UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E ENSINO LINHA DE PESQUISA: PERSPECTIVAS DISCURSIVAS NO ENSINO DE LÍNGUA A ESCRITA NA ESCOLA: AS ESTRATÉGIAS DO DIZER EM DUAS DIFERENTES CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO TEXTUAL ALUNA: Danielly Vieira Inô ORIENTADORA: Maria Ester Vieira de Sousa João Pessoa 2006 Danielly Vieira Inô A ESCRITA NA ESCOLA: AS ESTRATÉGIAS DO DIZER EM DUAS DIFERENTES CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO TEXTUAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba, para obtenção do título de Mestre em Lingüística e Língua Portuguesa. Orientadora: Profa. Dra. Maria Ester Vieira de Sousa João Pessoa 2006 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Profa. Dra. Maria Ester Vieira de Sousa (Orientadora) ______________________________________________________ Profa. Dra. Maria Augusta G. de Macedo Reinaldo (Examinadora Externa – UFCG) ______________________________________________________ Profa. Dra. Maria das Graças Carvalho (Examinadora Interna – UFPB) João Pessoa, ____/____/_____ AGRADECIMENTOS O leitor nem precisa ser apressado para querer pular essas páginas iniciais... Ficou extenso mesmo, mas jamais poderia reduzir esse texto; talvez aumentá-lo, diminui-lo não. Se eu fosse exagerada como uma certa amiga (que adoro!), diria que esta foi a parte mais difícil do trabalho. E difícil por várias razões: seja porque não gostaria de cair na mesmice da formalidade, que afasta as pessoas; seja porque todos a quem agradeço aqui são tão amados (cada um de uma maneira), que as palavras por si só são sempre injustas e falhas (pronto! Mal comecei e já temos um clichê! Hahahaha). Muito mais que agradecer, o que quero é dividir este momentos com as pessoas que gosto; pessoas que fizeram a diferença simplesmente por existirem na minha vida, mesmo aquelas que permaneceram por um breve período de tempo ou aquelas que estão comigo desde muito antes de eu “me entender por gente”. Bem, comecemos, então... Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha família. Tia e Ozinha (minha bisa): embora nem sempre eu diga ou demonstre, como vocês mereceriam, saibam que vocês são duas preciosidades na minha vida, meus únicos tesouros. Cada dia que passa tenho mais certeza de que perdi uma mãe, para ganhar duas! Obrigada pelo amor incondicional que só as mães podem sentir. Também amo vocês. Eu não sabia, mas essa família logo iria crescer... Quando eu tinha 15 anos, ganhei um presente com que toda menina nessa idade sonha: o príncipe encantado. Ele não veio a cavalo, nem empunhava uma espada, mas, como em todo bom conto de fadas, enfrentou por mim e comigo os perigos do caminho, fazendo-me sentir mais forte, segura e, principalmente, a princesa mais amada do reino. Você, William Charles (e não é que ele tem nome de príncipe!), me mostrou que “sem amor eu nada seria”. Só nós dois sabemos as renúncias necessárias para chegarmos até aqui, o que só valoriza essa nossa vitória. “Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos”, mesmo que eu o ame por toda essa vida e a próxima, ainda não será suficiente, pois “sinto que em meu gesto existe teu gesto e em minha voz a tua voz”. Ainda preciso dizer que amo você? E ainda cabe muita gente nessa turma: minha sogra, Genalda, que contraria todas as piadas de sogra existentes, porque é maravilhosa e alguém muito especial para mim; meu sogro e meus cunhados, que, mesmo longe, acompanharam minha história e torceram por mim; meu tio Pedro e meu primo Eduardo, pessoas com quem sempre pude contar e sem as quais não teria realizado etapas importantes, como, por exemplo, participar de congressos fora do Estado; e meus irmãos, Felipe e André Luiz, que moram longe e só vejo a cada dez anos (hahahaha), mas que não saem do meu coração (vocês são meus amores, como costumo dizer). Aos 19 anos, ingressei na universidade (na época, ainda era Federal da Paraíba). E, na graduação, não tive professores, mas anjos da guarda, a guiar meus passos nos caminhos que desconhecia: a pesquisa, a docência... Poderia citar vários, mas o leitor, que já deve estar impaciente, não ficaria muito satisfeito. Vou falar de alguns, que podem muito bem representar os demais. Entre esses anjos, não poderia deixar de mencionar o prof. Luiz Francisco Dias – amigo, meu tutor no PET-Letras e depois orientador no PIBIC; alguém que confiou em mim e de quem jamais esquecerei. Aliás, foi ele quem primeiro me apresentou aos estudos discursivos, cujos pressupostos me guiam até hoje. Outra pessoa importante foi a profa. Maria Auxiliadora, a quem admiro desde que conheci, no primeiro período da graduação. Obrigada pela confiança (acho que posso dizer carinho mesmo) que sempre me dedicou. Esse momento que vivo hoje se iniciou há muito tempo, quando fui sua aluna e me inspirei no seu profissionalismo. Gostaria de agradecer pela generosidade em compartilhar comigo suas idéias, que resultaram no meu projeto de seleção do mestrado. Hoje ele está um pouco diferente (como era de se esperar), mas sua orientação, quando a procurei sem saber nem por onde começar, foi essencial! Não poderia deixar de citar também o prof. Marcos Agra, que foi o primeiro professor a acreditar em mim, quando eu ainda cursava a graduação; esse apoio eu levei sempre comigo daí por diante. Calma, Helder! Não me esqueci de você, não! Embora só tenha sido sua aluna no final do curso de Letras, suas lições foram valiosas e sua presença foi marcante em vários momentos da minha vida: na decisão de me preparar para o mestrado, no apoio durante a seleção para o cargo de professora substituta na UFCG, e, claro, na cerimônia do meu casamento! Obrigada por tudo. Ainda durante a graduação, recebi um outro presente da vida. Estou até começando a achar que sou realmente uma sortuda, pois, como se não bastasse, ganhei amigas na universidade! Contrariando todas as previsões, encontrei amizades verdadeiras nessa época, que permanecem até hoje comigo, para o que der e vier: minhas amigas (ou melhor, A.M.I.G.A.S.) Márcia Tavares, Karine Viana, Noelma Santos e Magna Lúcia. Já “apelidaram” nosso grupo de várias maneiras diferentes, mas não importa o nome e sim o carinho e a confiança que nos une, fazendo-nos estar juntas há 06 anos. Obrigada Márcia, pelo bom-humor com que leva a vida, sem, é claro, deixar de ser dura nas constatações, quando necessário (hahahaha)! Admiro a sua incrível capacidade de observação do cárater humano, e você, nesse sentido, não perde nem para Machado de Assis! Obrigada Ka, por me lembrar que dançar é bom, mas trabalhar (e muito) às vezes também é preciso. Você é uma daquelas poucas pessoas que, assim como a argentina Mafalda, está sempre disposta a “empurrar esse mundo pra frente”. Obrigada Noelma, por perdoar minha distância e meus maus-humores costumeiros, com essa meiguice (insuportável! hahahaha) que só você tem. Obrigada Mag, por aceitar nossas diferenças e me mostrar que é possível conciliar sempre, e que às vezes os problemas nem existem mesmo – nós é que os inventamos! E já que estou falando de amizade, vou aproveitar para agradecer a duas pessoas especiais, que entraram na minha vida numa situação inusitada, mas não por acaso (aliás, sobre esse “encontro”, só posso dizer uma coisa: maktub!). Estou me referindo a Josélia e Roberta Soares,do Núcleo de Dança Passo a Passo, com quem divido sonhos e realizações também. Obrigada por me fazerem, a cada dia, enlouquecer aquele pouquinho necessário para não VIVER a vida, mas DANÇÁ-LA. Agradeço ainda aos meus amigos Sílvia, Vincy e Daniel, e aos meus alunos da Passo a Passo, cujo carinho recarrega minhas energias a cada nova aula. Bem, quando terminei minha graduação, havia chegado a hora de enfrentar o temido mercado de trabalho – e os obstáculos costumeiros: a falta de prática, o excesso de teorias, o desejo de uni-las... Mas eis que me deparo não com uma empresa, mas uma família, que não me contratou, me acolheu: a família Lourdinas. Confiando no trabalho de alguém que ainda estava a dois meses da formatura, essa escola me abriu as portas e me deu o que muitos buscam: uma oportunidade. Obrigada a todos os membros dessa família, em especial: Ir. Terezinha, Vicente Albuquerque, Madalena Nunes e Cloveni Brito. Depois de pouco mais de um ano nas Lourdinas, adquirindo experiência, já era o momento de enfrentar mais uma prova de fogo: a seleção do mestrado da UFPB. A situação era nova em vários sentidos, principalmente pelo fato de ser em outra cidade e de não conhecer ninguém. Mas, após ingressar neste curso, encontrei outras pessoas maravilhosas, que me ensinaram muito (como profissionais e como seres humanos). A primeiríssima delas, evidentemente, é a minha orientadora: Maria Ester Vieira de Sousa. Acredito que, como muitos, escolhi para que projeto tentar a seleção contando apenas com as informações do programa divulgado pela coordenação da pós. Que sorte de novo! Ela não apenas é competente, mas um ser humano fantástico! Se alguma vez meus passos curtos e inseguros me faziam ficar para trás, ela parava e me esperava, para seguirmos juntas. Não sei como agradecer a você, Ester, o “não-estresse” que foi ser sua orientanda. Você é admirável e sua tranqüilidade foi fundamental para tornar essa etapa menos árdua. Além de Ester, tenho que agradecer a mais três profissionais de “primeira grandeza”, que muito contribuíram para o resultado final deste trabalho (que, se não ficou a contento, a culpa é toda minha): profa. Socorro Barboza, por me mostrar que sempre se pode melhorar; profa. Graça Carvalho, pelas contribuições valiosas para a minha formação e para esta pesquisa; e profa. Maria Augusta Reinaldo, que também fez parte da minha história na graduação e se destaca pela sua sensatez e sabedoria. Por fim, gostaria de agradecer aos meus alunos (hoje ex-alunos), que autorizaram o uso dos seus textos escritos e permitiram a gravação das aulas de discussão do tema; e ao CNPq, que me concedeu uma bolsa de estudos para garantir a minha dedicação exclusiva a esta pesquisa. Velha História Depois de atravessar muitos caminhos Um homem chegou a uma estrada clara e extensa Cheia de calma e luz. O homem caminhou pela estrada afora Ouvindo a voz dos pássaros e recebendo a luz forte do sol Com o peito cheio de cantos e a boca farta de risos. O homem caminhou dias e dias pela estrada longa Que se perdia na planície uniforme. Caminhou dias e dias... Os últimos pássaros voaram Só o sol ficava O sol forte que lhe queimava a fronte pálida. Depois de muito tempo ele se lembrou de procurar uma fonte Mas o sol tinha secado todas as fontes. Ele perscrutou o horizonte E viu que a estrada ia além, muito além de todas as coisas. Ele perscrutou o céu E não viu nenhuma nuvem. E o homem se lembrou dos outros caminhos. Eram difíceis, mas a água cantava em todas as fontes Eram íngremes, mas as flores embalsamavam o ar puro Os pés sangravam na pedra, mas a árvore amiga velava o sono. Lá havia tempestade e havia bonança Havia sombra e havia luz. O homem olhou por um momento a estrada clara e deserta Olhou longamente para dentro de si E voltou. (Vinícius de Moraes) LEGENDAS (Utilizadas na transcrição dos dados) ● PROF (professor) ● Axx (fala simultânea de vários alunos) ● L1, l2 ... (numeração correspondente às linhas do recorte para facilitar a referência, durante a análise) ● Palavra ou sílaba escrita em maiúscula (ênfase na entonação) ● BERN, FABI, MAÍS ... (abreviação dos nomes dos alunos, a fim de preservar sua identidade) ● ANID (aluno não identificado) ● (+) (pausa breve) ● (++) (pausa mais longa) ● :: (alongamento de vogal) ● (...) (trecho não transcrito) ● (( )) (comentários do analista) ● [ (fala sobreposta) ● / (parada abrupta e/ou hesitação) RESUMO O presente trabalho surgiu das minhas inquietações, como professora de Produção Textual no Ensino Médio, acerca da interferência das práticas pedagógicas do professor para a formação de indivíduos aptos a assumir o seu papel na interação através da escrita. Para entender essa interferência, era preciso observar como as imagens e os papéis sociais atribuídos a professores e alunos interferiam na produção textual realizada em situação escolar. Assim, procuramos analisar textos produzidos por alunos-autores de uma escola da rede particular de ensino de Campina Grande-PB, em duas diferentes situações de produção: uma primeira, realizada antes de haver qualquer discussão sobre o tema escolhido para os textos (o contrato civil entre homossexuais); e uma segunda, antecedida por um debate oral em sala de aula. Nosso objetivo foi o de verificar como essas duas diferentes situações interferiram na construção do dizer dos alunos-autores, observando, para isso, com quais discursos eles dialogam e como eles delimitam o espaço para construir o seu discurso, a partir dos já-ditos que retomam. Essa análise foi desenvolvida a partir de uma perspectiva discursiva sobre linguagem e sujeito, assentada, principalmente, nas contribuições de Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Eni Orlandi e Sírio Possenti. Trabalhamos com a hipótese de que, nos textos produzidos nas duas situações de produção consideradas, teríamos, como estratégia de construção do dizer desses alunos-autores, o recurso a um já-dito, um diálogo com outros discursos. Palavras-chave: Condições de produção – Escrita – Discurso - Ensino ABSTRACT This paper has emerged from my concerns, as a teacher of Textual Production in High School, about the interference of our didactic practices to the formation of individuals who can assume their role in the interaction through writing. To understand this interference, it was necessary to observe how the image and the social roles attributed to teachers and students interfered in the textual production made in the school. Thus, we tried to analyze texts made by student-authors from a private school in Campina Grande – PB, at two different production situations: first, one text made before any discussion on the subject chosen (civil contract between homosexuals); and second, one text made after an oral debate in class. Our objective was to verify how these two different situations would interfere in the verbal construction of the student-authors, by observing with which discourse they would dialogue and how they would delimitate the space to construct their speech, from the already-said that they retake. This analysis was developed from a discursive perspective about language and subject, settled, mainly, in the contributions by Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Eni Orlandi and Sírio Possenti. Key-words: production conditions – writing – discourse – teaching 11 SUMÁRIO Legendas Resumo Abstract Introdução ...................................................................................... 12 1. Descrição e metodologia da pesquisa........................................... 20 1.1. Descrição da pesquisa........................................................................ 20 1.1.1. A instituição de ensino ............................................................ 20 1.1.2. Os sujeitos da pesquisa ........................................................... 22 1.1.2.1. A professora-pesquisadora ......................................... 22 1.1.2.2. Os alunos-autores...................................................... 24 1.2. Metodologia da pesquisa .................................................................... 25 1.2.1. Instrumentos de coleta dos dados ............................................ 25 1.2.1.1. A primeira situação de produção ................................ 26 1.2.1.2. A segunda situação de produção ................................ 27 1.2.2. Procedimentos de análise ....................................................... 30 2. Concepções de língua, discurso e sujeito..................................... 32 3. A noção de autoria ...................................................................... 49 3.1. A função-autor................................................................................... 49 3.2. A construção da autoria: o aluno-autor............................................... 53 4. A produção textual orientada pela proposta do livro didático ...... 63 4.1. A proposta de redação: o enquadramento do dizer .............................. 63 4.2. A produção escrita e o diálogo com o já-dito ....................................... 69 4.2.1. Pontos de vista diferentes, estratégias parecidas: o dizer ancorado no discurso do Direito ............................................................ 71 4.2.2. Pontos de vista iguais, estratégias também: o dizer ancorado no discurso da Religião................................................................ 85 5. A produção textual orientada pelo livro didático e pela discussão em sala de aula......................................................................... 100 5.1. A discussão oral para a produção escrita ......................................... 101 5.2. Estratégias do dizer: o retorno ao discurso do Direito ........................ 110 5.3. Estratégias do dizer: o retorno ao discurso da Religião....................... 128 Conclusão ..................................................................................... 146 Referências Bibliográficas ............................................................. 152 Anexos.......................................................................................... 