CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ
FACULDADE CEARENSE
CURSO DE BACHAREL EM SERVIÇO SOCIAL
TÁCILA CONSUÊLO DA SILVA SOUSA
MULHER E A CRIMINALIDADE: UM ESTUDO DE CASO DE LÍGIA DOS ANJOS
FORTALEZA
2014
TÁCILA CONSUÊLO DA SILVA SOUSA
MULHER E A CRIMINALIDADE: UM ESTUDO DE CASO DE LÍGIA DOS ANJOS
Monografia submetida à aprovação do Curso de
Serviço Social do Centro de Ensino Superior do
Ceará Faculdade Cearense - FaC, como requisito
parcial para obtenção do grau de bacharel.
Orientadora: Profa. Dra. Raquel Célia Silva de
Vasconcelos.
FORTALEZA
2014
TÁCILA CONSUÊLO DA SILVA SOUSA
MULHER E A CRIMINALIDADE: UM ESTUDO DE CASO DE LÍGIA DOS ANJOS
Monografia apresentada como pré-requisito para
obtenção do título de Bacharelado em Serviço
Social, outorgado pela Faculdade Cearense – FaC,
tendo sido aprovada pela banca examinadora
composta pelos professores.
Data de aprovação: ____/ ____/____
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Professora Dra. Raquel Célia Silva de Vasconcelos
(Orientadora)
___________________________________________________________
Professora Ms. Priscila Nottingham de Lima
(1ª examinadora)
____________________________________________________________
Professora Ms. Monalisa Soares Lopes.
(2ª examinador)
Aos meus pais, Marcos e Solange, que me deram a vida e
me ensinaram a vivê-la com dignidade e com
compromisso, doaram-se inteiros e renunciaram aos seus
sonhos para que os filhos pudessem realizá-los. Eles que
sempre seguraram em minha mão, fazendo-me acreditar
que sou capaz, resultado de um amor incondicional,
possibilitando-me trilhar o caminho até aqui. Por tudo isso
não bastaria um obrigado, assim, dedico essa conquista
com amor infinito, foi para vocês e por vocês!
AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar а Deus que sempre esteve presente em minha vida me
iluminando por todo caminho percorrido. Sua mão me sustentou e em sua bondade infinita me
agraciou com sabedoria, me fortalecendo nessa importante tarefa, sem sua ajuda nada seria
possível. A Ele toda honra, glória e poder para todo sempre!
Аоs meu pai Marcos que foi fundamental para a conquista desse sonho, seu amor
incondicional, companheirismo e otimismo me incentivando todos os dias sem dúvida me
trouxeram até este momento. Pai é impossível mensurar toda minha gratidão. A palavra
obrigada não traduz o que há em meu coração, me faltam às palavras para te agradecer. Te
amo!
A minha mãe Solange que com amor e dedicação me mostrou como o mundo realmente é, me
possibilitando escolher o melhor, me orientando sempre no caminho correto e fazendo de
mim a pessoa que sou hoje. Mãe agradeço por seu cuidado constante não medindo esforços
para queеu concluísse esta etapa da minha vida. Minha maior motivação foi seu amor. Te
amo!
Ao meu irmão, Matheus, que é também meu grande amigo, como sempre digo você é minha
paixão. Obrigada por me arrancar sorrisos nos momentos que a angústia e o cansaço insistiam
em prevalecer. Te amo!
A minha querida tia Lila, que com muito amor sempre me incentivou, os momentos divididos
com você nessa etapa foram essenciais. Obrigada por sua compreensão. Amo você!
Ao meu amor, amigo, companheiro e namorado, Danilo Santos, que teve paciência e me
incentivou com palavras e gestos de apoio e carinho sincero. Você é um presente de Deus.
Agradeço também a um casal muito querido, Jaqueline e Leandro, pois a amizade de vocês
também tem imensurável importância na realização desse sonho.
Aos professores companheiros de caminhada ao longo desse curso, em especial professora
Verbena Sandy, Priscila Notthingam, Márcia Mourão, Talitta Vasconcelos, Cristiane Porfírio,
Sandra Lima, Flaubênia Girão e os professores Alexandre Carneiro, Mário Castro e Daniel
Rogers. A minha formação, inclusive pessoal, não teria sido a mesma sem o conhecimento e
amizade de vocês.
A professora Doutora Raquel Vasconcelos, pela paciência durante a orientação е pelo
incentivo, foi fundamental sua ajuda e sem ela não seria possível а conclusão deste trabalho.
A banca examinadora. Agradeço a professora Mestra Priscila Notthingam que com muita
atenção aceitou o convite e me alegrou imensamente em fazer parte desse momento especial.
Agradeço a professora Mestra Monalisa Soares Lopes que com sua competência contribuiu
ricamente nesse momento marcante. É uma honra ter a presença de vocês.
Аоs companheiros que ao longo desses quatro anos tornaram as noites de aula mais leves
diante o cansaço do dia a dia. Em especial Rotseana Bezerra que dividiu mais que trabalhos
acadêmicos, minha amiga você soube se fazer mais que essencial na minha vida; Alinda
Oliveira, através de sua amizade meus sorrisos se tornaram mais frequentes, obrigada por
fazer parte desse momento; Raquel Abreu, os dias divididos com você foram planejados
cuidadosamente por Deus; Cláudia Mendes, carinhosamente Claudinha, obrigada pelos
momentos divididos, você se eternizou na minha história, afinal temos uma dia em comum;
Erivaldo Diniz, meu querido você também faz parte dessa história, os momentos que
dividimos são preciosos; Tatianny Santos, Paulla Sousa, Sheila Pereira, Giovanna Souza,
Luciana Kelly, Nádia Maria, Auricélia Silva, Ana Lúcia, PaullaFahd, Sarah Alencar... Um
muito obrigada não traduz o quanto agradeço a sincera amizade compartilhada. A todos vocês
desejo sucesso nessa nova jornada.
"Quem não se movimenta, não sente as correntes
que o prendem”. Rosa Luxemburgo
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo geral analisar as influências e as motivações que
colocam a mulher no crime, e por seguinte em conflito com a lei, visando verificar no Código
Penal Brasileiro se a mulher criminosa dentro do presídio feminino e em regime semiaberto é
assistida em sua complexidade no que diz respeito ao seu envolvimento no crime. Para isso,
os objetivos específicos são: verificar a condição da mulher no sistema penitenciário; analisar
a efetividade da Legislação Penal pontuando as condições diferenciadas entre o homem e a
mulher encarcerados a partir das vivências de Lígia; sugerir como o Serviço Social pode
trabalhar junto a Lígia no sentido de fazê-la ressignificar sua vida longe do presídio e da
atividade ligada ao tráfico. A pesquisa demonstra as principais motivações que induzem o
sexo feminino na criminalidade e a relação desta com o sistema penitenciário. Tratar-se de um
estudo de caso e de pesquisa documental, bibliográfica e exploratória. Para coleta de dados foi
utilizada entrevista semi-estruturada com Lígia (uma mulher de 32 anos, semi-analfabeta e
mãe de duas meninas e um menino) em que relata os crimes cometidos e a violência
vivenciada na prisão. A fala da pesquisada revela sua vivencia e as dificuldades no cárcere,
desvelando as relações de poder como manifestação de controle interna à instituição e de
manutenção da vida entre as presas. Algumas características desse gênero são discutidas na
perspectiva das políticas públicas que atendam as especificidades da população carcerária
feminina. Considerações dos direitos humanos e do Código Penal Brasileiro também
contribuíram na elaboração do trabalho como forma de evidenciar os direitos das mulheres em
conflito com a Lei. Por fim considerações acerca do posicionamento do Serviço Social e
atuação das/os assistentes sociais contribuindo para ressignificação da vida dentro e fora do
presídio.
Palavras-chave: Mulher. Gênero. Sistema Prisional. Criminalidade.
ABSTRACT
This work has as main objective to analyze the influences and motivations that place women
in crime, and by following in conflict with the law , to verify the Brazilian Penal Code if the
criminal woman in the women's prison and in semi-open regime is assisted in its complexity
with respect to their involvement in the crime. And for this, the specific objectives are: to
check the status of women in the prison system, with reference to the report of Lígia; analyze
the effectiveness of the Criminal Law pointing out the different conditions between the man
and the woman imprisoned from the experiences of Lígia; suggest how social work can work
together to Lígia in order to make her reframe his life away from prison and activity linked to
trafficking. Research shows the main reasons that induce females in crime and its relationship
with the prison system. Treat yourself to a case study and documentary research, literature
and exploratory. For data collection was used semi -structured interview with Lígia (a woman
of 32 years, semi- illiterate and mother of two girls and a boy) in reporting the crimes
committed and the violence experienced in prison. The speech of the studied reveals his
experiences and difficulties in prison, revealing the power relations and internal control
manifestation the establishment and maintenance of life among the prey. Some female
characteristics are discussed from the perspective of public policies that address the specifics
of the female prison population. Considerations of human rights and the Brazilian Penal Code
also contributed to the elaboration of the work as a way to highlight women's rights in conflict
with the law. Finally the considerations of social work position and performance of the social
workers contributing to reframe life in and out of prison.
Keywords: Women. Genre. Prison System. Crime.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ART - Artigo
APAC - Associação de Proteção e Amigos do Cárcere
CISPE – Coordenadoria de Inclusão Social do Preso e Egresso
CF - Constituição Federal
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social
CNPCP - Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
CRESS – Conselho Regional de Serviço Social
CNPCP - Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
CP - Código Penal
CPB - Código Penal Brasileiro
CPPL I - Casa de Privação Provisória de Liberdade
CTC - Comissão Técnica de Classificação
DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional
Ed - Edição
INFOPEN – Informações Penitenciárias
IPPS - Instituto Penal Paulo Sarasate
IPFDAMC – Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa
LEP - Lei de Execução Penal
OMS - Organização Mundial de Saúde
ONU – Organização das Nações Unidas
PEP – Projeto Ético Político
SEJUS - Secretaria de Justiça do Estado do Ceará
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 12
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...................................................................... 17
2.1 Apresentando o caso.................................................................................................... 20
2.2 O flagrante e a prisão de Lígia .................................................................................... 21
2.3 A vida na prisão e os tipos de violências sofridos no sistema prisional ..................... 23
3 A MANIFESTAÇÃO DA CRIMINALIDADE FEMININA COMO UMA
RESULTANTE DAS DIFICULDADES ECONÔMICAS E AFETIVAS .......................... 27
3.1 A condição da mulher no presídio feminino e a Lei de Execução Penal para mulheres
encarceradas ...................................................................................................................... 33
3.2 O cenário do cárcere .................................................................................................... 40
3.3 As mulheres presas e processos de discriminação ...................................................... 42
4 O SERVIÇO SOCIAL E A RESSIGNIFICAÇÃO PROFISSIONAL .............................. 44
4.1 Trabalho do assistente social e suas intervenções ....................................................... 47
4.2 Perspectivas de Lígia para uma nova vida .................................................................. 51
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 54
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 57
APÊNDICE A ....................................................................................................................... 60
12
1 INTRODUÇÃO
Atualmente no Brasil a atuação de mulheres no mundo do crime tem se revelado comum,
diversos fatores e influências tornaram habitual a condição de mulheres em presídios, e assim
a problemática da criminalidade vem ultrapassando as fronteiras de gênero. Porém as
mulheres que praticam crimes continuam invisíveis e ocultas dentro de uma sociedade que
tende a recriminar e negar a mulher.
A criminalidade é um tema complexo e incluir a mulher nesse cenário exige
reflexão profunda em busca de compreensão das motivações e/ou influências que a
conduziram a esse caminho. Portanto, a participação da mulher em delitos configura-se uma
pratica utilizada desde os tempos antigos que se transforma conforme o contexto histórico e
cultural. Na pratica delituosa, as mulheres, de classe econômica, de faixa etária e escolaridade
diferenciada, têm se destacado de forma a elevar os percentuais da participação feminina nas
estatísticas criminosas. Entretanto, em razão da rápida e acentuada inserção da mulher na
pratica delituosa os números são alarmantes e se expressam em percentuais antes não
atribuídos a elas,segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen),
compilados em relatório do Instituto Avanço Brasil, o número de presas passou de 10.112 no
ano 2000 para 35.039 em 2012. Visto que os crimes cometidos pelas mulheres ainda estão
fora de discussões expressivas na sociedade, evidenciá-lo no cenário das discussões viabiliza
esclarecimentos a temática uma vez que é relevante a busca por fatores que proporcionam a
inserção da mulher nesse contexto.
A evolução da mulher na pratica criminal, sobretudo no tráfico de drogas, roubos,
furtos e homicídios, deve ser analisada rigorosamente. A população carcerária feminina
cresceu em números consideráveis e preocupantes. Este aumento de mulheres recolhidas ao
sistema prisional se deu por elevado número de condenações por posse, uso e tráfico de
drogas, mas, não sendo esse o único delito praticado. O perfil e os delitos se
metamorfosearam, como exemplo sequestros e extorsões, pois para tais crimes não existiam
sentenças condenatórias femininas recorrentes. Contudo, as sentenças referentes a estes
crimes são habituais atualmente. A metamorfose ocorrida no cenário criminal revela que no
total de 70 % (setenta por cento) das mulheres em regime penal estão ligadas ao tráfico de
drogas, fato que contraria dados verificados no passado, onde apenas crimes ligados a fatores
emocionais, passionais e políticos estavam atribuídos as mulheres. Ao analisar as punições em
juízo, percebe-se que há duas décadas, por exemplo, não era recorrente ver um traficante no
13
tribunal em julgamento, no entanto, hoje é mais rotineira essa atividade no sistema judiciário
brasileiro.
A criminologia vem buscando, através de estudos, explicações para o aumento de
mulheres envolvidas com o crime e os delitos. É a partir da década de 1960 que são
elaboradas teorias que discutem acerca do sistema criminal feminino, mas foi principalmente
na década de 1970 e 1980, que a criminologia feminista ofereceu novas análises sobre o tema.
Portanto, a pesquisa, acerca de crimes que envolvem mulheres torna-se complexa, uma vez
que a literatura sobre o tema da criminalidade está mais relacionada à prática criminosa do
homem. O número de crimes cometidos por homens é bem maior que o número cometidos
por mulheres, dificultando, assim, uma análise mais minuciosa do tema aqui proposto. As
estatísticas acerca da criminalidade feminina, de modo geral, trabalham com bases em dados
poucos reveladores da real dimensão desse fenômeno, isso dificulta mensurar e traduzir os
fatos que permeiam o cenário do crime que envolve mulheres.
