professores como
modo de superar a categoria professor reflexivo. Neste sentido, cabe discutir como a reflexão
é entendida e até mesmo situada nos movimentos formativos de professores, ou seja, no
processo de formação.
O conceito de reflexão não é recente e, ainda que Schön (2000) mereça o mérito pela
maior difusão deste conceito, é com Dewey, desde 1933, que o ensino reflexivo e sua defesa
são examinados pela primeira vez (DEWEY, 1989). A (re)elaboração de Schön (2000) tem
sentido especial na formação de sujeitos pela via reflexiva, dependente destes sujeitos, que,
isoladamente, desejam melhorar a sua ação em contexto prático. Num sentido mais amplo,
Alarcão (1996; 2001; 2010) atribui ao processo de reflexão o significado de reflexão para a
9
Cabe aos professores formadores o papel da sistematização. Nos termos de Morin (2004), é importante que haja
uma vigilância quanto ao processo de sistematização, coordenação, planejamento e organização da ação
investigada. Zelar pela sistematização, no GEPECIEM, foi tarefa a mim confiada. Morin (2004) defende que este
zelo contribui para uma IA integral e sistêmica.
202
ação. Ao assumir esta expansão ao conceito de reflexão, a autora acrescenta justamente por
ser “tão importante [no sentido da] pesquisa-ação” (ALARCÃO, 2010, p. 54). Esta forma de
perceber a reflexão tem implicações que forçam a compreensão de que a reflexão buscada é
para transformar a prática (se dá na, sobre e para a ação), desse modo a reflexão exige
conceitualização, mediação e diálogo reconstrutivo, ou seja, “a aprendizagem é um processo
transformador da experiência no decorrer do qual se dá a construção do saber” (ALARCÃO,
2010, p. 53). Esse conceito implica reconhecimento coletivo. A formação de professores
exige a presença dos pares, pois, desse modo, pode articular, através de processos reflexivos,
uma transformação para todos os envolvidos.
Quando Alarcão (2010, p. 53) se refere ao modelo da IA, ela afirma que:
a essência do modelo é muito simples. Por processos de observação e reflexão, a
experiência é analisada e conceitualizada. Os conceitos que resultam desse processo
de transformação servem, por sua vez, de guias para novas experiências, o que
confere à aprendizagem também um caráter cíclico e desenvolvimentista.
A aprendizagem que se dá no contexto da IA é um processo que transforma a
experiência pela via reflexiva, com isso adquire o potencial formativo.
É importante situar também outras perspectivas que partilham da investigação-ação e
com isso exigem movimentos reflexivos acerca da prática, tais como o ensino por
investigação e o educar pela pesquisa. Na verdade, esses modelos se assentam em contextos
reflexivos, que em última análise buscam a autonomia docente, com isso não estão assumindo
outras perspectivas teórico-conceituais, mas características diferenciadas no tratamento das
informações e encaminhamentos metodológicos distintos.
As perspectivas formativas apresentadas por Schön (1992), Nóvoa (1992), Zeichner
(1992), Zeichner; Diniz-Pereira (2005) e Zeichner (2008) trazem como pontos comuns a
vinculação da formação e desenvolvimento profissional dos professores ao contexto prático
no sentido de produzir a profissão docente; a necessidade de se conduzir processos de
formação articulados ao desenvolvimento de currículos no sentido de produzir a escola; a
reflexão como princípio a ser aprendido e objetivo dos processos de formação (GARCÍA,
1992). Compreendidas tais perspectivas como importantes, em termos de formação pela via
da prática, é necessário situar, ainda, que a questão central destas defesas pode ser deslocada
para a reflexão como categoria necessária à formação de professores e não apenas uma roupa
ou um nome que pode ser dado ao professor, como reflexivo ou pesquisador, por exemplo.
A constituição docente, como profissão, exige um perfil pesquisador e reflexivo, que
pode ser sobremaneira influenciado pelos processos de formação inicial e continuada, mas se
203
trata de participar de tais processos ativamente, como ator e fator de transformação. É nesse
sentido que Carr; Kemmis (1988) defendem a reflexão crítica como fator de diferença na
formação de professores, no contexto educacional e social.
Outro aspecto que pode ser acrescido à discussão é em relação à categoria de professor
pesquisador, que no sentido da investigação-ação está inerente à ação. Talvez aqui as
divergências conceituais e os contextos falem mais do que as ações. Uma questão é a de que,
em geral, especialmente no Brasil, pesquisar não faz parte das atribuições do professor e
também não fazia, por longos anos, parte do currículo de formação dos professores da
educação básica nas licenciaturas. Outra é a de que, se prepararmos todos os professores para
fazer pesquisa acadêmica, corremos o risco de não termos professores para ensinar nas redes
básicas de ensino. Uma saída é a proposição da investigação-ação em contextos práticos:
precisamos formar professores e incluir os já formados em processos formativos que ensinem
a pesquisar a própria prática. Este é o sentido do professor pesquisador: não um acadêmico e
sim um professor que, ao examinar o que faz em curso e após seu exercício profissional,
preferencialmente no coletivo do contexto educacional, consegue (re)planejar sua ação. É
nesse viés que, apoiado em Carr; Kemmis (1988) e Alarcão (2010), reforço a ideia de que se
trata de ensinar a refletir sobre e para a ação docente. Essa reflexão se dá a partir das
vivências, mediada teoricamente e torna-se experiência desse modo.
Os processos de formação pautados na investigação-ação, pela via da reflexão crítica,
são eminentemente coletivos. Tripp (2005) e Pimenta (2005) também fazem suas defesas
nesse sentido, aproximando para o modelo de IA o conceito de cooperação, aqui
compreendido como colaboração. Os participantes cooperam entre si, pois estão diante de
benefícios para todos, como a mudança curricular de uma escola ou rede.
Imbernón (2010, p. 23), acerca da formação continuada de professores, considera
“fundamental que, no momento de planejar a formação, executá-la e avaliar seus resultados,
os professores participem de todo o processo e que suas opiniões sejam consideradas”. A fim
de que o processo seja significativo para todos e que a co-participação seja efetiva e gere
autonomia do professor como sujeito de seu processo formativo, a “formação continuada do
professor passa pela condição de que este vá assumindo uma identidade docente, o que supõe
ser sujeito da formação e não objeto dela, mero instrumento maleável e manipulável nas mãos
de outros” (ibid, p.75).
Outro aspecto que se acrescenta ao modelo de formação de professores que defendo é
a autoria compartilhada (MALDANER; AUTH; PANSERA-DE-ARAÚJO, 2007), pois o
204
desenvolvimento profissional e curricular que é pretendido se complementa com os processos
de produção deste desenvolvimento, ou seja, a inovação curricular, uma melhor formação de
professores, a transformação das práticas se tornam possíveis através do empenho de todos os
envolvidos. A autoria compartilhada nas produções acadêmicas, curriculares e conquistas
públicas podem significar um processo de desenvolvimento pessoal também significativo,
pois professores saem do anonimato e passam a escrever e defender seus argumentos. Essa
autoria é precedente da autonomia, no sentido de que, à medida que processos de formação
(através da investigação-ação) são implementados e progridem, os professores vão
gradativamente tomando espaços e tempos, voz e vezes nas interlocuções que vão definindo
os caminhos dos próprios processos que vivenciam ou vivenciarão.
A meu ver, as condições (contexto) e as comunidades autorreflexivas (grupos em
colaboração) podem fazer com que a reflexão seja iniciada e progrida para uma reflexão
crítica, pautada na melhoria das práticas e na transformação social. Uma reflexão instituída
pelo grupo como guisa formativa. É justamente procurando resgatar, defender e explicitar a
reflexão como categoria formativa, para que tome status e passe a compor o conceito de
investigação-ação, que procurei sistematizar os indícios do processo de formação de
professores de Ciências que investiguei.
4.2 Reflexão coletiva em processos de formação (inicial e continuada) de professores de
Ciências: os indícios da reflexão
Como evidenciar os indícios através das lentes de um paradigma? Que são indícios?
Como seguir os rastros das manifestações? O que é único e diferente? Como os indícios
ajudam a compreender o processo? Essas foram as perguntas que me atormentaram e também
foram as que me levaram a propor respostas num veio conclusivo como professor,
investigador e sistematizador deste texto.
O movimento investigativo de busca e explicitação dos indícios que precisava apontar,
descrever e compreender, levou-me a uma metarreflexão sobre o processo desencadeado. Tive
dificuldades de compreender que “o legista”, no processo de determinação “da causa mortis”,
precisa, no laudo, fazer a definição da causa e efeitos; para isso, precisa fazer o caminho
reverso “da bala ou da faca”, por exemplo, ou seja, verificar o caminho pregresso, sua origem
e o processo desencadeado e, que assim como o oleiro deixa “ranhuras” únicas no “vaso de
barro” que produz, elas são forjadas pelas sensações e interações que vão sendo vivenciadas
205
pelo oleiro, através da música que escuta, da época em que colheu o barro, dos anos que ele
tem de experiência, das intenções que o fazem produzir o vaso, que são únicas, e daí o fato de
cada peça ser única, com isso também o processo de produção10. A metáfora aponta para a
compreensão de que os (micro)processos se dão em pequena escala, no sujeito e de modo
muito peculiar, o que dificulta a percepção da totalidade, como afirmam Góes (2000) e
Ginzburg (1989).
Os indícios precisam ser explicitados a fim de evidenciar o processo. Desse modo,
apropriei-me da análise microgenética já empreendida e também do paradigma indiciário
como modo de focalizar os detalhes da produção de significados que forjaram a construção
dos resultados desta tese. Com a ajuda de Ginzburg (1989), fui em busca dos inúmeros sinais,
emblemas, pistas que foram produzidas durante o processo investigativo-formativo e que
deixaram marcas, um rastro que por mim pode ser percebido/analisado. Os indícios de que a
reflexão na formação continuada ocorreu e que ela é precursora de um processo permanente,
que estabelece melhoria das práticas pedagógicas, estavam presentes e demarcados nos
movimentos formativos desde o início do processo que acompanhei e coordenei no
GEPECIEM. Como analisei apenas o ano de implantação do GEPECIEM (2010) e, ainda
assim, não muitos encontros, após os recortes, tive de estar muito atento para apreender os
detalhes, as minúcias, os indícios, as pistas, as nuances que o processo produziu, nesse
sentido, meu diário de bordo foi indispensável. Acredito que o diário de bordo seja um
instrumento poderoso de pesquisa, de ação e de reflexão.
Por detrás das palavras transcritas presentes nas falas/manifestações do sujeitos ou nas
respostas, estavam também interações não verbais, também únicas e não possíveis de
descrição (pois não estão gravadas em imagem), mas possíveis para minha reflexão, uma vez
que se constituem em experiências que presenciei e me fazem pensar. Foram sensações,
emoções, gestos, o jogo de palavras e sua entonação, modos de sentar, vestir e estar no grupo
que vão desde a posição no círculo até atestados, laudos médicos e desistências (por parte de
duas professoras de Matemática) que me levam a inferir sobre possíveis causas
atitudinais/processuais.
Para facilitar essa compreensão, busquei indícios, pistas para evidenciar, durante o
processo formativo, especialmente como se deu a constituição de professores na via reflexiva,
processo que também se fez presente em minha própria constituição como professor
10
Metáfora com base na leitura do romance: “O queijo e os vermes”, de Carlo Ginzburg (2003).
206
pesquisador. Analisei/investiguei com maior dedicação alguns indícios, a fim de corroborar a
tese defendida de que processos formativos, tendo a reflexão como mediadora, tornam-se um
modo de enfrentamento da relação de aprisionamento estabelecida entre livro didático e o
professor de Ciências, o que possibilita melhoria das práticas, são eles: - as atitudes dos
participantes frente ao grupo; - as mudanças no cenário; - o livro didático e os professores em
formação; - a discussão das temáticas nos encontros; - interações entre os sujeitos envolvidos;
- a autonomia dos participantes no grupo.
As
atitudes
dos
participantes,
em
especial
as
não
verbais,
indiciaram
alterações/transformações, evidenciando que o processo de constituição no coletivo de
formação docente estava pondo em movimento concepções, conceitos, pensamentos. Alguns
professoras pouco falavam e eram até recatadas demais no início das atividades do
GEPECIEM; com o passar do tempo (já no ano de 2011), ouvi uma delas se pronunciar com a
expressão: “sou sócia fundadora deste grupo, estou aqui desde o início e sempre estarei. Me
sinto bem nele, tenho vez e voz, sei melhor o que estou fazendo. O grupo me faz bem”
(Professora 7, 2011)11. Percebi também que algumas professoras passaram a vestir-se com
roupas mais bonitas, de melhor qualidade e que passaram a vir aos encontros maquiadas e
sorridentes, o que a meu ver parece indicar que as pessoas desejam estar no grupo, veem-no
como um evento produzido por elas mesmas, a ser prestigiado.
Algumas dessas professoras passaram de uma posição periférica na disposição do
grupo em sala para uma posição mais articulada a colegas de profissão e licenciandos,
tendendo a serem mais vistas e assim podendo exercer melhor o direito a voz e vez no grupo.
Outras duas professoras de Matemática desistiram de participar do grupo alegando que
precisavam de uma discussão mais adequada ao conteúdo que ensinavam, sobre o como
ensinar. Parece-me que esperavam mesmo de receituários. Uma delas entrou em atestado
médico e não retornou para suas atividades docentes no ano de 2010; me pareciam, ambas
elas, muito incomodadas com o processo de formação.
Os detalhes do contexto em que estive imerso durante a investigação-ação foram
intensos, marcantes e até mesmo surpreendentes. Alguns professores tornaram-se copartícipes e, em compartilhando suas reflexões, vivências para facilitar a formação de todos.
Outros tornaram-se amigos ou membros mais assíduos nas rodas de conversa no corredor.
11
Escuta realizada em aula de Pós-graduação em Educação da UFFS em que a professora em questão é pósgraduanda.
207
Alguns também convidaram outros colegas de escola, como é o caso dos professores de
Física, Química e Biologia do Ensino Médio, que passaram a se fazer presentes em 2011, a
partir de convite de colegas de Ciências que perceberam que o processo poderia ajudar a
todos. O número de participantes aumentou dentre os três grupos de sujeitos envolvidos, o
que mostra que o envolvimento com o processo de formação vai adentrando escolas, redes e
níveis de formação.
Acredito que o exame destas atitudes demonstra que o grupo tende a progredir e
assumir uma plena constituição como comunidade autorreflexiva, pois a posse do processo
em mãos dos professores da rede básica tem sido gradativa, evolutiva e permanente.
A imagem refletida dos professores em constante transformação é um modo de negar a
imagem social que a profissão impõe. Um sujeito sem voz, sem vez, com baixo salário, por
vezes feio e mal vestido, sem a formação adequada, assim é representado na mídia, por
políticas públicas, pelos governos e na fala social (FONTANA, 2000). Mas esse mesmo
sujeito-professor pode transformar-se pelo desejo de fazer parte de algo maior que o
implusione e faça a prática social ser transformada. É o desejo do reconhecimento, é um
processo de encontro de possibilidades, saídas para uma realidade tão difícil através de uma
constituição pela via da formação refletida.
As mudanças nos cenários escolares e universitário são visíveis sob vários aspectos.