156 Anexo Anexo Anexo Anexo Anexo A – Unidade do Livro Didático B – Primeira proposta de redação C – Textos para debate oral D – Segunda proposta de redação E – Transcrição das aulas 12 Introdução (Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 401) Todas as nossas práticas sociais ajudam-nos a definir quem somos e como devemos agir, dependendo das situações, para que sejamos aceitos na sociedade. Ignorar que há regras a serem seguidas nessas situações de interação é colocar-se à margem da vida social e correr o risco do ridículo ou da reprovação. Entre essas práticas sociais, sem dúvida alguma, podemos incluir aquelas vividas em ambiente escolar, no qual aprendemos o que é ser aluno e que funções nos cabem neste papel, especialmente no que diz respeito ao outro com quem pretendemos interagir, seja o professor, um colega ou os diretores e coordenadores (numa situação mais imediata de interação). É interessante notar que, inconscientemente, essas regras (referentes, por exemplo, ao modo de se vestir, de sentar, aos gestos, à hora de falar, de calar, de entrar ou sair dos lugares, ao tom de voz) vão sendo apreendidas e passam a fazer parte do nosso próprio modo de ser e agir. E com a linguagem não poderia ser diferente, pois escolhemos as estratégias discursivas para construir o nosso dizer, entre outros aspectos, de acordo com os objetivos a serem atingidos nas situações de interação das quais participamos e a imagem que temos do nosso interlocutor, elementos estes que são construídos socialmente e refletem valores históricos. Assim, não falamos com um diretor da mesma forma que falaríamos com um colega de sala; ao menos não sem correr o risco de que nossa atitude seja avaliada como uma rebeldia e recebamos por isso a punição que cabe aos rebeldes. Da mesma maneira, não usamos os mesmos recursos argumentativos quando queremos 13 solicitar algo possivelmente considerado supérfluo e quando pretendemos reivindicar um direito. Em pesquisa anteriormente realizada (Inô, 2002), por exemplo, constatamos que, em orações construídas com a utilização do mas, a informação que se seguia a este operador argumentativo era sempre escolhida com base no valor argumentativo dessa informação para o objetivo que o falante pretendia atingir (o não pagamento imediato de uma dívida, por exemplo, orientava o falante a dizer/escrever: eu estou te devendo, mas a minha mulher está doente, pois a segunda parte da oração era um forte argumento para justificar a falta do pagamento esperado pelo credor). Essa escolha, então, nos revela a importância da argumentação quanto às decisões que o falante toma no momento de se utilizar da língua; e esse uso, por sua vez, é orientado pela existência de um interlocutor (real ou ideal) e construído para agir sobre esse outro através da linguagem (Bakhtin, 1995). Em uma situação escolar de produção textual, esse outro sobre quem se pretende agir é não apenas o leitor do texto, definido pela interação simulada na aula através da atividade proposta, mas sobretudo o professor, cuja relação com o aluno é de poder: na visão do aluno, é o professor quem aprova ou desaprova, quem “dá” a nota e, com ela, define o lugar do avaliado dentro da hierarquia escolar. “Nesse contexto, a educação é analisada como uma prática disciplinar de normalização e controle social” (Larrosa, 1994: 52). Essa afirmação se justifica porque, em situações de produção textual em sala de aula, fatores como o que dizer, a quem dizer e como dizer, estão sempre delineados e limitados pela instituição escola, cuja estrutura é disciplinar e cujo funcionamento estabelece lugares de onde os sujeitos podem (ou não) falar (Foucault, 2004). Dessa maneira, as condições de produção são ainda simuladas para o aluno, ou seja, o 14 interlocutor dele continua sendo o professor, mesmo que se imagine um outro leitor, pois o texto provavelmente não sairá dos limites da escola e servirá para seu fim avaliativo. Além disso, há, para usar um termo foucaultiano, enquadramentos dos quais não se pode (ou não se deve) fugir. Especificamente no discurso de sala de aula, conforme revelam pesquisas (dentre as quais Sousa, 2002), é o professor quem distribui as falas e encaminha a aula, bem como quem define a tarefa e avalia o resultado; é o aluno quem precisa esperar sua vez de falar (pelo qual também é avaliado) e se submete à tarefa para confirmar que domina um saber, não podendo, em geral, sugerir qual deva ser essa atividade nem o modo de sua execução. Assim, na execução desses papéis, o texto do aluno (seja oral ou escrito) passa a ser um dos campos de visibilidade que permitem ao professor definir o lugar social desse aluno. Mas através do texto o aluno também constrói a imagem do professor, pois se ele é visto pelo que diz, é ao procurar atingir as expectativas do avaliador que ele revela a imagem que tem do professor. Trata-se, na verdade, de uma intrincada rede de fatores que contribuem para a construção dessas imagens (Pêcheux, 1995), mediadas por coerções sociais e pelo modo como o sujeito vê a si mesmo e vê o outro, de maneira que seu dizer é constituído por essas imagens. Por outro lado, o texto não existe no vácuo e, mesmo sendo o resultado de uma situação pedagógica e tendo fins pedagógicos, ele mantém relação com outros textos e outros dizeres que circulam na sociedade. A coerência desse dizer é avaliada também em função da sua relação com esses outros saberes culturais e históricos do grupo social a que pertencem autor e leitor. Por essa razão, ao escrever um texto, o aluno, mesmo sem sabêlo, não ignora a relação de encadeamento do seu dizer com inúmeros já-ditos, em relação aos quais o seu discurso é uma continuidade, uma resposta (Bakhtin, 1995). 15 Assim, a discussão de textos diversos nas aulas de leitura, com o objetivo de preparar/informar os alunos sobre o tema ou resgatar na memória um conhecimento é extremamente importante para o desenvolvimento de estratégias para que estes possam se colocar frente ao já-dito. Por outro lado, observar essa relação entre o que se lê, o que se discute oralmente na aula e o que se escreve é essencial para compreender as estratégias utilizadas pelos alunos-autores para constituírem-se e constituírem o seu dizer. Por essa razão é que, apesar de ser um fenômeno já bastante estudado, se faz importante ainda verificar como o aluno da 3a. série do ensino médio lida com essas tensões entre a simulação de uma situação supostamente real de interação (escrever para um editor de jornal, para os leitores desse jornal, para um deputado, etc.), na qual ele teria que se posicionar e convencer o interlocutor, e o papel que de fato lhe cabe no processo de ensino-aprendizagem. Evidentemente, ver o texto como o lugar de materialização de discursos e seu processo de produção como social e dinâmico exige uma mudança no modo de conceber a escrita. Infelizmente, é comum a prática escolar de ensino-aprendizagem do texto escrito baseada numa concepção de escrita como uma modalidade homogênea. Como conseqüência dessa concepção, as atividades realizadas no ensino da produção de textos escritos costumam tratá-los indiferenciadamente, em oposição à diversidade de textos e de situações de interação facilmente observados nas práticas sociais de uso da linguagem (Pasquier e Dolz, 1996). O resultado dessa prática é a formação de alunos que, recém-egressos dos cursos de Ensino Médio, chegam à universidade ainda com dificuldade na produção de textos argumentativos escritos1 (justamente os mais enfatizados no trabalho com produção 1 Em experiência ocorrida em 2003, ministrando a disciplina de Língua Portuguesa para cursos das áreas de Ciências Humanas e Tecnologia na UFCG (campus I), aplicamos um questionário de sondagem, a fim de conhecer melhor o perfil do aluno a que atendemos e quais suas necessidades e expectativas quanto à disciplina. Quando perguntados sobre qual o gênero textual que eles têm mais dificuldade em produzir, a 16 textual na escola), tendo em vista que, em geral, não conseguem perceber as relações de sentido entre o seu dizer e outros dizeres da sociedade, entre o seu discurso e outros jáditos em relação aos quais ele não é o todo, mas apenas uma parte de uma grande cadeia discursiva. Por outro lado, embora o aluno já domine a argumentação informal através da oralidade, o texto oral e sua estreita relação com o escrito costumam sequer ser considerados como objeto de estudo em atividades escolares, interessando apenas o domínio da produção escrita, como se esta não mantivesse nenhuma relação com aquela. No entanto, se concebermos a linguagem como processo dinâmico de interlocução, de interação entre sujeitos sociais e históricos, os quais aprendem em sociedade as regras através das quais podem interagir com o outro, bem como os lugares sociais de onde podem falar, veremos que não é possível entender: 1o.) a escrita como homogênea, pois, tendo em vista que o sujeito não é uno, mas atravessado por outros discursos, o seu dizer também não será uno; 2o.) a oralidade como caótica ou óbvia demais para merecer estudos sérios sobre seu funcionamento; e 3o.) essas duas modalidades como opostas e/ou plenamente separadas uma da outra. Na verdade, o que se tem percebido é que oralidade e escrita passam a ser compreendidas cada vez mais a partir da noção de continuum2. Por assumir uma perspectiva discursiva e não entender a língua apenas como sistema estruturado, Gallo (1995), por exemplo, vai além da noção de modalidades ao afirmar que não há oralidade e escrita, mas há um discurso da oralidade e um discurso da escrita, os quais muitas vezes se tocam e se constituem mutuamente, de maneira que há textos escritos que se inscrevem resposta mais freqüente foi o texto dissertativo, exatamente o mais praticado na escola, o que nos leva a questionar se essa dificuldade não é o resultado de uma metodologia de ensino pouco significativa para o aluno. Além disso, eles não responderam qual gênero, mas qual o tipo de texto, uma vez que muitos são os gêneros que podem ser entendidos como dissertativo-argumentativos; essa resposta dos alunos revela também a ausência de conhecimento sobre o que seria um gênero textual. 2 Ver a esse respeito, Marcuschi (2001). 17 no discurso da oralidade e vice-versa. O que vai determinar se um texto se aproxima mais de um ou de outro discurso não é o seu meio de transmissão, ou apenas a sua forma de organização, mas o seu funcionamento discursivo em uma dada situação de produção. No caso desta pesquisa, serão duas as situações de produção consideradas: uma primeira, em que a produção escrita é realizada sem que haja a discussão oral do tema; e a segunda, na qual a discussão oral precede a produção escrita. Assim, a questão-problema central que norteará o desenvolvimento da pesquisa será a seguinte: Como as diferentes condições de produção aqui consideradas interferem na constituição do discurso escrito dos alunos-autores? A partir dessa questão central, surgem outras que também serão abordadas e, se não respondidas completamente durante a pesquisa, ao menos apontarão caminhos para futuras respostas em outros trabalhos. São elas: de que maneira o aluno retoma o dizer de um outro/Outro em cada uma das situações de produção que lhes foram dadas? Como ele marca o seu dizer e o do outro no seu texto? Como se estabelece esse diálogo (através da refutação, da confirmação, da ressalva etc.) entre o dizer do aluno e o dizer do outro? De que maneira se percebem os limites entre o que é mera repetição do já-dito, e o que é retomada desse já-dito, mas instaurando o novo? Como o discurso construído em sala de aula, tanto pelos outros alunos quanto pela professora, interfere no discurso do aluno? Para tanto, analisamos produções textuais escritas por alunos do 3o. ano do Ensino Médio da rede particular de ensino, elaboradas em dois momentos distintos: um primeiro, no qual o tema contrato civil entre homossexuais não foi previamente discutido em sala de aula, mas ainda assim a produção foi solicitada. E um segundo momento, no qual o mesmo tema mencionado anteriormente foi discutido, através da leitura de textos variados e do debate oral entre os alunos, no qual estes puderam se posicionar em relação 18 aos textos lidos e à opinião dos outros colegas. Além das produções escritas, contamos com a gravação, em fita K-7, e a transcrição das aulas que antecederam o segundo momento de elaboração dos textos. É importante destacar que não se trata aqui de considerarmos os alunos como tabulae rasae, que nada sabem sobre o assunto; ou de considerarmos a interação oral na sala de aula, a partir da discussão do tema, como a marca primeira nessa tábua supostamente ainda imaculada. Na verdade, pretendemos observar o funcionamento do discurso dos alunos nesses dois momentos e verificar de que forma houve a retomada de um discurso outro na construção do deles. Partimos, assim, da hipótese de que as condições de produção determinam o modo de realização dos discursos e que, nos dois referidos momentos da nossa coleta de dados, a retomada de outros discursos se dá através de estratégias diferentes; resta-nos verificar suas marcas e formas de constituição. Baseando-nos no pressuposto de que ainda estamos longe de uma abordagem pedagógica que considere a produção textual como um processo conduzido pelo trabalho do sujeito e por coerções sociais e históricas, esta pesquisa pretende: a) Descrever e comparar a construção do discurso escrito dos alunos em dois momentos distintos: primeiro, numa produção escrita realizada sem qualquer discussão prévia do tema; segundo, numa produção escrita sobre o mesmo tema, mas desta vez com discussão oral em sala de aula. b) Identificar as formas de diálogo e/ou de apropriação do dizer entre o discurso escrito dos alunos e outros discursos que circulam em diferentes instâncias da sociedade, bem como esse discurso do aluno e as idéias expostas na discussão oral pelos outros alunos e pela professora; Este trabalho encontra-se dividido em três partes: uma primeira, na qual são descritos a pesquisa e os procedimentos metodológicos de coleta e análise dos dados 19 (capítulo 1); uma segunda parte, corresponde à discussão de conceitos como língua, sujeito, discurso e autoria, com o objetivo de esclarecer o ponto de vista teórico aqui assumido; e uma terceira, referente aos três últimos capítulos 4 e 5, em que analisamos e discutimos os dados. 20 1. Descrição e metodologia da pesquisa (Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 333) Considerando-se que é o dado que define a abordagem metodológica de uma pesquisa, não é tarefa fácil para o pesquisador definir um caminho de análise, pois ora o dado aparece como complexo e quase impossível de apreender, ora ele aparece reduzido em seu potencial, devido ao recorte insuficiente para sua compreensão3. Se as bases teóricas estão assentadas sobre as teorias do discurso, essa dificuldade é relativamente maior, tendo em vista a dificuldade de apreensão do objeto e de escolha de um caminho coerente com o ponto de vista teórico assumido. Nesta pesquisa, optamos por realizar uma abordagem qualitativa dos dados, a partir de uma perspectiva discursiva de abordagem da língua. Apresentamos a seguir uma descrição da pesquisa e da metodologia utilizada na coleta dos dados e na análise destes. 1.1. Descrição da pesquisa 1.1.1. A instituição de ensino Os dados a serem analisados nesta pesquisa foram coletados em uma escola da rede particular de ensino, na cidade de Campina Grande-PB. A escolha por este estabelecimento de ensino deveu-se ao fato de a professora-pesquisadora lecionar na 3 Ver, sobre essa questão do dado em AD, o texto “O dado dado e o dado dado”, em Possenti (2002: 27-36) 21 escola, podendo assim gravar suas aulas e proceder à coleta dos textos escritos sem maiores empecilhos. A instituição dispõe de turmas que vão desde os primeiros níveis da Educação Infantil até o Ensino Médio; além disso, no turno da noite, há cursos profissionalizantes na área de informática. A escola tem uma orientação religiosa, mais especificamente a católica, e prima pela aprendizagem significativa, ou seja, o objetivo maior não é a preparação para o vestibular, mas para a vida. Trata-se de uma das escolas mais tradicionais do município, à qual recorrem as famílias de classe média e média alta da cidade. As disciplinas do Ensino Médio encontram-se divididas por áreas de conhecimento, conforme orientação do Ministério da Educação e Cultura (MEC). As aulas gravadas e os textos escritos foram coletados na disciplina “Interpretação e Produção Textual”, referente à área de Códigos e Linguagens, da qual fazem parte duas outras: Literatura e Língua Portuguesa. A área de Códigos e Linguagens tem reuniões periódicas (em geral, uma vez por mês), nas quais são discutidas em conjunto as estratégias de ação de cada disciplina em particular e de integração entre elas. Além destas, há reuniões mensais envolvendo todas as áreas, com o objetivo de promover a integração entre elas e permitir a elaboração de planos de trabalho interdisciplinar. Embora escolas particulares sejam conhecidas pelo forte controle exercido sobre o trabalho do professor por parte dos coordenadores, este estabelecimento permite uma relativa liberdade ao profissional quanto à escolha dos temas a serem discutidos em sala e das estratégias adotadas no processo de ensino. No entanto, uma preocupação constante de coordenadores e diretores diz respeito à disciplina dos alunos, de maneira que este aspecto é sempre alvo de muitas recomendações aos docentes, para que estes “vigiem” 22 o comportamento do aluno. Essa postura reflete o papel que algumas famílias atribuem à escola: o de responsável por toda a educação, que muitas vezes falta em casa, do aluno. Para garantir a manutenção da ordem e cumprir com esse papel, a instituição dispõe de um mecanismo de avaliação, denominada de avaliação qualitativa (em oposição à quantitativa, que corresponde à tradicional verificação do processo de ensinoaprendizagem através de provas). A avaliação qualitativa corresponde a uma avaliação do comportamento do aluno durante o bimestre, a partir de quatro critérios: assiduidade e pontualidade; postura e respeito com professores e colegas; responsabilidade e envolvimento no cumprimento das atividades; e, por fim, participação em sala de aula. Cada professor avalia o aluno segundo esses critérios e, a partir da média da nota de todos os professores, chega-se a uma nota qualitativa final, que tanto poderá melhorar a média do aluno no bimestre, quanto poderá diminui-la, a despeito dos resultados das provas. Trata-se, portanto, de uma tentativa de controlar os comportamentos dentro da instituição, fazendo com que o aluno se torne assíduo, pontual, respeitoso com colegas e professores e responsável com as atividades. Em contrapartida, professores, coordenadores e direção também são avaliados pelos alunos, mas apenas ao término de cada semestre. 1.1.2. Os sujeitos da pesquisa 1.1.2.1. A professora-pesquisadora Formada em Letras pela UFCG no ano de 2002, a professora-pesquisadora trabalhava na instituição de ensino anteriormente descrita desde outubro deste mesmo ano de sua formatura. À época da coleta de dados, havia já cerca de 2 anos que fazia parte do corpo docente da escola, na qual teve a oportunidade de lecionar no Ensino Médio e Fundamental, sempre na disciplina “Interpretação e Produção Textual”. 