Assim, as mudanças dos valores, que impõem novos hábitos à sociedade
contemporânea, trouxeram uma ressignificação às relações de gêneros, pois à medida que a
mulher precisou se autoafirmar no novo contexto social favoreceu sua inserção na prática
criminal. Ao longo do tempo surgiram diversas teorias na tentativa de explicar o fenômeno,
analisando um conjunto de aspectos, como o sociológico, o político e o jurídico, a partir dos
quais se possibilitou ter diversas visões sobre o assunto.
Entretanto, desconsiderando as questões sociais, econômicas e culturais no que
diz respeito aos arquétipos dirigidos a mulher, alguns estudiosos, como exemplo, apresentam
a mulher com menos tendência ao crime uma vez que a mesma sempre fora subjugada ao
homem e vista com um ser não evoluído em relação à figura masculina. Isto explicaria sua
baixa atuação no crime pela ótica de uma personalidade feminina, submissa, passiva e
educada a cuidar. Na teoria a mulher estaria sujeita a praticar um crime quando influenciada
por fenômenos como menopausa, período menstrual, puberdade ou parto. A condição da
mulher, como protagonista no crime, é marcada por interferências de estereótipos e préconceitos do senso comum da sociedade. Nesse sentido, compreender o drama vivenciado por
uma mulher criminosa me possibilitou uma reflexão acerca do que discutir em minha
monografia.
Portanto, o interesse pelo tema se deu ao ouvir um relato de uma mulher de 32
anos, mãe de três filhos que cumpre pena no regime semiaberto, através do qual a mesma
14
relatava suas dificuldades diárias no tocante ao desemprego, educação dos filhos e sua
participação no mundo do crime. Trata-se de um caso real que, no primeiro momento, não
tinha me despertado o interesse em elaborar um estudo acerca do caso Lígia 1. Mas minha
percepção, após meu ingresso no Curso de Serviço Social, mudou e possibilitou-me ter mais
clareza de fenômenos, um exemplo o caso Lígia, que levam a mulher ao mundo do crime.
Assim, entender como as mulheres, envolvidas nesse contexto, administram suas vidas dentro
da prisão diante das inúmeras violências a que são submetidas me instigaram a elaborar um
estudo sobre o referido caso, sobretudo no tocante as perspectivas de Lígia após a liberdade.
Nesse sentido, fiquei me indagando como a sociedade, as políticas públicas e os órgãos da
justiça contribuem para solucionar e estabelecer mediações para reverter à situação de Lígia
para que a mesma não retorne ao mundo do crime.
Nessa perspectiva, é relevante questionar porque a mulher, vista como inferior e
símbolo de subordinação ao homem, adentra o cenário criminal e carcerário? Quais são os
destinos dessas mulheres? Onde podemos encontrá-las? Em geral podemos encontrá-las na
prisão. As justificativas de estarem em regime fechado apontam a opressão que sofrem diante
de um padrão social estabelecido como principal motivação para os delitos. Entretanto, a
mulher se rebela demonstrando à sociedade que ela também se enquadra a outro tipo de
comportamento. Outro aspecto que justifica esta pesquisa é o fato do número de teorias que
delineiam a mulher sendo punida porque é agressora e isso é inadmissível de acordo com
arquétipos estabelecidos para ela. Contudo, o núcleo de dados estatísticos do Departamento
Penitenciário Nacional (2012), relata que o crime de maior envolvimento da mulher é o
tráfico de drogas, e não seu perfil de homicida, isto por conta dos fatores sociais e econômicos
que podem influenciá-la a venda de drogas ilícitas.
Ademais, a minha inserção no Curso de Serviços Social me proporcionou grandes
e qualitativas mudanças na forma de lançar um olhar nos fenômenos sociocultural e
econômico, possibilitando-me perceber e pensar, de modo diferente, acerca da condição
feminina numa sociedade em que impera o machismo 2 e a misoginia 3 como elementos
resultantes de um paradigma sociocultural patriarca e conservador. O dicionário Aurélio em
sua quinta ediçãoexplica que o machismo é uma ação ou modos de macho ('ser humano',
'valentão'); macheza; e a misoginia é o ato de ter ódio ou aversão às mulheres, ou seja,
15
comportamento que tende a negar à mulher a extensão de prerrogativas ou direitos do homem.
Contudo, o conteúdo da grade curricular do curso não foi suficiente para me pôr frente a
frente com as desigualdades enfrentadas pelas mulheres que estão no crime, seja na pratica ou
em cumprimento de pena, no regime semiaberto.
Neste aspecto, o assunto pesquisado tem significativa relevância para a sociedade
uma vez que a pratica do crime pelas mulheres tem sua complexidade e exige um aparato
legal diferenciado. Pois, do ponto de vista científico, um fenômeno como esse não pode ser
compreendido apenas como um inventário de dados isolados conectados por uma explicação
teórica, mas é preciso que a teoria responda e corresponda à realidade. Nesse sentido, o objeto
de estudo, em específico a mulher no crime, é analisado a partir das questões conjunturais e
estruturais, na percepção de que a mulher tem se inserido na criminalidade em proporções não
pensadas anteriormente. Sua inserção é gestada por desigualdades que não podem ser
dissociadas dos fatores econômicos, políticos e, sobretudo, da questão social que contribui
diretamente com a pobreza e o desemprego e a perda da dignidade.
Neste contexto, é preciso ser colocado parâmetros no tocante à produtividade da
mulher. Caso contrário, como iriam viver a maioria que não podem produzir renda pelo
emprego ou trabalho? Diante dessa reflexão, levo-me a indagar se a não inserção da mulher
no sistema produtivo está contribuindo para a crescente inserção da mulher no crime. Então, a
prática delituosa seria uma estratégia de sobrevivência das mulheres chefes de família? O
crime seria a solução para sua baixa condição de sobrevivência?
Como já esclarecido anteriormente a importância deste debate e desta reflexão se
propõe a oferecer uma contribuição no entendimento do crescente envolvimento da mulher no
crime. Para isso, este estudo tem como objetivo geral analisar as influências e as motivações
que colocam a mulher no crime, e por seguinte em conflito com a lei, visando verificar no
Código Penal Brasileiro se a mulher criminosa dentro do presídio feminino e em regime
semiaberto é assistida em sua complexidade no que diz respeito ao seu envolvimento no
crime. E para isso, os objetivos específicos são: verificar a condição da mulher no sistema
penitenciário, tendo como referência o relato de Lígia; analisar a efetividade da Legislação
Penal (LEP), pontuando as condições da mulher encarcerada a partir das vivências de Lígia
dentro do presídio feminino; Pontuar o trabalho do Serviço Social junto a Lígia em seus
conflitos dentro do presídio. Neste sentido, são discutidos alguns conceitos fundamentais
como mulher, gênero, sistema prisional e criminalidade.
16
Para uma melhor compreensão do presente trabalho, o mesmo está estruturado em
quatro partes que tratam da mulher em conflito com a Lei.
Portanto, a segunda parte detalha a metodologia utilizada para a realização do
estudo. A terceira parte intitulada, “A manifestação da criminalidade feminina como uma
resultante das dificuldades econômicas e afetivas”discute a condição da mulher de
dependência econômica e afetiva que a colocam no percurso do crime.
A quarta parte, denominada “O Serviço Social e a ressignificação profissional”,
traz uma contextualização histórica do Serviço Social, de sua contribuição na inserção de
Lígia no mercado de trabalho. E completando o estudo as considerações finais.
17
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Poucos cenários são tensos, intensos e férteis quanto universo criminal. Para
compreendê-lo na perspectiva feminina esclarecendo as motivações, as influências e a lógica
do funcionamento do crime que envolve a mulher é um desafio. Questionamentos acerca da
finalidade da pena privativa de liberdade como pratica social também é uma reflexão
necessária. De acordo com Bourdieu (2001), [...] “constituir um objeto cientifico é, antes de
qualquer coisa e, sobretudo, romper com o senso comum, com representações partilhadas por
todos.” Tendo como referência esse entendimento, estudar a inserção da mulher no crime
exige um olhar que supere a superficialidade deste problema, sendo necessário analisá-lo sob
o ponto de vista das relações de gênero e suas repercussões sobre o meio social.
Na busca por apreensão de fatos em sua essência, conforme alerta Bourdieu
(2001), muitas vezes, nos deparamos com alguns desafios que exigem de nós uma maior
cautela. Desvendar a realidade, as situações da vida cotidiana, em sua complexidade e
múltiplas manifestações, apresenta-se como uma tarefa árdua e requer uma metodologia que
torne possível a apreensão do fato a ser investigado.
Certa vez, em meio a livros diversos, ao realizar uma leitura encontrei uma frase
que muito me chamou atenção e que me fez pensar melhor sobre minha aproximação com o
meu tema de estudo. Tal frase dizia: “na verdade, a história de vida de cada pessoa encontrase com fenômenos a ela exteriores, fenômeno denominado sincronicidade, e que permite
afirmar: ninguém escolhe seu tema de pesquisa, é escolhido por ele.”(SAFFIOTI, 2004, p.
43). Desse modo,
O pesquisador integra-se ao conhecimento, interpretando os fenômenos para melhor
aproximar-se da sua essencialidade. O objeto jamais será um elemento inerte e
neutro, senão primordialmente qualitativo. A realidade social é, em si, o próprio
dinamismo da vida individual e coletiva com toda a abundância de significados dela
transbordante. A pesquisa deverá ser sempre, antes a possibilidade de um
diálogocrítico e criativo com a realidade e tem seu melhor desfecho na elaboração
do pensamento e na capacidade de intervenção. (OSTERNE,2001, p. 23)
A afirmação da autora esclarece e reforça o quanto nossa realidade dialoga com
nossa conduta durante a pesquisa, colocando a realidade social do pesquisador e o dinamismo
que se dá no percurso da pesquisa.
18
Atualmente no Brasil a atuação da mulher no mundo do crime tem se revelado
comum, diversos fatores e influências tornaram habitual a condição de mulheres em presídios,
casas de custodia e albergados e assim a problemática da criminalidade vem ultrapassando as
fronteiras de gênero. Porém as mulheres que praticam crimes continuam invisíveis e ocultas
dentro de uma sociedade que tende a recriminar e negar a mulher. Criminalidade é um tema
complexo e inserir a mulher nesse cenário exige reflexão profunda em busca de compreensão
das motivações que a conduziram a esse caminho. Assim este estudo de caso busca desvelar
as reais motivações e as influências que a mulher sofre em seu percurso até chegar
efetivamente ao crime. Para alcançar as respostas procuradas fielmente nesse estudo foi
necessário construir metodologicamente um caminho, onde a pesquisada se sentisse a vontade
para contribuir.
As temáticas relacionadas à mulher e o crime são passíveis de grandes debates,
este estudo se propõe a oferecer uma contribuição no entendimento dos fatores que permite o
crescente envolvimento da mulher no cenário criminal, ultrapassando o senso comum através
do referencial teórico e metodologia adotada, utilizando a abordagem qualitativa,
investigando o fenômeno no contexto cultural, social e histórico no qual o mesmo se
reproduz. O trabalho de campo foi desenvolvido mediante uma pesquisa qualitativa, de
formaexploratória, utilizando a entrevista semi-estruturada como técnica de coleta de dados,
os quais foram transcritos. O método utilizado foi o qualitativo que segundo Neves (1996,
p.1) favorece o fato de o pesquisador estar mais preocupado com o processo social, buscando
visualizar o contexto e, se possível estabelecer relação empática com o objeto de estudo e,
obviamente, melhor compreensão do fenômeno a ser estudado.
A escolha da pesquisa qualitativa parte da compreensão necessária da relação do
sujeito à dinâmica social e indissociável relação de poder estabelecida pela sociedade que não
pode ser traduzida somente em números. Segundo Chauí, “Methodos significam uma
investigação que segue um modo ou uma maneira planejada e determinada para conhecer
alguma coisa; procedimento racional para conhecimento seguindo um percurso fixado.”
(1994, p. 354) Neste sentido, compreende-se que o método é uma escolha de um caminho
possível entre tantos outros. Assim, outro método utilizado para compreender o fenômeno
Lígia foi o histórico estrutural que segundo Triviños, “é o enfoque mais válido para nossa
realidade social.” (1995, p.125)
19
Assim, para compreender as dimensões do fenômeno estudado foi realizada uma
pesquisa documental, uma vez que foram analisadas a Lei de Execução Penal e o Código
Penal Brasileiro. Conforme Santos (2000), a pesquisa documental pressupõe uma
investigação
[...] realizada em fontes como tabelas estatísticas, cartas, pareceres, fotografias, atas,
relatórios, obras originais de qualquer natureza (pintura, escultura, desenho, etc),
notas, diários, projetos de lei, ofícios, discursos, mapas, testamentos, inventários,
informativos, depoimentos orais e escritos, certidões, correspondência pessoal ou
comercial, documentos informativos arquivados em repartições públicas,
associações, igrejas, hospitais, sindicatos. (SANTOS, 2000, p. 20)
Também foi realizada uma análise documental que segundo Ludke e André
(1986) constitui uma técnica importante na pesquisa qualitativa, seja complementando
informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou
problema. Foi realizado um estudo de caso que segundo Yin (2001),é um método qualitativo
que consiste, geralmente, em uma forma de aprofundar uma unidade individual e queserve
para responder questionamentos sobre o fenômeno estudado.
O processo de coleta de dados foi por meio de entrevistas semi estruturada junto à
pesquisada. Segundo Barros &Lehfeld (2000, p.58), a entrevista semi estruturada estabelece
uma conversa amigável com o (a) entrevistado (a), busca levantar dados que possam ser
utilizados em análise qualitativa, selecionado os aspectos mais relevantes de um problema de
pesquisa.
As entrevistas com a pesquisada foram registradas com o uso de gravador,
objetivando garantir a autenticidade dos depoimentos e transcritas conforme consentimento. A
utilização das entrevistas é relevante por provocar ricas contribuições da pesquisada conforme
afirma Pádua (1997, p.64-65), a entrevista é um procedimento mais usual no trabalho de
campo. Por meio dela, o pesquisador busca obter informes contidos na fala dos atores. Ela não
significa uma conversa despretensiosa e neutra, uma vez que se insere como meio de coleta
dos fatos relatados pelos atores, enquanto sujeito-objeto da pesquisa que vivenciam uma
determinada realidade que está sendo focalizada. A compreensão do caso Lígia é possível
através de um estudo minucioso desde a sua infância até o atual momento, captar suas
percepções e motivações só é possível a partir da análise da totalidade vivenciada por ela.
20
2.1 Apresentando o caso
Lígia dos Anjos, uma mulher de 32 anos, filha caçula, nasceu no interior do
Estado do Ceará – Russas. Relata ter tido uma infância feliz, cercada por muitos irmãos,
porém, cheia de dificuldades, pois o pai era açougueiro e com esse trabalho sustentava mais
treze irmãos. Lígia perdeu o pai na adolescência e, como filha mais nova, sempre esteve mais
próxima da mãe. Com a dificuldade do dia a dia enfrentada em sua cidade natal, Lígia sempre
sonhou morar em Fortaleza na busca de uma vida melhor. Estudou até a oitava série do ensino
fundamental, pois pensava que não valia a pena continuar os estudos por não haver chances
no interior, diante dessa crença e nutrida pelo sentimento de melhores dias veio para Fortaleza
em busca de emprego.