Os professores envolvidos no GEPECIEM estão inseridos em contextos escolares que
tipicamente tinham um caráter mais tradicional, caracterizado por escolas que não tinham
acesso a laboratórios de Ciências, tendo o livro didático como único recurso disponível, com
predomínio de cursos e palestras de curta duração para formação de professores ligados ao
ensino de Ciências. A formação continuada, especialmente através do modelo de
investigação-ação, tem facilitado ao professor o exame das suas práticas, o diálogo formativo
com colegas de área, licenciandos em formação e professores da Universidade, o que faz com
que o professor se torne gradativamente mais crítico e mais comprometido com a melhoria de
suas práticas, pensar sobre e para o que faz, refletir sobre o caminho, o conteúdo, sua
formação. A presença de licenciandosDD dos programas PET e PIBID nas escolas também tem
transformado ambientes e aulas em contexto escolar. Novos rituais, outros desafios são
interpostos, professores que escrevem e publicam, que vão e voltam da Universidade EE e já
não se acostumam mais à falta de material ou acesso à informação para todos. Esses e outros
elementos são circulantes na realidade escolar, o que outrora não ocorria.
208
O modelo de formação que implementamos fez com que a Universidade estivesse o
tempo todo em questionamento, por parte dos licenciandos em formação; pelos professores da
educação básica envolvidos e a princípio desconfiados com uma instituição que não queria
“dar” cursos; pelos próprios formadores, alguns jovens e inexperientes, outros com diferentes
modelos vivenciados em processos de formação. Talvez em alguns momentos vivenciamos a
sensação de descrença no processo, de que era tudo muito moroso e que não servia aos
interesses imediatos de todos. Por outro lado, com o passar do tempo (quase dois anos), o
modelo foi se mostrando mais robusto, os ciclos reflexivos foram fluindo e os procedimentos
(metodologia) sendo aprendidos.
A aprovação do PETCiências (em 2010) e do PIBIDCiências (em 2011), aprovação de
projetos de pesquisa e de extensão institucionais envolvendo o GEPECIEM, bem como a
própria institucionalização como sendo nosso grupo de pesquisa no Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), fizeram com que as atenções fossem se
voltando aos programas e processos que temos organizado de modo articulado. O referencial
teórico sob o qual estão situados os programas, nossa ação de extensão, algumas de nossas
pesquisas e as linhas do grupo, é a investigação-ação, a reflexão crítica e o educar pela
pesquisa, que em seus desdobramentos tem encontros e contornos que permitem que os
trabalhemos no seu conjunto. Os resultados dos programas e do processo de formação
articulado (inicial e contínua) é melhor sentido nos licenciandos que participam das ações
formativas. Professores de diferentes áreas têm tecido sua análise positiva em relação a uma
formação mais qualificada, bons resultados em disciplinas e atitudes mais responsivas por
parte destes.
A necessidade de planejar um processo de formação continuada dentro de uma
estrutura de curso de licenciatura em Ciências também nos põe, como professores formadores,
na condição de aprendentesFF, bem como nos convida à discussão de referenciais, modelos e
prospecção dos processos de formação em que estamos envolvidos. Essa necessidade nos
obriga, em parte, a reunir, com isso, a discussão, principiando um ponto comum buscado: a
reflexão sobre o processo formativo de 2ª ordem12, feita extragrupo, ou seja, de fora, sobre o
processo, a fim de qualificar os pesquisadores da Universidade, os quais precisam efetivar
ações no sentido de compreender o processo para melhor desenvolvê-lo. É tarefa dos
12
Pesquisa de 2ª ordem, nos termos de Elliott (1998). Trata-se de uma pesquisa que visa o estabelecimento
colaborativo, nesse caso entre Escola e Universidade. O regime de colaboração estabelecido nesse tipo de
pesquisa favorece uma epistemologia diferenciada em que teoria e prática passam a ser desenvolvidas de forma
conjunta, dinâmica e interativamente, sem ordem de maior importância.
209
professores formadores, conforme Alarcão (2010, p. 49), facilitar o processo de
“desenvolvimento da capacidade de pensar autônoma e sistematicamente” e Pérez-Gómez
(1992, p. 112 [tradução própria]), acrescenta: “deve perceber que a sua intervenção é uma
prática de segunda ordem, um processo de diálogo reflexivo sobre as situações educativas”.
Um outro indício parece estar presente quando são analisados processos formativos: é
a busca de uma formação qualificada ou de excelência que aparece justaposta à mudança dos
cenários, como causa e/ou também como efeito. Existia, pois, uma constante escuta de que a
qualificação, o desenvolvimento profissional é necessário, de que a formação continuada tem
de existir, é importante.
Ainda que de modo inicial e talvez pouco aparente em relação ao uso deliberado do
livro didático, os professores em formação começam a questionar o seu uso exclusivo e a
verificar especialmente que o conteúdo do livro pode não ser o único e inquestionável
depositário da Ciência que se deve ensinar.
Para melhor esclarecer os indícios nesse ponto, utilizo-me da expressão da Professora
12 (2010): “eu sou livreira mesmo”, colhida em questionário e em encontro do GEPECIEM,
em que a professora se assume sem riscos e sem máscaras como uma professora que segue o
único material qualificado disponível ao seu trabalho, assume para si e para o coletivo que sua
prática é direcionada pelo livro e ao fazê-lo (talvez sem ter essa consciência), escancara sem
pudores, mistérios ou subterfúgios que a educação carece de qualificação e, acima disso,
formação para seus professores. Posteriormente, no ano de 2011, analisando os diários de
bordo de uma licencianda, que acompanha através do PIBID a professora em questão,
encontro a seguinte passagem:“achei interessante quando a professora falou, provocada com
o contexto em questão, deu seu parecer: eu não sei fazer isso, o livro eu não consigo ficar
sem ele é o meu guia. Eu até posso pesquisar e mostrar aos alunos essa alternativa, mas
depois eu pego o livro e continuo a aula....(risos). Essa fala me deixou feliz, mesmo sabendo
que o professor formador 1 não iria gostar. Mas nesse momento percebi a dificuldade que um
professor de educação básica tem, em readequar seu sistema de dar aula. Ademais, com a
discussão aberta, a professora realizou com os alunos, através do relatório, o `ensinar pela
pesquisa´, talvez nem tinha percebido, assim como em sua fala dizendo que ela não sabia
ensinar dessa maneira. Ela fez exatamente o que se espera através de um tema gerador
realizar pesquisa com os alunos a fim de levantar debates e discussões sobre o tema, claro
sem o uso do livro. Isso é ensinar pela pesquisa para mim, ela não utilizou o livro para
chegar aos conceitos de decomposição, pós trabalho realizado e discutido”(Licencianda 6,
210
2011). Ao perceber os resultados da formação presentes no cotidiano escolar, passo a
acreditar que o processo está possibilitando um campo fértil às transformações nas práticas
escolares, pois a professora que assumiu de início sua prática como sendo determinada pelo
uso do livro, muda suas posturas, sofre transformações em suas concepções e práticas, pois
pelo relato da licencianda que a acompanha é possível inferir que a prática da professora está
sendo menos dependente do livro didático e parece se utilizar da pesquisa e da
experimentação em suas aulas, como recursos didáticos. Essa prática menos aprisionada e
acompanhada pela licencianda, pelos formadores e por ela mesmo que está intencionada em
pesquisar sua prática desencadeia outro processo: o uso do diário de bordo para pesquisar sua
ação. Ela começa descrevendo e refletindo sobre as aulas de um grupo de alunos da disciplina
de Ciências em que ela tem dificuldades de ensiná-los, toma-as como um problema prático e
passa a descrever, narrar e refletir (pensar sobre o processo). Acredito que a professora
começa um ciclo reflexivo próprio, especialmente quando passa a escrever, relata sua prática
no grupo, momento em que esta é discutida por todos os participantes do GEPECIEM e com
isso começa a perceber o potencial que a investigação-ação tem sobre seu desenvolvimento
profissional. Parece-me que esta professora consegue compreender também que o processo
formativo instituído pelo GEPECIEM é aberto, compartilhado, reflexivo e construído por
todos no coletivo, somos/éramos professores em formação, não se tratava de um curso e sim
de um processo de aprendizagem para todos.
Mais tarde, no ano de 2011, num encontro de formação sobre um tema da ecologia, a
mesma professora, que participou do processo de modificação curricular em 2010 e que se
dizia com uma prática livresca, retoma no coletivo de formação uma discussão sobre
conteúdos de Ciências e questiona a todos por que não ensinar ecologia de paisagem, mesmo
não estando nos livros. Ao trazer a discussão à tona, o diálogo que mantive com ela e o grupo
fez com que muitos presentes percebessem, por fim, que a decisão sobre quais conteúdos
ensinar é do professor e, mais do que isso, é sobre ele que recairá o peso dessa decisão e é ele
quem deve pensar prospectivamente no desenvolvimento intelectual de seus alunos, que
dependem de suas escolhas. A Professora 12 (2010) também manifestou nessa oportunidade
que precisávamos de uma formação para o uso do livro didático.
Um livro didático tão forte, tão presente, tão bem demarcado nas aulas e nas decisões
dos professores que investiguei, por vezes pareceu-me que perde tal força, tal presença, tal
demarcação, perde para uma formação, que, como processo, possibilitou através do diálogo
formativo (entre todos os participantes e por parte da professora mencionada) e da escrita (da
211
licencianda) uma reflexão ativa e crítica, se torna enfrentamento da relação entre livro
didático e professor de Ciências, se torna possibilidade de novas relações, não mais de
aprisionamento do professor pelo livro, quiçá um uso informado e mais consciente dos
entraves desse material na prática docente. Nesse sentido, apoiado no processo transcorrido e
nos indícios explicitados, acredito que concepções e práticas foram sendo postas em discussão
e em movimento, o que sugere constituição docente por uma via reflexiva e contextual. Essa
análise permite-me depreender do contexto que houve intervenção.
A discussão das temáticas nos encontros, ou seja, os encontros formativos
transcorreram dentro da área do conhecimento dos professores, mantendo profunda ligação
com suas atuações como docentes. Esses encontros entre pares geram situações a serem
discutidas, não apenas as pautadas pelo planejamento, mas que (re)surgem no contexto da
formação. Os temas comuns à prática e à formação dos participantes instigam a discussão,
forjam pensamento dentro da área de estudo que não é desconhecida, faz parte do contexto em
que se formaram e atuam. A cada novo tema, parece fazer sentido parar e discutir, os
encontros forçam a discussão, são momentos que exigem dos sujeitos o (re)pensar, a
retomada, uma parada para rever o que está feito e pensar no devir. Essa discussão é um
aponto de partida, ela, pois, indicia a reflexão.
As riquezas das interações entre os sujeitos envolvidos só foram possíveis porque o
grupo propiciou o encontro de três distintas categorias em formação. Os professores em
formação estavam envolvidos com questões similares e com objetivos claros e delimitados: professores formadores preocupados com a formação de novos professores (ensino), pesquisa
e extensão (diálogo com a realidade); - licenciandos buscando uma formação inicial
qualificada e diferenciada no Curso; - e professores da educação básica que buscavam
atualização, compreensão de sua prática e ajustar-se a novas demandas, ou seja, seu
desenvolvimento profissional em exercício. Essa reunião de distintos tipos de professores foi
determinante do processo, sem a qual não seria possível uma pesquisa-formação-ação, nos
moldes que desenvolvemos.
O processo de formação mais evidente e em destaque é a formação continuada. Mas
nos parâmetros do processo e modelo que desencadeamos, com arranjo composto de no
mínimo três categorias de sujeitos professores em formação, está profundamente articulada a
dois outros movimentos incomuns (na maioria dos casos) nesse tipo de formação: a formação
inicial dos licenciandos e a formação continuada dos professores formadores, que também
212
fizeram/fazem seu processo formativo no contexto do GEPECIEM. Num modelo tradicional e
técnico, os processos de formação continuada são dirigidos aos professores da educação
básica em serviço, sendo que os professores formadores fazem/executam a formação dos
primeiros e os licenciandos recebem apenas a educação formal em separado na licenciatura.
Quanto a essa teia/rede de interações que não declinamos análise pormenorizada, é
importante salientar que em alguns momentos do processo conseguimos resgatar e envolver
um quarto tipo de sujeito que favorece os processos formativos: os supervisores de escola.
Estes supervisores, nesta investigação-ação, foram também indispensáveis e, quanto ao grupo,
se mostraram, por várias vezes, dispostos a participar das ações de formação, outras vezes
nem tanto, mas a presença destes pode ser considerada uma peça-chave a facilitar o avanço
dos resultados que chegariam a perfundir de maneira mais rápida e eficaz na escola, ou seja,
no contexto escolar. Em nosso caso, uma das supervisoras da rede estadual e particular era
também professora de Ciências e Biologia e participou constante e ativamente do processo. A
presença ativa de uma e eventual de outras (quando solicitadas, em alguns encontros), mas em
contato direto com o grupo, permite acreditar que todas facilitaram o desenvolvimento das
ações formativas.
Passo a examinar outro indício presente e que qualifica o processo formativo, a
autonomia dos participantes no grupo, que aumentou gradativamente e culminou em várias
decisões, uma delas referente aos planos de estudos, que talvez demarcou o início de um novo
modo de pensar: a meu ver, deflagra a capacidade de escolha refletida pelos participantes do
GEPECIEM.
O lugar dos conteúdos em um currículo, a decisão de quais conteúdos escolher em
detrimento de outros e de qual referencial a ser seguido são alguns dos aspectos que compõem
as vivências do grupo de professores que pesquisei. Acredito que, no percurso dos encontros
dos movimentos formativos analisados através de episódios no capítulo 3, é possível perceber
transformações na posição que os professores passam a ocupar à medida que os encontros
fluem. O grupo parte da ideia de copiar os conteúdos da proposta Lições do Rio Grande
(defendida amplamente pelos gestores educacionais); mais tarde, os professores acabam por
resgatar os sumários de conteúdos dos livros (prática adotada pela maioria dos participantes
até então) e por fim percebem que os conteúdos extraídos de propostas curriculares de Estado
ou de livros didáticos são semelhantes, mas, que pelas decisões tomadas e pelas escolhas
definidas, serão os professores a serem cobrados. Ao serem explicitados os motivos das
213
escolhas que surgem nas discussões em torno dos conteúdos, o grupo assume uma cópia
parcial da proposta contida nas Lições do Rio Grande, adequando-a ao conteúdo do livro
didático escolhido para uso no ano de 2011. Esse processo, ainda que tradicional do ponto de
vista da pesquisa educacional curricular, é desencadeado com consciência sobre as escolhas e
decisões, e parece-me que essa ação de tomar a decisão às próprias mãos se dá porque o grupo
de professores estava em processo de formação, não qualquer formação, mas refletida. Essa
autonomia é um princípio a ser resgatado, segundo Contreras (2002), pois a formação
reflexiva pode dar subsídios a esse processo de resgate na formação de professores.
A escrita reflexiva presente nos diários de bordo, assumida por todos os participantes
do GEPECIEM a partir de 2011 e nos relatos de experiência que já foram produzidos e
publicados por integrantes do grupo (ver Anexos B e C), bem como o diálogo formativo
instituído como o jogo de falas, de perguntas e respostas presentes nas manifestações que
transcrevemos, que vão situando uma discussão cada vez mais crítica e reflexiva, são
categorias que dão os contornos finais e vêm ao encontro da tese defendida, ou seja, no
processo houve reflexão e esta propiciou uma caminho possível para repensar a relação entre
professor e o livro, bem como para constituir possibilidades de práticas melhores.