23 Paralelamente ao seu trabalho na escola, prestou concurso público, em 2003, para professora substituta da UFCG, no qual foi aprovada, lecionando nesta universidade entre maio de 2003 e maio de 2004, mês em que foi aprovada na seleção de mestrado da UFPB. Por essa razão, era bastante admirada e respeitada pelos alunos da turma pesquisada, que se surpreendiam que uma professora jovem (24 anos, na época) pudesse já ter um cargo na UFCG, ainda que temporário, e, além disso, ter sido aprovada para uma pós-graduação. Assim, o relacionamento entre professores e alunos era bastante positivo, o que sem dúvida favorecia o processo de ensino-aprendizagem. Sua prática em sala de aula estava pautada na noção de escrita como um processo discursivo de elaboração e reelaboração do texto. Por essa razão, os momentos de produção textual eram precedidos pela discussão do tema e do funcionamento do gênero a ser elaborado, seguida pela escrita dos textos e pela sua reescritura, a partir das observações anotadas pela professora sobre o texto de cada aluno, as quais comentavam os aspectos a serem melhorados, tais como: coesão, coerência, qualidade dos argumentos apresentados, adequação da linguagem à situação de interação proposta, entre outros. Em geral, esse processo era realizado em três aulas, uma para cada etapa, podendo chegar a quatro aulas, quando a professora, antes da reescritura individual, expunha e comentava alguns dos textos produzidos, a fim de discutir com a turma os principais aspectos a serem mantidos ou evitados em produções futuras. Infelizmente, nesta pesquisa, não foi possível considerar esse processo até a última etapa, pois a coleta de dados foi realizada no 4o. bimestre, muito próximo dos vestibulares, quando as aulas já estavam comprometidas com as provas de final de ano. Além disso, não era o objetivo da pesquisa analisar esta etapa da produção textual, há outros trabalhos, a exemplo de Garcez (1998), que se dedicou ao estudo do processo de reescrita, orientado pelas contribuições de um outro: os colegas e/ou o professor. 24 1.1.2.2. Os alunos-autores Lidamos ao todo com 85 alunos, referentes a duas turmas de 3o. série do Ensino Médio, entre os quais escolhemos quatro para sujeitos dessa pesquisa. Esses alunos, sujeitos da pesquisa, têm, em média, 17 anos; três deles estudam nesta escola desde os primeiros anos da vida escolar, na Educação Infantil; o quarto aluno chegou à escola no 2o. ano do Ensino Médio. Todos foram alunos da professora-pesquisadora nos anos de 2003, na 2a. série do Ensino Médio – quando tiveram o primeiro contato, do ponto de vista da aprendizagem formal, com o gênero carta de solicitação e/ou de reclamação –, e de 2004, época da coleta de dados desta pesquisa. Todos mantinham um bom relacionamento com a professora pesquisadora e se mostravam participativos nas atividades propostas; no entanto, apenas um deles se destaca com um alto grau de participação no discussão oral sobre o tema, o que não se constituirá um problema na nossa análise, tendo em vista que consideraremos como constitutivo do dizer do aluno não apenas o seu próprio dizer na discussão oral, mas também os discursos dos outros alunos e da professora-pesquisadora. Vale salientar que a escolha por essa fase escolar (3o. ano do Ensino Médio) se deveu ao fato de que, segundo a matriz de competências e habilidades do ENEM, um aluno prestes a concluir o ensino médio já deve ter desenvolvido a competência de “relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente”, além das seguintes habilidades: 1) ser capaz de articular idéias e ordenar o pensamento, para convencer os outros de determinado argumento; 2) identificar pontos de vista diferentes, identificando os pressupostos de cada interpretação; 3) produzir uma linha de argumentos com base na coleta de informações; 4) defender seu ponto de vista de maneira consistente e lógica e contra-argumentar possíveis contestações.” (INEP, 2004 – página da internet). 25 Além disso, este aluno está prestes a ingressar em uma universidade, bem próximo, portanto, daquele perfil com o qual nos deparamos em experiência docente na universidade (perfil este mencionado na introdução): alunos universitários que não conseguem escrever com segurança textos argumentativos, tão enfatizados no ensino de produção textual nas escolas. Essa constatação contraria as expectativas do ENEM, mencionadas acima, uma vez que demonstra a falta de habilidade dos alunos em relacionar as informações às quais têm acesso, a fim de defender um ponto de vista. 1.2. Metodologia da pesquisa 1.2.1. Instrumentos de coleta dos dados Os dados foram obtidos de duas maneiras: através da coleta dos textos escritos pelos alunos em dois momentos de produção escrita (um primeiro, no qual é solicitada uma produção textual sem que se realize uma discussão prévia do tema; e um segundo, com a realização de uma discussão oral em sala); e através de gravação em fita cassete e transcrição das aulas de discussão oral sobre o tema contrato civil entre homossexuais. A escolha do tema contrato civil entre homossexuais ocorreu a partir de uma necessidade sentida por nós no decorrer das aulas, pois os próprios alunos comentavam, em conversas informais, os rumos desse assunto em países como os EUA. Assim, o tema serviria ao propósito da nossa pesquisa sob três aspectos: tratava-se de um tema polêmico; era um tema atual e bastante discutido na sociedade; havia o interesse natural dos alunos sobre o assunto, o que, sem dúvida, ajudaria no desenvolvimento das aulas, incitando-lhes a participar das discussões. 26 1.2.1.1. A primeira situação de produção Na primeira produção, além do conhecimento que os alunos já traziam de suas interações em outras situações (intra e extra-escolares), eles tiveram acesso a uma proposta de redação, retirada do livro didático Português: linguagens, de Cereja e Magalhães (2003), volume destinado à 3a. série do Ensino Médio. Essa proposta de redação (ver anexo 1), apresentava dois tipos de informações: o primeiro correspondia a uma coletânea de textos, composta por um resumo do projeto de lei no. 1151, de 1995, da deputada Marta Suplicy, o qual versava sobre a regulamentação do contrato civil entre homossexuais; e por dois textos opinativos, um contrário e outro favorável ao “casamento homossexual”, publicados na revista Isto É. O segundo tipo de informação correspondia à comanda da proposta, que dava as instruções para o aluno sobre como proceder ao escrever o texto, ou seja, que posicionamentos eram permitidos, qual seria o objetivo do texto (a depender de qual era a opinião do aluno sobre o tema) e qual gênero deveria ser escrito. Essa proposta será melhor comentada na etapa de análise do textos, uma vez que, se estamos diante de uma produção escrita em contexto escolar, sem dúvida o material didático utilizado é um dado relevante para compreendermos a construção dos discursos dos alunos. Desse primeiro momento de produção, resultaram 80 textos e do segundo mais 80, uma vez que a escola mantinha duas turmas de 3o. ano. Destes textos, apenas oito (quatro de cada momento, tendo sido escritos pelos mesmos alunos-autores, pertencentes a uma mesma turma) foram selecionados para análise. O recorte foi estabelecido com o objetivo de aprofundar a análise do discurso escrito desses alunos-autores, já que serão observados os textos de um mesmo aluno-autor, produzidos nesta primeira situação de produção, já descrita, e na segunda, detalhada a seguir. Tendo em vista a semelhança entre 27 os textos produzidos quanto às estratégias discursivas utilizadas, a escolha daqueles que comporiam o corpus foi aleatória. O gênero textual a que pertencem esses oito textos é a carta, mais especificamente o subgênero carta de solicitação, que já fazia parte da proposta de redação tal qual foi formulada em Cereja e Magalhães (2003), livro didático utilizado; os referidos autores definem as cartas de solicitação e/ou de reclamação a partir de critérios sóciodiscursivos e lingüísticos, procurando identificar o funcionamento desse gênero na sociedade, bem como a sua estruturação e linguagem próprias, como veremos a seguir, no item 4.1. A aula que resultou na primeira produção consistiu apenas na explicação, por parte da professora-pesquisadora, sobre a atividade a ser realizada, seguida do momento de escrita dos textos, o qual foi monitorado por ela que, ao ser solicitada, passava pelas carteiras tirando as possíveis dúvidas dos alunos. Optamos, então, por não gravar esta aula, pois não haveria, no nosso modo de entender, um discurso consistente que pudesse ser analisado como fator de influência no discurso escrito dos alunos, os quais não tiveram acesso sequer à opinião da professora sobre o tema (ao ser perguntada por um dos alunos, a professora se recusou a dizer naquele momento, afirmando que responderia na hora oportuna – neste caso, ao final da aula de discussão oral). Essa aula, que correspondeu à primeira etapa da nossa coleta de dados, foi realizada em junho de 2004. 1.2.1.2. A segunda situação de produção O segundo momento da coleta de dados correspondeu à gravação das aulas de discussão oral do tema (num total de duas aulas, de 50min cada, numa mesma tarde), aulas que precederam a segunda produção realizada pelos alunos. 28 Na gravação dessas duas aulas de discussão oral, o gravador ficou, a princípio, na mesa de um dos alunos que sentava à frente, o que dificultou um pouco o momento da transcrição, tendo em vista que são comuns os trechos de falas de alunos que sentam mais ao fundo as quais não puderam ser totalmente compreendidas. No entanto, na turma cuja discussão consideraremos aqui, a segunda aula sofreu uma alteração na disposição dos indivíduos no espaço da sala de aula: todos sentaram-se no chão, em círculo, no fundo da sala; nesta nova disposição, o gravador foi colocado no centro do círculo, gerando a curiosidade de alguns alunos sobre a finalidade deste instrumento na aula, mas, logo que esclarecidos pela professora-pesquisadora, a aula seguiu normalmente, de maneira que não acreditamos terem eles ficado inibidos com a gravação. Como suporte para discussão do tema, a professora-pesquisadora e os alunos contavam com uma coletânea de textos opinativos, colhidos no fórum de discussão do site Gramática on-line (ver anexo B). Neste fórum, os internautas expressavam suas idéias sobre o contrato civil entre homossexuais, mas motivados especialmente pela polêmica atitude do presidente dos EUA, George W. Bush, que pretendia acrescentar uma emenda em leis estaduais, para proibir a união civil entre homossexuais, um direito já conquistado por esse grupo em alguns estados americanos. Assim, nos textos, há referências à decisão do presidente Bush, mas também comentários sobre as opiniões dos participantes do fórum acerca deste fato específico nos EUA e do homossexualismo de uma forma geral. O que se vai perceber quando analisarmos a discussão oral é que esses textos, num primeiro momento do debate, são mencionados pela professora-pesquisadora, mas logo esquecidos; é na segunda aula que eles serão retomados, mas desta vez serão lidos em voz alta, restando espaço apenas para comentários rápidos e superficiais. As implicações dessa prática serão abordadas posteriormente, na análise. 29 A segunda etapa deste momento, a produção textual, ocorreu uma semana após a discussão oral. Essa atividade contava, assim como na primeira produção escrita, com a mesma proposta de redação descrita anteriormente (retirada de Cereja e Magalhães, 2003); no entanto, agora com um acréscimo: dois textos jornalísticos recentes na época, publicados no Jornal da Paraíba. Um dos textos noticiava uma decisão da justiça paraibana, que reconhecia a “relação homoafetiva” (para usar palavras do próprio jornal) de duas mulheres em João Pessoa. O outro texto trazia a posição da Igreja sobre o assunto, com ênfase na opinião de D. Aldo Pagotto, arcebispo da Paraíba. Da mesma maneira como aconteceu na primeira produção textual (que ocorreu sem a discussão do tema), nesta também não houve comentários sobre os textos que compõem a proposta de redação. Esta apenas foi entregue aos alunos, para que lessem e escrevessem seus textos, os quais deveriam respeitar os mesmos critérios da produção anterior, já que a comanda da proposta não foi modificada. Essa segunda etapa de nossa coleta de dados, correspondente à discussão oral do tema e à segunda produção escrita, que resultou nos outros quatro textos para análise, foi realizada em novembro de 2004. O intervalo de cinco meses entre uma etapa e outra deveu-se, entre outros fatores, ao afastamento temporário da professora-pesquisadora da sala de aula, devido às suas atividades no programa de mestrado da UFPB. A todo momento, então, lidaremos com dados relativos ao discurso de sala de aula, cujas condições de produção, como afirma Sousa (2002: 98), “apontam não apenas para suas regularidades – um sentido esperado, desejado, previsível – mas também para a sua heterogeneidade, resultante da diversidade e da atividade dos sujeitos envolvidos no processo discursivo”. Considerando que o discurso escrito dos alunos concluintes do ensino médio também faz parte do discurso de sala de aula, ele não pode, portanto, ser avaliado 30 isoladamente em relação às suas condições de produção (neste caso, uma condição de produção escolar, construída de duas maneiras diferentes, como já descrito). Assim, de um lado, teremos a proposta de redação e, de outro, as aulas gravadas e o discurso escrito dos alunos, dados que serão considerados aqui como complementares. 1.2.2. Procedimentos de análise O texto escrito será, então, o ponto de partida para a análise das estratégias discursivas utilizadas pelos alunos na retomada de outros discursos, entre eles o discurso da sala de aula, a fim de construírem o seu dizer. Na situação de produção textual aqui analisada, estamos considerando que estes outros discursos provêm de diferentes instâncias e fontes: a) da discussão oral sobre o tema; b) dos textos que compõem a coletânea utilizada como base para a discussão oral; c) da proposta de redação, em toda sua constituição, tanto dos textos da coletânea que compõe a proposta, quanto da comanda; d) de outros discursos que circulam em diferentes instâncias da sociedade, os quais podem ser retomados através de qualquer um dos itens a, b e c, acima citados, ou simplesmente serem recuperados individualmente pelo aluno, no momento da produção textual. Esses discursos podem estar filiados a diversas instâncias: moral, religiosa, jurídica, científica, entre outras. Tendo em vista que o objetivo maior do nosso trabalho é confrontar o resultado de dois momentos de produção textual, com condições de produção distintas, a análise foi dividida em três etapas: uma primeira, na qual analisamos as cartas produzidas na primeira situação de produção – sem a discussão oral do tema; uma segunda etapa, na qual observamos os textos precedidos por uma discussão oral do tema em sala de aula, com o objetivo de confrontar esses dois discursos – o oral e o escrito –, na tentativa de verificar seus pontos de contato, especialmente as formas de constituição do escrito a partir do oral e dos outros discursos retomados na discussão oral do tema; por fim, uma terceira etapa, na 31 qual serão confrontados os resultados dos dois momentos anteriores, com o intuito de estabelecer a conexão entre o espaço da alteridade na constituição do dizer do aluno-autor e o espaço do eu no discurso do outro. Nesse sentido, objetivamos responder à seguinte pergunta: que diferenças e semelhanças, em termos de estratégias discursivas, são percebidas nos textos elaborados a partir de cada uma das condições de produção mencionadas? Para tanto, cada texto foi analisado procurando-se observar: a) as marcas explícitas ou implícitas da alteridade proveniente da situação de interação (imediata, com o professor, ou mais ampla, com a destinatária da carta); e b) as marcas do diálogo com outros discursos, neste caso, através de fontes variadas: o diálogo com o projeto da deputada Marta Suplicy, com a proposta (a comanda e a coletânea que a compõe), com a coletânea utilizada para a discussão oral e com a própria discussão do tema em sala de aula. 32 2. Concepções de língua, discurso e sujeito (Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 391) Ao longo da história da Lingüística, cada corrente de estudos ou cada teórico abordou essa questão sob um prisma diferente: ora excluindo a interferência do sujeito no funcionamento da linguagem (e a interferência desta na constituição do sujeito), ora colocando-o na origem de todo dizer. Por essa razão, antes de nos aprofundarmos no estudo da abordagem discursiva sobre a noção de sujeito (a qual adotamos na pesquisa), (re)traçaremos o percurso das outras abordagens acerca da relação sujeito X linguagem, explicitando como ela foi e vem sendo abordada nos estudos lingüísticos, desde o estruturalismo saussuriano até as mais recentes contribuições da Análise do Discurso, que privilegia, na sua versão atual, a noção de sujeito ativo, ou seja, que trabalha sobre a linguagem. Assim refeita a história, esperamos definir o nosso lugar. Comecemos por Ferdinand de Saussure e sua proposta de estabelecer a Lingüística no campo das ciências humanas. Na tentativa de oferecer esse caráter de cientificidade aos estudos lingüísticos, Saussure (1998) fez algumas escolhas epistemológicas que deixavam de fora tudo o que fosse diverso, múltiplo, criativo. Baseando-se nos modelos das ciências exatas, o teórico suíço excluiu de sua abordagem da linguagem a face individual, portanto múltipla e heteróclita: a parole. A partir da célebre dicotomia langue/parole fica clara a perspectiva que esta nova ciência deveria assumir: a busca pelo que é exato, homogêneo, uniforme, estável e social. Assim é que Saussure centrará seus estudos não na linguagem como um todo, mas 33 na langue, que possuía, segundo ele, todos os atributos necessários para ser convertida em objeto de estudo científico. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade. A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação (...). Com o separar a língua da fala, separa-se ao mesmo tempo: 1. o que é social do que é individual; 2. o que é essência do que é acessório e mais ou menos acidental. A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o produto que o indivíduo registra passivelmente; (...) A fala é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência, na qual convém distinguir: 1. as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2. o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar essas combinações. (Saussurre, 1998: 17; 22) O que passa a importar é o produto final, entendido como um sistema de peças que se encaixam para gerar um só e sempre mesmo resultado, ou seja, “a língua em si mesma”, nas palavras do próprio Saussure. Não há espaço, portanto, para o saber criativo do falante da língua, pois este saber é entendido como assistemático e a-científico: não serve, então, para os propósitos ambiciosos da Lingüística. Assim, não cabia à Lingüística, segundo esse teórico suíço, a descrição da língua em uso, mas da língua enquanto sistema. Ao afastar, na sua teoria, o trabalho do sujeito sobre a língua (como se esta existisse exteriormente ao indivíduo), Saussure consegue seu objetivo quanto ao estatuto científico da Lingüística, mas deixa de lado uma série de questões observáveis no uso da língua, que põem em xeque a idéia de sistema estável e autônomo. Por não se ocupar do discurso, mas da língua enquanto sistema, Saussure não discute o fato de que essas “combinações pelas quais o falante realiza o código da língua” não são aleatórias ou fruto exclusivo da sua individualidade, mas são determinadas pelo social. O falante dispõe de um horizonte (a situação de interação, por exemplo) a partir do qual constrói parâmetros para efetuar suas escolhas (estas nem sempre conscientes). 