Em 2002 Lígia se mudou para a cidade de Pacajus e lá passou a trabalhar,
informalmente, com faxinas, lavagem de roupas e cuidar de crianças, essa era sua forma de
renda. Nesse período, Lígia engravidou e assumiu sozinha a responsabilidade de sua gravidez.
Sua primeira filha nasceu e sem condições de criá-la, Ligia pediu a sua mãe que tomasse
conta da filha.
No ano de 2006, Lígia foi para cidade de Itaitinga onde passou a trabalhar em casa
de família como doméstica, fez amizades e conheceu Luiz 4, com quem manteve uma relação
afetiva e se casou, resultando dois filhos desse relacionamento. A relação era conflituosa, o
esposo bebia e era agressivo e após três anos de convivência Lígia se separou do marido.
Nesse período, o marido de Lígia conheceu outra mulher, mas não deixou de procurá-la, mas
Lígia o rejeitava, deixando-o enfurecido. Assim, Luiz, após procurar Lígia e não conseguir a
reconciliação iniciou uma bebedeira e levou a outra pessoa, com quem se relacionava, para
sua casa. Nesse mesmo dia, ao fim da madrugada, Luiz a matou e foi preso em flagrante.
Encaminhado à delegacia, Luiz assumiu o crime e foi encaminhado ao IPPS (Instituto Penal
Paulo Sarasate). No período em que esteve preso, Lígia passou a visitá-lo e volta a se
relacionar com o ele.
Então, com o ex-marido na prisão e sozinha, Ligia tem a responsabilidade de
cuidar dos filhos, a vida difícil a coloca em busca de novas fontes de renda. Uma amiga de
Lígia diz a ela que tem uma solução para seus problemas e pergunta se ela quer vender
drogas. Ligia reluta, porém, vive sempre em contato com pessoas que cometem o tráfico. Suas
4
Nome fictício.
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amigas eram esposas de traficantes o que contribuiu para Lígia entender como funcionava o
mundo do crime. As visitas a seu marido na prisão levaram Lígia a conhecer os companheiros
de cela de Luiz, entre eles, Júnior5, esse que era marido de uma amiga que foi assassinada por
disputa de pontos de venda de drogas. Lígia com o contato frequente se apaixona por Júnior e
os dois passam a ter um caso. Durante as idas a prisão, Lígia o informava de suas atividades, o
andamento de seus “negócios”, pois uma pessoa assumiu o lugar de Junior no período em que
ele estava interno. A relação foi ganhando novas proporções, Júnior pressionou Lígia para que
ela se separasse e ficasse com ele. Nesse contexto, Luiz recebeu sua liberdade condicional e
após sua saída, Lígia pediu a separação. Lígia finalmente assumiu seu relacionamento com
Junior, e entre as dificuldades enfrentadas, ela percebeu que o crime era uma vida fácil e
Junior poderia mantê-la e a seus filhos. Júnior propõe a Lígia que assuma seus negócios,
orienta que ela não deve se expor, mas lhe responsabiliza por gerenciar a quadrilha, passandolhe orientações durante as visitas.
2.2 O flagrante e a prisão de Lígia
Lígia passou a gerenciar a quadrilha e tinha sob seu comando seis homens que
executavam as ordens orientadas por Júnior e conduzidas por ela. Isto aponta que Lígia foi
casada com um traficante temido na cidade de Itaitinga, com ele dividia uma vida estável,
apaixonada por ele teve sua vida mudada em um dia aparentemente normal. Como Lígia
gerenciava todas as operações ilícitasde Júnior, pois o mesmo encontrava-se preso na Casa de
Privação Provisória de Liberdade, e deliberava a manutenção de seu “negocio”, Lígia foi se
comprometendo e assumindo toda a responsabilidade de gerenciamento do tráfico. Na sua
fala, isso fica bem expresso quando afirma: “Eu tinha a responsabilidade de gerenciar todas as
operações, ele me passava o que fazer e eu repassava pra‟s outras seis pessoas que faziam o
que ele mandava.”
Aparentemente Júnior era um homem devotado à família, fazendo tudo
paramantê-labem e suprida de todas as necessidades, resultante da prática de delitos,
submetendo-se a uma vida de riscos, entre crimes e prisões.No dia 27 de outubro de 2011, no
fim da tarde, Lígia estava em casa fazendo os afazeres domésticosquando um homem a
5
Nome fictício.
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chama, vestido normalmente, o homem se apresenta como comprador de droga e pergunta se
ela tem o suficiente para abastecê-lo, pois precisava de grande quantidade, estava ali a mando
de seu marido, Júnior. Lígia responde que sim, pergunta o que ele deseja, prepara a
mercadoria e informa o valor, nesse momento o homem se identifica como policial militar e
informa que Lígia estava presa. A esse respeito Lígia afirma que: “... ele segurava um
capacete e me bateu no peito e disse: a casa caiu pra ti vagabunda, você tá presa. De lá eles
me levaram para outra casa que eu tinha e me bateram muito.”
Lígia relata que foi bastante torturada, a colocaram em um saco de água para que
fosse difícil respirar, e com tortura exigiam que ela informasse onde estava guardada toda a
carga roubada e o armamento. Lígia relutou em informar o que a polícia desejava saber, pois
temia o que Junior poderia fazer contra ela ou seus filhos. Em seguida Lígia foi levada para
delegacia de Itaitinga para registro do flagrante, logo depois para delegacia de roubo de cargas
e veículos e também para delegacia de capturas, permanecendo um dia.
No dia 29 de outubro de 2011 Lígia foi conduzida ao Presídio Feminino
Desembargadora Auri Moura Costa, permanecendo em regime fechado até o julgamento. O
julgamento de Lígia ocorreu em 12 de outubro de 2013 no Fórum da Comarca de Itaitinga. A
juíza considerou Lígia culpada por todos os crimes relatados contra ela, sendo os seguintes
artigos de acordo com o Código Penal (1940):
Artigo 33 - que corresponde ao tráfico de drogas;
Artigo 35 - que corresponde à associação de duas ou mais pessoas para o fim de
praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos 33;
Artigo 157 - que corresponde a subtrair coisa móvel alheia, para si ou paraoutrem,
mediante grave ameaça ouviolência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer
meio, reduzido à impossibilidade de resistência;
Artigo 14 - que corresponde a porte ilegal de arma de fogo;
Artigo 1º do Decreto nº 51.476 - que corresponde a roubo de cargas;
Artigo 288 do Decreto nº 2848/40 - que corresponde à formação de quadrilha.
Por todos esses crimes, sua sentença foi de seis anos em regime fechado. Lígia
relata que durante o período em que esteve presa ficou um ano sem ver os filhos, o conselho
tutelar, após sua prisão, levou-os para um abrigo da prefeitura de Itaitinga. Após várias
tentativas de informações e com a ajuda do Serviço Social do presídio, Lígia conseguiu
encontrá-los e manter contato com eles através das visitas. Atualmente Lígia encontra-se no
23
regimesemiabertoapós cumprirdoisanos e três meses da pena, pois por bom comportamento e
dias trabalhados a justiça lhe concedeu o regime semiaberto, passivo de retirada, caso ela
viole as condições impostas. Lígia não esquece os momentos na prisão, relata que neste
espaço institucional vivenciou momentos difíceis onde a violência era recorrente.
2.3 A vida na prisão e os tipos de violências sofridos no sistema prisional
O sistema prisional brasileiro vive uma verdadeira falência gerencial. A realidade
penitenciária é arcaica, com estabelecimentos prisionais superlotados, anti-higiênicos, sujos e
úmidos. Na sua grande maioria, representam para os reclusos um verdadeiro inferno em vida,
onde o preso se amontoa a outros perdendo sua individualidade e autonomia.
As violências são recorrentes no cárcere, podendo ser praticadas por agentes
penitenciárias ou companheiras de cela. A violência pode se apresentar de diversas formas,
sendo elas: a violência física que é o uso da força com o objetivo de ferir, deixando ou não
marcas evidentes, nesse tipo de violência são comuns, murros, estalos e agressões com
diversos objetos e queimaduras; a violência psicológica, muito usada por agentes
penitenciários, é tão ou mais prejudicial que a física, pois é caracterizada pela rejeição,
depreciação, discriminação, humilhação, desrespeito e punições exageradas. É uma violência
que não deixa marcas corporais visíveis, mas emocionalmente provoca cicatrizes para toda a
vida. Existem várias formas de violência psicológica, como a mobilização emocional da
vítima para satisfazer a necessidade de atenção, carinho e de importância, ou como a agressão
dissimulada, em que o agressor tenta fazer com que a vítima se sinta inferior, dependente e
culpada.
A atitude de oposição e aversão também é um caso de violência psicológica, em
que o agressor toma certas atitudes com o intuito de provocar ou menosprezar a vítima. As
ameaças de mortes também são um caso de violência psicológica; Violência verbal
normalmente é utilizada para incomodar a vida das outras pessoas. Pode ser feita através do
silêncio, que muitas vezes é muito mais violento que os métodos utilizados habitualmente,
como as ofensas morais (insultos), depreciações e os questionários infindáveis; Violência
sexual, na qual o agressor abusa do poder que tem sobre a vítima para obter gratificação
sexual, sem o seu consentimento, sendo induzida ou obrigada a práticas sexuais com ou sem
violência física. A violência sexual acaba por englobar o medo, a vergonha e a culpa sentidas
24
pela vítima; Negligência que é o ato de omissão em proporcionar as necessidades básicas,
necessárias para a sua sobrevivência, para o seu desenvolvimento. Os danos causados pela
negligência podem ser permanentes e graves.Por sua vez, a violência interna das prisões, é
tamanha, e faz comque o preso, com o tempo, perca o sentido de dignidade e honra que ainda
lhesresta, assim, o Estado que através do cumprimento da pena deveria nortear a conduta não
violenta age de forma contrária, inserindo o apenado num sistema que para Oliveira(1997),
nada mais é do que:
Um aparelho destruidor de sua personalidade, pelo qual: não serve o que diz servir;
neutraliza a formação ou o desenvolvimento de valores; estigmatiza o ser humano;
funciona como máquina de reprodução da carreira no crime; introduz na
personalidade e prisionalização da nefasta cultura carcerária; estimula o processo de
despersonalização; legitima o desrespeito aos direitos humanos. (OLIVEIRA, 1997,
p. 55)
As mulheres enfrentam no dia a dia da prisão situações específicas e graves.
Encarceradas e esquecidas em condições ainda pouco discutidas pelo poder público,
praticamente desconhecidas pela sociedade em geral, colocadas em último plano nas políticas
públicas. Dentro do sistema carcerário há mulheres já julgadas e, portanto cumprindo sua
pena e mulheres aguardando julgamento. A superlotação e os relatos de maus-tratos são uma
constante na rotina e assistência médica e jurídica é precária. Em alguns presídios como o
Desembargadora Auri Moura Costa, há trabalho remunerado que lhes permite obter a redução
da pena, onde três dias trabalhados dão remissão a um dia de cumprimento na pena, mas não
são todos que trabalham com esse sistema.
Neste cenário encontramos diversas personagens de histórias reais, mulheres
detidas em regiões diferentes, com cultura, religião e formação educacional diferente.
Algumas são estrangeiras, outras tem relações afetivas fora dos cárceres, algumas são casadas.
Também se encontram mulheres que respondem por medo, pois assumiram delitos por medo
de represarias. Dentro desse mundo esquecido, cada uma tem sua própria forma de lidar e
sobreviver. Há as que preferem o cárcere, e se apegam como se de fato fosse sua casa. Há
mulheres que morrem a cada dia, não suportam conviver com o espaço limitado, apenas
suportam em silêncio as medidas disciplinares, as violências vividas entre parceiras, às
violências sofridas e praticadas por agentes, a alimentação precária e o difícil confinamento.
Lígia relata: “A comida lá não era muito ruim, o problema era as agentes que ficavam no
refeitório dizendo as coisas com a gente, elas humilhavam dizendo que agente devia era
morrer de fome pra aprender a não fazer coisa errada”.
25
A mulher gestante que está na condição de presa tem o direito garantido pela
Constituição Federal e pela Lei de Execução Penal ficar com o seu bebê durante o período de
aleitamento, porém, esse direito pode ou não ser praticado dentro da unidade onde cumpre sua
pena, desde que este estabelecimento prisional, tenha estrutura suficiente para proporcionar
uma permanência saudável tanto para a mãe quanto para o bebê. Alguns presídios brasileiros
não atendem prontamente o que é determinado na lei, o que às vezes pode tornar tardia o
processo da amamentação, pois necessitam aguardar vagas em locais apropriados que possam
oferecer o mínimo para um período salubre e conveniente.
A dificuldade no cuidado com a saúde das presas é recorrente, algumas são
dependentes química, possuem algum tipo de doença sexualmente transmissível ou estão
grávidas. O acompanhamento que elas devem ter de um ginecologista e obstetra não faz parte
da rotina e assim ficam expostas a doenças já que o ambiente não é higienizado. A maioria
não tem contato com a família, foram abandonadas pelo companheiro, e esse fator agrava a
questão da higiene pessoal, uma vez que os itens de higiene como absorventes são negados.
Sobre essa questão Lígia colocou: “Uma vez eu tive que improvisar absorvente, eu peguei um
monte de papel higiênico, eu não recebia visita e ninguém trazia essas coisas pra mim e eu
não pedia nada as agentes por que eu sabia que elas iam me humilhar”.
Um dos maiores problemas, entre tantos, enfrentado pela mulher encarcerada é a
condição em que ficam seus familiares após sua prisão. A separação dos filhos, para a maioria
delas, é uma das dificuldades mais complicadas e dolorosas, pois o processo de adaptação e
superação dos problemas mostra-se em muitos casos irreversíveis. Vale ressaltar que a mulher
enquanto casada dificilmente consegue manter sua relação quando detida, pois se o
companheiro não for do crime ou não tiver nenhum envolvimento com o delito em raríssimas
exceções ficam do seu lado. Há casos em que o parceiro apoia visita, presta assistência e
assume no lar o papel de pai/mãe, mas é um fenômeno raro. Porém, a maioria, ou nunca mais
retorna ou com o tempo vai se esquivando até o total esquecimento e abandono.