Os indícios não estavam isolados/soltos ou descolados no/do processo; antes, pelo
contrário, estão todos entranhados nos movimentos formativos que analisei, todos justapostos
e emaranhados de modo articulado e também dissolvidos/embebidos no/do processo de
formação que se mostrou precursor da reflexão nos seus participantes. Os indícios, a meu ver,
estão unificados e ramificados na explicação do processo geral e como um todo. À medida
que pormenorizei os detalhes, as nuances aqui descritas, cada vez mais sobressaía à análise a
dimensão da reflexão no processo. Não estava, pois, ela escondida, apenas precisava ser
explicitada e compreendida como processo.
A reflexão é um processo que precisa ser desencadeado. Acredito que a escrita
reflexiva (nos diários de bordo) e o diálogo formativo (possibilitado pelos encontros),
fazem/fizeram/farão com que os professores em constante formação possam progredir,
assumindo e compreendendo mais fortemente seu papel como autores e atores de sua própria
FormAção. Ao passo que vão compreendendo seus fazeres e aprendizagens constituídas, vão
se constituindo pela malha social e por este caminho poderão examinar suas práticas no que
chamamos de pesquisar a ação, e assim vão se constituindo professores em formação. O
sujeito professor, em processo de formação, se constitui pela via reflexiva e, desse modo, ele
214
reelabora suas concepções, intervém em sua prática, especialmente quando reflete no diálogo
com seus pares, pois primamos por uma reflexão não apenas da ação, mas sobretudo sobre e
para ação, ela é retrospectiva e prospectiva e, ao sê-las, se torna formativa.
Minhas apostas já são maiores, porque estive, ainda estou e estarei presente no
desencadeamento das ações do GEPECIEM, o referencial me toma em parte, me força a
participar. Assim, esperançoso e estudioso do meu fazer, acredito que o mesmo deve
acontecer com os demais, pois, como já mencionei no início dessa minha reflexão, também
trago/carrego em mim os indícios do processo: a minha constituição docente é um indício
marcante desse processo.
Com base nas reflexões já pautadas no texto, especialmente a partir do exame dos
indícios discutidos, passo a uma proposição para a evolução conceitual da investigação-ação,
acrescentando a formação como categoria indispensável a sua compreensão no sentido
educacional.
4.3 Por uma investigação-FORMAÇÃO-ação
A investigação-ação, no contexto da formação de professores, é um tema que tem
apreendido significados através de proposições de distintos autores, especialmente no que se
refere à compreensão dela como concepção de educação, baseada na teoria educacional
crítica.
Especial referência, neste campo conceitual, têm os trabalhos de Elliott (1998; 1990),
Mc Niff (1988), Stenhouse (1992; 1993; 1985), Carr; Kemmis (1988), Contreras (1994;
2002), García (1992) e de Zeichner (1993; 1992; 2008). Outros trabalhos constituem leitura
básica na área, em contexto brasileiro e internacional, entre eles: Rosa e Schnetzler (2003),
Pimenta (2005), Lüdke; Cruz; Boing (2009), Pereira (1998), Zeichner; Diniz-Pereira (2005),
Morin (2004), Maldaner; Zanon; Auth (2006). Tendo este referencial como fontes, proponho
um diálogo com o tema da IA, na perspectiva da formação de professores, tentando avançar
no processo de conceitualização.
Abordar a IA como caminho investigativo para a melhoria das práticas docentes e a
perspectiva colaborativa como aporte para que a IA se desenvolva em contextos situados de
formação de professores é compreender certo avanço no contexto da temática. O referencial
tem despertado questionamentos diversos, os quais vão desde o estranhamento com a Ciência
215
tradicional e factual, apoiada na racionalidade técnica, até o modo de estreitamento com as
matizes sociais que deram aporte ao desenvolvimento da matriz conceitual da IA. É
importante ressaltar que o referencial exige uma certa démarche, no sentido de pôr em
movimento a teoria, para que seja possível a sua compreensão – intervenção. Movimento este
que tende a transcorrer e pode ser compreendido num duplo sentido e direção, numa
complexidade de inter-relações que se entrecruzam dialeticamente, numa perspectiva
transformadora, ao mesmo tempo, das práticas e das concepções/teorias.
Um é o movimento que vai na direção da compreensão, por parte de cada
sujeito participante, das teorias expressas/trazidas por outros (pares, especialistas, gestores,
autores) e colocadas em discussão no contexto da intervenção. Outro movimento vai na
direção da explicitação de teorias pessoais tácitas/implícitas, por parte dos sujeitos, na
perspectiva de torná-las conscientes (explícitas e significadas), com discussões que permitem
avanços, por parte de cada participante dos coletivos. Desse modo, é possível uma
transformação dos currículos/práticas que vem acompanhada de uma formação dos
professores envolvidos no processo da IA, transformação que decorre alicerçada em
mudanças nas/das teorias e concepções, por conseguinte, das práticas.
Em Carr; Kemmis (1988), encontramos três condições necessárias à sustentação de
uma IA, que se interconectam com essa discussão: um projeto planejado a partir de uma
prática social que vise melhorar e atender as necessidades sociais. Para tanto, é necessário que
se entenda conceitualmente a perspectiva da IA assumida no contexto; o projeto deve se
apresentar em forma de espiral que vise o planejamento, ação, observação e reflexão, a fim de
propiciar certo encaminhamento metodológico e prático a cada ciclo reflexivo; um projeto
que implique a responsabilidade da prática a todos os membros da atividade, criando-se
condições para o desenvolvimento de comunidades autorreflexivas, permitindo um
acompanhamento colaborativo sobre/no/do e para o processo.
O esforço de revisar conceitos acerca da IA, possibilidades do referencial para a
formação de professores, perspectivas para ampliar a discussão e a efetivação de
compreensões para adensar a produção em relação ao tema numa tessitura, a partir da escrita
reflexiva, me faz resgatar conceitos/perspectivas já sabidas da IA para avançar.
Nesta parte do texto tenho a intenção de dialogar adentro na malha da tessitura
conceitual acerca da IA, para, através do texto produzido, compreender os processos
vivenciados no âmbito do GEPECIEM e propor avanço conceitual e aplicado na/à formação
[inicial e contínua] de professores de Ciências.
216
Na compreensão conceitual coloquei-me à busca da matriz na qual está alocado o
conceito de IA, e proponho entender a compreensão da dimensão/perspectiva crítica, como
uma qualificadora da IA pela qual adoto defender essa posição. Essa opção conceitual está
diretamente correlacionada à dimensão formativa assumida pela reflexão desencadeada nos
contextos formativos de professores.
Na sua conceitualização, a IA passou historicamente pela compreensão de distintas
abordagens, no que se refere a sua matriz, que pode ser entendida como técnica, prática e
crítica, dimensão que adquire tal qualificadora quando baseada no desenvolvimento de
pesquisas educacionais, que em seu bojo se revelam mais particularmente ligadas a
comunidades autorreflexivas de professores em contextos escolares, a fim de promover a
transformação de práticas educacionais, por conseguinte sociais (CONTRERAS, 1994). As
mesmas dimensões que têm sido descritas na literatura para qualificar processos de IA são
também utilizadas para qualificar tipos de reflexão, conforme aborda García (1992).
Desenvolvida por Kurt Lewin (anos 40, séc. XX, EUA), a perspectiva da IA técnica
tentou promover a integração entre experimentação científica e ação social. Baseada num
processo cíclico de exploração, atuação e validação de resultados, esta posição separava a
investigação da ação e, por isso, não se sustentou como uma via possível para investigação em
contexto educacional, especialmente porque, no tocante às teorias que a demarcavam, não
estavam figurando as correlatas à Educação. Outro obstáculo que a perspectiva técnica teve
foi a visão de externos que os pesquisadores tinham, sobremaneira baseados em observação
da ação. Nesse sentido, os atores sociais envolvidos nas práticas pesquisadas não eram, pois,
os protagonistas do processo (LEWIN, 1946 apud KEMMIS; McTAGGART, 1998).
Mais tarde, outros pesquisadores, liderados por Lawrence Stenhouse e John Elliott
(anos 70, séc. XX, na Grã Bretanha - Reino Unido), colocam em xeque a necessidade de se
apropriar da IA, em contextos práticos, tendo como protagonistas os atores envolvidos na
ação. Emerge, assim, outra dimensão, a IA prática, com uma apropriação em contexto
educativo. O modelo torna-se, desse modo, uma possibilidade de investigação sobre o
significado prático que podem ter determinadas teorias educacionais ou, noutra compreensão,
de como se pode ser coerente na prática com determinados princípios pedagógicos.
A partir dessa perspectiva, são apontados problemas decorrentes da sua apropriação
em contexto escolar, entre eles: o fato de que não se pode prescindir do coletivo para que haja
IA e o fato de que, em geral, os professores não têm estrutura institucional nem tradição
pedagógica de entender que pesquisar é uma atividade docente que também exige
217
sistematização, bem como os sistemas educacionais não possuem tal compreensão. Nesse
sentido, Contreras (1994, p.12[tradução própria) afirma que “a IA, como qualquer projeto,
que trate de defender uma prática docente, reflexiva, investigadora, de colaboração entre
colegas, necessita de condições de trabalho que façam com que ela seja possível e viável”.
Coloca, assim, em discussão, de forma contundente, que as estruturas (os sistemas
educacionais) precisam dar conta das necessidades, para que os professores pautem, em sua
agenda de formação, a pesquisa de sua própria prática e (re)configurem como pertinente à
pesquisa, como parte de sua ação docente.
A dimensão de IA crítica, como um processo de transformação das práticas dos
professores em caráter coletivo, é defendida por Stephen Kemmis e Wilfred Carr (pós anos
80, sec. XX, na Austrália), tendo como pano de fundo a Teoria Crítica a partir das
compreensões de Habermas, mais que isso ampliando e defendendo, a partir destas, uma
Teoria Educacional Crítica. Nesse entendimento, os participantes de uma situação social, para
melhorar a compreensão (a racionalidade) e o fazer das práticas, bem como a
situação/contexto em que se dão as ações sociais em que estão alocadas/calcadas suas práticas
educativas, praticam um certo modo/forma de indagação autorreflexiva (CARR; KEMMIS,
1988).
Para García (1992), existem no mínimo três formas de reflexão: a introspecpção, o
exame e a indagação, as quais, que pela ordem, são gradativamente mais complexas da
primeira para a terceira forma. A indagação é a forma que mais está correlacionada à
investigação-ação, na perspectiva crítica, em especial no sentido de formação de professores.
Ela se caracteriza por “permitir aos professores analisar a sua prática, identificando estratégias
para melhorá-la” (GARCÍA, 1992, p. 64 [tradução própria]). Essa forma de reflexão, estável e
espontânea nos sujeitos, é uma premissa buscada pela IA crítica. É um elemento a ser
buscado/desenvolvido em processos que se pretendem formativos.
Em Carr; Kemmis (1988), podemos definir IA como uma forma de indagação
autorreflexiva que coloca os participantes em situações sociais, a pensarem e melhorarem suas
próprias práticas ao passo em que as analisam. Os atores passam a compreender e explicitar
sua prática em contexto situado, a saber: a matriz social em que se encontram coladas. Em
termos educacionais, a IA é reconhecidamente um caminho viável para o desenvolvimento
curricular e desenvolvimento de conhecimento profissional e no sentido da busca de
melhorias e planejamento de políticas, sistemas e práticas educativas voltadas à transformação
social. Os autores defendem amplamente que se trata de pensar uma investigação para a
218
educação e não sobre a educação, é uma investigação que, nesse sentido, informa a prática,
porque teoria e prática estão em contexto, de um só modo. A teoria forjada na ação,
mediadora e internalizada pelas ações que, ao serem explicitadas e compreendidas,
reconhecem-se em perspectiva, também teórica, e por isso é parte da prática. Nesse sentido,
ela informa a prática, está presente em contexto, inclusive sendo modificada pelo contexto
que a retroalimenta.
A IA desenvolve-se tendo como princípios: - a integração do conhecimento e da ação;
- o questionamento da visão instrumental da prática; - a realização pelos próprios sujeitos
implicados na prática que se investiga (os professores); - tem como objeto e objetivo melhorar
a prática, que se articulam numa visão para e pela transformação social, no sentido de
construção de mudanças e melhorias das práticas, do sistema educacional e da sociedade
como matriz social em que se dá a educação, aqui entendida como uma construção histórica e
cultural (CONTRERAS, 1994; CARR; KEMMIS, 1988).
Contreras (1994), ao tratar da dimensão crítica da IA, afirma que existem aspectos
centrais dessa dimensão a serem considerados no seu pleno exercício: os aspectos sociais da
prática educativa; compreender a prática implica reflexão sistemática sobre a ação; a
transformação na ação dos sujeitos tende a tornar a prática acrítica e não reflexiva;
transformar a ação em práxis comprometida e teoricamente mediada implica transformar
reflexivamente a própria teoria que fundamenta o processo, o que está diretamente
relacionado à transformação crítica dos envolvidos, pois, se o contexto muda, mudam também
os sujeitos que o fazem.
Uma das importantes possibilidades de intervenção, pela via da IA crítica, parece estar
apresentada entre os aspectos centrais já apontados: ação comprometida e teoricamente
mediada implica transformar reflexivamente a própria teoria que fundamenta o processo, em
que é possível empreender no mínimo o significado de que, nesse contexto, a dimensão crítica
da teoria educacional tensiona a relação teoria e prática, pondo as duas em igual proporção.
Essa constatação faz com que a discussão acerca da transformação, também teórica, possa
transcorrer emanada dos processos de IA. Este reconhecimento, de que a teoria se põe à prova
e se transforma ao mediar a transformação das práticas, é parte da dimensão crítica em IA.
O contexto da formação de professores é que permite pensar o conceito de IA crítica
em perspectiva, e expandi-lo, pois a natureza da pesquisa educacional, por se ocupar da
ciência educacional crítica, das questões de controle sobre a educação, toma partido em favor
219
do controle por parte das comunidades autorreflexivas e autocríticas de investigadores ativos,
sendo professores, alunos, gestores, externos, ou seja, todos os envolvidos na ação.
Acreditar que os participantes da ação possam assumir a responsabilidade
colaborativa de desenvolvimento e de reforma da educação é a própria missão de
uma ciência educacional crítica e a investigação-ação educacional oferece esse
caminho para que se possa conseguir (CARR; KEMMIS, 1988, p. 222 [tradução
própria]).
Pensar a IA crítica é pensar a transformação da educação. Nessa perspectiva é que a
considero como uma possibilidade fundamental no contexto da formação do professor. Nela
reside um caminho que pode, apoiado na IA, provocar mudanças no professor e,
consequentemente, na escola. É também nesse sentido que a IA se coloca para além de uma
metodologia de pesquisa ou de ação, pois é compreendida como concepção de intervenção. A
intervenção pressupõe transformação, melhoria da ação, qualificação da formação, das
práticas, da educação, da sociedade.
Essa proposição de alargamento conceitual para a compreensão de IA crítica em
perspectiva, apoiado no referencial da IA, se coloca como dimensão que abarca os processos
constitutivos da docência que passam necessariamente pelo entendimento de que a
investigação da ação é um mecanismo de formação dos professores pautado em processos
reflexivos, ou seja, é investigação-formação-ação (IFA). Alarcão (2010) também sustenta essa
expansão conceitual, por compreender que necessariamente, em educação, os processos
investigativos, de pesquisa da prática docente, formam/constituem o professor.