34 Ampliando-se um pouco o campo de ação, percebe-se que influenciam o dizer não só a situação imediata de interação, mas a cultura, a história, o que já se disse sobre o assunto, etc. Mas, como já foi dito, essas não eram preocupações de Saussure, pois seu propósito era outro, assim como o seu objeto de estudo e sua abordagem sobre esse objeto: a língua e sua estrutura, não o discurso. De acordo com Geraldi (1996), há fenômenos lingüísticos que só podem ser explicados se for trazido para o interior da língua aquilo considerado por Saussure como seu exterior: a fala. A dêixis, a polifonia, a argumentação, as modalizações, entre outros, só podem ser compreendidos se a barreira imaginária entre língua e fala for estreitada. Na argumentação, por exemplo, que nos interessa diretamente nessa pesquisa, será importante para a construção do dizer não apenas o conteúdo, mas também o modo de organizar e selecionar as informações/argumentos para convencer. No entanto, é preciso lembrar que esta é apenas uma das leituras que se faz do Cours, a partir de certos trechos do pensamento saussureano. Há outros em que fica claro que Saussure considerava língua e fala como complementares, duas faces da mesma moeda, que independem “da vontade dos depositários”: (...) a língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça; historicamente, o fato da fala vem sempre antes. (...) é ouvindo os outros que aprendemos a língua materna (...). Existe, pois, interdependência da língua e da fala; aquela é ao mesmo tempo instrumento e produto desta (...). (Saussure, 1998, grifo nosso) Note-se que há trechos aparentemente contraditórios nestas afirmações de Saussure em relação às anteriores, o que se explica pelo fato de que ele não se ocupou em formular claramente uma teoria sobre o sujeito na/da linguagem. Embora reconheça a contribuição do outro para o aprendizado da língua, ele não considera que esse aprendizado se dê através da interação como uma atividade constitutiva de ambos os sujeitos envolvidos, mas como transmissão, o que se confirma na sua metáfora do dicionário, 35 segunda a qual a langue é “uma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos” (p. 27). Então, nesta perspectiva, esse processo de ouvir o outro para aprender a língua materna não seria constitutivo nem do sujeito (simples depositário de formas que já nascem com ele), nem da língua (pois esta não se modifica, mas é transmitida como um bloco pronto e sempre igual a si). Além disso, essa aparente contradição nos revela o fato de que esse teórico ignorou em sua abordagem uma questão constitutiva da linguagem, que só será abordada por outros estudiosos anos mais tarde: a tensão entre o interno e o externo da língua, de um lado, e de outro a relativa autonomia da língua e o espaço de ação do sujeito sobre ela; compreender essa tensão depende do modo como se concebem esses dois elementos. Sem dúvida, a concepção estruturalista de língua não permite essa discussão, pois para essa corrente a langue é autônoma e independe de coerções externas, pois estas não influenciam o sistema. Essas não são, portanto, questões discutidas por Saussure4 (por razões históricas e metodológicas evidentes). Suas dicotomias reforçaram durante muito tempo a leitura privilegiada de langue/parole como opostos assentados em noções como homogeneidade/heterogeneidade,estabilidade/instabilidade, sistematicidade/assistematicidade, entre outras. Um dos críticos a essa perspectiva é Bakhtin (1995), para quem o objetivismo abstrato, que tem seu representante maior em Saussure, se equivoca ao considerar a língua um sistema de formas independentes, exteriores ao sujeito e ao defender uma noção de fala 4 Embora ele tenha dedicado um capítulo do Cours à definição dos elementos internos e externos da língua, este trecho da obra se limita a menos de quatro páginas, destinadas muito mais a reforçar a instituição de uma Lingüística interna, que considere apenas as regras imanentes ao sistema, do que ao estudo das relações entre a língua e seus fatores externos (a história política da civilização). 36 como ato estritamente individual. Mas ainda neste capítulo voltaremos às idéias bakhtinianas, a fim de discuti-las mais detidamente. Na outra face dessa moeda, encontra-se Emile Benveniste, considerado por muitos como o responsável por reintroduzir nas discussões lingüísticas a relação entre homem/linguagem. Se para os estruturalistas seguidores de Saussure o ato individual, a fala, deveria ser relevado, dado o caráter heteróclito dessa face da linguagem, para Benveniste o centro dos estudos lingüísticos estaria na relação do eu com a linguagem, e em como este eu a colocava em uso, ou seja, estaria na enunciação. Segundo ele, A linguagem é, pois, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter sempre as formas lingüísticas apropriadas à sua expressão; o discurso provoca a emergência da subjetividade, pelo fato de consistir de instâncias discretas. (Benveniste, 1988: 289, grifo nosso) A linguagem é para Benveniste uma ferramenta que permite a expressão da subjetividade, não tendo, inclusive, outra finalidade: ela “é tão profundamente marcada pela expressão da subjetividade que nós nos perguntamos se, construída de outro modo, poderá ainda funcionar e chamar-se linguagem” (idem: 287). Essas afirmações levam-nos a concluir que, para ele, a subjetividade precede a língua e o discurso, pré-existe a estes. Mas como imaginar uma subjetividade sem que esta seja construída/mediada pela linguagem? É impensável um homem livre das coerções sociais, já que estas são reconhecidas pelo homem através da linguagem. Ao estudar os pronomes pessoais, Benveniste afirma serem eles categorias da língua elementares, independentes de toda determinação cultural, formas vazias das quais o sujeito se serviria e preencheria na enunciação, como se houvesse uma língua em si mesma, de um lado, e o discurso, de outro, que seria o seu colocar em uso pelo sujeito, segundo uma individualidade também em si mesma, em outras palavras, afastada, em certa medida, das influências do social. 37 Segundo este autor, a enunciação é um processo de realização individual, um processo de apropriação: “o locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices específicos, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios, de outro” (Benveniste: 1988, p. 84). Ao considerar a existência de um aparelho formal da língua, Benveniste reconhece que não se deve abandonar de todo a visão estruturalista, uma vez que a língua é sim composta também por formas. Contudo, imaginar a enunciação desta maneira equivale a supor um sujeito pronto, completo e acabado, e uma língua também pronta para servir aos propósitos (à intenção, para usar um termo da pragmática) do locutor. Este não atuaria sobre a língua, mas através dela, ou seja, ela seria um mero instrumento para a comunicação entre locutor e alocutário. Essa perspectiva “ignora” que a própria escolha de um recurso expressivo, em detrimento de outro, já revela um trabalho sobre a língua. Assim, para Benveniste, a língua é um aparelho formal autônomo, e o sujeito é livre para dele se utilizar, ocupando o lugar de centro e origem de todo dizer, a despeito das relações sociais que constituem tanto um quanto outro. Aliás, a única referência ao social aparece quando o autor discute a relação entre o eu e o tu da enunciação, o que poderia sugerir uma idéia de interação. No entanto, os papéis são fixos, e cabe sempre ao eu, no próprio ato de se enunciar eu, definir o outro como tu, cuja função seria a de recuperar a intenção presente no dizer do locutor, a fim de captar o sentido do texto. Em outras palavras, trata-se de uma relação unilateral, e não constitutiva, pois o tu só se define a partir do locutor que se diz eu. Esse social, portanto, é estático: o eu é sempre o mesmo, pronto e acabado, assim como o tu, já que este só se define em relação àquele, não havendo de fato um processo de interação e constituição dos sujeitos através da linguagem. A língua seria entendida como um conjunto de formas vazias a serem preenchidas no ato da enunciação; 38 por essa razão, Benveniste se dedica, entre outros recursos, ao estudo dos dêiticos e dos pronomes pessoais, pois eles revelariam, segundo o autor, a subjetividade na linguagem e o modo como se dá esse preenchimento em cada enunciação distinta. Embora tenha dado contribuições importantes para o desenvolvimento da Lingüística, Benveniste não escapou das críticas, e a mais forte delas diz respeito exatamente ao lugar do sujeito na linguagem. Se este teórico avança por inserir nos estudos lingüísticos a noção de contexto da enunciação, este ainda se limita ao contexto imediato, não se considerando os lugares sociais ocupados pelos sujeitos, lugares que interferem no dizer e no compreender, este não podendo ser entendido como um processo passivo. Essa posição assumida por Benveniste em relação ao par sujeito/linguagem sem dúvida traria complicações de ordem pedagógica a um já conturbado ensino de língua materna: se o sujeito é o “todo-poderoso”, senhor da língua que usa, os alunos que tivessem seus textos com desempenho abaixo do esperado seriam avaliados negativamente, pois, se a língua está pronta para ser usada e ela é transparente, a culpa das eventuais falhas é daquele que não sabe utilizá-la. A falha estaria no aluno. Por outro lado, se compreendemos esse par de outra maneira, como inseridos num contexto mais amplo (social, histórico), passaremos a observar que fatores levam às dificuldades apresentadas pelos alunos, podendo ser estes fatores de ordem estritamente lingüística ou não. Tem-se até aqui que os paradigmas anteriores ou excluíam o sujeito e a sociedade (portanto, a história também) no estudo da língua, e privilegiavam uma abordagem imanente; ou colocavam o sujeito como centro e origem de todo dizer. O teórico russo Mikhail Bakhtin traz uma nova proposta, que modifica o modo de ver o papel do sujeito no funcionamento da linguagem, pois ele vai abordar a língua como interação verbal entre sujeitos, que não são o centro e a origem do dizer, mas cujas enunciações são mediadas pela situação de produção do discurso (seja a mais imediata ou a mais ampla). 39 Essa concepção de língua como interação está relacionada ao conceito talvez mais importante do pensamento bakhtiniano: a noção de dialogia. Segundo ele, o que determina a palavra é que esta é sempre orientada para alguém e é “produto da interação do locutor e do ouvinte”(Bakhtin, 1995:113). Assim, o sujeito jamais pode ser o centro ou a origem do dizer, tendo em vista que a língua não se situa nele, mas na relação deste com o seu interlocutor, mesmo que esse interlocutor não seja conhecido ou que seja o próprio locutor, numa enunciação monológica. Ou seja, o discurso é sempre orientado para uma resposta, ao mesmo tempo em que também, ao nascer, já traz consigo a possibilidade dessa resposta. Por outro lado, não haveria, segundo Bakhtin (1995), uma individualidade em si mesma, pois, para ele, a própria consciência individual é um resultado social, já que não há um sujeito livre de ideologia e que é a relação entre ideologia (fator social) e linguagem que constitui a consciência individual: “o discurso não é, pois, a expressão da consciência, mas a consciência é formada pelo conjunto dos discursos interiorizados pelo indivíduo ao longo de sua vida” (Fiorin, 1997:35). Essa idéia se justifica na própria noção de signo para Bakhtin, que diferencia signo e sinal: segundo este teórico, só o signo pode ser interpretado, tendo em vista que é ideológico por natureza e seu significado só poder ser apreendido na relação com a ideologia que o enunciou; já o sinal é identificado, como algo estranho, pois ele não tem qualquer relação com a ideologia. Percebe-se, então, que, para este autor, a palavra não significa em si mesma, mas significa dentro de um contexto e de um horizonte discursivo dado, de maneira que a mesma palavra pode assumir significados até mesmo opostos, a depender de sua relação com o contexto. Sendo social, “o signo torna-se a arena onde se desenvolve a luta de classes”, pois uma mesma palavra pode servir tanto ao discurso da liberdade, quanto ao da 40 dominação, a depender do lugar social ocupado pelo sujeito que enuncia e, assim, a formação ideológica que o originou. Sendo a ideologia e o sujeito sociais (posto que não há consciência individual sem ideologia, e que é nas situações sociais que o eu interage com o o/Outro), então o seu dizer será delineado/orientado por essa situação social. É a situação que definirá o como dizer, a depender de sobre o quê se fala e a quem se fala. Se não é o sujeito a origem do dizer, e se a enunciação não é mera apropriação de formas lingüísticas prontas e acabadas, então o movimento desse sujeito é na direção de uma “corrente de comunicação verbal”, em que ele se insere, de maneira que o seu dizer é mais um “elo na cadeia dos atos de fala” que o precederam e com os quais dialoga, é “apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta” (Bakhtin, 1995: 112). A partir dessas noções fica claro então que, segundo o pensamento bakhtiniano, nenhuma enunciação pode ser analisada parcial ou isoladamente, mas deve ser analisada pelo todo social, histórico e cultural que a compõe; ou seja, a enunciação é resultado de uma construção duplamente social, no sentido de que é produto da interação entre dois sujeitos (igualmente sociais) e de que se estabelece em relação a outras vozes já ditas. Por outro lado, é histórica porque mantém relações com um dado momento histórico, com suas especificidades ideológicas, que dialogam com os momentos históricos precedentes; e é cultural porque é produzida segundo os valores de uma dada cultura, na qual o sujeito está inserido e cujos valores lhe são intrínsecos, ainda que este não tenha consciência do fato. Para o autor russo, a própria enunciação de um texto, o colocar a língua em uso, já traz consigo a marca (ainda que escondida) de discursos outros, pois “nenhum palavra é nossa, mas traz em si a perspectiva de outras vozes” (Barros, 2003:3). 41 Essa é uma noção importante para a nossa pesquisa, uma vez que pretendemos observar nos textos dos alunos como essas “outras vozes” (vindas, num contexto mais imediato, dos textos lidos e das discussões em sala de aula) serão constitutivas do discurso escrito dos alunos e de que maneira se relacionam com os lugares sociais ocupados por esses sujeitos no momento da produção escrita (tanto em relação ao interlocutor proposto na atividade, quanto ao professor e até mesmo aos outros colegas). Há que se considerar, por outro lado, que “a intertextualidade na obra de Bakhtin é, antes de tudo, a intertextualidade ‘interna’ das vozes que falam e polemizam o texto, nele reproduzindo o diálogo com outros textos” (Barros, op. cit.: 4). Assim, como qualquer outro texto, aquele produzido na escola será um diálogo em muitos sentidos: diálogo com o já-dito sobre o assunto, com outros textos do mesmo gênero, com as discussões orais (através das quais se tem contato com outras idéias), com os dizeres construídos dentro da sala (que definem as imagens atribuídas a professores e alunos e aquelas que realmente estes assumem), e com o dizer socialmente aceito. A partir destas considerações, pode-se perceber que a noção de sujeito subentendida na perspectiva bakhtiniana não é de unidade, mas de multiplicidade em vários aspectos, de maneira que o sujeito não é uno, é múltiplo; não é completo, é constituído através dos processos de interação de que participa ao mesmo tempo em que também constitui a própria linguagem, uma vez que esta não é vista como conjunto de formas acabadas. O sujeito não é mais o senhor do conhecimento, a provocar resultados sempre novos e nem sempre esperados; mas também não é um mero repetidor de formas prontas, das quais ele se serve, como numa grande indústria de montagem, onde os funcionários já recebem as peças de que precisam, seguidas das instruções de uso, com indicações da ordem em que elas devem ser montadas a fim de gerar o mesmo resultado. 