Eu fui abandonada por ele, engraçado (silêncio) eu lembro quando ele dizia que me
amava e que a gente ia ficar junto pra sempre. Quando fui presa ele não quis nem
saber, não quis nem notícias minha. E o que mais me dói foi ele ter deixado meus
filhos ir pro abrigo. Ele tava preso mais sabia de tudo que acontecia e podia ter
evitado isso. (Lígia, 32 anos)
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Violência legitimada é o que mulheres encarceradas enfrentam dia a dia, neste
sentido, a questão é: a ação violenta dentro do presídio encontra-se amparada pelo direito? A
ação violenta é moralmente justificável? Do ponto de vista da organização simbólica, nossa
sociedade encontra-se dividida entre bons e maus e quem não é bom é condenado a juízos
morais realizados por toda sociedade. O uso da violência física no sistema prisional está
vinculado ao interesse institucional e esse tipo de violência é, via de regra, uma forma de
punição à transgressão, seja a punição/violência do agente carcerário ou pelos demais
companheiros de cela. Muitas das mulheres que encontram-se no sistema prisional entraram
no mundo do crime por dificuldades econômicas e em outros casos por uma ligação com
alguém do sexo masculino, podendo ser familiar ou companheiro. Essa realidade é uma
constante no perfil das mulheres encarceradas.
27
3
A
MANIFESTAÇÃO
DA
CRIMINALIDADE
FEMININA
UMARESULTANTE DAS DIFICULDADES ECONÔMICAS E AFETIVAS
COMO
A manifestação da criminalidade feminina tem se caracterizado nos crimes
“tradicionais”, ou seja, aqueles crimes que homens não cometem, como exemplo o aborto. As
dificuldades econômicas e afetivas podem estar relacionadas à prática criminal das mulheres,
como também a necessidade de criar e educar os filhos, pois em geral as mulheres possuem
um ou mais filhos e na tentativa de satisfazer a quem se ama e a preservação de vínculos
familiares, a mulher se submete às ações criminosas. Assim, a mudança que ocorre no cenário
criminal coloca homens e mulheres em situações diferentes na discussão de gênero, com isso,
é notável a realidade patriarcal direcionada às leis no direito penal.
As temáticas relacionadas à criminalidade têm encontrado espaço nos debates
atuais, o crime encontra-se cada vez mais próximo às diferentes camadas sociais e o cenário
que se apresenta é de inúmeras ocorrências em virtude da violência generalizada nas grandes
cidades. Essa problemática vem rompendo os espaços públicos e adentrando os espaços
privados, as inúmeras formas de crime têm ganhado espaço nos noticiários. Através dos
estudos da Escola Positivista, ao fim do século XIX, a criminologia foi reconhecida como
ciência e teve como grande estudioso um médico conhecido pela obra “L'Uomo Delinquente”,
Dr. Lombroso.
O século XXI apresenta o crescimento da população carcerária, vários países da
América Latina, inclusive o Brasil, tem essa realidade expressa em suas estatísticas. Segundo
Simone Martins (2009), a criminologia é uma disciplina que, embora comumente vinculada
ao direito, contempla e dialoga com diversos saberes, como a biologia, a psicologia, a
psicanálise, a antropologia, a sociologia e a estatística.
A sociedade sempre foi composta por pessoas de características diferentes, assim,
aquelas que por um modo de agir ou pensar divergente, com uma identidade singular e que
não estivesse adequada a um padrão julgado “normal”, sofreria com a exclusão e não seriam
compreendidas suas motivações e atitudes. A sociedade que se julga soberana em seus
padrões pré-definidos tem como resposta as diferenças um processo de exclusão. Na obra
“Vigiar e Punir” de Michael Focault (1987), o autor apresenta que a população obedecia às
regras ditadas pelo Estado por ter medo da morte, isso caracterizava um Estado de soberania.
O poder da vida e morte estava nas mãos da soberania que, por sua vez, centrava os poderes
executivo e legislativo.
28
Na França, como na maior parte dos países europeus – com a notável exceção da
Inglaterra – todo processo criminal, até a sentença, permanecia secreto: ou seja,
opaco não só para o público, mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava
sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os
depoimentos, as provas. (FOUCAULT, 1987, p. 31)
Isto aponta que a punição real ou simbólica se compõe no sistema penitenciário e
esta punição diante inúmeras manifestações da criminalidade se apresenta como solução para
as demandas criminais e suas violências diárias. Considerando que ao fugir dos padrões de
ordem e decência, a falta de disciplina e moral resulta na reclusão e privação do convívio
social na perspectiva de uma resposta as práticas delituosas. Conforme Foucault (1987), o
suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de
sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que
pune.
A criminalidade tem se desenhado através de personagens diversos, e em sua
atuação o mais comum é um homem, porém na sociedade atual a presença de adolescentes e
até mesmo mulheres tem sido bem cotidiano. Essa temática remete a várias reflexões, estas
que passam por motivações para o crime, gênero, status, auto-afirmação e, principalmente
fatores econômicos. O fato é que são muitas indagações diante da problemática e da busca por
respostas, e se faz essencial pesquisa e ampla discussão.
Diante a colocação apresentada, discutir a atuação da mulher na criminalidade
abre uma nova dimensão ao assunto uma vez que a mulher foi socialmente educada para se
manter idônea, a opção pelo crime vem despertar interesse na compreensão de suas reais
motivações. Na idade média a mulher que tinha um comportamento mais ousado era vista
pela Igreja como bruxa, simbolicamente atribuída ao pecado desde a criação do mundo, a
sentença as suas transgressões era a fogueira, isto demonstra que historicamente a figura
feminina é identificada nos discursos criminológicos, contudo, deve-se contextualizar esses
discursos do ponto de vista político, social, econômico, e sobretudo, cultural.
Por certo a sociedade ocidental foi construída dentro de parâmetros cristãos, a
Igreja era a condutora dos bons costumes, a conduta da mulher era a mais observada uma vez
que não era permitida as mesmas atitudes contraria a moral cristã que condenava a expressiva
sexualidade e atuação social da mulher. Uma ordem fincada no ideal de família, de uma moral
cristã, que unida a tantos fatores sociais vigentes na época, colaborou para a dicotomia, entre
homem e mulher, as mulheres eram o “bode expiatório” de uma sociedade patriarca e
machista. Para Silva (1983) esta ordem foi estabelecida desde momentos anteriores em
29
algumas sociedades, porém recebeu uma roupagem moralista que influenciou diretamente a
figura da mulher nos discursos criminológicos que o seguiram. Embora a ciência tenha
rompido com a Igreja, a moral cristã relacionada à sexualidade permaneceu nas entrelinhas,
facilmente percebida nos discursos criminológicos. Discursos, estes que fizeram uso também
do discurso médico e psicanalítico acerca da sexualidade e das diferenças entre masculino e
feminino, sendo transmitido entre gerações e participando da formação cultural assimétrica
que impõe estereótipos relacionados a papéis sexuais.
Os crimes cometidos na sociedade moderna têm impressionado pôr registrar a
mulher em atividades criminais. No século XIX a mulher estava relacionada aos crimes de
prostituição, na atualidade a mulher criminosa atua no tráfico, no roubo e furto, formação de
quadrilha e porte de armas, comprovando a evolução de uma prática criminal anteriormente
atribuída apenas ao corpo. Para Zaffaroni (2005), especificamente sobre a mulher, afirmouque
ainda que em menor número, ocupariam um rol importantecomo causa de todos os tipos de
atentados que afligem a sociedade.
Ao longo da história a mulher têm sido vítima de uma armadilha social que as
coloca como frágeis e indefesas, portadoras de uma docilidade que a distanciam de qualquer
pratica delituosa, ou ainda, estereótipo demenor capacidade. O senso comum da sociedade
produz a lógica de que a mulher é incapaz de cometer um crime, muito embora seja
identificável diante as estatísticas que a mulher tem essa capacidade, já que os presídios
femininos têm sua funcionalidade em virtude de inúmeros crimes. A referida incapacidade
para a criminalidade fortalece a ideia de que o universo feminino se mantém inferiorizado ao
masculino em diversas esferas sociais.
Parece que não é dado ao universo feminino o direito à violência, somente podendo
atingir seus fins maléficos com a malícia. Não lhes é permitida a prática de condutas
que demonstrem a capacidade deinverter o papel social de inferioridade que lhes é
imposto, o uso de violência por parte das mulheres choca, pois demonstra, em
verdade, a equivalência dos seres na espécie humana.(LIMA, 2007, p.317-318)
É possível afirmar que a criminalidade da mulher sempre esteve em comparativo
com o comportamento criminal do homem, mas a atuação da mulher na atualidade tem
causado maior visibilidade a temática. Identificar qual elemento pode ser o responsável pelo
aumento da pratica criminal da mulher e os fatores determinantes de sua conduta é um
questionamento relevante para a sociedade.
30
Sabendo que a sociedade e seus sujeitos sofreram modificações, as estatísticas
criminais apontavam crimes próprios das mulheres citando oinfanticídio, abortos e
envenenamentos. Atualmente os registros criminais femininos as colocam em um cenário bem
distante dos citados anteriormente. Na sociedade contemporânea as mulheres criminosas
participam do tráfico de drogas, formação de quadrilha, roubo de cargas, tráfico de pessoas e
assassinatos.De acordo com Lemgruber (1999), a partir da revolução feminista, da introdução
da figura feminina no mercado de trabalho e da quantidade defamílias chefiadas pela mulher,
houve um aumento da criminalidade feminina.
A
criminalidade
é
uma
preocupação
cotidiana,
atualmenteas
pessoasbuscamsegurança individual e de seu patrimônio, fortalecendoa cada dia os espaços
privatizados,fechados e monitorados. Essa busca causaalteração na rotina ehábitos, como
também naspráticas sociais, alterando os padrões de normalidade. A sociedade
contemporânea presencia a banalização do crime, atrelada àfalta de estrutura e por problemas
como a fome, o analfabetismo, a corrupção, e a extremadesigualdade social, a
criminalidadeacaba sendo apenas mais um problema dentretantos outros encontrados na
sociedade brasileira. Dados do I censo penitenciário do Estado do Ceará revelam que o perfil
das mulheres criminosas se compõe por baixa escolaridade, trabalhos precários e renda
familiar abaixo do salário mínimo.
Para que possamos refletir de forma mais abrangente a problemática da
criminalidade, teríamos que, além de levar em conta os números e as estatísticas, pontuar
também as suas principais causas, e o que notamos, de acordo com o senso comum da
sociedade e também por estudiosos do assunto, é que a pobreza tem sido muito discutida
como causa e como principal responsável pelo aumento da criminalidade no Brasil. Mas a
pobreza não é a única causa da criminalidade. Apesar da forte associação entre a
marginalidade e a criminalidade,facilmente derrubada mediante uma reflexão mais profunda,a
criminalidade é um fenômeno que perpassa por toda a sociedade, seus segmentos, classes,
faixas etárias, etc.
A sociedade sofreu mudanças no percurso da história, revoluções e evoluções que
no novo século refletem espaços ocupados por mulheres. O século XX revolucionou a
humanidade, as áreas científicas e tecnológicas deram um salto em qualidade e quanto às
áreas educacionais e social, podemos também avaliar seu crescimento positivo, porém não
como o idealizado. Dentro dessas mudanças e transformações, o gênero feminino teve
31
envolvimento significativo. No início do século XX, acreditava-se que as mulheres cometiam
menos crimesdo que os homens por estarem confinadas ao espaço doméstico, mas as
mulheres tiveram o seu papel social redefinido por conta das mudanças ocorridas na estrutura
da família e nas condições sociais e econômicas.
As mulheres conquistaram direitos políticos, asseguraram o acesso à educação e
passaram a ganhar visibilidade nos espaços públicos. A mulher mesmo com todos os avanços
e conquistas ainda sofre em meio aos processos sociais e culturais, a cultura do machismo
ainda sufoca e inferioriza a mulher dentro de sua condição.
A criminalidade também pode ser associada ao grau de integração social, pois a
integração grupal, a estabilidade comportamental do mesmo, os controles informais
à conduta, a pouca incidência de modificações estruturais violentas, bem como de
seus componentes, ou ainda, a estabilidade generalizada dos membros em relação
aos processos culturais e modos de ser sociais, contribuem de forma direta no
cenário criminal. (VERGARA, 1998, p. 18).
Por muito tempo o estudo da mulher e a criminalidade não foi explorado como
devia, com a legitimação da categoria “Gênero”, a temática ganha maior destaque nos estudos
fazendo-se importante na atual conjuntura social. Com a evolução e modernização sofrida
pela sociedade não se faz possível analisar a mulher à sombra do modernização sofrida pela
sociedade não se faz possível analisar a mulher à sombra do homem, dentro da temática
criminalidade é inviável, pois as motivações dos crimes cometidos pelas mulheres se originam
nas violências sofridas pelos homens. Scott (1989) coloca que nas análises das ciências
humanas, essa associação não é mais aceita, visto que a partir desta categoria, ficou evidente a
existência de diferentes temporalidades e mulheres atuando em cada lugar, em cada contexto,
tornando-se, portanto, uma história múltipla.
De mãe, esposa e cuidadora do lar a mulher passou a ser vista como chefe de
família e trabalhadora, em busca de reconhecimento próprio de uma nova identidade a
metamorfose sofrida a levou à pratica de atitudes atribuídas ao gênero masculino. O
estabelecimento do novo padrão de atividade feminina permitiu a passagem da mulher das
camadas médias, do status anterior de esposa e de mãe para o status de trabalhadora. A busca
por uma identidade própria e do reconhecimento social dessa identidade teve um impacto
profundo sobre o modelo de família baseado na ética do homem provedor, a mulher assume o
papel invertendo a lógica da sociedade.
32
Segundo Rosa & Carvalho (2008), a mulher como figura provedora da família
tem uma motivação para o crime uma vez que os fatores apontados como causa para sua
inserção no crime são os fatores sociais, ou seja, as condições precárias em que vive.Lígia
coloca que: “Eu no começo morria de medo, mas a vida nesse negócio era mais fácil, eu tinha
dinheiro toda hora. Antes tinha dia que meus filhos me pediam comida e eu enganava eles
com água.”
Diversos fatores causam impacto direto nas relações sociais, famílias estão
desestruturadas por causa do alto índice de desemprego, alcoolismo, drogas e pratica de
delitos. Tais fatores vão repercutir nas relações sociais e estruturação familiar, provocando
uma inadequação nas relações saudáveis e na formação da moral, ética e na personalidade
desse sujeito, o que pode manter um comportamento social desviante.