Esse compromisso da IA com a formação docente pode ser ainda tensionado em duas
dimensões, com as quais a matriz da teoria educacional crítica se detém: a compreensão
retrospectiva e a ação prospectiva. Entre essas duas dimensões intercomplementares está o
contexto ativo da investigação educacional, na perspectiva crítica, pois esta ativação
processual é possível de ocorrer quando o objeto da investigação é a mudança de programas,
currículos, ou seja, a reforma educativa; ocorre o processo de participação engajada, por parte
dos professores.
O desdobramento de programas de reforma, ao mesmo tempo que compromete os
sujeitos que buscam a mudança pela investigação de sua ação, também situa o programa,
desdobra-o em projetos e planos que são desenhados/alinhados/planejados e construídos pelas
espirais autorreflexivas particulares de investigação-ação, sempre olhando para trás para
buscar justificação (reflexão retrospectiva) e para frente para empreender novas ações,
220
perguntas, planejamentos e melhorias (planejamento e reflexão prospectiva), quiçá promover
transformação social (a intervenção).
A IFA implica tanto a intervenção controlada como o pensamento prático dentro da
espiral autorreflexiva, que se coloca como um programa de intervenção ativa, conduzido por
indivíduos comprometidos não só em entenderem o mundo como em modificá-lo, pela via da
reflexão prática e crítica. Nesse sentido, os professores em formação passam de meros
participantes passivos de cursos e capacitações para pesquisadores ativos de suas práticas em
contexto. Essa concretude, pela via coletiva, se dá em rede, numa malha social que é tecida
pelo exame reflexivo das ações educacionais.
Nesse sentido, Carr; Kemmis (1988) afirmam que os professores podem e devem
desenvolver: as teorias educacionais, teorias que o sujeito conheça e sustente conscientemente
como produto de reflexão e não somente de rotina e costume; conhecimento pessoal acerca de
suas práticas, desenvolvido mediante reflexão sistemática sobre a ação por parte do professor
ou participante, e esse processo adquire um código próprio, a autenticidade; o conhecimento
de professor, que pode ser desenvolvido por meio do discurso (diálogo crítico) entre os atores
de comunidades autorreflexivas (no coletivo) que se desenvolve na prática e através dela; uma
ação intencionada, que precisa ser o exercício de um ato - a práxis - ação comprometida e
mediada teoricamente, conhecida e explicitada deliberadamente pelo sujeito participante em
contexto educacional.
Os professores, em contexto de IFA educacional,
não se limitam a expor (falar) suas práticas, mas instituem discursos acerca das
práticas [...] os investigadores ativos chegam a desenvolver suas próprias teorias
educacionais sobre a base do conhecimento pessoal, através de sua expressão na
práxis e para seu desenvolvimento sistemático no discurso de comunidades
autorreflexivas de investigadores ativos (CARR; KEMMIS, 1988, p. 202[tradução
própria]).
O sujeito não desaparece no coletivo, uma vez que o processo de constituição é único
e individual, mas que só decorre no sentido que estamos defendendo, pela via do discurso que
se desenvolve na esfera social, daí coletiva. Deixa, pois, de ser fala do sujeito, para ser
discurso na comunidade autorreflexiva de professores.
Desse modo, compreender [e dialogar] pela via da IFA crítica é também compreender
que a ação educativa é uma ação social, histórica e dependente do elemento participativo e
reflexivo. O processo intencionalmente deve pautar-se pela proposição coletiva e no interesse
da mudança, no entanto não desconsidera o compromisso e comprometimento individual.
Todos os participantes devem participar de todas as fases da IFA, com igual capacidade de
221
intervenção. Por isso, a IFA assume um caráter democrático ao dar voz e vez, propiciando
também formas de participação para todos. A participação colaborativa na investigação deve
ser alicerçada no discurso teórico, prático e político, nesta modalidade de participação incide a
plena investigação-formação-ação educacional crítica. O investigador ativo deve clarificar
seus entendimentos/compreensões com base prévia na interação mediada pelos outros
participantes (CARR; KEMMIS, 1988).
A IA, como ciência educativa crítica, aponta alguns marcos processuais que também a
caracterizam: - favorece um enfoque dialético da racionalidade prática; - utiliza categorias
interpretativas dos professores aplicando-as como base dos marcos linguísticos que esses
professores exploram e desenvolvem para sua própria teorização, favorecendo a teorização
das práticas e a transformação das concepções que norteiam tais práticas; - proporciona um
meio para que os professores superem os autoentendimentos distorcidos mediante a análise de
como suas práticas e entendimentos estão configuradas por condições sociais (ideológicas)
mais amplas; - ao vincular ação e reflexão oferece aos professores meios para compreender
como podem superar aspectos de ordem social que dificultam mudanças racionais em seus
contextos de trabalho que participam desta malha social; - permite demonstrar
que
comunidades autocríticas de investigadores ativos realizem uma forma de organização social
que, na verdade, se determina pela maneira como a mesma se relaciona com a prática e com o
contexto social amplo.
Esses marcos referenciais possibilitam/condicionam a perspectiva formativa da IA;
estes estão apoiados na processualidade que o caráter e o contexto educacional resgatados por
Carr; Kemmis (1988) atribuem à IA, daí podemos também depreender e defender o potencial
defendido por Alarcão (2010) de IFA.
O enfoque dialético que a IA contém implica em descobrir correspondências ou
ausências de correspondências entre entendimentos e práticas nos contextos investigados. A
IA é um processo social de entendimentos cujos significados podem ser compartilhados no
processo social de linguagem, nas situações sociais, o que inclui instituições educativas.
Adota um conceito de verdade e ação como socialmente construídas e englobadas na história,
por conta do caráter social e histórico que os processos vivenciados pelos sujeitos exigem.
A IA subentende um investigador ativo, ou seja, um “ativista deliberado”, nas palavras
de Carr; Kemmis (1988 [tradução própria]), não um investigador interpretativo e, por
conseguinte, passivo. Admite que existem limitações objetivas e subjetivas quanto ao
conhecimento e à ação, e entende que as limitações subjetivas podem ser substituídas ou
222
superadas/transformadas ao longo do processo e, nesse sentido, mudariam seu pensamente e
sua ação.
Também é importante ressaltar a noção de uma comunidade autocrítica e/ou
autorreflexiva que a IA propõe, especialmente no sentido da formação de coletivos de
professores. As comunidades autorreflexivas de investigadores ativos comprometidos com a
melhoria da educação, que são, portanto, investigadores para a educação tornam-se os
coletivos de investigação sobre e para a melhoria de suas práticas, de seus contextos, de suas
realidades.
O enfoque dialético da racionalidade utilizado pelos investigadores ativos
salienta especialmente as relações dialéticas entre pares de termos que comumente
se julgam opostos e mutuamente excludentes: o teórico e o prático, o indivíduo e a
sociedade. A relação dialética entre o indivíduo e a sociedade guarda uma relação
estreita com a relação entre o teórico e o prático, o pensamento e a ação, se
constroem no social e se incorporam no histórico. O pensamento e a ação
individuais adquirem seu sentido e seu significado em um contexto social e
histórico, pois ao mesmo tempo contribuem estes mesmos a formação de contextos
sociais e históricos. Esta dupla dialética da teoria e da prática de um lado; e do
indivíduo e da sociedade de outro se encontra no centro da investigação-ação como
processo participativo e colaborativo de autorreflexão (CARR; KEMMIS, 1988, p.
195 [tradução própria]).
A dimensão teórico-prática é sempre um dilema dos processos formativos. Esse
dilema histórico nos mostra que a relação por vezes é tensionada no sentido teórico e técnico
e outras vezes tornam-se processos eminentemente práticos, desprovidos de teoria. Relativizar
a relação de modo a estabilizá-la parece ser o centro do desafio aos programas de formação de
professores. Nesse sentido, a IA assume e investe que na interação, nos grupos/comunidades
autorreflexivas a relação dialética dessa dimensão vai se resolvendo pelo desenvolvimento da
reflexão sobre e para os contextos.
A crítica que a IA tem recebido, em especial no sentido de que ela não seria um
método confiável de pesquisa, também é motivo de análise dos autores de referência (CARR;
KEMMIS, 1988; CONTRERAS, 1994). Existe uma tendência ao modismo que pode levar
alguns pesquisadores, ou até mesmo alguns processos, a pensar a IA como a simples
resolução de problemas: detectar um problema, planificar e resolver este, ao final observar se
de fato as coisas estão melhores, o que leva à falta de método. Analisar criticamente o método
da IA exige também reconhecer que um problema epistemológico essencial em relação à
espiral autorreflexiva e à investigação-ação está em como relacionar a compreensão,
entendimento e explicação retrospectiva com a ação prospectiva.
Para o pleno desenvolvimento de um processo de IA, exige-se método. Nesse caso, um
método de pesquisa que é social, baseado na ciência educacional crítica e, por isso, um
223
método que propicia a intervenção, à medida que a investigação da ação se desenvolve. O
modelo da espiral autorreflexiva é um modo de planificar essa intervenção para que o
processo da IA possibilite a transformação das práticas nos contextos. O modelo é
reconstrutivo porque subentende nova planificação do processo a cada ciclo, com projeção da
ação e reflexão para a ação porque é prospectivo, e é construtivo e retrospectivo com respeito
à reflexão sobre a ação.
O modelo da IA implica tanto a intervenção controlada como o pensamento prático
dentro da espiral autorreflexiva que se coloca como um programa de intervenção ativa,
conduzido por indivíduos comprometidos, não só em entender o mundo, como em modificálo, pela via da reflexão prática e crítica, pois desejam melhorar/transformar suas práticas.
Alarcão (2010) facilita a compreensão desse processo de reflexão na ação. A pesquisa
da prática é o processo de reflexão intencional e deliberado sobre e para a melhoria da prática;
é na possibilidade de refletir sobre ela que incide o movimento de transformação e melhoria
das práticas pedagógicas; é a intervenção, não abrupta e forçada, uma intervenção que nasce e
serve para própria prática do professor envolvido na IFA.
Alarcão (2010, p. 54) afirma que “a reflexão sobre a ação pressupõe um
distanciamento da ação. Reconstruímos mentalmente a ação para tentar analisá-la
retrospectivamente”. Para que seja possível atingir o nível “formativo e um valor epistêmico”,
é necessária uma “metarreflexão sistematizadora
das aprendizagens ocorridas” daí a
importância das perguntas pedagógicas nos processos de discussão, para imprimir um diálogo
formativo, e a escrita nos diários de bordo, como modo de articular essa metarreflexão sobre o
processo vivencial.
É importante frisar que a qualificação de um processo formativo, tal como tem sido
defendido
como
modelo
neste
texto-tese,
é
dependente
da
mediação
teórica
produzida/dada/vinculada/explicitada, condição sem a qual não é possível a formação de
professores. É nesse sentido, que um grupo de professores em formação, como o GEPECIEM,
através do reconhecimento de seu coletivo que possui/busca/explicita teorias e práticas,
podem realizar sua formação/constituição.
Esse entendimento de que a IFA crítica se modela pela ação refletida, é que se
apresenta, a meu ver, como categoria formativa e desse modo conceitual, permitindo
estabelecer muitas possibilidades para o modelo e processo de formação que defendi ao longo
do texto.
224
Essa perspectiva de IFA que compreende a formação como modalidade que permite o
desenvolvimento processual da IA intermediado pela reflexão (pesquisa) sobre as práticas,
torna-se indispensável, abrindo e expandindo interfaces e contornos para formação de
professores em Ciências.
Acredito que através dessa discussão, baseada na análise do processo e modelo
vivenciado, o desenvolvimento do tema e a expansão conceitual ficam justificados e
alicerçados no campo teórico e empírico, pressupostos inseparáveis e presentes nesse estudo.
BB
Epígrafe para o Capítulo 4, agora vou dormir (01.11.2010, às 6h).
CC
Tenho grande aposta em grupos de estudos e pesquisa, especialmente pelo viés da IFA colaborativa. Os ciclos
formativos, o processo desencadeado que integra formadores, professores de escola e licenciandos tem sido um
campo profícuo para evidenciar minha hipótese, assumindo os contornos que intencionei. A ideia de que o
modelo de processo formativo pela via reflexiva, implicada na IFA, pode facilitar a transformação de práticas e
ser um caminho de enfrentamento ao uso exclusivo do livro didático está sendo corroborada (06.04.2011, às 7h e
30min).
DD
Foi um grande dia, ao final do encontro (último de 2010). Após três experiências lidas do educar pela
pesquisa, que estava num texto do Roque Moraes, a reflexão fluiu. Para minha surpresa, as falas e o contexto do
grupo conduziram a um momento muito esperado por mim: o diálogo (interação verbal) com os licenciandos. Os
professores de Ciências desafiaram os licenciandos a falar e eles não se furtaram. Muitas reflexões se deram,
resgatamos o contexto da transformação das práticas, o papel do grupo na formação inicial, continuada e na
formação dos formadores. Presenciei e participei do diálogo crítico e formativo entre os professores e
formadores acerca da formação inicial, da teoria e prática, bem como sobre o modo como a Universidade pensa e
tem estruturado novos modelos formativos. Esteve em confronto e em disputa o modelo de formação que
adotamos, a prática que estamos efetivando e isso trouxe à tona os grandes desafios que essa nova prática nos
impõe. Professores de Ciências em formação: formadores, licenciandos e professores de escola refletiram acerca
da formação e isto contém implicações em nossa constituição (30.11.2010, às 22h).
EE
A presença da UFFS é um fator que eu posso compreender como importante ao desenvolvimento da área,
especialmente porque temos um Curso de Ciências que formará para o Ensino Fundamental e Médio e as escolas
já demonstram, através de seus agentes, essa compreensão. Desse modo, o campo de pesquisa tende a enriquecer
ainda mais com o tempo, pelo diálogo já estabelecido com as escolas.
FF
Para alguns professores/formadores, compreender que a pesquisa e a extensão são e estão indissociadas em
nosso contexto (o GEPECIEM) parece complicado. Sinto falta de colegas com leitura e entendimento mais
claro do referencial que estamos utilizando. As leituras também têm sido feitas pelos demais formadores, mas
sinto certo distanciamento entre os nossos interesses, entre nossas formações, nossas compreensões. É também
nessas/por essas diferenças que o grupo deverá crescer. Mas recobradas vezes sinto-me sozinho a refletir sobre o
processo. Também fica evidente meu papel nesse sentido, de aproximar a teoria desta prática, de tornar a pauta
de discussão e planejamento sobre a IA mais assídua, de buscar, de pescá-los (18.04.2011, às 10h).
225
EM DÉMARCHE: UMA POSSÍVEL INTERVENÇÃO13
Os livros [didáticos] me acompanham e seguirão comigo um longo percurso;
isso me amedronta e me conforta.
Nesse caminho vou compreendendo, refletindo,
ensinando, pesquisando,
sobretudo, constituindo-me Professor.