42 Outra corrente de estudos que também considerou o problema do sujeito na linguagem foi a Análise do Discurso. Num primeiro momento dessa linha de pensamento, pode-se dizer que houve, mais uma vez, a anulação da ação do sujeito, uma vez que este era entendido como completamente assujeitado; ou seja, não só ele não poderia ser a origem de qualquer dizer, como ele apenas servia de lugar de passagem para que os discursos já existentes na sociedade se concretizassem, tomassem forma. O enunciador é o suporte da ideologia, vale dizer, de discursos que constituem a matéria-prima com que elabora seu discurso. Seu dizer é a reprodução inconsciente do dizer de seu grupo social. Não é livre para dizer, mas coagido a dizer o que seu grupo diz. (Fiorin, 1997: 42) No entanto, Pêcheux (1997) já considerava que um enunciado, mesmo textualmente repetido, pode ser novo, pois sua relação com as condições de sua enunciação produzem um acontecimento, ou seja, produzem outros efeitos de sentido. Assim, não se pode admitir que toda enunciação seja mera repetição (nem mesmo Benveniste sugeriria isso), embora todo discurso tenha em sua constituição o já-dito, a repetição de outros discursos, mas suas circunstâncias o fazem novo: “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (Foucault, 2004:26). Já não se fala mais apenas em língua, mas em discurso, entendido como o colocar a língua em uso, mas agora considerando a junção entre o material lingüístico e as condições de produção do discurso, sem o que o sentido não se construiria. Assim, o que vai interessar não é mais apenas a relação do sujeito com a língua que usa, mas o modo como essa relação se constitui na e a partir da sociedade na qual este sujeito se insere. O objeto de estudo não é mais a língua em si, mas o discurso, que tem seu suporte no lingüístico, nos textos. Estamos, portanto, entendendo discurso como um tipo de sentido – um efeito de sentido, uma posição, uma ideologia – que se materializa na língua, embora não mantenha uma relação biunívoca com recursos da expressão da língua. (...) o discurso se constitui pelo trabalho com e sobre os recursos de expressão, que produzem determinados efeitos de sentido 43 em correlação com posições e condições de produção específicas. (Possenti, 2002:18, grifos do autor) Quando se fala em condições de produção específicas e em efeitos de sentido, obrigatoriamente se fala também em exterioridade (constitutiva), que não aparece como algo imposto de fora para dentro do texto, mas que pode ser percebido na “maneira como os sentidos se trabalham no texto, em sua discursividade” (Orlandi, 1996: 29). Uma noção que dialoga diretamente com a de exterioridade constitutiva é a de interdiscurso, entendido por Orlandi (op. cit.: 39) como algo que fala sempre antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas (...). Aí se explicita o processo de constituição do discurso: a memória, o domínio do saber, os outros dizeres já ditos ou possíveis que garantem a formulação (presentificação) do dizer, sua sustentação. (...) Para que nossas palavras façam um sentido é preciso que (já) signifiquem. Considerando essa noção de discurso, o sujeito não é completamente livre, nem totalmente assujeitado, mas trabalha sobre a linguagem, “numa relação regrada” dentro dos limites que lhe são impostos pelas situações discursivas das quais participa. Ele não é apenas um lugar vazio ocupado pelos discursos já enunciados e dos quais ele não pode escapar, mas é, sim, um lugar a partir de onde discursos podem ser recriados. Essa idéia de sujeito ativo nos leva a um texto publicitário de alguns anos atrás, cujo anunciante, um Banco, se valia exatamente desse slogan: “seu Banco na era digital”. No texto veiculado na televisão, tínhamos imagens de crianças brincando, acompanhadas pela voz de um narrador-criança em suposta carta ao pai; nesta carta, a criança dizia que já nascera na era digital, pois quando veio ao mundo já existiam o computador, o e-mail, a internet ... Sendo assim, qual seria o banco ideal para alguém que já nasceu na era digital? Essa propaganda revela uma idéia de homem que já nasce conectado às mais diferentes inovações tecnológicas, o que lhe possibilita um saber “de berço”, de maneira que, ao crescer, ele já estará familiarizado com todas essas novidades, diferentemente de alguém 44 que as recebeu de repente e teve de se adaptar a elas. Essa familiaridade lhe permite não só usá-las de maneira inovadora, mas também recriá-las, a partir das necessidades impostas pela evolução do tempo e das formas de viver. O mesmo ocorre com o falante da língua. Se considerarmos a noção de corrente verbal, defendida por Bakhtin, veremos que o sujeito é alguém que já nasce e entra imediatamente nessa corrente, o que lhe permite um conhecimento especializado do funcionamento da língua e da linguagem; é exatamente esse conhecimento (não necessariamente aprendido na escola) que possibilita os chistes, as paródias, o uso inovador de provérbios, as charges, entre outros textos que, valendo-se de um já dito, renovam-no, transformando-o, através da relação estabelecida entre este e a nova situação enunciativa, em um acontecimento de linguagem (cf. Pêcheux, 1997). Ou seja, o sujeito passa a ser visto como alguém que trabalha sobre a linguagem. Por outro lado, conforme já dito, essa ação não é completamente livre. Evidentemente, esse trabalho sobre a linguagem não se dá de qualquer forma, a partir de qualquer lugar social e de quaisquer regras; além disso, a depender do tipo de trabalho realizado, não poderá ser construído por qualquer pessoa, pois, tendo em vista que somos seres sociais, a tendência é que levemos conosco também nessa relação com a linguagem as influências do nosso lugar social. Assim como defende Foucault (2004), ele não pode dizer qualquer coisa, em qualquer lugar, a qualquer pessoa, de qualquer jeito. Mesmo o seu trabalho empreendido sobre a linguagem é um resultado do lugar social ocupado pelo sujeito e sua relação com as condições de produção do discurso. Nas palavras de Possenti (2002), ao analisar um texto de Luiz Fernando Veríssimo, fica claro que não se pode voltar (é impossível voltar...) ao sujeito originário, pois fica suficientemente claro que o texto resulta de uma montagem com materiais que certamente não pertencem ao autor, mas que isso não significa postular a ausência do sujeito, a morte do autor, exatamente porque o que o autor faz com 45 tais materiais não é óbvio ou corrente, mas outra coisa, que até poderia ser caracterizada eventualmente como bastante original.” (p. 126) Para confirmar seu ponto de vista, Possenti (2002) apresenta duas evidências que serviriram, segundo ele, para comprovar a manifestação da subjetividade no uso da linguagem, bem como a idéia de um sujeito não mais assujeitado (por um lado) ou origem de todo dizer (por outro), mas de um sujeito ativo; seriam elas: a capacidade de distanciarse ou aproximar-se do seu discurso e do discurso do outro e a capacidade de reconhecer e seguir regras referentes aos gêneros do discurso. O sujeito agora passa a ser visto não como alguém que adquire sua língua, mas que já a encontra fluindo. É a esse fluir que ele procura se adaptar, compreendendo os processos de significação ao mesmo tempo que se vai constituindo como sujeito, não individual, mas social e ativo. Na perspectiva discursiva, com que trabalharemos, o sujeito é um ser atravessado por discursos vários; não é uno, nem homogêneo; e trabalha sobre a linguagem, como afirma Possenti (2002); sujeito que orienta o seu dizer em função de um outro com quem tenta interagir. Ou seja, ele nem é o centro e origem do dizer, nem está à margem (como nas perspectivas estruturalistas), e nem é também completamente assujeitado ou mero repetidor de discursos de outros. Na verdade, a noção de sujeito aqui adotada se situa na encruzilhada entre a perspectiva que o coloca como origem do dizer e a que o define como assujeitado, sem qualquer possibilidade de trabalho sobre a linguagem que utiliza. Assim, acreditamos, como Possenti (op. cit.), que o sujeito nem sempre tem o controle sobre o que diz e sobre o como diz, mas há espaço para o trabalho desse sujeito sobre o que diz, permitindo-o escolher como e o que dizer para gerar os efeitos de sentido desejados em uma determinada situação discursiva. Mas, a partir dessa discussão teórica, de que maneira podemos construir uma prática de ensino que considere de fato o sujeito como um dos elementos da situação de 46 produção e como alguém que não apenas se apropria da linguagem, mas trabalha sobre ela? O que mudaria no encaminhamento das aulas de Língua Portuguesa, se essa perspectiva fosse considerada? Ora, sabe-se que a toda e qualquer prática de ensino de língua portuguesa subjaz um conceito de língua que a orienta. A concepção de língua do professor será determinante para a escolha das atividades a serem desenvolvidas, para o encaminhamento das aulas de acordo com os objetivos a serem alcançados e que serão diferentes em cada concepção, e, sobretudo, para a escolha do enfoque a ser dado nas aulas de português: se elas estarão voltadas exclusivamente para o estudo da descrição da língua, ou se, ao contrário, estarão voltadas para a língua em funcionamento, ou seja, considerando-se o conhecimento do seu sistema de regras apenas como um dos aspectos a serem estudados, e não mais visto como o centro de todo o aprendizado sobre a língua. Assim é que, por exemplo, um professor que considere a língua apenas como estrutura, como um sistema de regras imutáveis, para cujo domínio basta o conhecimento das partes que a constituem, certamente centrará a sua aula no estudo da gramática (perspectiva tradicional), ignorando os usos efetivos da língua e, desta forma, negligenciando o preparo do seu aluno para utilizá-la nas diferentes situações que existem no ambiente extra-escolar. Por outro lado, se em sua prática de ensino o professor assume uma concepção de língua mais ampla, considerando-a a partir de uma perspectiva discursiva, como um recurso que permite a própria constituição dos sujeitos e a interação entre eles, as possibilidades de atingir objetivos mais amplos no ensino serão, evidentemente, multiplicadas. A partir dessa perspectiva, o professor passa a elaborar atividades que irão preparar de fato o aluno para utilizar a língua nas mais variadas situações e possibilitar-lhe 47 a compreensão da relação entre o uso da língua e a situação sociocomunicativa que orienta tanto a leitura quanto a produção de textos. Nesta última perspectiva, a descrição da língua é apenas um dos aspectos a serem estudados e não o fim último do ensino de português, de maneira que leitura e escrita não são mais tomadas como pretexto para a análise gramatical pura (conforme a posição tradicional sobre a língua). Dessa forma, a prática de leitura, a produção de textos e a análise lingüística são vistas como atividades que funcionam integradamente e se desenvolvem sob a influência de outros fatores, que vão além do mero domínio das regras gramaticais. Entre esses fatores, podemos citar, por exemplo, o gênero textual a ser produzido/lido; o interlocutor (o leitor, quando da produção escrita, ou o autor, quando da leitura); os objetivos a serem atingidos na leitura ou na escrita; e o registro de linguagem adequado à situação (Geraldi, 1997). Além desses, é preciso considerar ainda que os sujeitos ocupam lugares sociais e falam a partir de uma determinada formação ideológica, sem a qual não existe linguagem porque é nela que os sentidos são construídos (Bakhtin, 1995). Ao contrário da perspectiva estruturalista, a discursiva tem como meta o desenvolvimento de habilidades para permitir que os falantes assumam sua posição enquanto sujeitos; ou seja, o que se pretende é formar leitores e escritores efetivos, que não apenas dominem as regras gramaticais da língua, em sua variedade culta, mas que saibam como, por que e em que situação devem utilizá-las, considerando o texto a ler/produzir. Dessa forma, o professor de língua materna estará despertando a reflexão e o senso crítico dos alunos, uma vez que eles passarão a pensar sobre a própria língua que usam, com a qual convivem desde cedo e aprenderam, muito bem, a interagir com o outro. O professor estará, então, ensinando-os a “aprender a aprender” (Geraldi, 1996:73) e a assumir, através do uso da língua e do conhecimento do seu funcionamento, o seu lugar, 48 mais do que merecido, de sujeito social e político, que constitui a língua que usa e, ao mesmo tempo, é constituído por ela. Acreditamos, então, estar clara a noção de língua assumida nesta pesquisa: língua como interação verbal, conforme defendeu Bakhtin (1995). Assim, o sujeito aqui passa a ocupar um lugar diferente daquele que vinha ocupando na perspectiva estruturalista, pois nela o trabalho do sujeito era relegado ao âmbito da fala, não sendo admitida a possibilidade de sua interferência na língua (o que pressupunha, inclusive, que há formas prontas e acabadas, significativas por si mesmas). Afastamo-nos aqui também da concepção de subjetividade de Benveniste (1988), pois este caminha para o outro extremo da questão do papel do sujeito no uso da linguagem, colocando-o como centro e origem do dizer. 49 3. A noção de autoria (Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 38) 3.1. A função-autor No capítulo anterior, definimos as noções de língua, discurso e sujeito essenciais para a compreensão da nossa abordagem na análise dos dados. Indissociável da noção de sujeito como múltiplo e atravessado por discursos está a noção de autoria, considerada por Foucault (2002) como uma das funções exercidas pelo sujeito. Aliás, é deste autor que parte um dos principais ensaios que discute a questão da autoria: ao se perguntar O que é um autor?, ele traz à tona um problema esquecido durante muito tempo: o da importância da figura do autor para a constituição do discurso e para as leituras que sejam pertinentes a esse discurso. Como resposta à pergunta que intitula sua conferência, Foucault construirá uma série de critérios que serviriam para definir a noção de autoria. Entre estes critérios, o mais discutido (e discutível) é aquele que considera o autor como uma função do sujeito e um lugar a partir do que esse sujeito instaura discursividade, ou seja, que constrói um dizer original, em função do que muitos outros discursos (sob a forma de comentários, críticas, ensaios etc.) serão escritos e a que se reportarão. A partir dessa definição, teríamos um grupo restrito de indivíduos a quem pudéssemos chamar “autores”, pois estes só poderiam ser identificados a partir de uma característica, no mínimo, difícil de se sustentar: a novidade das idéias apresentadas. Além disso, estaríamos apoiando uma noção (a de autor) em outra não menos complexa (a de 50 obra). O próprio Foucault (op. cit.) reconhece a dificuldade de se estabelecer onde começa e termina uma obra, mas garante que um dos seus fatores determinantes é a idéia de unidade. Possenti (2004, p.3), afirma que, na verdade, autor e obra são indissociáveis; um não aparece antes do outro, pois, se há autor, há obra e vice-versa: “Ora, é exatamente a figura do autor que confere essa unidade a uma obra”. Evidentemente, ao condicionar a existência de um autor à de uma obra e viceversa, estamos nos referindo a uma relação autor/obra que se constituiu como a conhecemos hoje apenas a partir do final do século XVIII e início do XIX, pois, antes dessa época, nem sempre o reconhecimento da obra equivalia ao reconhecimento do seu autor. Isso demonstra não ter sido sempre o autor um elemento essencial para a compreensão da obra. Segundo Chartier (1999) e o próprio Foucault (2002), até a Idade Média um conceito mais comum que o de autor era o de escriba, ligado ao ato (mecânico, desprovido de reflexão) de escrever. Nesse período, a escrita era considerada uma atividade de inspiração divina, assim, cabia ao homem apenas transcrever/copiar o que lhe era “ditado”. Não havia, portanto, nesse período, necessidade, nem mesmo a possibilidade, de se construir a noção de autor, pois este não existia, vez que não era o criador do que escrevia, mas era um canal para a palavra de Deus. Contudo, nesta mesma época, começam a proliferar textos que constituem um princípio de contradição à concepção sagrada de escrita, vigente até então: os textos heréticos, condenados pela Igreja Católica. Ora, se escrever é inspiração divina, como se explicaria a existência desses textos, sem que se negasse com isso a face sagrada da escrita? Apenas pelo seu pólo oposto e complementar: a inspiração demoníaca, que justificaria a necessidade de eliminação dessas obras (muitas vezes também de seus atores, caso não se retratassem). Surge, então, o imperativo de identificar o autor, a fim de 51 responsabilizá-lo por aquele dizer que feria o poder vigente (o da Igreja), e a fim de punilo, garantindo a manutenção desse poder, que não deveria ser contestado. A noção de autor passa a estar relacionada à de punição. De acordo com Foucault (2002), esta “apropriação penal dos discursos” é um dos marcos da noção de autoria: Os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores (outros que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores. Na nossa cultura (...), o discurso (...) era essencialmente um acto – um acto colocado no campo bipolar do sagrado e do profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo. (p. 47) Além da apropriação penal, há outro fator que, para Foucault, também é determinante para a compreensão de o que se entende por autor: a historicidade. Na breve exposição que fizemos até agora, recorremos, ainda que rapidamente, a pelo menos três momentos diferentes, a fim de compreender a noção de autoria: a atualidade, a Idade Média e os séculos XVIII e XIX. Isto é, para entender como o autor foi visto e como se estabeleceu ao longo do tempo sua relação com os discursos que enunciava, foi preciso observar como essa figura de autor veio sendo definida em cada momento histórico, pois cada momento constrói e interpreta de maneira diferente a história do livro, dos leitores e autores. Nas palavras do próprio Foucault (2002): a função autor não se exerce de forma universal e constante sobre todos os discursos. Na nossa civilização, nem sempre foram os mesmos textos a pedir uma atribuição. (p. 48) Tanto os textos que exigem uma identificação do autor variam ao longo do tempo, não são sempre os mesmos, quanto um mesmo texto pode exigir ou não essa identificação, a depender da época. É o caso dos textos literários, que, atualmente, não são analisados sem que se considere quem os produziu e em que momento histórico: os discursos ‘literários’ já não podem ser recebidos se não forem dotados da função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projecto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe 52 reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões. (p. 49) Mas nem sempre o estudo desse discurso ‘literário’ se deu dessa forma. Os enquadramentos (Foucault, 2004) variaram ao longo do tempo e com eles variaram as maneiras de conceber autor, leitor e obra. Chartier (1999) registra que durante muito tempo não houve estudos, dentro da história do livro, que considerassem o autor (nem o editor) como elemento que intervém no processo de produção da obra. A história dos livros, especialmente na França, estava muito mais voltada para as maneiras de ler e para a apreensão das leituras preferenciais em diferentes épocas (basta ver a preocupação em elaborar listas dos títulos encontrados em bibliotecas particulares5). Segundo este autor, “na tradição da história social da impressão, tal como ela se desenvolveu na França, os livros têm leitores, mas não têm autores – ou mais exatamente, estes não entram no domínio da competência do historiador” (Chartier, 1999: 34). Ao ignorar a figura do autor como elemento importante na história do livro, está-se ignorando também as formas de controle que autores (e editores) exercem sobre as maneiras de recepção, compreensão e interpretação dessa obra (Chartier, op. cit.). Com essa afirmação, não estamos, evidentemente, defendendo que o autor controla todos os sentidos possíveis do discurso que produz ou que prevê todos os movimentos de interpretação do seu leitor, pois isto equivaleria a supor que: a) o sentido é unívoco e está no texto; e b) o autor está livre para dizer e é senhor do que diz. A partir das concepções de língua, discurso e sujeito, delineadas no capítulo anterior, tais suposições não se sustentam. O próprio Chartier (op. cit.) reconhece que O autor, tal como ele faz a sua reaparição na história da teoria literária, é, ao mesmo tempo, dependente e reprimido. Dependente: ele não é o mestre do sentido, e suas intenções expressas na produção do texto não se impõem necessariamente nem para aqueles que fazem desse texto um livro (livreiros5 A esse respeito, ver, por exemplo, Abreu (2002), Chartier (1999b) e De Certeau (1994). 