A mulher tem em sua história um passado de repressão, sua criação lhe foi
imputada à submissão e limites, com isso, a mulher moderna traz consigo um desejo por
liberdade busca autoafirmação e emancipação, porém, os riscos são reais. A mulher busca
emancipar-se e a sociedade imputa-lhe rótulos fazendo com que essa emancipação seja vista
contraditoriamente. Segundo Gastal (2000) “a tão desejada “liberdade feminina” traz consigo
uma maior exposição ao risco de usar bebidas alcoólicas e drogas em geral...” (p.02). Dentro
desse cenário conflituoso há uma facilidade que permite o acesso de mulheres ao crime. De
acordo com dados de estudos em criminologia, a participação de mulheres em crimes é
ignorada e se explica pelo fato de suas relações serem com parceiros criminosos. Lígia relata
que: “No começo eu fiz tudo por amor, ninguém me obrigou a nada (silêncio) quer dizer eu
achava que era amor. Amor mesmo só dos meus filhos, hoje eu sei disso!”
Deve-se questionar se háinfluência dos homens na iniciação de mulheresno crime
uma vez que as motivações para a inserção são diversas. As justificativas mais recorrentes
são, por exemplo, as relações amorosas estabelecidas comhomens criminosos, como
tambémem função das dificuldadesencontradas para sustentar seus filhos.
De uma maneira geral,estudiosos da temáticaconcordam que para maior
entendimento da criminalidade feminina, é preciso um nível amplo de análise, onde haja
investigação do controle e da opressão sofrida pormulheres em diferentes esferas sociais. É
possívelque a falta de atenção à criminalidade femininarelacione-se com ofato da mulher ser
vista como vítima e não realizadora da prática criminal.Em um nível mais amplo, a análise da
33
criminalidade feminina deve incluir discussões acerca de cor e de classe, entendendo que
esses são,juntamentecom gênero,elementos indissociáveis na construçãoda posição social e
das identidades das mulheres.O conflito de gênero que está por trás da violência
generalizadanão pode ser tratado apenas como uma pratica, mas precisa de um olhar que
supra as especificidades próprias das mulheres, como exemplo deve-se avaliar a situação em
que se apresenta o sistema prisional para receber a mulher apenada e as leis destinadas as
mesmas.
3.1 A condição da mulher no presídio feminino e a Lei de Execução Penal para mulheres
encarceradas
No presídio a maioria das reclusas são afetadas diretamente por problemas sociais
e econômicos, são mulheres com filhos, mães solteiras, provedoras e que se viram obrigadas a
encarar a vida para manter a si e os que delas dependem.
Geralmente não foram elas que procuraram o crime, mas a circunstância que
chegou as colocarem dentro desse cenário. A complexa relação estabelecida entre a mulher e
o sistema penitenciário revela uma intensa necessidade de discussão sobre a problemática, a
partir de uma sanção penal designada por um representante do Estado, pois a condenação
judicial coloca a mulher em uma instituição de privação de liberdade, alterando o percurso
traçado pela sociedade desde a antiguidade para as mulheres.
O ambiente prisional é composto por simbologias próprias do ambiente, trazendo
consigo a manifestação de violência e imposições, as instituições fechadas reproduzem uma
barreira ao mundo externo. A proibição de saída e acesso a liberdade está simbolizada por
portões, arames farpados, armas e grades, lembrando a todo instante as pessoas enclausuradas
onde é seu lugar. Segundo Goffman (1996), uma característica fundamental da sociedade
moderna é a mobilidade, liberdade espacial e temporal do indivíduo. Ele dorme, come,
aprende, reza, trabalha ou diverte-se, em locais diferentes, com pessoas diferentes, sob
diferentes tipos de autoridade: em casa, o pai ou a mãe; na escola, a professora; no trabalho, o
chefe; na igreja, o padre, na prisão o diretor. O traço dessas instituições penais é conceder ao
indivíduo um tratamento coletivo e punitivo.
Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde
um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade
mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e
34
formalmente administrada. As prisões servem como exemplo disso, desde que
consideremos que os aspectos característicos de prisões podem ser encontrados em
instituições cujo participante não se comportaram de forma ilegal.
(GOFFMAN,1996 p.17).
Na leitura de Foucault (1997), a esse respeito, percebem-se as instâncias de poder
que se instalam nas prisões, seu estudo sobre as prisões traz grande contribuição para análise
do poder que se estabelece. Foucault afirma:
O que é fascinante nas prisões é que nelas o poder não se esconde, não se mascar
cinicamente, e, ao mesmo tempo, é puro, é inteiramente justificado, visto que pode
inteiramente se formular no interior de uma moral que serve de adorno a seu
exercício: sua tirania brutal aparece então como dominação serena do bem sobre o
mal, da ordem sobre a desordem. (FOUCAULT, 1997, p. 73).
Portanto, analisar a questão da mulher encarcerada se faz essencial, a crítica a essa
temática deve buscar o olhar a partir das garantias de direitos, compreendendo as
especificidades e particularidades das mulheres que compõe o cenário prisional. Tratando dos
direitos das mulheres, estudar todas as questões que a envolvem através de uma metodologia
de análise de gênero que tem sua importância, ressaltando que a mulher esteve desde sempre
inserida num sistema patriarcal, machista e disseminador de superioridade.
Meus dias na prisão não foi fácil, eu não conseguia me adaptar, nos primeiros dias
eu achava que a qualquer hora eu ia sair, mas depois de uma semana a ficha caiu.
Por muito tempo eu tomei remédio, ficava dopada pra esquecer que eu tava ali
dentro. Lá não tinha ninguém por mim, eu me enchia de remédio todo dia pra
suportar. (Lígia, 32 anos)
Com o surgimento das instituições de recolhimento prisional, compreende-se a
necessidade de separar mulheres e homens, este entendimento vem da percepção de que as
penas e os tipos de crimes são diferenciados. Historicamente, as primeiras prisões femininas
localizavam-se em conventos e as freiras orientavam as mulheres que cometiam algum tipo de
delito. Dessa forma, percebe-se que a penalidade para as mulheres era intrínseca a
moral.Espinoza (2004) assinala que nos homens os valores a serem despertados com a pena
eram de legalidade e necessidade do trabalho, mas se tratando das mulheres desviadas era
preciso recuperar seu pudor com a pena designada.
Ao discutir a criminalidade feminina, percebe-se a atribuição de estereótipos e
desvalorização da mulher, e as características de gênero dificultam a percepção da mulher no
universo do crime. O caminho trilhado pelas mulheres até sua reclusão se dá por diversas
35
situações. Estatísticas do Departamento Nacional Penitenciário (2012) coloca que o principal
crime cometido por mulheres é o de tráfico, que corresponde a 60% (sessenta por cento),
seguido dos crimes contra o patrimônio, que representam 23% (vinte e três por cento). O
crime de tráfico, em sua maioria, está relacionado com a questão de gênero, onde na maioria
dos casos de tráfico, a mulher está envolvida por conta de um homem de sua família, sendo
este, marido, irmão ou filho, configurando um crime “familiar” ou em nome da família, como
exemplo temos casos em que a mulher é detida ao tentar levar drogas ou aparelhos eletrônicos
na ocasião da visita intima ao seu companheiro preso.
Eu fazia tudo o que ele me pedia, teve vistoria lá e o celular que ele usava o
“policia” achou. Um dia eu fui pra visita e ele me mandou levar uns aparelhos, ele
disse que eu desse um jeito ai eu fui né? Uma pessoa que fazia essas coisas erradas
também foi que me ajudou e ele me deu um balde, ele fez um fundo falso e botou
três celular. (Lígia, 32 anos)
O descaso que o sistema penitenciário enfrenta se revela nas más condições de
manutenção e na superlotação recorrente, cotidianamente os presídios necessitam de reformas
nos mais diversos âmbitos, no físico por conta de prédios antigos e em mal estado de
conservação, nos recursos humanos uma vez que seu quadro funcional é composto por poucos
funcionários e trabalhadores que, por sua vez, são submetidos as péssimas condições de
trabalho, baixo salário e nenhuma perspectiva de crescimento. E ainda, na própria composição
do ambiente, verifica-se baixa luminosidade e pouca ventilação.
Nesse aspecto, as condições de aprisionamento refletem a condição das mulheres
encarceradas, o descaso vai refletir no estado emocional e psicológico, expressando o
abandono, a opressão e a sujeição que as acompanham. Uma particularidade recorrente do
encarceramento feminino é o abandono da mulher por seus familiares. A família é uma das
principais preocupações das presas, a visita é extremamente importante porque funciona como
ligação do mundo externo.
Na visita as reclusas recebem notícias, alimentos, materiais de higiene pessoal.
Dados estatísticos do I censo penitenciário do Estado do Ceará do ano 2014 revelam que a
maioria das presas, 87% (oitenta e sete por cento) não recebe nenhum tipo de visita e isso
ocorre por dois motivos essenciais: um se trata de logística, como a quantidade de mulheres
presas é menor em relação aos homens, a quantidade de penitenciárias femininas é bem
menor. Isto resulta em muitos casos no afastamento da presa de sua localidade natal,
36
implicando diretamente nas visitas, pois a locomoção está ligada a um fator financeiro que, na
maioria dos casos, as famílias não possuem.
Mas em uma análise menos superficial o fator primordial explica-se na questão de
gênero, onde a mulher criminosa recebe dupla punição, pois cometeu dois “crimes”, o ato
infracional e o crime de não cumprir seu papel social: ser mulher correta e idônea. O
comportamento desviante da mulher afeta profundamente sua imagem social, com isso, o
abandono ocorre também por conta do marido e/ou companheiro. Isto retrata outra
particularidade do sistema prisional feminino, a baixa procura de visita intima.
A justificativa dos homens está nos procedimentos para a visita, são poucos os
homens que se dispõem a passar pela inspeção anterior à qualquer visita nas penitenciárias e,
para eles, é uma situação bastante constrangedora. Com essas pontuações, a sexualidade
feminina fica restrita, sendo a mulher desestimulada em sua vida sexual. Por outro lado, no
campo do direito, a resolução nº 4 de 29 de junho de 2011 do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária representa uma contribuição importante em relação à visita intima.
Recomenda aos Departamentos Penitenciários Estaduais ou órgãos congêneres que seja
assegurado o direito à visita íntima a pessoa presa, recolhida nos estabelecimentos prisionais.
Considerando relatório do Grupo de Trabalho Interministerial Reorganização e Reformulação
do Sistema Prisional Feminino, editado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República (2008): "Garantia em todos os estabelecimentos prisionais do
direito à visita intima para a mulher presa (hetero e homossexual)", resolve:
Art. 1º A visita íntima é entendida como a recepção pela pessoa presa, nacional ou
estrangeira, homem ou mulher, de cônjuge ou outro parceiro ou parceira, no
estabelecimento prisional em que estiver recolhido, em ambiente reservado, cuja
privacidade e inviolabilidade sejam asseguradas às relações heteroafetivas e
homoafetivas.
Art. 2º O direito de visita íntima, é, também, assegurado às pessoas presas casadas
entre si, em união estável ou em relação homoafetiva.
Art. 3º A direção do estabelecimento prisional deve assegurar a pessoa presa visita
íntima de, pelo menos, uma vez por mês.
Art. 4º A visita íntima não deve ser proibida ou suspensa a título de sanção
disciplinar, excetuados os casos em que a infração disciplinar estiver relacionada
com o seu exercício.
Art. 5º A pessoa presa, ao ser internada no estabelecimento prisional, deve informar
o nome do cônjuge ou de outro parceiro ou parceira para sua visita íntima.
Art. 6º Para habilitar-se à visita íntima o cônjuge ou outro parceiro ou parceira
indicado deve cadastrar-se no setor competente do estabelecimento prisional.
Art. 7º Incumbe à direção do estabelecimento prisional o controle administrativo da
visita íntima, como o cadastramento do visitante, a confecção, sempre que possível,
do cronograma da visita, e a preparação de local adequado para sua realização.
37
Art. 8º A pessoa presa não pode fazer duas indicações concomitantes e só pode
nominar o cônjuge ou novo parceiro ou parceira de sua visita íntima após o
cancelamento formal da indicação anterior.
Art. 9º Incumbe à direção do estabelecimento prisional informar a pessoa presa,
cônjuge ou outro parceiro ou parceira da visita íntima sobre assuntos pertinentes à
prevenção do uso de drogas e de doenças sexualmente transmissíveis.
Art. 10. Fica Revogada a Resolução nº 01/99 de 30 de março do ano de um mil
novecentos e noventa e nove (30/03/99). Publicada no DOU de 05/04/99, Seção 1.
Art. 11. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. (LEI DE
EXECUÇÃO PENAL, 1940)
Isto pressupõe que o encarceramento produz diversas consequências com
repercussão não só na pessoa reclusa, mas, principalmente, no núcleo familiar, levando em
conta que a população carcerária não tem um padrão, mas a diversidade na estrutura familiar é
constante. O sentimento de abandono dos companheiros das presas também reflete nos filhos,
e é uma preocupação a mais para as reclusas. Ao contrário do homem, a mulher, em qualquer
circunstância, cuida dos filhos, esteja os pais presos ou não. As reclusas se afligem ao
perceber o abandono do companheiro, pois acredita que o mesmo ocorre com os filhos, não
havendo políticas públicas que respondam a essa questão. A condição da mulher no presídio é
dolorosa, sua vida é limitada a muros e grades lhe negando perante a sociedade seu exercício
materno e convívio familiar.Lígia declara que não recebia visitas: “Eu não recebia visita de
nenhum parente meu, eu sei que escolhi essa vida errada e tinha consciência que eu tinha que
pagar por isso sozinha. Eles nunca me procuraram, mas eu entendo, lá em casa a única que
fazia as coisas erradas era eu.”
No tocante a legislação penal esta é escassa ao sexo feminino, percebe-se
profunda negligência a problemática das mulheres encarceradas. O direito subjetivamente traz
critérios masculinos e estes são de fácil identificação.
O direito é sexuado, esta analise sugere que, quando um homem e uma mulher se
veem frente ao direito, não é o direito que não consegue explicar ao sujeito feminino
os critérios objetivos, mas ao contrário, aplica exatamente tais critérios, e, estes, são
masculinos. Portanto insistir na igualdade, na neutralidade e na objetividade é,
ironicamente, o mesmo que insistir em ser julgado através de valores masculinos.
(BARATTA, 1999, p. 30-31)
A legislação penal em suas formulações da teoria delituosa e tipificação das
condutas punitivas incorpora condutas que estigmatizam a mulher, inferiorizando-a em
relação ao homem e evidenciando a discriminação. A sociedade nutre em seu pensamento
que no direito penal há neutralidade e objetividade, mas isso não corresponde à realidade.
Barroso coloca
38
Que a neutralidade, entendida como um distanciamento absoluto da questão a ser
apreciada, pressupõe o operador jurídico isento não somente das complexidades da
subjetividade pessoal, mas também das influencias sociais, o que não se constitui
uma verdade. Essa reflexão desenha que a neutralidade e objetividade que
incorporam o direito são masculinos e, portanto a sociedade os aceita como
universais. (BARROSO, 2001, p. 27).