Tentar encerrar uma discussão é sempre uma tarefa difícil, mas perguntas têm que ser
respondidas e outras enunciadas. Nesse sentido, me permito olhar para o percurso da tese e
arrisco fazer uma reflexão sobre as possíveis contribuições de minha investigação-formaçãoação, após dar uma volta na espiral que iniciei/vivenciei no percurso dessa pesquisa e que está
planificada na introdução, de modo a olhar para esta volta a fim de compreender o processo e
reafirmar a tese de que o processo formativo, através da reflexão compartilhada, torna-se um
caminho possível à melhoria das práticas de Ensino de Ciências, contribuindo para o
enfrentamento da relação de aprisonamento que o livro didático exerce sobre os professores.
Quanto à relação entre livro didático e professor de Ciências, que tem sido
estabelecida de modo que o segundo seja aprisionado pelo primeiro, acredito que os processos
formativos com base no diálogo interativo, crítico e formativo suscitam outras condições para
o rompimento dessa relação de ordem perversa, ainda muito frequente na prática. Os
professores em formação14, ao tornarem explícitos alguns elementos constitutivos dessa
relação, tais como: o livro didático como parte da aula, que configura currículos e também
dita práticas, compreendem que o uso do livro didático pode ser ressiginificado no contexto
13
Démarche é uma expressão de origem francesa que está conceituada no original de Carr; Kemmis (1988),
como sendo uma razão que põe em movimento o processo de reflexão buscado pela IA, no sentido de, à medida
que se põem em pauta os problemas, o movimento de reflexão e ressignificação na espiral autorreflexiva
possibilita intervenção, ou seja, transformação das práticas.
14
No GEPECIEM, assumimos que todos estão em processo de formação, daí a experessão professores em
formação se aplicar a licenciandos (no sentido de formação inicial) e a professores formadores e professores de
escola básica (no sentido de formação continuada).
226
educacional, especialmente através do processo de formação. Os professores passaram de
“seguidores do livro” para condição de autores de um currículo. Talvez as concepções de
currículo e o tipo de currículo que se autorizaram a produzir não seja o mais indicado na
literatura nem tampouco o mais adequado ao ensino prático e reflexivo que se busca, mas com
certeza foi o currículo possível de se tornar um currículo em ação e que, ao ser assumido,
desencadeou um processo de autonomia nos professores. Isso, a meu ver, é uma proposição
discursiva híbrida e recontextualizada de práticas, de políticas curriculares, diferente da que
pude observar nas entrevistas realizadas antes da implementação do GEPECIEM, como foram
exploradas no capítulo 2.
A implementação do GEPECIEM, através de um processo de formação de professores
de Ciências pela via da investigação-formação-ação, tem sido efetivada, a partir de desejos e
necessidades formativas do grupo, do referencial da área de formação de professores na
perspectiva crítico-reflexiva, do desenvolvimento profissional e da investigação das práticas
para produção/ressiginifcação de conhecimentos constitutivos do ser professor. A efetivação
do grupo parece estender seus contornos a projetos de formação de professores no âmbito
regional; tem grande perspectiva de continuidade a longo prazo; as áreas de Biologia, Física e
Química tendem a se compreender como Ciências da Natureza em caráter interdisciplinar; o
grupo delimitou espaço físico de pesquisa; projetos como o PETCiências, PIBIDCiências,
Programa de Consolidação das Licenciaturas (Prodocência), Programa de Iniciação Científica
da UFFS (PIBICUFFS), Programa e Projeto de Extensão da UFFS sobre Formação de
Professores, têm dado forma e propósito quanto à formação inicial pela iniciação à docência,
à pesquisa e à extensão.
O processo formativo desencadeado demonstra que trabalhei num terreno muito fértil,
e que tende a progredir nesse caminho. Duas professoras, ao se movimentarem nos ciclos
formativos, passaram a ser supervisoras do PIBID (a partir de 2011), sendo que uma delas
estava em interação com bolsista PET previamente e já havia iniciado o processo de pesquisa
de sua prática, através do uso do diário de bordo. Duas das professoras participantes se
incorporaram ao curso de especialização em Educação da UFFS. Mais um professor formador
se desafiou ao doutorado e outra professora formadora acena com a possibilidade de discutir a
educação matemática. Os professores formadores já estão em número de nove, com tendência
à ampliação para onze (a partir de 2012). Os licenciandos no ano de 2011 eram quarenta e
sete e os professores de Ciências e Matemática eram quinze. Devo também registrar que o
sub-grupo 1, que é composto por professoras municipais que se encontram alternadamente ao
227
GEPECIEM para o planejamento das aulas de Ciências e Matemática, com o qual foram
desenvolvidos encontros diferenciados sobre a experimentação no ensino de Ciências e sobre
a escolha dos livros didáticos, tem um papel sumariamente importante no sentido de fazer
com que os demais professores, especialmente os estaduais, estivessem desejando encontrarse para melhor desenvolver suas práticas, a exemplo do subgrupo 1.
Os diálogos, as falas permitem perceber a importância do grupo e acreditar que é
possível modificar concepções, transformar práticas, pois os professores em formação passam
a intervir no grupo e nos processos. Durante o ano de 2011, firmamos entre os participantes o
compromisso de escrita nos diários de bordo, instituídos como instrumentos de reflexão,
como modo de conduzir o exame das práticas. Também desenvolvemos dois encontros
exclusivos de sistematização das práticasGG, em que cada professor formador e professor da
educação básica pôde descrever, apresentar e submeter ao coletivo um relato de experiência,
como forma de impulsionar a investigação-ação nos contextos práticos. Durante o processo, o
diálogo foi muito profícuo no sentido colaborativo, pois, ao serem compartilhadas as
experiências, todos puderam redimensionar suas ações, o que desencadeou reflexão. Uma das
experiências foi reescrita através de autoria compartilhada entre professora da rede básica,
licencianda bolsista e dois professores formadores. O relato foi publicado no Seminário de
Iniciação Científica (SIC) da UNIJUÍ, em 2011, está anexo (ver Anexo C).
O avanço efetivo dos resultados de uma formação dentro do modelo prático depende
de uma transformação na realidade escolar. Urge, nos tempos atuais, especialmente para o
desenvolvimento potencial da IFA, chegar ao contexto escolar, uma escola reflexiva,
supervisores e direção reflexiva, desse modo teremos um ambiente que poderá proporcionar
um ensino crítico e reflexivo ao alunos. Precisamos nos desafiar mais, para ir ao encontro
deles, mas estaremos sempre na dependência destes para avançar, esse talvez seja o maior
desafio. Avançar e progredir em direção da transformação das práticas, mas, como processo, é
tipicamente histórico e cultural, por isso precisamos enfrentá-lo também, como um problema
prático, possível de IFA, de intervenção.
Acredito que uma contribuição significativa para a Educação, na área de formação de
professores, foi a compreensão do modelo e expansão do conceito de IFA a partir da reflexão
como categoria formativa de professores. O outra foi o desafio de fazer a interlocução entre a
perspectiva histórico-cultural e a investigação-ação para possibilitar a produção de novos
sentidos sobre o processo de formação/constituição de professores de Ciências.
228
O modelo de formação de professores que vivenciei/vivenciamos teve/tem como base
a IA crítica, que permitiu o apontamento de dificuldades, limites dos processos, das práticas e
de concepções que foram sendo explicitadas, mas sobretudo apontou possibilidades de
enfrentamento da relação dicotômica entre "quem decide, pensa, teoriza, e é tido como o
intelectual" e
"quem aplica, faz, reproduz", entre "teóricos/especialistas, externos" e
"práticos”. O modelo é aplicável e favorece o desenvolvimento processual da formação de
professores, se desenha no fazer e para a compreensão do fazer/prática docente. Nesse
sentido, o modelo da espiral autorreflexiva assumiu um desenvolvimento próprio que
possibilitou o desencadeamento de ciclos reflexivos. Esses ciclos propiciaram a análise do
processo investigativo que empreendi e pode possibilitar certo controle do processo, o que
facilita o desenvolvimento potencial de competências formativas que grupos desejam buscar
através da IA. Essa delimitação de ciclos é um modo de planificar o conjunto de problemas e
ações que vão sendo desencadeadas nos contextos práticos (formativos), que, a meu ver,
também são inovações que acrescentamos ao modelo da IA. Acredito que no processo
estivemos todos como participantes de um coletivo de professores em formação, implicando
reflexão compartilhada.
Apoiado na análise microgenética e no paradigma indiciário, pude perceber, no
percurso dos movimentos, indícios que evidenciaram o desencadeamento da reflexão
transcorrida no processo de formação/constituição de professores. Defendo, com base na
análise empírica e aprofundamento teórico pormenorizados nos capítulos 3 e 4, se tratar da
reflexão como categoria formativa.
O diálogo formativo, instituído no processo coletivo de formação de professores de
Ciências e instituinte das discussões, é um precursor da reflexão, pois no diálogo entre os
pares surgem questões, as falas são necessárias, forja-se a corresponsabilidade e compromisso
entre os participantes. O grupo assume o discurso no coletivoHH, as falas individuais dão lugar
ao discurso que o diálogo formativo suscita, é formativo porque situa as reflexões dos
integrantes sobre o próprio processo de formação. O grupo é que constitui o contexto, torna-se
espaço e tempo para a formação. Desse modo, no contexto formativo, o grupo assume
gradativamente um estilo próprio, típico, torna-se, pois, uma comunidade autorreflexiva.
A formação inicial pela via da IFA ainda é um ciclo a descobrir e a ser desenvolvido II,
pois, no que se refere ao processo de formação dos licenciandos em Ciências, muito temos a
significar, construir e aprender. O papel dos professores formadores na efetivação do
229
GEPECIEM e de seus propósitos, tais como desenvolver o ensino, a pesquisa e a extensão de
modo indissociado, ainda está sendo articulado.
O diário de bordo mostra-se como instrumento poderoso de reflexão, que viabiliza um
projeto de transformação da práticas. Os diários têm cumprido uma tarefa essencial no
processo de formação de professores de Ciências que estamos implementando e
desenvolvendo. O diário de bordo parece recolher, através das narrativas o que chamo de
estopim da reflexão. Pois, ao narrar suas escolhas, participação no grupo, nas aulas, nas
discussões, o professor reflete sobre e para sua ação. Ele retoma o diálogo formativo do grupo
para si e assim, se apropriando do processo de formação, reflete sobre sua ação, investiga-a.
Nesse movimento de narrar sua formação, ele se constitui professor. O professor, ao fazer
uso do diário, desenvolve a escrita, que potencializa, através da autoria, a autonomia. Acredito
que, no que concerne à IA, os diários de bordo adicionam ao potencial formativo do processo,
dado pelo diálgo formativo, a perspectiva da constituição dos docentes, como um processo de
desenvolvimento profissional, daí IFA. Pela escrita reflexiva, o professor investiga sua
prática, reflete, desenvolve-se. Em 2011, três professores de educação básica, dois professores
formadores e mais de 30 licenciandos já faziam uso do diário de bordo como recurso para sua
investigação-formação-ação.
Quanto aos licenciandos, o papel das narrativas na formação é especialmente
marcante, pois faz com que o hábito de escrever seja desenvolvido desde o início da
formação, bem como a pesquisa sobre a própria prática dá contornos ao perfil do professor a
ser formado. Com tempo, o processo tende a fazer com que a escrita se torne parte de sua
formação/constituição, assumindo a forma desejada: a pesquisa na ação docente.
Em minha formação/constituição como professor pesquisador, posso afirmar que a
escrita reflexiva no diário de bordoJJ tornou-se parte do processo como articuladora de minha
reflexão, cada vez mais presente e necessária, ao passo que ia procedendo à narrativa da
investigação. Os diários de bordo se mostraram, a meu ver, como espaço-tempo de
constituição docente. O desenvolvimento do ciclo que envolve essa dimensão formativa dos
diários de bordo já está em pleno desenvolvimento e uma primeira produção sobre o assunto
está sendo encaminhada.
A natureza do modelo utilizado na formação passo a defender como uma perspectiva
possível de formação. O modelo teórico proposto por autores da área, entre eles os que se
alinham mais à dimensão crítica e formativa da IA, foi reorganizado como um modo de
melhor atender ao desenvolvimento das ações formativas e ao contexto situado,
230
desenvolvendo assim uma IFA. Talvez o próprio contexto brasileiro e regional tenha feito
com que isso ocorresse do modo como foi desenvolvido e talvez esse contexto contenha
outras dimensões, tais como: os sujeitos singulares com os quais trabalhei; o objetivo dessa
tese que pode ter demarcado as intenções formativas a todo tempo. Prefiro acreditar que a
dimensão que fez com que houvesse uma transformação/intervenção, para não dizer perversão
no modelo, tenha sido o próprio referencial, permitindo um rearranjo metodológico do
modelo em questão e foi nessa mesma justaposição entre a metodologia utilizada e a intenção
formativa que ambas se acoplaram na manifestação das contribuições que penso ter proposto
ao longo do texto e dessa conclusão.
Minha espiral autorreflexiva, ao fazer uma volta no ciclo reflexivo, ressiginficou os
problemas iniciais que permanecem, porém noutras dimensões, que já são mais formativas do
que investigativas do ponto da tese. O processo investigativo possibilitou-me transformações
em termos de compreensão teórica e prática, especialmente constituindo-se numa
aprendizagem significativa quanto aos processos que envolvem a formação de professores em
Ciências: ao compreender esse processo, que está em movimento, em démarche, percebo uma
intervenção15 que passo a assumir.
GG
Tantas contribuições no discurso do grupo por certo marcaram positivamente os participantes. Essas tantas
contribuições galgam aos poucos o nível das transformações das práticas. No grupo, o diálogo crítico foi sendo
(re)situado por teorias, outras vivências, ... ( 28.04.2011, às 14h).
HH
A discussão-reflexão que foi sendo desencadeada nos diálogos do discurso do grupo não eram apenas falas.
Situam-se na categoria de sujeitos envolvidos ativamente, situavam contextos vivenciados. Os problemas
aventados pela experiência. A reflexão fez fluir a análise contextualizada das práticas, a teorização destas, a
explicitação de práticas, entre outras situações em que percebi indícios que me permitem afirmar que a reflexão é
um caminho constitutivo da/para formação docente (28.04.2011, às 11h e 30min).
II
Os conflitos, a insegurança e meus medos também se juntam à ousadia e nesse contexto vou apropriando-me
do referencial teórico acerca da IA. Minha reflexão e autocrítica se mostram visíveis e por vezes sinto-me um
ativista/sindicalista da IA. Em meio à reflexão e análise das narrativas, especialmente dos licenciandos, percebo
que o processo nos mostra mais um ciclo reflexivo-formativo que precisa ser acompanhado de perto pelos
professores formadores: a dinâmica reflexiva no contexto da formação inicial.
JJ
Sinto a necessidade de reflexão no diário de bordo afastando-se de mim, enquanto não consigo parar de pensar
na tese. A reflexão atingiu um nível em que, a partir do contexto empírico e das leituras que me permitem ler
esse contexto e compreendê-lo, posso refletir academicamente no texto-tese de modo mais direto. Parece que o
diário vai se tornar um bloco de anotações/de ideias para discussão na tese que serão feitas diretamente no textotese. Talvez eu deixe de fazer uso dele para a tese, para essa investigação, mas não deixará de existir em minha
vida, em minha constituição docente, especialmente como formador.
15
Intervenção assume, neste contexto, não caráter simplista de mudança de concepções ou nas práticas dos
envolvidos, implica pôr em movimento as concepções, o pensamento sobre as práticas, a reflexão como
categoria formativa.
231
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63-80.