53 editores ou operários da impressão), nem para aqueles que dele se apropriam para a leitura. Reprimido: ele se submete às múltiplas determinações que organizam o espaço social da produção literária, ou que, mais comumente, delimitam as categorias e as experiências que são as próprias matrizes da escrita. (p. 35-36) Essa compreensão do autor como dependente e reprimido se justifica exatamente pelo fato de ser o autor uma função do sujeito – ele mesmo dependente e reprimido por coerções sociais de comportamento e de uso da linguagem. Trata-se, portanto, de perguntar com Foucault (2002): “Que lugar pode o sujeito ocupar em cada tipo de discurso, que funções pode exercer e obedecendo a que regras?” (p. 70). Em toda a exposição desenvolvida por Foucault, na conferência O que é um autor?, percebemos que este limita a noção de autoria a campos específicos do saber (tais como a Literatura e a Ciência) e aos discursos que neles circulam. Ele não parece cogitar que se possa, no discurso do cotidiano, nos discursos construídos em interações da vida comum, aplicar o conceito de autoria. De fato, uma vez que Foucault associa o autor a um instaurador de discursividade, a um sujeito que, no campo das idéias, formula um dizer original, torna-se difícil entender que nos textos comuns do dia-a-dia haja um autor. A mesma limitação se verifica se tentarmos aplicar a perspectiva foucaultiana de autor aos textos escolares, uma vez que não há, nestes textos, “grandes transformações em um campo do saber”. Contudo, veremos que há espaço para o novo e para o trabalho do sujeito sobre o dizer nesses textos. Esclareceremos no item a seguir os pressupostos teóricos que justificam a perspectiva aqui assumida para a compreensão da autoria em textos escolares. 3.2. A construção da autoria: o aluno-autor Discutimos até aqui a noção foucaultiana de autoria e verificamos alguns de seus avanços e limitações no estabelecimento dessa definição. Vimos também que o autor, tal como concebido por Foucault, não pode percorrer muitos domínios; entre estes 54 domínios que ele não pode percorrer está o escolar, conforme já assinalamos. Mas como, então, entender a autoria em textos escolares? Em situação escolar, estaria o discurso fadado à mera repetição? Ou há um lugar possível para o aluno (que também é uma posição-sujeito) ocupar a função de autor? Para responder a essas questões, recorreremos às contribuições de Orlandi (1996), Possenti (2002), Authier-Revuz (1994) e Bakhtin (1998). Ao discutir a relação entre os mecanismos de interpretação, de um lado, e autoria e leitura, de outro, Orlandi (1996) situará a noção de autor na tensão existente entre unidade e dispersão dos sujeitos e dos discursos. Assim, ela concorda apenas parcialmente com Foucault (2002), se aliando a este quando ele identifica a unidade como princípio da autoria, tendo em vista que é esta que garante um fechamento para o texto. A autoria, para Orlandi (1996) não se limita, então, como em Foucault (1983) a um quadro restrito e privilegiado de produtores (originais) de linguagem, que se definiriam em relação a uma obra. Para nós, a função-autor se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, nãocontradição e fim. (p. 69) Mas essa unidade não passa de uma ilusão necessária para que o jogo interpretativo se instale: se considerarmos o texto como a materialização de um discurso, para cujo sentido contribuem vários fatores exteriores (porém constitutivos), temos reinstaurada a dispersão do sujeito – que se colocou na origem desse dizer porque era necessário que ele assumisse uma posição-sujeito para dela enunciar, mas que não está só – e do discurso, que dialoga com outros discursos, sejam eles de um outro (interlocutor) ou de um Outro (interdiscurso): (...) um texto, do ponto de vista de sua apresentação empírica, é um objeto com começo, meio e fim, mas que, se considerarmos como discurso, reinstala-se imediatamente sua incompletude. Dito de outra forma, o texto, visto na perspectiva do discurso, não é uma unidade fechada (...) pois ele tem relação com outros textos (existentes, possíveis ou imaginários), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação), com o que chamamos sua exterioridade constitutiva (o interdiscurso: a memória do dizer). (Orlandi, 1996: 54) 55 Unidade e dispersão, então, caminham juntas na construção dos efeitos de sentido, seja porque o texto, enquanto discurso, se dá na dispersão de outros discursos existentes; seja porque o sujeito não é totalmente livre, não pode ser o autor de um dizer original, pois o ato de enunciar sempre implicará um diálogo com a exterioridade constitutiva. Essa perspectiva defendida por Orlandi (1996) nos dá a possibilidade de estender o conceito de autor a outros textos que não os literários ou científicos, mas àqueles produzidos em circunstâncias nas quais não temos efetivamente a construção de uma obra, mas temos, sim, a formulação de um dizer. Contudo, o que se espera desse dizer não é originalidade, mas uma unidade que o torne um todo compreensível e, ao mesmo tempo, espera-se que ele mantenha diálogo com outros dizeres já proferidos. Nas palavras de Orlandi (op. cit.) espera-se que ele se historicize. Ora, uma das maiores críticas feitas a textos produzidos em situação escolar é a que diz respeito à repetição das idéias, identificada facilmente como de outro e não do aluno. Este não se representaria por escrito, portanto, não apresentaria idéias próprias (originais), mas copiadas (em geral, de um senso-comum). A cópia demonstraria a recusa (inconsciente) de o indivíduo se colocar na origem do dizer, um dos procedimentos essenciais para que se reconheça a existência de uma autoria. O sujeito nega assumir esta função e se limita a repetir um dizer conhecido e congelado, que não é seu – não porque não foi dito por ele enquanto enunciador, mas porque ele não o interpretou e atualizou. Em outras palavras, é preciso, nessa repetição do aluno, distinguir dois caminhos: um, equivaleria ao apagamento do sujeito e da autoria, pelo fato deste não assumir seu lugar no jogo, não se colocando como autor – seria o caso da cópia, do plágio, ou efeito papagaio de que fala Orlandi (op. cit.). O outro caminho equivaleria à repetição necessária para revelar: a) a interpretação do sujeito sobre o mundo e sobre os discursos 56 acerca do mundo; e b) o lugar dessa interpretação em relação às outras já construídas, ou seja, ao interdiscurso. Neste segundo caminho, temos um movimento constitutivo para que a autoria aconteça, seja em qual texto for, pois ele demarca até onde as outras interpretações foram, para esclarecer, assim, onde começam as interpretações do sujeito. A inscrição do dizer no repetível histórico (interdiscurso) é que traz para a questão do autor a relação com a interpretação, pois o sentido que não se historiciza é ininteligível, ininterpretável, incompreensível. (...) a constituição do autor supõe a repetição, logo, como estamos procurando mostrar, a interpretação. (...) o dizível é o repetível, ou melhor, tem como condição a repetição. Não porque é o mesmo, mas é o que é passível de interpretação: o que é passível de ser repetido, feito de pré-construído (já dito) na relação com o interdiscurso. (Orlandi, 1996: 70-71) As operações de retomada de outros discursos (conscientes ou não) são, portanto, necessárias para tornar o dizer compreensível em qualquer texto, pois é através dessas operações que o sujeito se insere na corrente da comunicação verbal (Bakhtin, 1998) e que o seu dizer passa a fazer sentido. Assim, (...) o autor, embora não instaure discursividade (como o autor ‘original’ de Foucault), produz, no entanto, um lugar de interpretação no meio dos outros. (...) O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve sua formulação no interdiscurso, ele historiciza o seu dizer. (Orlandi, op. cit.: 70) Essa historicização de que fala a autora equivale, em certa medida, aos enquadramentos do discurso mencionados por Foucault (2004), pois afirmar que o sujeito precisa ancorar o seu dizer no interdiscurso, na memória discursiva e que esta é o que o torna interpretável, isto nada mais é que afirmar que ele não pode dizer qualquer coisa (coisas sem sentido, por exemplo), de qualquer forma, a qualquer pessoa. Com efeito, podemos dizer que a posição-autor se faz na relação com a constituição de um lugar de interpretação definido pela relação com o Outro (interdiscurso) e o outro (interlocutor). (Orlandi, 1996: 74) Assim, para se constituir como autor de um dizer, é preciso recorrer, sim, à repetição; mas o que repetir e como se inscrever, enquanto autor, nesse repetível, dependerá da situação de interação em que se encontra o locutor, pois o interlocutor 57 também interferirá no grau dessa repetição e na sua formulação. Como diz Orlandi (op. cit.), (...) o autor, relativamente à injunção à interpretação, fica determinado: a) de um lado, pelo fato de que não pode dizer coisas que não têm sentido (a sua relação com o Outro, a memória do dizer) e b) deve dizer coisas que tenham sentindo para um interlocutor determinado (o outro, seja ele efetivo ou virtual). Desse modo a historicidade se atualiza na função-autor através da interpretação. (p. 75) Nos textos produzidos em situação escolar, há que se considerar, portanto, como funciona a repetição: o aluno apenas se rende à cópia, ao efeito papagaio? Ou ele recupera já-ditos, trabalhando sobre eles para revelar a sua6 interpretação particular? E ainda: como essa “interpretação particular” se mostra nesses (e em outros) textos? Possenti (2002) defende que em toda formulação há espaço para que o eu trabalhe; não se trata, portanto, de observar sempre como o o/Outro interfere no discurso de um sujeito, mas também como este modifica o discurso do o/Outro, a fim de provocar novos efeitos de sentido. O tipo de dados a que mais este autor recorre é exatamente aquele cuja forma é cristalizada, estereotipada, mas sobre o que se dá uma inscrição de subjetividade (p. 64): os provérbios. Para ele, “o que mais interessa destacar é diferença entre enunciar um provérbio, isto é, um discurso ‘de outro’ numa determinada circunstância, e produzir este novo enunciado, com base no material de outro discurso” (p. 69, grifo do autor). Nesta eterna discussão entre sujeito assujeitado X sujeito livre, Possenti se coloca no entremeio, defendendo que esse sujeito nem é totalmente assujeitado, nem livre. Sendo assim, a noção de autoria também se situaria entre um pólo e outro na questão do sujeito: há enquadramentos que o sujeito, enquanto autor, deve respeitar; mas há o espaço para a interpretação e reformulação de já-ditos, a fim de gerar o novo. 6 Ao nos referirmos à interpretação do sujeito, não estamos ignorando que esta se construiu nas interações sociais da quais o sujeito participou e que ajudaram a compor a sua memória discursiva. 58 Essa reformulação, que marca o trabalha do eu no discurso do outro, pode, segundo Authier-Revuz (1994) assumir duas formas: a do dizer da falta e a falta do dizer. Mais que um jogo de palavras, essas duas formulações podem ser importantes para a compreensão de estratégias utilizadas pelo sujeito para marcar a distância de si e do discurso. Assim, o dizer da falta poria à tona a própria opacidade e imperfeição da linguagem, revelando que o dizer não corresponderá exatamente ao efeito de sentido que se esperava: (...) falta deve ser tomada em um primeiro sentido: o da falta, da imperfeição, da anomalia que o dizer apresenta, como se diz que uma roupa, uma madeira, uma pessoa tem um defeito, do qual se pode descrever as características. (...). (Authier-Revuz, 1994: 256, grifos da autora) Seria, portanto, afirmar que a palavra não se basta: é o dizer da rapidez (para ser breve, do que poder-se-ia chamar rapidamente), do grosso modo e da comodidade, entre outros. Todos, porém, revelam uma avaliação “de fora” sobre o que se diz, sobre a própria formulação e as possibilidades que esta tem de garantir (ou não) o objetivo da interação. Por outro lado, a falta do dizer seria o reconhecimento de que falta a palavra para dizer, porque o sujeito não a conhece ou porque a própria língua não tem uma palavra ideal para dizer, garantido a (suposta) exatidão do que se diz. O segundo tipo de representação da falta do dizer, inscreve-se do lado do outro valor da palavra falta, complementar do primeiro, o de uma ausência, de uma falha, do que faz falta ao dizer – seja a) ‘a’ palavra exata que falta no dizer, vazando a nomeação por sua ausência; ou b) seja o enunciador que, de algum modo, faça falta no seu dizer da palavra, como ‘ausentado’ de um dizer que se esquiva na sua plena realização. (p. 263, grifos da autora) Essa duas formas apontadas por Authier-Revuz para marcar a imperfeição/limitação do dizer (seja por parte do sujeito ou da língua) incidem sobre a relação entre o nome e a coisa nomeada, entre a palavra e o referente, associados à instância discursiva e à situação de interação em que aparecem (vez que a instância e a 59 situação justificam o fato de a palavra ser suficiente ou não). Elas revelariam, por um lado, o trabalho do sujeito sobre a linguagem, o qual se define pela falta – sinal de que, se há o reconhecimento de falta, é porque há a busca pela completude. Ou seja, há alguém que formula um dizer e que, pela falta, reconhece o seu lugar como fluido e impreciso. Por outro lado, é através da avaliação da situação de produção em que se insere que o sujeito identifica essa falta. Na esteira do pensamento de Authier-Revuz, Possenti (2002) menciona duas formas de provar que há ação do sujeito com a linguagem: a primeira seria a capacidade de “colocar-se à distância (algo como ver-se de fora, avaliar-se adequadamente), por um lado, e, por outro, a capacidade de colocar à distância (ver de fora, avaliar adequadamente) seu discurso” (p. 130). Para tanto, é preciso supor que o sujeito percebe certos elementos da situação de interação (o interlocutor e o assunto, por exemplo) e que os leva em conta ao construir o seu dizer. A segunda forma que prova a ação do sujeito é o fato de que ele conhece, domina e segue “regras constitutivas de gêneros de discurso” e o fato de que percebe quando “alguma característica relevante falta um certo tipo de texto”, o que poderia comprometer a interação (Possenti, 2002: 130). Assim, tais estratégias de manter-se à distância ou manter o discurso à distância podem ser marcas que nos auxiliam a identificar a assunção da posição-autor em textos escolares, pois elas se colocam no ponto mais tenso entre onde começa o trabalho do eu e termina o discurso do outro (e vice-versa): a formulação. Outras formas de se perceber essa relação do eu com o o/Outro são definidas por Bakhtin (1998). Segundo este teórico, há pelo menos três recursos utilizados pelo sujeito para transmitir e assimilar a palavra de outrem: a forma indeterminada, as 60 modalidades escolares (dizer com as próprias palavras; dizer com as palavras do outro) e a palavra autoritária. O primeiro recurso, a forma indeterminada, corresponde ao todos dizem, ao disseram: Qualquer conversa é repleta de transmissões e interpretações das palavras dos outros. A todo instante se encontra nas conversas ‘uma citação’ ou ‘uma referência’ àquilo que disse uma determinada pessoa, ao que ‘se diz’ ou àquilo que ‘todos dizem’, às palavras de um interlocutor, às nossas próprias palavras anteriormente ditas (...). A maioria das informações e opiniões nos são transmitidas geralmente, em forma direta, originária do próprio falante, mas referem-se a uma fonte geral indeterminada: ‘ouvi dizer’, ‘consideram’, ‘pensam’, etc. (p. 139-140) Como em algumas circunstâncias não é possível (e em outras não é conveniente) identificar a fonte dessas “referências”, desses dizeres de outrem, recorre-se à indeterminação do dizem que/diz-se que, ou consenso do sabe-se que/é sabido que. Na argumentação, ao optar por recursos dessa natureza o autor pode sofrer duas conseqüências. A primeira seria esquivar-se da responsabilidade do que é dito, já que ele está apenas retomando o que já se disse; a segunda, mencionada por nós ao comentarmos o papel da repetição do dizer (Orlandi, 1996), é cair no vazio da mera repetição, não encontrando um lugar para chamar de seu neste discurso. Neste segundo caso, ele escapa, omitindo-se de se posicionar sobre o tema proposto e sobre os discursos que por ventura venha a retomar. O segundo recurso de transmissão e assimilação da palavra do outro, segundo Bakhtin (1998) é o dizer com as próprias palavras, “de cor”, ou com as palavras do outro. O teórico russo dará especial destaque ao dizer com as nossas próprias palavras: (...) relatar um texto com as nossas próprias palavras é, até um certo ponto, fazer um relato bivocal das palavras de outrem; pois as “nossas palavras” não devem dissolver completamente a originalidade das palavras alheias, o relato com nossas próprias palavras deve trazer um caráter misto, reproduzir nos lugares necessários o estilo e as expressões do texto transmitido. 61 Dizer com nossas próprias palavras, então, não deixa de ser dizer a partir do modo como interpretamos a palavra do outro, o que significa manter um diálogo com o que é do outro, mas inserir a nossa maneira de compreender: a) o que o outro disse (em relação com as condições de produção que motivaram esse dizer) e b)o que dizemos, em função da condição de produção que orienta a nossa formulação. Por fim, a palavra autoritária é uma palavra previamente reconhecida, que deve ser assimilada em sua totalidade, portanto, transmitida também sem restrições no conteúdo ou ressalvas: O discurso autoritário exige o nosso reconhecimento incondicional, e não absolutamente uma compreensão e assimilação livre em nossas próprias palavras. Também ela não permite qualquer jogo com o contexto que a enquadra, ou com seus limites, quaisquer comutações graduais ou móveis, variações livres criativas e estilizantes. Ela entra em nossa consciência como uma massa compacta e indivisível, é preciso confirmá-la por inteiro ou recusá-la na íntegra. (Bakhtin, 1998: 144) Inclui-se no âmbito dessa palavra autoritária o discurso religioso, que, como veremos no capítulo a seguir, serve de base para a argumentação de alguns alunos. Caberá verificar, entre outros fatores, como, nesse diálogo com outros discursos, o aluno se constitui como autor. Para entender essa questão, consideraremos, como Orlandi (1996) e Possenti (2002), que a autoria se estabelece em qualquer textos, desde que este seja uma unidade com coerência e fim; por isso, todo texto (inclusive os escolares) pode ter autores a lhe conferir esses fechamento e a interferir nos seus sentidos possíveis. Além disso, os traços dessa autoria serão reconhecidos pelo trabalho do sujeito sobre o discurso do outro; traços que se tornam perceptíveis através de modificações lingüísticas mais simples (como a troca de uma palavra por outra) ou operações mais complexas, como aquelas apresentadas por Authier-Revuz (1994) e Bakhtin (1998). Deste último, retomaremos principalmente as formas de recuperar o interdiscurso. Em suma, trata-se de considerar que 62 Toda fala resulta assim de um efeito de sustentação no já dito que, por sua vez, só funciona quando as vozes que se poderiam identificar em cada formulação particular se apagam e trazem o sentido para o regime do anonimato e da universalidade. Ilusão de que o sentido nasce ali, não tem história. (Orlandi, 1996: 71-72) O aluno, portanto, será autor, na medida em que assume movimentos que cabem a essa função: dá unidade ao texto e ao mesmo tempo se insere (e insere o seu dizer) na dispersão de discursos existentes, historicizando o seu discurso através do repetível; além disso, trabalha com e sobre a linguagem, conseqüentemente, sobre os discursos. 