A luta das mulheres, nas últimas décadas, contribui para importantes modificações
na redução da discriminação de gênero em matéria penal. Mesmo diante dos avanços, as
desigualdades na legislação nas mais diversas áreas do direito penal ainda persistem. No
Brasil, a câmara federal aprovou o projeto de lei que muda o código penal, retirando os
dispositivos discriminatórios em relação à mulher.
Romper o silêncio e ouvir as vozes das mulheres significa também, favorecer a
organização e participação das mulheres, não individualmente, mas das mulheres
como sujeito, ou seja, é preciso reforçar sua expressão pública para assegurar seus
pontos de vista e que suas demandas sejam consideradas. (SOARES, 2004 p.118)
O sistema penitenciário, em geral, vive em crise, superlotações, precarização,
ineficiência entre outros. Nesta perspectiva, abordar e analisar as políticas públicas
penitenciarias não constitui tarefa simples uma vez que o sistema prisional demonstra desde
sua constituição ineficiência e dificuldades em cumprir seus objetivos, no caso punir e
recuperar.
A
política
penitenciaria
e
seu
acompanhamento
fiscalizador
são
de
responsabilidade do Ministério da Justiça, por meio do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciaria, sempre em observância ao que determina a lei de execução penal,
onde a competência é estabelecida pelo decreto nº 5.535, de 13 de setembro de 2005 que
determina:
I – propor diretrizes da política criminal quanto a prevenção do delito, administração
da Justiça Criminal e execução das penas e das medidas de segurança;
II – contribuir na elaboração de planos nacionais de desenvolvimento, sugerindo as
metas e prioridades da política criminal e penitenciaria;
III – promover a avaliação periódica do sistema criminal para a sua adequação as
necessidades do País;
IV – estimular e promover a pesquisa no campo da criminologia;
V – elaborar programa nacional penitenciário de formação e aperfeiçoamento do
servidor;
VI – estabelecer regras sobre a arquitetura e construção de estabelecimentos penais e
casas de albergados;
VII – estabelecer os critérios para a elaboração da estatística criminal;
VIII – inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penais, bem assim informa-se,
mediante relatórios do conselho penitenciários requisições, visitas ou outros meios,
acerca do desenvolvimento da execução penal nos Estados e Distrito Federal,
39
propondo as autoridades dela incubida as medidas necessárias ao seu
aprimoramento;
IX – representar ao Juiz da Execução ou a autoridade administrativa para
instauração de sindicância ou procedimento administrativo, em caso de violação das
normas referentes a execução penal; e
X – representar a autoridade competente para a interdição, no todo ou em parte, de
estabelecimento penal. (LEI DE EXECUÇÃO PENAL)
Assim, o sistema penal, além de funções administrativas, estabelece políticas
internas seja para punição ou “favores” que, por sua vez, excede a função da sentença e age
diretamente no comportamento da reclusa. Dessa maneira, o sistema prisional acaba por se
autonomizar e gerar variação na pena e sua aplicação. Referente às políticas públicas penais,
Adorno (2000) coloca que
Estamos pensando num conjunto de normas, meios e procedimentos técnicos, que
são dotados pelo Estado para prevenir a criminalidade, conter a delinquência,
promover a reparação de um bem atingido pela ofensa criminal, custodiar cidadãos
condenados pela justiça e realizar a segurança da população. É importante observar a
generalidade das políticas públicas do País, onde essas se colocam como
ressocializadoras e recuperadoras, mas que são de cunho meramente punitivo.
(ADORNO, 2000, p. 25)
A
diversidade
do
sistema
prisional
brasileiro,
com
seus
diferentes
estabelecimentos, atores e necessidades, torna complexa qualquer pena. As que estão no
sistema penitenciário incorporam sua fragilidade social que, consequentemente, está
relacionada à negligência por parte do Estado, provocando um desenvolvimento contrário ao
qual é oficialmente o objetivo do sistema de punição.Em vez de reintegração, há uma enorme
probabilidade a reincidência, revelando um sistema prisional ineficiente. Há uma grande
urgência em garantir dignidade às presas. É absurdo a justiça compactuar com a prática de
mulheres dando à luz algemadas, exemplo de violação das resoluções dos direitos humanos
nacionais e internacionais.Percebemos que poucos se interessam e trabalham com a questão
do sistema prisional, e menos ainda com a questão da mulher. A modernização do sistema
penitenciário e a expansão dos programas socioeducativos são vetores necessários para
garantir que a dignidade e o respeito humano possam ser contemplados e vivenciados, abrindo
novas oportunidades que futuramente permitirão a realização plena e efetiva das obrigações
legais do Estado.
3.2 O cenário do cárcere
40
O sistema penitenciário feminino brasileiro esconde uma realidade dolorosa e
violenta, um cenário frio, precarizado e inadequado que abriga mulheres com histórias de vida
diferentes e com um presente em comum. A realidade prisional do Brasil é marcada por
superlotação, falta de acesso à saúde, ausência de atividades específicas à mulher e trabalham
no mesmo padrão de penitenciarias masculinas. Dentro desse contexto percebemos que as
especificidades femininas como a maternidade e cuidados a saúde da mulher são ignoradas.
A Constituição Federal instituiu no artigo 1º o Estado Democrático de Direito que
a dignidade humana é um de seus pilares. Tratando de direitos e garantias a Carta Magna
afirma que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.” A
Organização das Nações Unidas pontua regras mínimas que devem ser cumpridas no
tratamento aos reclusos quando assinala que
As regras que se seguem devem ser aplicadas, imparcialmente. Não haverá
discriminação alguma com base em raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política
ou outra, origem nacional ou social, meios de fortuna, nascimento ou outra
condição. (MORAES, 2002, p.157)
A sociedade tem despertado para discutir questões de grande importância no
campo dos direitos humanos, sendo, assim, discutir a realidade de mulheres encarceradas
também deve ter seu espaço. Nesse contexto, deve-se levar em consideração a realidade
prisional do Brasil, pois se percebe que, em muitos aspectos, ela deixa a desejar quanto às
condições colocadas pela ONU e lei de execução penal. A Constituição Federal e tratados
internacionais em que o Brasil se propôs assumir no tocante ao tratamento dispensado à
população carcerária não condiz com a realidade vivida dentro das prisões. Segundo Borges,
As normas penais e sua execução foram estruturadas assim como outras formas de
controle social a partir do ponto de vista masculino, tal afirmação nos faz perceber
que as especificidades femininas são desconsideradasdiante a sociedade
fundamentalmente patriarcal e machista, que percebe a mulher como submissa e
objeto de satisfação, passiva e sem direitos. As estatísticas revelam que os homens
dominam a participação em crimes, porém a participação de mulheres em crimes e
delitos vem ao longo do tempo sendo constante. (BORGES, 2007, p.193).
Em dezembro de 2012 um levantamento do Ministério da Justiça apontou que no
Brasil existem 53 penitenciarias femininas, 4 colônias agrícolas, 7 casas de albergados, 9
41
cadeias públicas e 5 hospitais de custodias para abrigarem as mulheres identificadas com
problemas mentais. No período em que foram levantados os dados havia 31.552 mulheres
presas no país, 3.733 tinham o ensino médio incompleto, 13.584 não haviam completado o
ensino fundamental, 2.486 tinham sido alfabetizadas e 1.382 eram analfabetas. Dentre toda
essa população, apenas 272 mulheres tinham o ensino superior. Esses dados nos revelam que
o perfil de mulheres presas está ligado à baixa escolaridade e, na maioria dos casos, elas vêm
de família de classe pobre.
Os dados estatísticos de mulheres encarceradas revelam também que mulheres
chefes de família, que assumiram a responsabilidade financeira da casa tem grande
representação nos números, a maioria das acusações e detenções são por crimes contra o
patrimônio e tráfico de entorpecentes, sendo a renda destinada a sustentação da casa. Porém
não é somente nesses casos que as mulheres atuam, homicídios, infanticídios, furtos, roubos,
latrocínios, estelionatos, perturbação da ordem, da moral e bons costumes também fazem
parte do cotidiano de mulheres criminosas.
Pelo controle sob o sujeito, a instituição retira qualquer autonomia do recluso,
reforçando que tem total poder sobre esses indivíduos. A rotina é estabelecida mediante um
processo de organização que tem como resultado a anulação e perca de autonomia, já que a
intimidade e a privacidade são violadas em virtude do objetivo da instituição, restando poucas
possibilidades para manifestação de vontade, ou seja, há rotina estabelecida pela direção, na
qual, não são consultadas e nem têm direito de escolha. As sensações de vazio, monotonia,
ociosidade pintam um cenário ainda mais frio, durante o dia buscam atividades para se distrair
e amenizar o peso dos portões fechados.
No Auri eu trabalhava, lá tinha uma confecção e eu fui trabalhar honestamente pela
primeira vez na vida. Eu gostava muito de ter o que fazer, ajudava o tempo, passava mais
rápido. Lá dentro eu aprendi um monte de coisa e ainda tinha aquela condição de que se eu
trabalhasse minha cadeia diminuía. (Lígia, 32 anos)
Para Foucault (2002), o encarceramento penal, desde o início do século XIX,
recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos.
Esta ideologia de privação de liberdade e disciplina acaba transformando os internados em
indivíduos autômatos.
42
3.3 As mulheres presas e processos de discriminação
Apesar da evolução e atuação na sociedade, a mulher continua sendo excluída e
discriminada e, mesmo com o desenvolvimento tecnológico e o rompimento com a igreja, a
moral cristã continuou sendo parâmetro para a vida social, sendo notório em discursos
criminológicos. As diferenças entre o masculino e o feminino estão ligadas ao discurso que
impõe estereótipos entre os papeis a serem executados dentro da sociedade pelos homens e
pelas mulheres. Todavia, considerando que a prisão já é uma violência, saber que este
ambiente proporciona violação de direitos não causa surpresa diante dos relatos das
encarceradas. A esse respeito Espinoza apresenta que
O cárcere como uma instituição totalizante e despersonalizadora e o indivíduo que
nele se encontra apresenta ruptura em diversos níveis sociais. O cárcere não
apresenta somente a condição da perda da liberdade, mas da privação,
autodeterminação e capacidade de reconhecimento social. (ESPINOZA, 2004, p. 78)
Por certo, o cárcere produz naqueles que nele habitam sentimentos de
inferioridade e efeitos desmoralizantes. Tratar da mulher no sistema penitenciário apresenta
um dilema, pois aquela que se delegou cuidar da família, casar e ter filhos, sempre fora vista
como frágil e dócil no imaginário social, agora descumpriu seu papel e quebrou regras, neste
caso, deve pertencer a um confinamento como punição ideal. Isto aponta que é válida e
pertinente a ideia de confinar a mulher que praticou algum crime tem objetivo de restauração
da moral. Para Espinoza (2004, p. 79), “a educação penitenciariabusca, prioritariamente,
reinstalar nas mulheres o sentimento de pudor, sendo estas, objetos de incidência de objetivos
moralizadores”.
As mulheres encarceradas são relegadas no sistema carcerário e colocadas em
segundo plano, a princípio podemos analisar a estrutura física dos presídios. Conforme
informações do Departamento Penitenciário Nacional, a maioria dos estabelecimentos penais
femininos são adaptados e sem qualquer tipo de tratamento para ressocialização das presas,
inviabilizando aparelhos como creche e berçário para os filhos. As encarceradas encontramse estigmatizadas, inicialmente, por ser mulher, em sua maioria a população carcerária é
composta por presidiárias de baixa classe social e escolaridade mínima, carregando uma
marca de desvalor social. Com a inserção na prisão perdem sua cidadania e passam a ser
vistas como delinquentes. Lígia coloca em questão o tratamento recebido e relata: “Tem
43
agente que honra a farda que veste, mas é muito pouco, a maioria trata a gente como bicho e
diz que tem nojo da gente. Eu é que tenho nojo delas, elas tão ali só pelo dinheiro e esquece
que a gente é ser humano também.”
As políticas penitenciarias foram elaboradas para homens, com isso, as mulheres
são invisíveis e sofrem com a degradação de sua imagem e por ter sua dignidade violada. Os
discursos de fragilidade e delicadeza sobre as mulheres as colocam em um lugar que a
sociedade não atribui a sua figura, passando a vê-las como invasoras de um lugar que não lhe
pertence. A justificativa para a falta de políticas penitenciarias está baseada em que não se
espera que a mulher pratique atos delituosos uma vez que a mulher é considerada não apta aos
atos agressivos. Mesmo com a menor parcela de mulheres em relação a população carcerária
masculina esse fator não pode ser determinante para falta de políticas e garantia de direitos,
conforme os dados do Infopen - as mulheres representam aproximadamente 6,5% (seis e meio
por cento) dos presidiários.
44
4 O SERVIÇO SOCIAL E A RESSIGNIFICAÇÃO PROFISSIONAL
A história da sociedade brasileira é marcada por lutas, crises econômicas e tensão
do Estado que se configura neoliberal e capitalista. A questão social que se agrava ao decorrer
dos séculos encontra espaço e se expressa no dia a dia de uma sociedade desfavorecida,
composta por minorias e enfraquecida financeiramente. No século XIX trabalhar no contexto
da estrutura e das relações sociais que peculiarizavam a sociedade era uma tarefa que a classe
dominante reservou aos assistentes sociais. A princípio tal trabalho estava longe de uma
observação às relações sociais, caracterizando como noção de caridade.
Com o advento do cristianismo a assistência ampliou a visão se fundamentado não
somente na caridade, mas especialmente na justiça social. Ao longo do tempo, inúmeros
foram os caminhos trilhados pela assistência, assim como as formas operacionais adotadas
para concretiza-la, porém um elemento se manteve sempre a ela vinculado, a caridade para os
pobres. Desde a era medieval até mesmo o século XIX, a assistência era encarada como forma
de controlar a pobreza e de ratificar a sujeição daqueles que não tinham posses ou bens
materiais. Na assistência prestada pela burguesia havia sempre outras intenções, o que se
buscava era perpetuar a servidão e fortalecer a submissão. A tarefa de racionalizar a
assistência veio ao final da primeira metade do século XIX, da aliança da burguesia com a
Igreja Católica nasceu à sociedade de organização de caridade.
O Serviço Social trabalhando para a igreja tinha que trabalhar a massa, no sentido
de impedir as manifestações coletivas e manter controle sobre a questão social. Tinha uma
função ideológica, onde a repressão à organização da classe trabalhadora era essencial. A
racionalização da assistência acabou constituindo uma estratégia política na qual a burguesia
procurava desenvolver o seu projeto de hegemonia de classe.