240
APÊNDICES
APÊNDICE A: QUESTIONÁRIO DE PESQUISA
QUESTIONÁRIO DE PESQUISA
Este questionário faz parte de uma pesquisa em Ensino de Ciências e tem como
objetivo (re)conhecer os interesses dos participantes do Grupo de Estudos e Pesquisa que
estamos organizando para assim melhor organizarmos as atividades do referido grupo. Além
desse, temos o intuito de progredir em parceria e colaboração na tessitura de atividades
pedagógicas, de pesquisa, de estágios e práticas em caráter permanente que possam estar
permeando interfaces formativas entre os professores da rede pública de Cerro Largo - RS e
licenciandos e professores formadores do Curso de Licenciatura em Ciências, da
Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS.
O presente instrumento também visa
investigar concepções de professores de Ciências do Ensino Fundamental a respeito do
Ensino de Ciências, Currículo, Livro didático e processos de formação do professor de
Ciências, e também faz parte da Pesquisa de Doutoramento do Professor Coordenador da
Pesquisa - Roque Ismael da Costa Güllich, que está desenvolvendo o Projeto: “O ENSINO
DE CIÊNCIAS E O LIVRO DIDÁTICO: INTERFACES DA FORMAÇÃO E DA
DOCÊNCIA NO CONTEXTO DA PRÁTICA”, no âmbito do Curso de Pós-Graduação em
Educação em Ciências – Doutorado da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do
Sul - UNIJUÍ. Desejamos que você participe da pesquisa respondendo o questionário. Desde
já agradeço sua colaboração. MSc. Roque Ismael da costa Güllich – Professor Pesquisador
241
QUESTÕES
e Formação do Professor
Nome: __________________________________________________________
Idade: ____________
Estado civil: ____________
Religião: _______________
Número de filhos: ______
Tempo de Formação na graduação:______________
Formação acadêmica na graduação: ___________________________________
________________________________________________________________
8. Pós-graduação:____________________________________________________
_____________________________________________________________________
___________________________________________________________
9. Tempo de serviço/experiência no magistério em ciências:__________________
10. Número de horas que trabalha: _______________
11. Número de horas em sala de aula:_____________
12. Redes em que trabalha: ____________________________________________
13. Número de Escolas em que trabalha:___________________________________
14. Disciplinas
que
ministra
e
para
quais
níveis
de
escolaridade:______________________________________________________
Sobre currículo e ensino
1. O que é currículo para você?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
2. Como é elaborado o currículo em sua escola?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
3. Quem e o que determina o currículo escolar, na sua opinião?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
4. Na sua opinião, qual papel o livro didático exerce na produção do currículo?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
5. Que metodologias você utiliza para ensinar Ciências no Ensino Fundamental?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
Perfil
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
242
6. Em sua escola tem laboratório de Ciências ou materiais que te permitem trabalhar
práticas e experimentos em ciências? Quais? Como são utilizados?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
7. Você acredita que a experimentação é importante no Ensino de Ciências? Em que
medida? Como pode ser desenvolvida?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
8. Que materiais e recursos didáticos você utiliza para ensinar Ciências?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
Sobre o grupo de estudos
1. O que é um grupo de estudos para você?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
2. Quais suas expectativas, desejos e interesses com relação ao grupo de estudos em
Ensino de Ciências?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
3. Que conteúdos você desejaria ter acesso a atualizações nas áreas de ciências da
natureza: Biologia, Química e Física?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
4. Você está disposto a estudar perspectivas teóricas e metodológicas do ensino de
Ciências? Comente.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
5. Você está disposto a participar de movimentos colaborativos de pesquisa e formação
continuada no ensino de ciências em caráter permanente em conjunto com professores
formadores da UFFS, professores da rede pública de Cerro Largo e Licenciandos da
Universidade?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
243
6. Você deseja relatar alguma ansiedade ou medo em relação a sua participação no
grupo de estudos? Comente.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
Sobre o livro didático e o ensino de ciências
1.
Você utiliza o livro didático no ensino de Ciências? Quais?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________
2. Qual é a importância do Livro didático no Ensino de Ciências?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
3. De que modo você escolhe o livro didático? Com base em que critérios?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
4. No livro didático, você percebe erros e defasagens no conteúdo? De que tipo?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
5. Como o livro didático é escolhido em sua escola?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
6. Você acredita estar preparado para escolha e uso do livro didático? Comente:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
7. Você conhece os critérios de avaliação dos livros didáticos utilizados pelo MEC?
Comente:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
244
8. O PNLEM é a política criada para inserção de livros didáticos gratuitos também no
Ensino Médio, como você vê este fato
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
9. Na sua visão, o livro didático tem influência em sua prática docente? De que tipo?
Descreva.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
10. Quando de sua formação inicial na Licenciatura você teve contato com a discussão
referente a currículo e livro didático? De que modo?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
11. Você acha necessário que a temática do livro didático seja inserida na formação
inicial e continuada de professores? De que modo? Que discussão você acredita que seja
necessária?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
12. Você conhece o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD na íntegra? Já teve
acesso ao documento que descreve a política? Especialmente ao que trata do ensino e dos
livros de Ciências? (critérios, modos de avaliação, escolha, distribuição)
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
13. Você escolhe os livros didáticos em sua escola tendo acesso ao catálogo do MEC
ou ao catálogo das Editoras? Comente.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
14. Você já teve acesso a alguma avaliação de especialistas sobre os livros didáticos
de Ciências disponibilizado pelo MEC para facilitar a escolha do livro? Comente.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
245
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
15. Depois de escolhidos os livros, você sabe quem e como o pedido é remetido ao
MEC? Descreva.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
16. Você já teve sua escolha desrespeitada pelo MEC, ou seja, escolheu um, indicou
mais dois livros didáticos, e aquele que chegou até você não foi nenhum dos três? Comente se
sim, como e quantas vezes? Você sabe o motivo disso ter ocorrido ou tem alguma hipótese
neste sentido?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
17. Você acredita que o livro didático é um método de ensino que torna ou pode tornar
o professor dependente de seus conteúdos e métodos? Comente:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
18. Você acredita que as condições de trabalho, carga horária, bem como salários e
carreira contribuem para adoção e uso excessivo dos livros didáticos no ensino de ciências?
Descreva.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
19. Você acredita que as atividades pedagógicas sugeridas no Livro didático de
Ciências acaba se tornando a própria prática diária do professor? Comente.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________
246
APÊNDICE B: TCLE
Termo N°________/201__.
Data: ____/____/_______.
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Eu,_____________________________________________________________,
RG
ou
CPF_____________________, DECLARO para devidos fins de participação na pesquisa: “O
ENSINO DE CIÊNCIAS E O LIVRO DIDÁTICO: INTERFACES DA FORMAÇÃO E
DA DOCÊNCIA NO CONTEXTO DA PRÁTICA”, na condição de sujeito de pesquisa,
que fui devidamente esclarecido da pesquisa desenvolvida pela Professor Roque Ismael da
Costa Güllich, (fone: (55) 91410758, e-mail: [email protected]) do Curso de
Licenciatura em Ciências: Biologia, Física e Química, da Universidade Federal da Fronteira
Sul – UFFS, bem como doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação nas
Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ,
quanto aos seguintes aspectos:
- objetivos da pesquisa:
a) conhecer a relação entre o professor de ciências e o livro didático e compreender
como ela ocorre a fim de averiguar seu caráter constitutivo da docência;
b) verificar e analisar categorias de pesquisa emergentes nos discursos de professores
de ciências quanto a implicações do livro didático na docência;
c) analisar, particularmente, a categoria professor reflexivo como possibilidade de
enfrentamento da relação entre professor e livro didático na qual o livro adota o
professor no contexto da docência e da formação de professores;
- justificativa e procedimentos que serão utilizados na pesquisa;
- qualquer alteração na metodologia ou uso dos dados serão informados com
antecedência, e para tanto deverá ser solicitado um novo consentimento;
- o pesquisador assume riscos e todo tipo de ônus e encargo decorrente da pesquisa;
247
- garantia de acompanhamento e assistência em todas as fases da pesquisa prestando
informações e primando pela transparência, ética e compromisso com o rigor científico
durante a pesquisa;
- garantia de retirar minhas informações e dados solicitados em qualquer momento da
pesquisa, se vier a desistir da participação mesmo que sem motivo explicitado;
- garantia que o uso das informações prestadas não irão causar maleficência de
qualquer e toda forma ao sujeito da pesquisa;
- garantia de sigilo quanto aos dados confidenciais envolvidos na pesquisa,
assegurando-lhes absoluta privacidade;
- reclamar ou oferecer denúncia junto ao Comitê de Ética em Pesquisa da UNIJUI Rua do Comércio, 3.000 - Prédio da Biblioteca - Caixa Postal 560 - Bairro Universitário Ijuí/RS CEP 98700-000. Fone/fax (55) 3332-0301; email [email protected].
- DECLARO, que após convenientemente esclarecido pelo pesquisador e ter entendido
o que me foi explicado, consinto voluntariamente participar da pesquisa. O presente
documento é assinado em duas vias de igual teor, ficando uma com o sujeito da pesquisa e
outra arquivada com o pesquisador responsável.
Para cada tipo de ação da pesquisa em que você vier a participar, deverá externar o
desejo e o entendimento quanto a participação, marcando um X, nas possibilidades abaixo
listadas.
Tipo de Participação:
(
(
(
(
(
(
(
) Encontros gravados em áudio
) Entrevista individual
) Questionário de pesquisa
) Texto produzido
) Empréstimo de documentos: Planos, Livros, Guias, ...
) Comunicação de dados e estatísticas
) Autorização para anotações acerca do ambiente escolar
__________________________________
Assinatura do Sujeito da Pesquisa
_________________________________
Roque Ismael da Costa Güllich
Pesquisador Resonsável
CPF 721001760-72
248
ANEXOS
ANEXO A: PLANOS DE ESTUDOS 2011 - CIÊNCIAS DO ENSINO FUNDAMENTAL –
7º ano
Estado do Rio Grande do Sul
PREFEITURA MUNICIPAL DE CERRO LARGO
Secretaria Municipal de Educação e Cultura
Rua Cel. Jorge Frantz, 675-Fone: (55)3359 1905 FAX: 3359 2006 CEP: 97900-000
PLANOS DE ESTUDOS
SÉRIE/ ANO:
7º Ano
CARGA HORÁRIA:
COMPETÊNCIA:
DISCIPLINA:
VIGÊNCIA:
Ciências
A partir de 2011
249
Reconhecer a diversidade biológica como indispensável a Vida na Terra e compreender mecanismos
biológicos para explicar cientificamente fenômenos e contextos que envolvam os seres vivos.
TEMAS ESTRUTURANTES:
Características gerais dos seres vivos;
Noções de sistemática e classificação;
Diversidade dos seres vivos: Vírus, Monera, Protista e Fungi: Características gerais, classificação,
estrutura e funções, importância ecológica, doenças humanas correlatadas;
Reino Plantae: algas talófitas, briófitas, pteridófitas, ginmospermas e angiospermas: diversidade,
grupos e classificações, noções evolutivas, estruturas principais e função. Reprodução e evolução.
Conservação de florestas.
Reino Animalia -
filos:poríferos, cnidários, platelmintos, nematelmintos, anelídeos, moluscos,
artrópodes, equinodermos, cordados ( peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos): características
gerais, diversidade de grupos, nomenclatura, principais estruturas e fisiologias.
Morfofisiologia animal comparada e noções de evolução.
250
ANEXO B: RELATO DE EXPERIÊNCIA: O VULCÃO QUE IMPRESSIONOU AS
PROFESSORAS
O VULCÃO QUE IMPRESSIONOU AS PROFESSORAS DE CIÊNCIAS
The vulcan that impressioned Science teachers
Carine Kupske ([email protected])
Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS
Erica do Espírito Santo Hermel ([email protected])
Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS
Roque Ismael da Costa Güllich ([email protected])
Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS
Solange Jaskulski Thomas ([email protected],br)
Escola Estadual de Ensino Fundamental Padre Traezel
Resumo: A realização de atividades de experimentação ainda é um grande desafio para professores da
Educação Básica. Por isso o Curso de Graduação em Ciências: Biologia, Física e química –
Licenciatura da Universidade Federal da Fronteira Sul criou o PETCiências (Programa de Educação
Tutorial), que tem como um de seus objetivos auxiliar os docentes de Ciências do município de Cerro
Largo-RS na elaboração e execução de atividades de experimentação no Ensino Fundamental. Assim,
alunos da 5a série, estudando rochas, sugeriram apresentar um experimento sobre o tema. Então,
construíram um vulcão para demonstrar como ocorria o processo de erupção. Os alunos se
responsabilizaram pelos materiais utilizados (argila, garrafa pet, água mineral, sal amoníaco, pigmento
vermelho, açúcar e vinagre) bem como pela confecção do vulcão. Após o experimento, observou-se
um maior questionamento dos alunos a respeito dos conceitos científicos envolvendo o tema rochas,
estudado anteriormente em sala de aula. A presença dos bolsistas PETCiências têm facilitado o
desenvolvimento da experimentação no ensino de Ciências. A articulação entre a formação continuada
através de grupo de estudos para os professores da rede pública local e a revitalização dos laboratórios
de Ciências nas escolas tem propiciado vivências, pesquisas e reconstruções tendo em vista a melhoria
do Ensino de Ciências.
Palavras-chave: Experimentação, Ensino de Ciências, Prática de Ensino.
Abstract:
The accomplishment of activities of experimentation still is a great challenge for teachers of the Basic
Education. Therefore, the Course of Graduation in Science: Biology, Physics and chemistry Licenciatura of the Federal University of the Border South created the PET Science (Program of
Tutorial Education), that it has as one of its objectives auxiliary the teachers of Science of the city of
Cerro Largo-RS in the elaboration and execution of activities of experimentation in the Basic
Education. Thus, pupils of 5ª grade, studying rocks, they suggested to present an experiment about the
subject. Then, they had constructed a volcano to demonstrate as the eruption process occurred. The
pupils had made responsible for the materials used (clay, bottle pet, mineral, salt ammoniac water, red
pigment, sugar and vinegar) as well as for the confection of the volcano. After the experiment,
observed a bigger questioning of the pupils regarding the scientific concepts involving the subject
rocks, studied previously in classroom. The presence of the PET Science scholarship holders has
facilitated the development of the experimentation without education of Science. The joint enters a
formation continued through group of studies for the professors of the local public net and a
revitalization of the laboratories of Science in the schools has propitiated experiences, sight research
and reconstructions having in an improvement Education of Science.
Keywords: Experimentation, Teaching science, Teaching practice.
Situando o contexto: uma introdução e pressupostos teóricos da prática
251
A formação docente requer competência para a realização de um ensino de qualidade.
Pensando nisso, o Curso de Ciências da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) propôs o
PETCiências (Programa de Educação Tutorial) que visa uma formação docente de melhor qualidade
para os licenciandos da área de Biologia, Física e Quimíca. Uma das atividades desse programa é o
contato do licenciando com a sala de aula, diante disso estes passaram a auxiliar os docentes da
Educação Básica, na disciplina de Ciências, das escolas municipais de Cerro Largo-RS em atividades
de experimentação. Considerando isso é que Marandino; Selles e Ferreira (2009, p.97) afirmam que “o
uso de experimentação nas aulas de Ciências e Biologia tem sido debatido no Brasil a decádas tanto
para ressaltar sua importância quanto para discutir como incorporá-lo de forma mais consistente no
cotidiano da escola.”