63 4. A produção textual orientada pela proposta do livro didático (Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 187) Neste capítulo, serão analisados os textos produzidos no primeiro momento da coleta de dados, ou seja, a partir de uma condição de produção diferente da que é construída no segundo momento. Para esta primeira produção, foi dada como subsídio aos alunos apenas uma proposta de redação, extraída do livro de Cereja e Magalhães (2003), sem que antes fosse feita qualquer discussão em sala de aula sobre o tema. É importante salientar que esse manual didático não era adotado pela escola, mas o era pela professora, que sempre utilizava as atividades e/ou textos desse livro em suas aulas. Como os alunos não dispunham do livro, os textos eram então digitados e entregues a eles sob a forma de uma apostila ou folha avulsa. O mesmo aconteceu com a atividade que consideraremos aqui. Vejamos, então, alguns aspectos importantes dessa proposta de redação. 4.1. A proposta de redação: o enquadramento do dizer Conforme já foi descrito no item 1.2.1.1. da Metodologia, a proposta de redação (Anexo A) contava com uma coletânea de textos, composta por um resumo do projeto de lei no. 1151, da deputada Marta Suplicy; e por dois textos opinativos, publicados na revista IstoÉ, sobre o contrato civil entre homossexuais. Além disso, a proposta era finalizada por uma comanda, que indicava o que deveria ser feito pelo aluno. 64 Propositadamente, nenhum outro material didático além deste foi levado para sala de aula neste momento, de maneira que o aluno lidou apenas com a proposta e com suas próprias descobertas sobre o tema, anteriores à produção e construídas em situações de interação social diversas (em casa, na rua, na escola, através da televisão, da internet etc.). Analisemos, portanto, a proposta de redação exposta aos alunos. Logo no início, o tema é introduzido sob a forma de uma pergunta: “Você é favorável à união civil de duas pessoas do mesmo sexo?”. Essa pergunta é seguida da síntese do projeto, dividida em três partes: o que o projeto propõe; o que o projeto não propõe; e como vai funcionar. Ao trazer apenas uma síntese do projeto, a proposta limita o conhecimento do aluno a uma leitura sobre esse texto, tendo em vista que autor do livro didático é o responsável pela escolha dos itens que, na sua opinião, merecem ser expostos. Ou seja, ele seleciona o que acha essencial no projeto e dá nome às partes desse documento. Ao menos é o que se pode concluir, já que não fica claro se se trata de citações de partes do texto original, ou de uma paráfrase feita pelo autor do LD (o que seria bastante comum nesse tipo de obra, que, historicamente, tende a “facilitar” a compreensão dos alunos, fornecendo-lhes informações já interpretadas, com leituras prontas e pré-definidas7). Como a proposta se baseia na publicação eletrônica, em 1995, na página pessoal da deputada Marta Suplicy, não foi possível recuperar o texto para estabelecer o confronto a fim de verificar os limites entre a leitura do autor do livro didático e o texto do projeto tal qual elaborado por Marta Suplicy. 7 Mas nem sempre os manuais didáticos funcionaram dessa forma; as notas e explicações foram acrescentadas já no século XX, o que revela uma mudança na compreensão dos papéis de professor e aluno, bem como do papel do livro didático no ensino. A esse respeito, ver, por exemplo, o estudo de Soares (2001), sobre a Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos Laet; e o trabalho de Batista (2002), sobre a constituição e circulação dos livros didáticos, no qual ele afirma que “as notas e orientações didáticas destinam o livro para um leitor em formação e carente de conhecimentos, que lê o romance para o aprendizado de literatura brasileira e não para o prazer e a ampliação, desinteressada, de seu contato com o mundo (...)” (p. 541). Sobre o uso do livro didático na sala de aula, ver Sousa (2002) e Bezerra e Dionísio (2001). 65 Nesta proposta, se por um lado a aluno tinha acesso a outras informações e posicionamentos sobre o tema, por outro, a própria seleção dos textos para a coletânea e a sua forma de apresentação já limitavam o seu campo de ação de diversas formas: o aluno não poderia escrever qualquer gênero (apenas a carta de solicitação), sobre qualquer tema, nem ter um posicionamento “maleável”, ou seja, ele só poderia optar entre ser favorável ou contrário ao projeto; não há na proposta nada que permita uma decisão baseada em ressalvas: por exemplo, ser favorável, mas sob algumas condições. Por outro lado, a proposta é limitada também na apresentação do projeto de lei, pois expõe apenas um resumo desse documento, a partir de três categorias: o que o projeto propõe, o que o projeto não propõe e como vai funcionar. Outro fator importante a ser considerado é que, na unidade em que se encontra essa proposta de redação, não há qualquer outro texto sobre o assunto que possa servir de informação acerca do projeto da deputada. A proposta, portanto, fica isolada, como uma atividade descontextualizada e descontínua, caracterizando-se como mero exercício de repetição formal do subgênero carta de solicitação. É possível comprovar isso se voltarmos ao início desse capítulo no livro didático em questão (ver Anexo A). O texto que é dado a ler, uma carta de solicitação, aborda os problemas enfrentados por moradores de uma rua onde foi inaugurado um bar, tais como: o barulho até tarde da noite, a falta de privacidade e de segurança, entre outros. As perguntas que se seguem ao texto visam à apreensão do formato do gênero e da linguagem a ser empregada (ver, por exemplo, as perguntas que compõem as questões 01 e 03, sobre a forma, e 06 e 07, sobre a linguagem) e do teor das idéias apresentadas (ver as perguntas formuladas nas demais questões). Após uma explicação sobre o funcionamento desse subgênero, a partir das perguntas respondidas pelos alunos acerca do texto, é apresentado um quadro-resumo com as suas principais características: 66 # texto com intencionalidade persuasiva; # apresenta às autoridades competentes reclamação de um problema (carta de reclamação) ou solicitação de soluções para um problema (carta de solicitação); # tem formato semelhante ao das cartas em geral: local e data, vocativo, corpo da carta (assunto), expressão cordial de despedida e assinatura; # tem como estratégia argumentativa mais comum: apresentação do problema, suas causas e conseqüências; exposição de argumentos capazes de comprovar que o remetente está com a razão, por estar sendo desrespeitado em seus direitos (carta de reclamação), ou por estar enfrentando algum problema (carta de solicitação), etc. # linguagem clara e objetiva, de acordo com o padrão culto e formal da língua, podendo ser menos ou mais pessoal (1a. ou 3a. pessoa); pronomes de tratamento empregados de acordo com o cargo ocupado pelo destinatário; # verbos predominantemente no presente do indicativo; # apresenta sugestões de possíveis medidas para a solução do problema. (Cereja e Magalhães, 2003: 216) Essa foi a definição de carta de solicitação e/ou de reclamação à qual os alunos tiveram acesso, no ano letivo anterior (pela primeira vez) e em 2004, sob a forma de revisão. Logo em seguida a este quadro, já aparecem, como culminância do capítulo, duas propostas de produção textual, entre as quais escolhemos a segunda. Ou seja, reproduzindo a seqüência do livro didático (como fizemos nesse primeiro momento), o processo de escrita corresponderá à aplicação de um conhecimento formal sobre um gênero textual para avaliação acerca do domínio desse conhecimento. Assim, no próprio texto apresentado no livro didático, não há possibilidade de o aluno recuperar informações sobre o que seja, por exemplo, direito à sucessão, benefícios previdenciários, ou mesmo saber o que são os deveres, impedimentos e obrigações dos homossexuais. Todas estas são expressões que aparecem na proposta, sem qualquer esclarecimento sobre seus significados, o que pode dificultar a compreensão do projeto pelo aluno. Numa prática pedagógica, que tentamos reproduzir neste primeiro momento, na qual o professor apenas repita o livro didático, a atividade de produção textual se tornará 67 um exercício de repetição de formas/fórmulas textuais, como se estas fossem sempre homogêneas e imutáveis. Evidentemente, há que se considerar um avanço em relação a aulas nas quais o professor escrevia no quadro: REDAÇÃO! TEMA: VIOLÊNCIA. 30 LINHAS Na proposta analisada, ao menos o aluno-autor conta com textos (ainda que incompletos, editados e retirados de seu contexto) a partir dos quais ele pode refletir e retomar outros conhecimentos que por ventura já tenha sobre o assunto. Dois desses textos foram publicados originalmente pela revista IstoÉ8 e são de autores que têm opiniões distintas sobre o assunto: um se colocam contra e o outro a favor do projeto. No entanto, esta parte já se inicia com uma informação, no mínimo, confusa: o título “Casamento homossexual?”. Essa expressão aparece antes dos dois textos opinativos divulgados na revista, mas não sabemos se esse título aparece já na IstoÉ ou se é o livro didático que usa, erroneamente, o termo casamento como sinônimo de contrato civil. Sem dúvida, isso confunde mais o aluno, ao invés de informá-lo e de ajudá-lo a “colher informações”, como diz a proposta, uma vez que, no resumo do projeto, tem-se, como primeiro item do que ele não propõe: “Dar status de casamento ao Contrato de Parceira Civil Registrada”. Ou seja, na verdade, o projeto deixa claro que casamento e contrato civil não são sinônimos, portanto, não poderiam ser utilizados aqui como equivalentes. Além disso, a revista também é de 1995, mesmo ano do projeto da deputada, o que dificulta a recuperação, quase 10 anos depois, do texto original pelo professor, a fim de suprir essas lacunas da proposta (embora neste momento visássemos à não interferência do professor no processo). Quanto ao teor das idéias discutidas nos dois textos, teremos o reflexo de uma estratégia constante de argumentação quanto ao assunto contrato civil entre homossexuais: 8 Não se sabe, por exemplo, em qual sessão da revista IstoÉ os textos opinativos foram publicados ou mesmo em que discussão eles se inseriam, com que outros textos dialogavam? Eles eram uma resposta a quê? A uma reportagem, a um artigo, a uma pesquisa? 68 aqueles que são favoráveis ao projeto retomam o discurso da cidadania, da igualdade e da necessidade de extinção do preconceito; já os que são contrários, baseiam-se na religião e no texto bíblico para justificar a sua posição. Nos textos da coletânea do livro didático, não é diferente, assim como nos textos produzidos pelos alunos-autores nesta pesquisa. Nesta proposta, o discurso da cidadania é defendido por Vicente Paulo da Silva (presidente da CUT, mais conhecido como Vicentinho), que é católico praticante, mas cuja posição sobre o assunto não tem bases religiosas, e sim sociais, o que se justifica pela lugar social ocupado por ele: presidente de uma entidade sindicalista. Já o discurso religioso é defendido por um general da reserva, o que prova que os discursos não são homogêneos e que, embora haja enquadramentos, há também espaço para fuga (tanto na sala de aula, como afirma Sousa (2002), quanto fora dela). Esse retorno à oposição entre cidadania/direitos, de um lado, e, de outro, preceitos bíblicos/religiosos só vem a reforçar a idéia de que um texto não existe no vácuo, mas é sempre uma resposta a uma rede de discussões já construída socialmente, que não podemos (e nem conseguiríamos) ignorar ao interagir com o outro, seja através do texto oral ou escrito (Bakhtin, 1995). Assim, nossa intenção é a de observar, no próximo item, como o aluno se move nesse terreno que lhe foi dado; terreno ainda cheio de acidentes, é verdade, mas que reproduz uma situação comum nas salas de aula de Língua Portuguesa: a recorrência ao livro didático como única fonte de saber e a atividade de produção escrita como isolada de um processo explícito de construção de conhecimento sobre o que se vai escrever. Não pretendemos aqui fazer avaliações sobre a qualidade dos textos, considerando-os bons ou ruins, mas entender como, nas condições de produção dadas, o discurso dos alunos-autores é construído. 69 4.2. A produção escrita e o diálogo com o já-dito Uma das maiores dificuldades no ensino/aprendizagem da escrita é o desenvolvimento da habilidade de argumentar para persuadir. Embora cada vez mais o que se priorize na avaliação dos textos escolares seja a qualidade dos argumentos apresentados para discutir um tema e convencer um interlocutor, parece que ainda estamos longe de possibilitar ao aluno o cumprimento desse critério e longe também de compreender por que o aluno (que vive cercado de informações de toda natureza) tem tanta dificuldade de desenvolver uma argumentação a fim de convencer o outro. Talvez pudéssemos elencar aqui algumas das possíveis razões para essa dificuldade: ausência de uma prática constante de leitura e escrita, na sala de aula e fora dela; falta de definição dos objetivos a serem atingidos com a produção escrita, ou seja, as atividades escolares se tornam meros exercícios formais e não exercícios de interação social; divisão do conhecimento em blocos (matérias), sem que estes se inter-relacionem, o que impede a compreensão de que são possíveis (até necessários e desejados) a recuperação e o confronto de informações de disciplinas diversas para auxiliar a argumentação; ou até a ânsia, mesmo a crença, de que o aluno deve dizer algo totalmente novo para ser avaliado positivamente. No entanto, a despeito dessas razões, a dificuldade continua lá a atormentar os alunos, fazendo-os sentenciar: “não gosto de redação” ou “não sei escrever”. Não caberia aqui discutir as concepções de escrita e de ensino subjacentes a essas afirmações. O que nos interessa é saber: como, diante deste quadro pintado sempre sobre o fundo da adversidade e da dificuldade, o aluno-autor constrói o seu dizer? A que ele recorre ou em que se ampara, já que impera a ordem: “redija”, “escreva”, “disserte”? 70 Para respondermos a essas questões, recorreremos uma vez mais a Bakhtin, segundo o qual, em qualquer enunciação, não se pode perder de vista dois fios condutores da elaboração do discurso: o já-dito e o ouvinte/interlocutor. Quanto ao primeiro, o autor defende que apenas o “Adão mítico” pôde construir um discurso primeiro, puro, sem retomar outras palavras, vez que estas ainda não haviam sido proferidas. Mas o falante comum não encontrará objetos puros sobre os quais falar, “pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele” (Bakhtin, 1998: 86). Assim, ao se deparar com um tema para produção escrita, o aluno deve considerar que o seu dizer não será inaugural (para usar um termo de Foucault), mas dialogará com o que já foi dito sobre esse tema e ajudou a construir a visão sobre ele em determinado momento histórico. Então, o que se espera do aluno na produção escrita é que ele recupere esses jáditos? Não apenas, pois isso se caracterizaria como mera repetição e não é esta a perspectiva bakhtiniana, tampouco é este o objetivo do ensino. Na verdade, o que se espera é que o aluno os retome para com eles dialogar, para encontrar o seu espaço e deixar claro o seu modo de avaliar o objeto e os discursos que cercam este objeto. Esta é uma das faces que consideramos na produção escrita escolar. A outra face refere-se ao segundo fio condutor para a elaboração do discurso: o ouvinte/interlocutor. Para Bakhtin, “ao se constituir na atmosfera do ‘já-dito’, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado (1998: 89). 71 Em outras palavras, a própria escolha de que discursos retomar não deveria se dar aleatoriamente, mas ocorrer em função do interlocutor a quem se dirige o discurso. É da compreensão desse processo que nasce o texto persuasivo: convencer o outro só se torna possível quando se compreendem os papéis sociais ocupados pelo autor e pelo interlocutor (que não é passivo) desse texto, a fim de saber as melhores informações e estratégias discursivas para convencer. Não se trata, portanto, de repetir infinitamente já-ditos, mas de dialogar com eles, concordando, discordando, provocando reflexão, humor, etc. Partiremos, então, das noções de alteridade e interdiscurso (segundo formuladas por Bakhtin) e da noção de sujeito e autoria (segundo Possenti, 2002 e Orlandi, 1996), conforme explicitamos nos capítulos 1 e 2 deste trabalho. 