O serviço social teve suas origens dentro da Igreja Católica e visava preparar a
grande massa operária para a o capitalismo industrial, período conhecido como
“conservador”, o objetivo era preparar essa população para sistema socioeconômico e político
da época.No Brasil, o Serviço Social nasceu por volta de 1930, como afirma Pellizzer (2008,
p.28),o Serviço Social nasce no Brasil, na terceira década do século XX, em resposta à
evolução do capitalismo, sob a influência europeia, como fruto direto de vários setores
particulares da burguesia fortemente respaldados pela Igreja Católica. Nessa década, o Brasil
45
vivia 6um processo de industrialização de importações, no período de 1930 a 1935, o governo
brasileiro sofre pressões da classe trabalhadora, que é então controlada através da criação de
organismos normatizadores e disciplinares das relações de trabalho, em especial através do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
O governo Getúlio Vargas é gestado em busca de crescimento urbano – industrial
e fez emergir, na sua gênese capitalista, a questão social, que também é fruto das pressões e
dos questionamentos da sociedade que passava por grandes transformações, no plano do
conhecimento científico.A primeira escola de Serviço Social no Brasil é datada de 1936 em
São Paulo, desenvolvia estudos de ação social vinculado a Igreja Católica. Neste centro eram
organizados cursos de qualificação para organizações leigas no catolicismo, adequando
política e ideologicamente a classe operária, nesta perspectiva surgiu o Serviço Social.
Nascido por influência direta da Igreja Católica a profissão teve como suporte filosófico o
neotomismo, em sua primeira fase, intervém no aparecimento da questão social, produzida
pela relação de trabalho capitalista. O surgimento do trabalho livre profundamente marcado
pela escravidão coloca a força do trabalho como moeda de troca.
Dessa forma, as leis sociais marcam “deslocamento da questão social de ser apenas
a contradição entre abençoados e desabençoados pela fortuna, pobres e ricos, ou
entre dominantes e dominados, para constituir-se, essencialmente, na contradição
antagônica entre burguesia e proletariado, independentemente do pleno
amadurecimento das condições necessárias à sua superação” (IAMAMOTO;
CARVALHO,1988,p.129).
No decorrer da história muitos fatos marcantes e significativos ocorreram e foram
responsáveis por mudanças relevantes no Serviço Social. A partir dos anos 80 o Serviço
Social continuou enfrentando lutas para quebrar paradigmas na sociedade e aumentou a luta
pela defesa dos direitos humanos. “O objeto do Serviço Social, de uma perspectiva histórica,
passa para a discussão das relações de poder e saber, aprofundando o olhar crítico do contexto
em mudança” (PELLIZZER, 2008, p. 28).
O Serviço Social experimentou, no Brasil, um profundo processo de renovação, se
desenvolveu teórica e praticamente, laicizou-se, diferenciou-se e, na entrada dos anos
noventa, apresenta-se como profissão reconhecida academicamente e legitimada socialmente.
6
Neoliberalismo: doutrina proposta por economistas franceses, alemães e norte-americanos, na primeira
metade do sXX, voltada para a adaptação dos princípios do liberalismo clássico às exigências de um Estado
regulador e assistencialista, que deveria controlar parcialmente o funcionamento do mercado.
46
A dinâmica deste processo que conduziu à consolidação profissional do Serviço
Social materializou-se em conquistas teóricas e ganhos práticos que se revelaram
diversamente no universo profissional. No plano reflexivo e da normatização ética, o Código
de Ética Profissional de 1986 foi uma expressão daquelas conquistas e ganhos, através de dois
procedimentos, negação da base filosófica tradicional, nitidamente conservadora, que
norteava a “ética da neutralidade”, e afirmação de um novo perfil do técnico, não mais um
agente subalterno e apenas executivo, mas um profissional competente teórica, técnica e
politicamente. De fato, construía-se um projeto profissional que, vinculado a um projeto
social radicalmente democrático, redimensionava a inserção do Serviço Social na sociedade
brasileira, comprometido com os interesses históricos da população trabalhadora. O
amadurecimento deste projeto profissional passou a exigir uma melhor explicitação do sentido
do Código de 1986. Tratava-se de objetivar com mais rigor as implicações dos princípios
conquistados e plasmados naquele documento, tanto para fundar mais adequadamente os seus
parâmetros éticos quanto para permitir uma melhor instrumentalização deles na prática
cotidiana do exercício profissional.
Acompanhando as transformações da sociedade brasileira, a profissão passou por
mudanças e necessitou de uma nova regulamentação, a lei 8662/93. Ainda em 1993, o Serviço
Social instituiu um novo Código de Ética, expressando o projeto profissional contemporâneo
comprometido com a democracia e com o acesso universal aos direitos sociais, civis e
políticos. A prática profissional também é orientada pelos princípios e direitos firmados na
Constituição de 1988 e na legislação complementar referente às políticas sociais e aos direitos
da população, não pode haver qualquer tipo de discriminação no atendimento profissional.
É mediante o processo de trabalho que o ser social se constitui, se instaura como
distinto do ser natural, dispondo de capacidade teleológica, projetiva, consciente; é por esta
socialização que ele se põe como ser capaz de liberdade. Esta concepção já contém em si
mesma, uma projeção de sociedade, aquela em que se propicie aos trabalhadores um pleno
desenvolvimento para a invenção e vivência de novos valores, o que, evidentemente, supõe a
erradicação de todos os processos de exploração, opressão e alienação. É ao projeto social aí
implicado que se conecta o projeto profissional do Serviço Social – e cabe pensar a ética
como pressuposto teórico-político que remete para o enfrentamento das contradições postas à
profissão, a partir de uma visão crítica, e fundamentada teoricamente, das derivações ético-
47
políticas do agir profissional. Os princípios fundamentais do código de ética coloca os
seguintes fundamentos:
I-
Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas
políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos
sociais;
II- Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do
autoritarismo;
III- Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de
toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis sociais e políticos das classes
trabalhadoras;
IV- Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da
participação política e da riqueza socialmente produzida;
V- Posicionamento em favor da eqüidade e justiça social, que assegure
universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas
sociais, bem como sua gestão democrática;
VI- Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o
respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à
discussão das diferenças;
VII- Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais
democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o constante
aprimoramento intelectual;
VIII- Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de
uma nova ordem societária, sem dominação exploração de classe, etnia e gênero;
IX- Articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que
partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores;
X - Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o
aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional;
XI - Exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar, por
questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção
sexual, idade e condição física.
O código de ética e suas diretrizes tem fundamental importância na atuação dos
profissionais e direcionamentos da profissão. Colocados em pratica os nortes do presente
código possibilita a reversão de fatores negativos que contribuem para uma sociedade
injusta, proporcionando a classe desfavorecida um aparato legal e colocando a frenética
dinâmica da questão social em menor desempenho.
4.1 Trabalho do assistente social e suas intervenções
Os assistentes sociais nas suas diversas inserções e na efetivação de suas ações, de
acordo com os referenciais do projeto profissional, devem estar atentos às armadilhas que
envolvem a analise da questão social. Para Iamamoto:
[...] a questão social expressa à subversão do humano própria da sociedade
capitalista contemporânea, que se materializa na naturalização das desigualdades
48
sociais e na submissão das necessidades humanas ao poder das coisas sociais - do
capital dinheiro e seu fetiche. (IAMAMOTO, 2007, p.125)
Diante a uma sociedade imersa no caos social percebemos, os desafios inerentes a
profissão, o assistente social enfrenta barreiras fortalecidas no capitalismo e neoliberalismo
que coloca o Estado como inimigo. A criminalidade é uma expressão da questão social, o
sistema econômico ao qual está submetida à sociedade propicia a busca de recursos para
manter a família, dentre eles, os recursos ilegais. Lígia é um exemplo da questão social em
sua dinâmica. No período em que esteve reclusa, Lígia recorreu ao Serviço Social em busca
de alívio para seus conflitos, um deles refere-se aos filhos que com sua prisão foram levados
para um abrigo, onde Lígia perdeu o contato e não tinha nenhuma informação. Lígia procurou
o Serviço Social, colocando suas angústias em busca de seus filhos, assim o Serviço Social
passou a trabalhar o caso de Lígia, articulando suas unidades em busca de informações que
levassem aos filhos de Lígia. O Serviço Social do IPFDAMC foi resolutivo nesta demanda,
sua articulação junto aos abrigos localizou os filhos de Lígia, possibilitando o reencontro.
Lígia relatou: Eu tava tão angustiada e todo dia eu pedia pra falar com a assistente social, ela
me dizia que estava trabalhando para localizar meus filho, mas eu duvidei achava que era
mentira dela. Aí um dia a “policia” me chamou e disse pra eu me ajeitar que a doutora queria
falar comigo. Quando cheguei na sala a assistente social tava segurando uma foto deles e me
perguntou: esses são os seus filhos? Nessa hora eu só consegui abraçar ela e chorar. Ela me
pediu pra me acalmar e disse que eu ia receber a visita deles no domingo.
O assistente social é desafiado no tocante à execução de medidas que favoreçam
as minorias, como exemplo as mulheres que cometem crimes, mas que não deixam de ser
sujeitos de direitos. Em benefícios a essas mulheres a categoria busca defender de forma
radical o Projeto Ético-Político do Serviço Social construindo condições para sua
materialização no cotidiano. Desta forma é imprescindível continuar preservando a autonomia
do projeto, sem cair na armadilha de sua flexibilização.
Como estratégias para o fortalecimento do trabalho profissional no cotidiano, o
conjunto CFESS/Cress tem tido como diretriz a elaboração de parâmetros de ação para as
principais áreas de atuação profissional. O Serviço Social deve fortalecer o exercício
profissional com base no projeto ético-político, este que subsidia os assistentes sociais de
referências teóricas e ético políticas para realização de suas competências e atribuições na
defesa dos direitos tendo como objetivo a emancipação humana. Continuar aprofundando seu
49
conhecimento na teoria critica em muito contribui para análise e transformação da realidade e
no enfrentamento as desigualdades sociais.
A assistência jurídica é de direito de todos os presos, mas parte destes é de classe
baixa, tendo que esperar o serviço de assistência gratuita, havendo um número muito baixo de
defensores públicos. No sentido da assistência social, o preso deve receber amparo para ser
preparado para sua liberdade. As atividades desempenhadas pelos assistentes sociais estão em
consonância com Lei de Regulamentação da Profissão. Destaca-se que estas atividades têm
como objetivo contribuir no tratamento penal, contudo, devido ao acúmulo de atividades
burocráticas, os assistentes sociais enfrentam dificuldades para desenvolvê-las de forma a
contribuir com o objetivo proposto. Conforme preconiza a lei de regulamentação da profissão
em vigor, em seu artigo 4º, que estabelece a competência do assistente social, no qual se
destaca o inciso XI – “realizar estudos socioeconômicos com os usuários para fins de
benefícios e serviços sociais junto a órgãos da administração pública direta e indireta,
empresas privadas e outras entidades”. No artigo 5º, estabelece atribuições privativas do
assistente social, descrevendo no inciso IV: “realizar vistorias, perícias técnicas, laudos
periciais, informações e pareceres sobre a matéria de serviço social”.
Cabe ao assistente social “acompanhar o resultado das permissões de saídas e das
saídas temporárias”. Em relação ao acompanhamento das saídas das presas da unidade em
qualquer tipo de regime ou nas saídas temporárias com objetivo de visitar a família. Os
assistentes sociais têm contribuído de maneira efetiva, considerando que muitas presas não
possuem recursos em espécie para custear as despesas fora da prisão. O Serviço Social no
primeiro momento entra em contato com os familiares com objetivo de informá-los sobre o
benefício concedido e para verificar a possibilidade dos mesmos custearem as despesas. No
caso daqueles que não possuem vínculos familiares o Serviço Social entra em contato com o
DEPEN para verificar a possibilidade do mesmo custear tais despesas, fazendo os
encaminhamentos necessários. O Serviço Social também realiza orientações no sentido de
facilitar o seu retorno à liberdade e ao convívio sócio-familiar. Desta forma, em relação às
atribuições especificas do serviço social, considera-se que dentro das possibilidades, os
profissionais têm alcançado os objetivos propostos, para tanto busca-se:
[...] ser um profissional criativo, no sentido de “desenvolver sua capacidade de
decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar
direitos, a partir de demandas emergentes no cotidiano”, como aponta Iamamoto
(1998:20), evitando permanecer somente como executor de tarefas e determinações,
é o desafio permanente que se propõe aos profissionais assistentes sociais (CFESS,
2008, p. 27).
50
Diante as colocações sobre o trabalho do assistente social e das exigências
profissionais colocadas no ambiente de trabalho, percebe-se que o grande desafio é
desenvolver propostas que sejam capazes de garantir a efetivação de direitos sociais da
população carcerária. A construção de um projeto societário voltado para a emancipação
humana, contra hegemônica aos interesses do capital é uma necessidade, a luta pela garantia
dos direitos deve se articular jun7to as instituições prisionais, buscando reafirmar as políticas
públicas universais e de responsabilidade do Estado.
Os direitos sociais como resultado de movimentos e lutas sociais, objetivam a
visualização e compreensão por parte do Estado, das demandas e necessidades produzidas
socialmente. Segundo Coutinho (1997, p.155), os direitos civis, os quais fundam a condição
da cidadania moderna, operam com uma abstração das diferenças e dos antagonismos de
classe. Tais interesses em confronto reaparecem na luta dos trabalhadores pelos direitos
sociais, considerados como aqueles que permitem aos cidadãos uma participação mínima na
riqueza material e espiritual criada pela coletividade. O mero reconhecimento do fundamento
moral ou do fato de serem desejáveis, bons e justos, não transforma direitos declarados em
direitos consagrados. Dessa forma,
Os direitos, porém, não são uma dádiva, nem uma concessão. Foram„arrancados‟
por lutas e operações políticas complexas. (...) não são uma doação dos poderosos,
mas um recurso com o qual os poderosos se adaptam às novas circunstancias
histórico-sociais, dobrando-se com isso, contraditoriamente, às exigências e pressões
em favor de mais vida civilizada (Nogueira, 2004, p.02).
Portanto, os direitos sociais surgem de embates políticos e são frutos de ações de
protagonistas sociais que reivindicam e problematizam suas demandas, objetivando um
sistema de cobertura às exclusões e vulnerabilidades vivenciadas, expressando ações contra a
ordem, na medida em que apontam para novos padrões de convivência e de sociabilidade.
Apreendidos como respostas a um padrão de cidadania, visto que toda luta requer ruptura com
as relações instituídas, redimensionadas a favor da autonomia e da equidade. Entretanto, a
existência de garantias legais não se traduz necessariamente em garantias efetivas, não
bastando somente afirmar legalmente um direito para vê-lo respeitado e materializado como
uma realidade, visto que existe uma grande fratura entre o anúncio do direito e sua efetiva
materialização. Nessa mesma linha de pensamento, Nogueira (2004, p. 03), salienta que
7
DEPEN: Departamento Penitenciário Nacional
51
“Paralelamente à reiteração jurídico-formal dos direitos, continuam a se multiplicar as
situações de desrespeito, preconceito, exclusão e indiferença, assim como continuam a se
prolongar as situações de marginalidade, „desproteção‟ e arbítrio.