Acreditamos que as atividades práticas são de fundamental importância para a formação dos
licenciandos em Ciências, dos alunos de Educação Básica e professores e, por isso, devem ser
realizadas de maneira organizada, uma vez que as atividades práticas tentarão estabelecer um elo entre
a formação teórico-científica e a realidade, ou seja, o cotidiano.
Segundo Marandino; Selles e Ferreira (2009, p.101): “o ensino experimental contribui para a
melhoria do ensino de Ciências na Educação Básica” e é nesse sentido que decorre o desafio de
revitalizar essa modalidade de ensino e os laboratórios de Ciências. Na interação com o cotidiano
escolar o licenciando vivencia um momento para vincular a teoria à prática, possibilitando a aplicação
de conceitos mais elaborados teoricamente em situações práticas-concretas, sendo um processo em
que este tensionamento decorre de modo relativizado, mas ainda assim, é um espaço-tempo de se por a
prova.
Segundo Silva e Zanon (2000, p.134):
as atividades práticas assumem uma importância fundamental na promoção de
aprendizagens em ciências e, por isso, consideramos importante valorizar propostas
alternativas de ensino que demostrem essa potencialidade da experimentação: a de
ajudar os alunos a aprender através do estabelecimento de inter-relações entre os
saberes teóricos e práticos.
Nesse contexto, o objetivo deste relato de experiência é compartilhar ou estabelecer uma troca
com outras pessoas que já vivenciaram algo semelhante ao que vivenciei, além de demonstrar como
atividades experimentais auxiliam tanto discussão acerca da formação dos alunos e professores de
Ciências da Educação Básica, quanto de nós licenciandos do curso de Ciências, visto que ocorre um
compartilhamento de conhecimentos entre todos através do diálogo e das vivências em um contexto
escolar. Rosito (2008, p. 191) afirma que falar em experimentação é sempre discutir as concepções do
professor sobre o que e como ensina, a aprendizagem em Ciências, bem como o “que é ciência”, isso
propicia que sempre tenhamos disitintos significados e modos de conceber/fazer uso da
experimentação.
252
Segundo Silva e Zanon (2000, p.136): “de nada adiantaria realizar atividades práticas em sala
de aula se esta aula não propiciar o momento da discussão teórico-prática que transcende o
conhecimento de nível fenomenológico e os saberes cotidianos dos alunos”. Nesse sentido, esse relato
de experiência foi escrito para explicitar como as concepções e as atividades de experimentação criam
processos de reflexão a respeito das práticas realizadas e de como tais práticas estão inseridas em
nosso cotidiano escolar. Este processo de reflexão é extremamente significativo na formação de todos
os envolvidos: professor de Ciências, licencianda em Ciências e alunos da Educação Básica.
Como tudo aconteceu: sobre a metodologia
Durante algumas semanas nós, bolsistas e voluntários do PETciências, licenciandos do Curso
de Graduação em Ciências: Biologia, Física e Química – Licenciatura da UFFS, desenvolvemos parte
de nosso projeto, que visa o contato do licenciando com a sala de aula, auxiliando os professores da
área de Ciências da Educação Básica do Município de Cerro Largo-RS, no desenvolvimento de aulas
com base na experimentação.
Outro fato importante a ser contextualizado é que tanto professores de Ciências da rede de
Educação Básica, como professores formadores orientadores da UFFS e licenciandos em Ciências
participam do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino de Ciências e Matemática da UFFS
(GEPECIEM). O grupo tem encontros mensais e se coloca como um fórum de educação permanente
para reflexões na área. O trabalho é desenvolvido através de ações conjuntas e colaborativas de ensino,
pesquisa e extensão sendo desenvolvido com base na perspectiva da investigação-ação.
Cada bolsista e voluntário escolheu uma determinada escola onde passaria a auxiliar um
professor de Ciências, uma vez por semana durante um turno. Esta escolha foi realizada de acordo
com a afinidade de cada um em relação às escolas de Educação Básica do município de Cerro LargoRS. Escolhi a Escola Estadual Padre Trezel, porque ao visitar esta escola percebi que ela dentre as
outras escolas visitadas era a que mais precisava do apoio de um membro do PETCiências, visto que
esta escola sequer dispunha de um local adequado para montar um laboratório. Diante desta situação
me senti desafiada a realizar meu trabalho nesta escola.
Nesta escola, acompanhei e auxiliei uma professora de Ciências, que trabalhava com alunos de
5ª e 6ª séries, em suas atividades de experimentação. Saliento que não tive a possibilidade de escolher
um professor, foi a escola que determinou o professor que eu auxiliaria.
Inicialmente, de modo conjunto, desenvolvemos uma aula experimental sobre os fungos, na
qual trabalhamos sobre o tema leveduras. Colocamos água em uma fatia de pão e deixamos por uma
semana, porque desta forma iria se desenvolver no pão um “mofo”, ou seja, as leveduras deveriam
proliferar-se, e desta forma os alunos poderiam ver na prática um dos tipos de fungos existentes.
253
Após a primeira aula de experimentação, senti que os alunos estavam muito entusiasmados
com a idéia de observarem na prática aquilo que eles só haviam estudado de maneira teórica, fiquei até
surpresa com a empolgação e a atenção daqueles alunos.
Durante as aulas teóricas referente ao conteúdo das rochas os alunos da 5ª série propuseram à
professora de Ciências e a mim se eles próprios poderiam buscar algum experimento relacionado às
rochas para trazer em sala de aula e apresentar aos demais colegas e a nós. A professora concordou
com a proposta, então os alunos foram divididos em grupos de acordo com a disponibilidade de tempo
e a afinidade de cada um para desenvolver esta tarefa, que surgiu do contexto.
Na semana seguinte, quando retornei a escola, tive uma enorme surpresa ao ir até a sala de
aula da 5ª série porque os alunos haviam fabricado um pequeno vulcão para demonstrar como ocorria
o processo de erupção (Figura 1). Fiquei sem palavras para descrever o que senti naquele momento,
pois eu estava maravilhada com o que havia visto e também percebi que até a própria professora ficou
impressionada com a criatividade de seus alunos.
Após passar o momento de êxtase, perguntei aos alunos como eles haviam fabricado aquele
vulcão e que materiais haviam utilizado. Eles relataram que para a construção da estrutura do vulcão
haviam utilizado uma garrafa pet de 500 mL, que foi cortada aproximadamente pela metade, e argila
para cobrir o experimento. Para causar o efeito da “erupção” do vulcão, eles utilizaram água mineral
com gás, pigmento vermelho, sal amoníaco, açúcar e vinagre, que provocou um reação química.
Após demonstrarem em classe como funcionava o vulcão fabricado por eles, os alunos
passaram a interrogar a professora sobre diversos conceitos relacionados ao tema rochas: - sobre como
era formada a lava, - porque é que um vulcão entrava em erupção, enfim, sobre o conteúdo
relacionado ao tema, que já havia sido trabalhado de maneira teórica, mas que deixou muitas dúvidas
que só foram esclarecidas no momento da atividade prática.
Quanto a esta percepção, as autoras Silva e Zanon (2000, p.121) relatam que nas ações
práticas o “papel essencial do professor: o de mediador que faz intervenções indispensáveis
aos processos de ensinar-aprender ciências que promovam o conhecimento e as
potencialidades humanas” deve ser perseguido pelos professores a fim de que haja um
desenvolvimento potencial dos sujeitos, a partir do diálogo, do jogo de perguntas e da
participação como sujeitos interativos no processo de ensino seja experimental ou não, que
leve a significação conceitual, mais do que a simples repetição de procedimentos.
254
Figura 1. Imagens de uma aula prática experimental. A) Preparação do vulcão; B) Erupção; e C) Final
do processo. (Fonte: KUPSKE, 2011)
Acredito que uma aula desenvolvida desse modo foi muito proveitosa para os alunos, para a
professora e, igualmente para mim, porque ocorreu uma maior interação entre todos os participantes
em um contexto escolar específico: de ensino de Ciências através da Experimentação. No entanto,
255
cabe ressaltar que a necessária explicitação e discussão da concepção de experimentação como
sinônimo de reprodução/comprovação da teoria deve ser perseguida pelos sujeitos professores, a fim
de que não tenhamos presente apenas essa perspectiva, que conforme Silva e Zanon (2000) se trata de
uma concepção equivocada. Ramos, Antunes e Silva (2010) também alertam para o sentido de
investigar as concepções de experimentação presentes nas práticas docentes no ensino de Ciências, a
bem de compreender o modo como elas expressão também uma visão de Ciência e de conhecimento,
afirmando ainda que de modo geral a concepção de experimentação como ‘sinônimo de reprodução de
teorias’ é muito premente entre professores da área determinando, por vezes um ensino mais
tradicional, calcado na racionalidade técnica.
Olhando para uma prática exitosa e tentando refletir
Através da realização das atividades experimentais nas escolas de Educação Básica do
município de Cerro Largo, tive a oportunidade de refletir sobre como estas atividades de
experimentação interferem no meu modo de agir e pensar como Licencianda em Ciências e dos alunos
e professores da Educação Básica.
A presença do PETciências nas escolas de Educação Básica está promovendo transformações
em todo o contexto escolar, visto que os alunos sentem-se entusiasmados com a ideia de observar na
prática aquilo que eles aprenderam em nível teórico e os professores de Ciências sentem-se instigados
a ir em busca de atividades experimentais, que associadas à teoria, ajudem no aprendizado de
determinados conceitos e fenômenos. E eu licencianda sinto-me entusiasmada com a experiência que
estou vivenciando, por isso me dedico cada vez mais àquela escola em todo seu contexto.
Acredito que esta experiência está sendo muito proveitosa tanto para minha formação, pois
mudei muito minha visão em relação ao ambiente escolar desde que comecei a observar as aulas
práticas, quanto para aquela escola de modo geral, pois alunos a partir das aulas experimentais
demonstraram maior interesse nas aulas e parecem melhorar seu desempenho escolar. Além disso,
inclusive os professores de Ciências perceberam como as aulas práticas auxiliam na dinamização dos
processos de aprendizagem de seus alunos.
Outro efeito que foi perceptível sobre o movimento que a experimentação tem causado no
Ensino de Ciências nos contextos escolares de Cerro Largo – RS é a descrição de práticas pedagógicas
que ocorreu como atividade formativa no GEPECIEM, momento em que pude observar uma
predominância de aulas práticas experimentais entre os professores participantes, sendo que a maior
parte destes tem apoio de bolsistas do PETCiências. As professoras da Educação Básica expressaram
livremente que a presença dos Bolsistas tem (re)articulado o Ensino de Ciências, na via da
Experimentação, e que isso tem implicado em maior reconhecimento da área nas Escolas, bem como
tem causado certa inovação no cotidiano escolar.
256
No contexto escolar em que atuo, pude perceber que outros professores também desejam ter
um licenciando em Ciências que lhes auxilie no desenvolvimento de aulas experimentais, pois eles
perceberam como estas aulas estavam surtindo um bom efeito nas turmas beneficiadas com o
Programa, especialmente em relação à postura dos alunos e sua aprendizagem e cooperação em sala de
aula.
Percebi que a escola está se mobilizando para oferecer melhor estrutura física onde possam ser
desenvolvidas as atividades experimentais, visto que esta escola não dispunha de um local próprio
para localização do Laboratório em Ciências, mas que com muitos esforços coletivos de todo uma
comunidade escolar desde professores, funcionários e eu, licencianda em Ciências, foi possível
improvisar um local, que é anexo à Escola, para ser o laboratório. Cabe ressaltar aqui que a legislação
da Educação Fundamental no Estado do Rio Grande do Sul exige para fins de implantação do Ensino
Fundamental completo a presença de Laboratório de Ciências.
Por meio de atividades experimentais, ocorreu um certo avanço na formação dos alunos, de
mim licencianda e até dos próprios professores, que talvez não ocorresse se não houvesse esta
oportunidade que o PETCiências oferece às Escolas de Cerro Largo –RS, com um processo de
revitalização dos Laboratórios de Ciências e da experimentação nas aulas de Ciências.
Pistas para continuar pensando
Como desenvolver um ensino de Ciências de qualidade sem condições mínimas? Esta talvez
seja a grande pergunta para continuarmos a pensar a partir das experiências que estamos vivenciando.
O desejo em desenvolver um ensino através da Experimentação parece estar evidente nos contextos
que temos observado/vivenciado, porém as condições parecem faltar. Condições tais como: salário do
professor mais justo, estrutura física adequada nas escolas, cumprimento da legislação vigente, tempo
pago para planejamento do professor, programa de formação continuada que possibilite espaço-tempo
de reflexões no contexto do Ensino de Ciências.
É coerente afirmar que o processo vivenciado se deu em meio a uma aprendizagem de saberes
experienciais (TARDIF, 2005) para as professoras envolvidas e em caráter formativo da autonomia,
no que concerne ao diálogo interativo entre os sujeitos e o questionamento, pois isso já indicia que o
trabalho possibilitou um caminho para o desenvolvimento da autonomia dos alunos envolvidos
(FAGUNDES, 2007).
Cabe ser contextualizado que não acreditamos na Experimentação como única via de ensino
para área ou até mesmo como a melhor estratégia. Pensamos a Experimentação como uma
possibilidade de interlocução entre Universidade, Escolas e Ensino de Ciências. Também é importante
destacar que as concepções dos alunos, professora acompanhada e da licencianda em questão carecem
de maior estudo, compreensão e teorização, pois aqui estão apenas explicitadas e com isso se tornam
257
um ponto de partida para uma investigação-ação mais apropriada a ser desencadeada em contexto
situado, a ser feita também levando em conta os conceitos científicos que estão envolvidos nessa
prática de ensino de Ciências. Este movimento reflexivo implica em afirmar que uma das professoras
de Ciências: a licencianda, ao compartilhar essa reflexão, talvez não esteja mais tão impressionada e
sim disposta a compreender melhor o que aconteceu.
Através do eixo Experimentação no Ensino de Ciências, temos adentrado nos espaços
formativos tentando estabelecer vias, dinâmicas e movimentos de mão dupla, interações através de
projetos de extensão, de iniciação a docência, de pesquisas, vivências e contextos formativos de
caráter colaborativo e compartilhado entre professores formadores, professores da Educação Básica e
licenciandos em Ciências.
O GEPECIEM como contexto formativo parece estar sendo um ponto de encontros entre os
sujeitos do Ensino de Ciências e temos a crença de que a longo prazo pode trazer significativas
mudanças no sentido de melhoria da qualidade do ensino e na formação de professores.
Referências:
FAGUNDES, Suzana Margarete Kurzmann. Experimentação nas aulas de Ciências: um meio para a
formação da autonomia? In: GALIAZZI, Maria do C. et all. Construtivismo curricular em rede na
educação em ciências: uma porta de pesquisa na sala de aula. Ijuí, Ed. Unijuí, 2007. p.317-336.
MARANDINO, M.; SELLES, S. E.; FERREIRA, M. S. Ensino de Biologia: Histórias e práticas em
diferentes espaços educativos. São Paulo: CORTEZ, 2009.
RAMOS, Luciana da Silva; ANTUNES, Fabiano; SILVA, Lenice Heloísa de Arruda. Concepções de
professores de Ciências sobre o ensino de Ciências. In: Revista da SBEnBio, Número 03. Outubro
de 2010. p.1666-1674.
ROSITO, Berenice Alvares. O ensino de Ciências e a experimentação. In: MORAES, Roque.
Construtivismo e ensino de ciências: reflexões epistemológicas. 3.ed. Porto Alegre, Ed. EDIPUCRS,
2008. p.195-208.
SILVA, L. H. A. e ZANON, L. B. A experimentação no ensino de ciências. In: SCHNETZLER, R. P.
e ARAGÃO, R. M. R. Ensino de Ciências: Fundamentos e Abordagens. São Paulo,
UNIMEP/CAPES, 2000. p. 120-153.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
258
ANEXO C: RELATO DE EXPERIÊNCIA: (RE) CONHECENDO UMA PRÁTICA
PEDAGÓGICA EM CIÊNCIAS PARA MELHOR COMPREENDÊ-LA
(RE) CONHECENDO UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA EM CIÊNCIAS PARA
MELHOR COMPREENDÊ-LA
Jane Elise Dewes Abdel
Professora de Ciências da Escola Municipal de Ensino Fundamental Padre José Schardong - Cerro Largo, RS,
BR.
Kelly Callegaro
Aluna do Curso de Graduação em Ciências: Biologia, Física e Química – Licenciatura da Universidade Federal
da Fronteira Sul - Campus Cerro Largo e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PETCiências.
Roque Ismael da Costa Güllich
Professor de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado do Curso de Graduação em Ciências: Biologia, Física e
Química – Licenciatura, Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Cerro Largo – RS. Grupo de Estudos e
Pesquisa em Ensino de Ciências e Matemática.
Erica do Espirito Santo Hermel
Professora de Ciências Biológicas do Curso de Graduação em Ciências: Biologia, Física e Química –
Licenciatura, Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Cerro Largo – RS. Grupo de Estudos e Pesquisa
em Ensino de Ciências e Matemática.
RESUMO
Neste relato são apresentadas algumas das perspectivas da prática pedagógica no Ensino de
Ciências que emergiram a partir do relato de uma aula experimental compartilhada por uma
professora da educação básica entre licenciandos e professores formadores que participam do
Grupo de Estudos e Pesquisa no Ensino de Ciências e Matemática – GEPECIEM. A prática
envolvendo o uso de um jogo didático foi realizada com alunos da 6ª série (7º ano) de uma
escola pública do município de Cerro Largo/RS com o tema “Classificação dos Seres Vivos”.
Palavras-chave: Ensino de Ciências, Formação Continuada, Prática Pedagógica, Jogos
didáticos.
INTRODUÇÃO: INICIANDO UM PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO-AÇÃO
Os alunos sempre demonstram certo entusiasmo quanto à realização de práticas em
sala de aula ou laboratório, com isso acredito ser importante relacionar teoria e prática para
um maior êxito na aprendizagem em Ciências. A aula prática sobre classificação dos seres
vivos foi desenvolvida, após uma aula teórica sobre o tema, com o objetivo de compreender a
necessidade do sistema internacional de nomenclatura científica a partir do entendimento de
processos de classificação zoológica, especialmente no que se refere ao modo como estão
organizados os táxons de Reino à Espécie.
A descrição faz referência à narrativa de uma aula prática pinçada do diário de bordo
da professora que ministrou a aula de Ciências que estamos analisando. Esse caderno consiste
num registro escrito a fim de que cada participante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Ensino
de Ciências e Matemática (GEPECIEM) desenvolva descrições e narrativas de observações
259
diárias, reflexões ou quaisquer acontecimentos relacionados com ações empreendidas, em
contexto docente, formativo e de pesquisa.
O GEPECIEM é um grupo de estudos e pesquisa com encontros mensais, vinculado ao
Campus de Cerro Largo da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) sendo constituído
por professores de Ciências e Matemática do Município de Cerro Largo - RS, licenciandos e
professores formadores do Curso de Licenciatura em Ciências da UFFS.
Nesse espaço de interação entre a formação inicial e a continuada, o GEPECIEM traz
consigo uma organização que se baseia na investigação-ação, através da perspectiva da
reflexão crítica em ambiente formativo de estudo e pesquisa em contexto compartilhado e
colaborativo em que todos aprendem e todos ensinam. Ademais, busca teorizar práticas e
refletir acerca dos limites e possibilidades de diferentes teorias e metodologias de ensino,
perseguindo o aperfeiçoamento das categorias de professor reflexivo e pesquisador.
Assim, em um dos encontros realizados pelo grupo, os professores formadores
abordaram a importância da análise das práticas pedagógicas do Ensino de Ciências e
Matemática. Posteriormente, uma professora foi convidada, assim como os outros integrantes,
a relatar aos demais uma de suas práticas realizadas, tendo em vista a discussão investigativa
a fim de melhor compreendê-la e qualificá-la.
Na oportunidade, a professora escolheu apresentar uma aula prática que havia
desenvolvido recentemente sobre a classificação taxonômica dos seres vivos e, durante a sua
colocação, surgiram diversos questionamentos por parte dos membros do grupo e com isso
também o interesse de descrever a experiência no intuito de examinar o transcurso da aula
como modo de refletir no ensino de Ciências, especialmente tentando compreender o valor da
reflexão para melhoria da prática desenvolvida.
Para tanto, nos fortalecemos no referencial descrito por Carr; Kemmis (1988), Schön
(2000), Porlán e Martín (1997), Ibiapina (2008) e Alarcão (2010) para desenvolver o presente
relato-análise.
METODOLOGIA: COMO A AULA PRÁTICA ACONTECEU
O presente relato descreve uma aula prática de Ciências na 6ª série do Ensino
Fundamental sobre a Classificação Taxonômica dos Seres Vivos. Com essa prática acredito
que o aluno desenvolva o conhecimento do termo “classificar”, bem como perceba a
biodiversidade existente em cada reino, numa perspectiva conceitual. Nesse sentido, após a
teoria sobre a importância de classificar (separar em grupos) e relacionar seres vivos de
acordo com certas características fisiológicas e morfológicas, partimos para a prática.
260
Para o desenvolvimento da aula sobre classificação dos seres vivos foram utilizados os
seguintes materiais: papel dupla-face, cola, tesoura, papel contact e figuras de diversos seres
vivos presentes nos cinco reinos. Foram confeccionados, pela professora de Ciências e pela
aluna e bolsista da UFFS/ PET Ciências, cinco conjuntos de jogos com figuras variadas. A
técnica aconteceu no refeitório da escola devido ao amplo espaço das mesas, proporcionando
melhor visualização das figuras e sua manipulação.
Em um primeiro momento, os alunos foram separados em grupos de cinco integrantes.
Cada grupo ficou reunido em volta de uma mesa e recebeu uma caixa contendo um conjunto
de figuras de seres vivos. Em seguida, orientou-se aos alunos que fizessem a distribuição das
figuras sobre a mesa para que todas pudessem ser visualizadas. A solicitação foi de que cada
grupo discutisse uma forma de agrupar as figuras, obedecendo aos critérios conforme suas
próprias observações. Sendo assim, emergiram diversas maneiras de classificação, como, por
exemplo, pela forma do corpo, pela alimentação, pelo habitat, entre outros. Com isso, acredito
que os alunos puderam compreender um pouco do procedimento científico.
Em um segundo momento, partindo da classificação taxonômica biológica
internacional – Reino, Filo, Classe, Ordem, Família, Gênero e Espécie - criada pelo
naturalista sueco Karl von Linné (Lineu), orientou-se os alunos para que buscassem entre os
cinco reinos, apenas o Reino Animal. Após foi possível determinar o Filo, procurando entre
os animais os quais apresentassem coluna vertebral. Na Classe, buscou-se dentro do Filo
todos os que possuíssem glândulas mamárias, para então a partir dessa Classe selecionar os
carnívoros, determinando a Ordem. Dentre todos os carnívoros, foram separados os animais
que constituíam a Família Canídea para posteriormente, com um grupo bem restrito, concluir
com o Gênero e a Espécie, que no exemplo em questão era, respectivamente, Canis familiaris.
REFLETINDO SOBRE A PRÁTICA
A aula foi dinâmica e prazerosa, pois os alunos, além de interagirem, trocaram ideias,
fizeram questionamentos e refletiram sobre a importância de conhecer e registrar as diferentes
espécies de seres vivos existentes na terra. Esta prática além de despertar a curiosidade para o
assunto, também promoveu a interação em grupo e, especialmente, a capacidade de
cooperação, organização e coordenação. Adicionalmente, estimulou a observação e a
pesquisa.
Além de conhecer os diversos tipos de seres vivos existentes na natureza, os alunos
puderam observar e discutir sobre algumas características morfológicas, como, por exemplo,
as glândulas mamárias, os dentes caninos, a presença de pêlos e penas, entre outros; sobre o
261
habitat, o modo de vida, o tipo de alimentação, assim como as inter-relações entre eles.
Também puderam se familiarizar com alguns nomes científicos e conceitos de classificar,
separar, selecionar, agrupar, etc.
Organização dos alunos em grupos, seguido da distribuição dos conjuntos de figuras
dos seres vivos para a discussão referente às formas de agrupá-los, baseados em critérios
prévios, já adquiridos pelo aluno e por fim, orientação para classificar de acordo com critérios
científicos, reduzindo o número de seres, passando por todas as categorias até chegar a uma
espécie. Seguindo esses passos, os alunos puderam compreender como se dá a classificação
taxonômica e identificar os cinco reinos, visto que, expressaram os conhecimentos adquiridos
através de conversas, comentários e principalmente, após a avaliação, na qual se notou um
sensível e significativo progresso dos alunos, ocorrendo aprendizado.
A construção do conhecimento é marcada por múltiplas transformações e exige
profundas reflexões sobre o dia-a-dia do professor (CARR; KEMMIS, 1988) e do aluno na
sala de aula e fora dela. Então, várias vezes senti necessidade de melhorar minhas práticas,
meu modo de agir, de rever meus propósitos e valores, trabalhar em grupos e refletir sobre
minha história de vida pessoal, acadêmica e profissional.
O GEPECIEM/UFFS é um grupo de atualização continuada para professores e
acadêmicos que se preocupa com a formação docente, com momentos significativos de
reflexão sobre ação, aberto a discussão e contribuições, a partir do compartilhamento de
relatos e práticas pedagógicas usuais em Ciências entre os professores participantes.
Diante dessa principal questão e como professora de Ciências participante do grupo,
produzi esse trabalho sobre a Classificação Taxonômica dos Seres Vivos, já vivenciada em
sala de aula com alunos da 6ª série do ensino fundamental e que é um subsídio prático para a
reflexão no grupo. Percebo hoje a importância de refletir sobre minha prática pedagógica e
também que gradativamente ela precisa ser reelaborada e aperfeiçoada a partir de novo
planejamento, nova ação e reflexão.
A vivência desta prática pedagógica atualmente e colocando em prática todo o
conhecimento adquirido nos encontros do GEPECIEM/UFFS me transformou numa
profissional melhor, com mais motivação e maior experiência. Dando ênfase a investigaçãoação da minha prática pedagógica percebi que os alunos mostraram muito mais interesse e
responderam positivamente a avaliação proposta. Aprenderam conceitos, descobriram animais
que ainda não conheciam, diferentes habitats, alimentação e modos de vida.
Superar desafios para mim é um dos indicadores do processo de mudanças e envolve
um constante refletir sobre a ação pedagógica, que me permite reformulá-la se necessária for.
262
A troca e registro de experiências na área de Ensino de Ciências e de Matemática e,
em especial, a prática aqui relatada fez com que os participantes do GEPECIEM se sentissem
mais motivados a compreender como tem sido as suas ações docentes. Diante do relato da
professora, cada integrante do grupo assumiu-se em seu papel de docente ou futuro professor,
contextualizando outros encaminhamentos, bem como aprofundando e espelhando-se nas
práticas lá relatadas e discutidas.
Assim, no momento em que indagações foram feitas sobre o fato de ela ter
desenvolvido a prática didática após o conteúdo, conduziu o grupo a discutir formas
diferenciadas de empregar aquela mesma prática. Desse modo, a atitude colaborativa do
grupo contribui para que a professora estabelecesse um posicionamento flexível em relação à
sua própria vivência, refletisse novamente sobre o seu encaminhamento de aula e colocasse na
pauta do GEPECIEM a lógica que envolve o percurso teoria-prática ou prática-teoria, visto
que ambas constituem uma via de duplo sentido e direção (SILVA e ZANON, 2000).
Quanto à questão do uso de diário de bordo, a experiência de estar narrando às
próprias ações docentes é a princípio difícil, mas com o passar do tempo, se torna uma
atividade prazerosa, contribuindo na qualificação e desenvolvimento profissional, objetivo da
formação continuada (ROSA e SCHNETZLER, 2003). Na medida em que passamos a
escrever de forma contínua, sentimos a necessidade de justificar congruentemente nossas
atitudes, escolhas e a própria forma de organizar e planejar uma determinada atividade
(PORLÁN E MARTÍN, 1997).
TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
As narrativas facilitam o exame das práticas, permitem a apropriação de análises
críticas sobre a ação, e assim, passam a constituir o fazer e o ser docente, uma vez que
retratam os interesses e os desejos formativo-investigativos a respeito das práticas. Sendo
assim, o diário de bordo apresenta influência direta no êxito das práticas, bem como na
própria recriação de práticas pedagógicas (ALARCÃO, 2010).
As observações decorrentes deste relato nos orientam a perceber que a efetiva ação
docente deve ter em vista o desenvolvimento dos educandos e deste modo é necessário um
vínculo coerente entre teoria e prática pedagógica. Para tanto, reconhecemos a importância de
um espaço-tempo privilegiado de formação - o GEPECIEM - para que os professores possam
dialogar e aprender com os colegas de profissão, e então nesse contexto poder gradativamente
ir qualificando suas ações. Ao investigá-las e discuti-las no ambiente que já situamos
263
(formativo) o professor vai se apropriando de referenciais, apoiando-se nos percursos dos
demais e revisitando constantemente suas próprias práticas.
REFERÊNCIAS
ALARCÃO, Isabel. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. 7. ed. São Paulo: Cortez,
2010.
CARR, Wilfred; KEMMIS, Stephen. Teoria crítica de la enseñanza: investigación-acción en
la formación del profesorado. Barcelona: Martinez Roca, 1988.
IBIAPINA, Ivana Maria Lopes de Melo. Pesquisa colaborativa: investigação, formação e
produção de conhecimentos. Brasília: Líber Livro Editora, 2008.
PORLÁN, Rafael; MARTÍN, José. El diario del profesor: um recurso para investigación em
el aula. Díada: Sevilla, 1997.
SCHÖN, Donald. Tradução de Roberto Cataldo Costa. Educando o profissional reflexivo: um
novo design para o ensino e aprendizagem. Porto Alegre: Atmed, 2000.
ROSA, Maria Inês Petrucci. SCHNETZLER, Roseli. Pacheco. A investigação-ação na
formação continuada de professores de Ciências. Ciência & Educação. v. 9, n. 1, p. 27-39,
2003.
SILVA, Leonice Heloísa de Arruda; ZANON, Lenir Basso. A experimentação no ensino de
ciências. In: SCHNETZLER, Roseli Pacheco; ARAGÃO, Rosália Maria Ribeiro de. Ensino
de Ciências: fundamentos e abordagens. Piracicaba: CAPES/UNIMEP, 2000. p. 120-153.
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Roque da Costa Güllich - Biblioteca Digital da UNIJUÍ