A luta por direitos é um processo de construção coletiva, exigindo o resgate do
protagonismo, transformando os usuários em sujeitos potencialmente revolucionários, onde
situamos a importância do trabalho do Serviço Social e suas contribuições. Nesse contexto de
lutas e construções coletivas insere-se o Serviço Social, enquanto profissão interventiva e
comprometida com os interesses das classes menos favorecidas, atuando como co-participante
nos processos emancipatórios que produzam impactos na ação e construção de sujeitos
sociais.
4.2 Perspectivas de Lígia para uma nova vida
Recomeçar parece impossível para uma pessoa que esteve reclusa, vivenciando na
pele violências, humilhações e perca de autonomia dentro de um sistema prisional. A noção
de cidadania precisa ser recuperada. Assim, os sujeitos que passaram por esse processo devem
estar no foco de uma sociedade ativa e propositiva, vislumbrando a possibilidade de efetiva
materialização de seus direitos e adquirindo visibilidade as demandas e necessidades
socialmente produzidas.
[...] sujeito (individuo) autônomo, ativo, participante, que tem consciência das
desigualdades, da concentração de poder e de privilegio, das injustiças em suas
diferentes formas de manifestação, das ameaças e do desrespeito aos direitos
humanos e, ao mesmo tempo, é capaz de usar sua criatividade para realizar
transformações por meio de sua atuação individual, inserindo-se em processos de
lutas e construções coletivas de uma sociedade humana, solidária e cidadã (SILVA
,2001,p.9).
Portanto, a partir da reflexão e ampliação da consciência social em relação às
contradições sociais, o Serviço Social estabelece estratégias de enfrentamento que visam
romper a subalternidade e garantir o acesso aos direitos sociais, através da luta e o
fortalecimento das ações coletivas, visto que conforme Yasbek (1996, p.19) ao adquirir
visibilidade, conquistar direitos e protagonismo social, as classes subalternas avançam no
processo de ruptura e na produção de uma cultura em que prevaleçam seus interesses de
classe.
O cenário criminal teve aspectos e reflexos da desigualdade social, para se
alimentar e fortalecer o cotidiano de Lígia. A falta de acesso à educação e emprego
52
propiciaram seu enveredamento por caminhos “fáceis” em busca de lucros para manutenção
da família. Infelizmente, como nesse estudo de caso mostrou, Lígia pagou um alto preço
perante a sociedade. Dentro de um sistema que nega a mulher, a inferioriza e humilha, o
sistema prisional se encarregou de validar sua invisibilidade proporcionando esquecimento e
marcas profundas no seu ser.
O Serviço Social contrariando essa ação colocou-se oposto as condenações e
buscou garantir direitos no atual contexto de Lígia, junto a Coordenadoria de Inclusão Social
do Preso e Egresso (CISPE) após a concessão de regime semiaberto articulou medidas que
proporcionaram à Lígia entrar no mercado de trabalho, uma vez que ela nunca tinha
trabalhado em regime de carteira assinada. Atualmente Lígia presta serviços a um hospital da
cidade de Fortaleza, mora com seus filhos e voltou ao convívio familiar, conforme expressa:
Depois que ganhei minha liberdade eu entendi o quanto ela é valiosa, não só pra
mim, mas pros meus filho que ficaram sofrendo no abrigo. Eu procurei minha mãe,
meus irmão e pedi perdão, eles me aceitaram e eu não quero vê minha mãe chorar de
novo. Quando eu saí da prisão eu me senti perdida, sabe quando você não se acha
em lugar nenhum, tudo é estranho? Eu tinha medo de sair de dentro de casa. Eu só
saí à primeira vez quando a doutora lá da SEJUS me ligou, ela tava me ajudando a
tirar meus filhos do abrigo ai ela disse que eu tinha que ir lá pegar uns papel pra
levar no abrigo. Mas eu fui morrendo de medo. Eu só me senti melhor quando liguei
pra minha irmã, eu quase não tive coragem, fazia mais de três anos que eu não
falava com ninguém da minha família. Quando ela atendeu que eu disse que era eu
ela começou a chorar nessa hora eu percebi o quanto fiz mal pra eles também. Mas
isso já passou! Agora eu to mais acostumada, eu trabalho e convivo com muita
gente. Lá no meu trabalho todo mundo me trata bem, lá eu não sou diferente de
ninguém, mas fora as pessoas tem preconceito, minha chefe diz pra eu não ligar,
mas é difícil sabe? Mas eu to feliz, aqui fora eu tenho tanta coisa boa pra viver, eu
quero estudar, eu sou auxiliar na cozinha e eu quero fazer uma faculdade de cozinha,
acho que é gastronomia que chama. Quero ensinar meus filhos as coisas direito,
quero ver os três sendo homem e mulher de bem. Quero que eles estude pra ser
doutor. Ate lá eu vou trabalhar muito fazer tudo direitinho pra nunca mais passar o
que eu passei, eu sei que não vai ser fácil, agente fica marcada. À noite quando eu
vou dormir eu vejo aquelas grades, consigo vê direitinho as celas, lembro de tudo o
que eu passei. Os dias que eu fiquei na tranca (silêncio - Lígia chora), as “policia”
me batendo... Mas eu to viva, Deus me deu uma nova oportunidade e é só isso que
importa. Eu vou recomeçar e ter uma vida boa de
verdade... acho que já to até
apaixonada sabe? (Risos). Mas isso é pra outro momento agora não dá não. Agora
eu preciso cuidar dos meus filho tentar compensar eles por todo o tempo que eu tava
presa e só Deus sabe o que eles passaram. E muito obrigada por se interessar pela
minha historia, é uma historia tão feia, mas acho que vai servir pra alguma coisa, to
até me sentindo importante! (Risos).
Lígia recomeçou sua vida, hoje busca se manter longe de qualquer pessoa ligada a
seu ex marido e ao mundo do crime. Está trabalhando e faz disso uma oportunidade para uma
vida melhor. Lígia ressalta que hoje é mãe de verdade, que sabe dar amor e atenção, mas que
só aprendeu isso após o período que esteve longe dos filhos. Ela diz que a palavra recomeçar
53
está escrita no espelho de seu quarto e todos os dias ao acordar é a primeira imagem que vê.
Lígia entendeu que não precisa de um marido ou qualquer pessoa que a coloque em situação
de vulnerabilidade, a ressignificação que ela se permitiu a colocou em um novo caminho.
54
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pesquisar o universo da criminalidade tendo a mulher como protagonista é um
desafio, nesse processo as indagações usam a investigação, na tentativa de compreender a
realidade, em determinado momento histórico. Nessa perspectiva, delimitei o objeto de estudo
e elegi como foco principal as influências e motivações para a inserção da mulher no crime. A
pesquisa possibilitou a compreensão de que os fatores econômicos e afetivos são a principais
motivações que proporcionam a mulher adentrar este cenário, em específico este estudo de
caso trouxe as motivações de Lígia reafirmando sua inserção no mundo do crime por fatores
econômicos e afetivos.
A realidade dessas mulheres como Lígia é complexa, pois a esmagadora maioria
tem em suas histórias de vida a pobreza, falta de acesso à educação e negação por parte da
sociedade. Quando aprisionadas, perdem não só a liberdade, mas também identidade e
autonomia. O cárcere se faz com muros altos, portões reforçados, grades, e cadeados, e
bloqueia por determinado tempo o curso de uma vida. O crime para Lígia por algum tempo
trouxe conforto, poder e riqueza, mas tudo foi em vão, pois com sua saída desse mundo tudo
não passou de lembranças. Na prisão, seu mundo era controlado, movimentos em uma
permanente vigilância.
Em contraposição à realidade vivenciada por Lígia, encontra-se o rentável negócio
da droga representando um dos setores mais lucrativos. Envolvidos nesse negócio, encontrase não apenas pessoas de segmentos sociais mais vulneráveis, no entanto, em raríssimas
exceções, apenas pessoas de segmento mais pobre da sociedade prestam conta em julgamento
e vão para o presídio. Na verdade, um contingente significativo de mulheres, invariavelmente,
pobre, está no cárcere, sem que se discutam as condições de encarceramento. Como um dos
objetivos do presente trabalho, a avaliação das condições de encarceramento feminino
reafirmou o quanto as políticas públicas para essas mulheres não atendem as suas
necessidades.
No presente estudo de caso foi possível constatar que a exclusão social,
representada pelo desemprego, permanente ou precário, a necessidade de atendimento aos
direitos, principalmente, no que diz respeito assistência aos filhos e à saúde; foi fator
motivador para a inserção de Ligia no cenário criminal. Há uma gama de questões que
parecem não fazer parte de prioridades sociais, no entanto, são problemas urgentes que
merecem atenção.
55
Pela pesquisa e depoimento de Lígia fica consolidado o fato de que o desemprego
estrutural e o estado de absoluta necessidade de meios para prover a sobrevivência pessoal ou
da família constituem os maiores responsáveis pela inserção no mundo do crime. Desta forma,
o tráfico passa a constituir facilmente a estratégia de sobrevivência. Neste contexto, de
mulheres postas à margem do mundo do trabalho, que precisam suprir as necessidades de
subsistência da família, o crime e práticas ilícitas passam a representar uma real estrutura de
oportunidade. A comercialização da droga, nos últimos anos, abre mais espaços para inserção
feminina, principalmente para mulheres de segmentos sociais mais vulneráveis, como, por
exemplo, Lígia. O crime e especificamente o tráfico de drogas passa a representar uma
oportunidade para as mulheres, não só pela oportunidade de um retorno financeiro rápido,
mas também pela informalidade do mercado e ausência de barreiras a inserção de mão-deobra feminina nesse negócio.
Ao contrário do trabalho formal, o crime oferece vários atrativos, como fácil
acesso, remunerações e tarefas mais fáceis de serem executadas, já que nesse campo a mulher
geralmente gerencia e revende drogas, sendo ainda um negócio lucrativo. Esses fatores são
positivos para muitas mulheres que trabalham com crimes, mas entendem que as atividades
ilícitas têm alto risco pessoal.
Ocorre que, na ausência de acesso ao trabalho formal, o crime envolve a mão-deobra feminina de segmento social mais vulnerável, e esse fator elevou o percentual de
mulheres encarceradas. Por consequência o aprisionamento atinge não só a mulher, mas
também a família. Compreende-se através deste estudo que as políticas utilizadas para
controlar o crime têm caráter meramente repressivo, protelando soluções definitivas.
Os cuidados para as especificidades da população prisional feminina sofrem com
a absoluta negligência dos gestores do sistema prisional brasileiro, no que diz respeito à
questão de gênero. A realidade é que um número significativo de mulheres se encontra no
cárcere, sem que sejam discutidas condições de encarceramento.É urgente aelaboração de
políticas que assegureminclusão no mercado de trabalho, tratando mulheres com igualdade de
oportunidades e a criação de programas que assistam àsfamílias das internas também é
essencial, uma vez que os vínculos familiares se fragilizam.
Diante desse quadro, é importante ressaltar que novas abordagens se fazem
necessárias para compreender o fenômeno da mulher no crime, não é possível uma análise
56
aprofundada das causas e efeitos do crime, sem a compreensão da estrutura social e
econômica e das desigualdades sociais existentes em cada realidade.
Nesse contexto apresentado percebe-se que a atuação do assistente social pode
proporcionar meios de garantias de direitos através de formulações de políticas aplicáveis à
demandas da sociedade, nesse caso políticas específicas ao sistema prisional, às mulheres
encarceradas e às mulheres em regime semiaberto. Na história sociopolítica do ocidente, as
constituições evoluíram ao reconhecer os direitos sociais, ao lado dos direitos individuais
civis.
Na atual conjuntura, o assistente social tem se destacado como o profissional mais
qualificado para elaborar e executar políticas de bem estar social, cabendo ao mesmo
promover melhor inserção socioeconômica de indivíduos, famílias e grupos, bem como
procurar meios para amenizar as expressões da questão social. Logo, estamos sendo
desafiados a reexaminar e aprimorar nossa contribuição político-profissional, face às inúmeras
mudanças econômicas e ideológicas, impostas pelo novo reordenamento do capitalismo em
escala mundial, engajados na defesa dos direitos e da justiça social. Cabe-nos, assim, indagar
quais as alternativas e caminhos de organização e atuação para as entidades representativas da
profissão, bem como para os assistentes sociais no seu cotidiano profissional, frente aos
processos sociais que estão em curso. Vale ressaltar, que optar por princípios da
universalidade, equidade, justiça social, na busca de uma nova sociabilidade, faz parte de um
contexto dinâmico.
O presente estudo, diante de tão complexa problemática não altera os
acontecimentos, no entanto, minha intenção é trazer contribuição no campo reflexivo e
colaborar de alguma forma nas discussões da temática, e que tais discussões revelem
respostas concretas para mulheres socialmente negadas. Entendemos que este trabalho não se
encerra nas conclusões obtidas ao longo da pesquisa e que ainda há cenários, visões e
categorias a serem exploradas, com o propósito de possibilitar visão ampla da realidade
pesquisada.
57
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2007. p. 193-210.
60
APÊNDICE A
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Convidamos a Senhora a participar da pesquisa “TÍTULO DO TRABALHO”, sob a
responsabilidade da pesquisadora SEU NOME, que tem por objetivo GERAL.
Sua participação é voluntária e se dará por meio de entrevista, com roteiro de perguntas prédefinidas e será gravada se assim você permitir e que tem duração aproximada de quinze a
vinte minutos.
Os resultados desta pesquisa serão publicados nos meios científicos e em nenhum momento a
Senhora será identificada. A Senhora não terá nenhum gasto ou ganho financeiro por
participar desta pesquisa.
Se depois de consentir em sua participação a Senhora pode desistir de continuar participando,
tem o direito e a liberdade de retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, seja
antes ou depois da coleta dos dados, independente do motivo e sem nenhum prejuízo a sua
pessoa.
Para qualquer outra informação, a Senhora poderá entrar em contato com a pesquisadora no
endereço Avenida João Pessoa, 3884, Bairro Damas e telefone de contato (85) 3201-7000.
Eu,___________________________________________________________,
fui
devidamente informada sobre o teor da pesquisa e a importância desta. Sendo assim concordo
com minha participação, assinando as duas vias de igual teor.
_____________________________________
Assinatura do participante
_____________________________________
Assinatura do Pesquisador Responsável
Data: ___/ ____/ _____
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