4.2.1. Pontos de vista diferentes, estratégias parecidas: o dizer ancorado no discurso do Direito Tendo em vista que um problema comum em textos produzidos por alunosautores (portanto, em uma situação escolar) é a recorrência ao senso-comum, às idéias já gastas e esperadas em discursos sobre aquele tema a ser discutido, parece-nos que esse diálogo a que Bakhtin (1998) se refere não existe, e os textos se perdem no vazio da repetição. Viria daí o pouco poder de persuasão desses textos que, ao considerarem o jádito sem problematizá-lo (apenas copiando-o), demonstram conseqüentemente ignorar a existência de um interlocutor ativo a quem convencer. Talvez esse seja um reflexo da própria situação escolar de produção textual, que prevê, muitas vezes, o professor como único interlocutor para o texto escrito dos alunos. Mas e no caso das produções escritas que compõem o nosso corpus? Conforme discutido anteriormente sobre a proposta de redação, os alunos tinham (ao menos em tese) um interlocutor definido e uma situação de interação com objetivos também definidos: 72 discutir o projeto de lei da deputada Marta Suplicy, através de uma carta de solicitação destinada a ela. Passaremos a observar a partir de agora como os alunos autores lidam com os dois fios condutores do discurso (especialmente o já-dito) mencionados por Bakhtin, diante das condições de produção descritas no item anterior: uma situação escolar, sem discussão prévia do tema em sala de aula, dispondo os alunos de uma proposta de redação formada pela coletânea de textos e pela comanda. Na análise dos modos de retomar o já-dito, consideraremos a classificação de Bakhtin (1998) sobre os procedimentos de transmissão e assimilação da palavra de outrem: a forma indeterminada (o “dizem”, “todos dizem”); as modalidades escolares (dizer com as palavras do outro; e dizer com as próprias palavras); e a palavra autoritária. Entretanto, não pretendemos limitarmo-nos a essas três categorias, tendo em vista que é possível descobrirmos outras formas de retomada nos textos dos alunos, conforme será observado no decorrer da análise. É importante lembrar que, no nosso corpus, essa retomada da palavra do outro pode se dar em relação aos textos que compõem a proposta de redação ou aos outros discursos em circulação na sociedade. Vejamos o Texto (1a): TEXTO (1a) Campina Grande, 08 de junho de 2004 Ilma Senhora deputada Marta Suplicy Venho por meio desta carta expressar meu desapego ao seu projeto de lei que legalizaria a união civil entre homossexuais. Os direitos e leis são e devem ser feitos baseados nos padrões da sociedade, e não nas excessões. Ser homossexual já é exercer um direito, é liberdade de escolha, e todo direito exercido tem seu pesar. A união civil é um direito dos heterossexuais, logo, seria injusto para com estes conceder a casais “gays” este mesmo direito. Meu ponto de vista sobre este tipo de união civil não se confunde nem é influenciado pela minha opinião sobre homossexualismo, mas ainda assim sou contra sua proposta. Seria melhor que esta lei fosse mais bem pensada e melhor analizada. Atenciosamente, Camila Ramos 73 Uma breve leitura do Texto (1a) é suficiente para perceber a adequação à proposta no que diz respeito ao cumprimento do subgênero solicitado e ao objetivo geral do texto: escrever para a deputada Marta Suplicy, discutindo a legitimidade do projeto proposto por ela. Essa afirmação se confirma se observarmos (no plano formal) a obediência à estrutura típica da carta de solicitação: local e data, vocativo, corpo da carta (em que se expressa a solicitação e se argumenta), despedida e assinatura. O mesmo se verificará com os outros textos que compõem nosso corpus, o que demonstra o enquadramento da produção textual dos alunos-autores à situação que lhes é posta nessa atividade escolar. Evidentemente, como afirma Sousa (2002), estão em jogo aqui os papéis sociais atribuídos a professor e aluno: cabe àquele elaborar, aplicar e avaliar as atividades; e a este cabe obedecer, participar das aulas quando solicitado e cumprir com as atividades, para ser avaliado positivamente. Há que se considerar, é claro, como afirma a autora, que há o espaço das surpresas e que muitas vezes esses papéis não funcionam como o esperado. Mas não é apenas na estrutura da carta que os textos dialogam com a proposta e nem este é o fator mais interessante para a compreensão dos modos de constituição do dizer dos alunos. É nos recursos argumentativos escolhidos para compor cada uma que será possível verificar o diálogo efetivo não só com a proposta, mas com outros discursos sobre o tema que circulam na sociedade. Especificamente em relação ao Texto (1a), verificamos, logo no primeiro parágrafo, mais uma maneira de explicitar o atendimento à proposta através da indicação do posicionamento assumido diante do projeto de lei e a retomada do teor desse projeto, com as palavras da aluna-autora: “que legalizaria a união civil entre homossexuais”. É interessante notar o uso do verbo no futuro do pretérito, indicando uma possibilidade remota, que provavelmente não se confirmará. 74 No parágrafo seguinte, a aluna-autora passa a discutir as razões que, para ela, justificariam o seu “desapego” ao projeto da deputada. Essa discussão em momento algum retoma itens do projeto, expostos na proposta, mas vai se basear na problematização do que é/deve ser considerado um direito. Nas quatro linhas que compõem o parágrafo, a palavra direito aparece cinco vezes e oscila entre uma acepção jurídica (direito previsto por lei) e uma acepção comum (direito de escolha). Segundo a aluna-autora, o direito (previsto por lei) deve se basear “nos padrões da sociedade, e não nas excessões (sic)”. Por outro lado, para ela, “ser homossexual já é exercer um direito, é liberdade de escolha”; ou seja, a palavra direito assume aqui o sentido comum de direito de escolha, pois, se este direito não precisa estar amparado legalmente, é exatamente porque faz parte do consenso aceito pela sociedade: é fato que todos têm direito de escolher, são “livres” para definir, por exemplo, sua opção sexual. No entanto, essa liberdade de escolha não precisa ser, segundo a aluna-autora, assistida por uma lei, pois a lei é para o padrão e não para a exceção. Além disso, o argumento de que “ser homossexual já é exercer um direito” também serviria para os heterossexuais, que usaram sua liberdade de escolha para definir sua opção sexual. Assim, segundo o raciocínio construído no Texto (1a), os heterossexuais já haviam se utilizado de um direito, o de escolha, e, portanto, não deveriam reivindicar outros nem serem beneficiados juridicamente de nenhuma forma. Portanto, esse argumento se mostra frágil, por permitir que sua lógica se volte contra a tese que se pretende defender no texto, a de que uma vez exercido o direito de escolha, não há mais o que se exigir da Justiça. A aluna-autora utiliza ainda a palavra direito em sua acepção jurídica por mais duas vezes no final do segundo parágrafo: “A união civil é um direito dos heterossexuais, logo, seria injusto para com estes conceder a casais ‘gays’ este mesmo direito”. Diante 75 dessa “supervalorização” do direito amparado por lei, podemos dizer que, nessas últimas ocorrências da palavra no referido parágrafo, ela assume quase o sentido de privilégio, de regalia que não deve ser repartida com todos, pois não seria “justo” com aqueles que a têm. Ora, este parece um eco de um discurso do poder, deslocado de vários contextos ao longo da história: o discurso dos homens livres e brancos, que não querem dar a “regalia” da liberdade aos escravos negros; ou o discurso dos homens, seres superiores intelectualmente, que não querem permitir às inferiores mulheres a “regalia” do voto. Nestes casos e em muitos outros semelhantes, o discurso é um só: alguém, que se considera melhor ou que detém o poder, não pretende dividir seus direitos/regalias com os outros considerados inferiores por ele. Embora se perceba uma preocupação da aluna-autora (basta ver o terceiro parágrafo) em não demonstrar uma posição anti-homossexualismo, não é isso que o seu discurso transparece. O que demonstra que o sujeito não controla totalmente os sentidos do seu dizer. Até porque a concessão dada aos homossexuais de que estes tenham o “direito de escolha” não é de fato dada pela aluna-autora, que aqui assume este dizer, mas por uma parcela da sociedade que defende esse direito, ou seja, a idéia de que podemos escolher nosso caminho (inclusive nossa opção sexual) tornou-se um consenso que não se pode negar. É o que “todos dizem” (para usar um termo de Bakhtin, 1998), então eles já deveriam dar-se por satisfeitos, pois já seria mais do que suficiente ou mais do que a sociedade pode tolerar... E porque não seria “justo” conceder aos casais homossexuais os mesmos direitos (na acepção jurídica) dos heterossexuais? Por dois motivos: primeiro porque se estaria colocando em igualdade heterossexuais e homossexuais, o que seria impensável na opinião dos que não aceitam esta escolha sexual; e segundo porque “todo direito exercido tem o seu pesar” (2o. parágrafo), ou seja, no discurso da aluna-autora, não obter direitos 76 quanto à união civil seria a punição cabível aos homossexuais por utilizarem a “liberdade de escolha” e por colocarem-se, dessa forma, à margem dos “padrões da sociedade”. Este raciocínio nos remete às reflexões de Foucault (1987), acerca dos mecanismos de vigilância e punição construídos no sistema penal, mas que também se aplicam a outros sistemas disciplinares da sociedade, como o escolar, por exemplo. Neste estudo, o autor afirma que a punição é o mecanismo encontrado para controlar os desvios e extinguir o que não estiver conforme a “normalidade”, ou seja, o castigo disciplinar tem uma função corretiva dupla: de um lado, punir as condutas já caracterizadas como indesejáveis e, de outro, evitar que outros indivíduos a repitam. Ao negar em seu texto a possibilidade de o homossexual ter direitos, no sentido jurídico da palavra, a aluna-autora impinge uma punição a estes indivíduos que fugiram da normalidade, do padrão social. Estabelecendo essa punição, ela também, implicitamente, condena esse comportamento e desestimula a adesão de outras pessoas a essa escolha, pois está subentendida a seguinte idéia: aqueles que escolherem esse desvio, serão igualmente punidos. Assim, neste trecho do Texto (1a), podemos reconhecer as cinco operações que, segundo Foucault (1987), são postas em funcionamento com a punição: a comparação, a diferenciação, a hierarquização, a homogeneidade e a exclusão (p.163-164). Tais operações caracterizam a punição como uma atitude normalizadora, que privilegia o padrão aceito e almejado pela sociedade; ou seja, o homossexual é comparado com o heterossexual, é avaliado primeiramente como diferente e depois como inferior em relação a este, por fugir da homogeneidade desejada, e, como resultado desse processo, é excluído dos direitos, do convívio social, do respeito etc. Para entender as estratégias utilizadas nesse Texto (1a), é importante observar ainda que os textos que compõem a coletânea da proposta de redação não foram sequer 77 mencionados: não houve discussão alguma sobre os itens do projeto (expostos na proposta); nem houve qualquer referência aos dois pontos de vista divulgados pela IstoÉ, nem mesmo àquele que também é contrário ao projeto. Talvez porque esse último se utiliza de argumentos baseados numa visão religiosa sobre o tema, mas a aluna-autora não menciona explicitamente aspectos religiosos no seu texto. Esse dado será interessante quando analisarmos a segunda produção desta aluna-autora. Passemos ao Texto (2a): TEXTO (2a) Campina Grande, 08 de junho de 1995 Ilma. Sra. Deputada Marta Suplicy Como é de total conhecimento de V. Sra, pois o projeto é seu, a lei no. 1151, deste ano, é favorável à união civil de dois indivíduos do mesmo sexo. Esta lei veio a ajudar os indivíduos homossexuais que encontram inúmeros problemas de descriminação e preconceito dentro de nossa sociedade. Isto atribui a lei uma enorme importância. Contudo, a lei citada, apesar de oferecer inúmeros direitos aos casais homossexuais, ainda apresenta restrições a certos direitos como o status de casamento ao Contrato de Parceria Civil Registrada e usar o sobrenome do parceiro. Este é um caso muito delicado pois envolve questões étnicas que podem não serem aceitas pela sociedade. Sendo o homossexual um ser humano e um cidadão, deveria ter o mesmo direito de todos. É certo que a maioria das pessoas são contra o casamento de homossexuais por puro preconceito. Esta lei, se reformulada, viria a diminuir este preconceito por estar diminuindo diferenças, ao menos nos direitos, entre a população. É com respeito e humildade que solicito a V. Sra. que revise a lei descrita anteriormente, para que possamos construir uma sociedade cada vez melhor. Creio que conseguirás um grande apoio da comunidade de nossa cidade, neste ano de eleições. Atenciosamente, Jean Raul Assim como o Texto (1a), o Texto (2a) responde à proposta de redação quanto à adequação à estrutura do subgênero solicitado. Contudo, o ponto de vista assumido agora é outro: haverá no Texto 2 a concordância com o projeto de lei e a opção por discutir alguns dos itens apresentados pela deputada, estratégia sugerida na comanda da proposta. O aluno-autor do Texto (2a) também inicia sua carta retomando com as próprias palavras a idéia central do projeto, mas sem explicitar ainda qual o seu posicionamento em 78 relação a este: “ a lei no. 1151, deste ano, é favorável à união civil de dois indivíduos do mesmo sexo”. Este período acaba funcionando como uma resposta parcial à pergunta-tema que é colocada na proposta: Você é favorável à união civil de duas pessoas do mesmo sexo?. Consideramos esta uma resposta parcial pelo fato de que a pergunta é dirigida ao aluno-autor, mas é respondida não com a opinião do aluno sobre o tema, mas com a explicitação do posicionamento do projeto; é como se o aluno-autor se esquivasse de dizer logo o que pensa, qual sua posição, para dizer: “a lei (...) é favorável”, tirando de si a responsabilidade sobre este dizer. Notemos também que são utilizadas quase as mesmas palavras que compõem a pergunta-tema, fazendo-nos lembrar daqueles exercícios escolares de leitura que exigem que se dê a resposta completa, o que indica a repetição de parte da pergunta, complementada pela resposta. É o que acontece aqui neste primeiro período que introduz o texto. No entanto, essa repetição de palavras que compõem a pergunta assume um outro sentido nesse novo contexto; não é apenas uma repetição, mas um recurso para se esquivar de tomar uma posição sobre “um caso tão delicado” (3o. parágrafo). Tanto é assim que em momento algum do texto o aluno-autor responde diretamente à pergunta, dizendo ser favorável, mas, como veremos, prefere se aliar ao coro dos que defendem o fim do preconceito, inclusive deste tipo. Essa afirmação pode ser comprovada se observarmos que essa espécie de resposta dada pelo aluno-autor, mas não assumida como dele, é seguida por uma avaliação positiva do projeto, destacando sua importância para a redução do preconceito em relação aos homossexuais: Esta lei veio a ajudar os indivíduos homossexuais que encontram inúmeros problemas de descriminação (sic) e preconceito dentro de nossa sociedade. Isto atribui à lei uma enorme importância. 79 Embora não tenha explicitado até o momento o seu posicionamento, supõe-se que o aluno-autor será favorável ao projeto, uma vez que apresenta seus aspectos positivos, os quais se encontram em consonância com um discurso valorizado socialmente: o antipreconceito. Ou seja, ao considerar a lei importante porque iria “ajudar” os homossexuais quanto ao preconceito sofrido, o aluno-autor está retomando um discurso que também faz parte do senso-comum da sociedade e que se encontra aliado às idéias ditas politicamente corretas: o de que o preconceito não deve existir, que esta é uma postura mal-vista pelas pessoas. Além de ser um discurso já bastante difundido, também é discutido em um dos textos da coletânea que compõe a proposta. O texto assinado por Vicente Paulo da Silva, publicado na IstoÉ, aborda o tema exatamente sobre o prisma do preconceito sofrido pelos homossexuais. Vicente Paulo se posiciona a favor do projeto, tal qual o faz o aluno-autor do Texto (2a), e justifica seu ponto de vista através da necessidade de se combater o preconceito e a injustiça direcionados a esse grupo de pessoas, que merece os mesmos “direitos básicos” (como diz o presidente da CUT em seu texto) dos outros cidadãos. Percebe-se, então, que o aluno-autor defenderá o mesmo ponto de vista de Vicentinho, ao menos é a essa interpretação que nos leva o primeiro parágrafo, até que se leia a palavra que inicia o segundo: contudo. Tal palavra cria a expectativa de que a partir de agora o aluno-autor se posicionará contrariamente ao projeto. Vejamos: Contudo, a lei citada, apesar de oferecer inúmeros direitos aos casais homossexuais, ainda apresenta restrições a certos direitos como o status de casamento ao Contrato de Parceria Civil Registrada e usar o sobrenome do parceiro. A informação que se segue ao contudo é mais uma concessão às qualidades do projeto de lei (ele oferece “inúmeros direitos aos casais homossexuais”), seguida do aspecto negativo: ainda apresenta restrições a certos direitos. Evidentemente, isso não se caracteriza como uma oposição ao documento. O que se percebe, então, é que, na verdade, 80 o aluno-autor não apenas concorda com o que a deputada propõe, como também acha que ela ainda poderia ir além e sugerir a inserção de outros direitos para os casais homossexuais. Essa estratégia se mostra totalmente diferente da que é utilizada no Texto (1a), anteriormente analisado. Naquele, como vimos, o discurso do Direito era retomado através de um paralelo entre o que é padrão (e por isso é desejado e incentivado pela sociedade) e o que é exceção (e por isso deve ser punido, a fim de se garantir a manutenção do padrão). Dessa forma, o direito era utilizado como argumento para a homogeneização da sociedade, mas não através da igualdade de direitos para os diferentes entre si, e sim através da negação de direitos aos que são diferentes do padrão, com o objetivo de puni-los exemplarmente, evitando, assim, desvios de comportamento. Ao contrário do que ocorre no Texto (1a), no Texto (2a) o discurso do direito é retomado como saída para a discriminação; reconhece-se que há diferenças e é exatamente por havê-las que os direitos devem existir para assegurar que todos sejam tratados igualmente, apesar da diversidade de comportamentos. Esse seria o papel da justiça: assegurar um tratamento igual numa sociedade de multiplicidades e diferenças. Além dessa quebra de expectativa, o que chama a atenção no Texto (2a) é o diálogo com os itens do projeto, os quais são retomados com as palavras desse documento, expostas como se fossem do aluno-autor: “ainda apresenta restrições a certos direitos como o status de casamento ao Contrato de Parceria Civil Registrada e usar o sobrenome do parceiro” (grifo nosso). As expressões destacadas são apresentadas na proposta de redação, dentro do subitem O que o projeto não propõe, de que o aluno se vale para comprovar o que, na sua opinião, seriam limitações do projeto de lei no. 1151. Mas esse não é o único momento em que se percebe uma relação entre o que diz o aluno-autor e o que diz a proposta de redação, em qualquer um dos itens que a 81 compõem: a coletânea e a comanda. Há outras passagens nas quais se registra o recurso a idéias também presentes no texto do sindicalista Vicente Paulo da Silva, principalmente no 3o. parágrafo do Texto (2a), que recuperamos a seguir: Este é um caso muito delicado pois envolve questões étnicas (sic) que podem não serem aceitas pela sociedade. Sendo o homossexual um ser humano e um cidadão, deveria ter o mesmo direito de todos. É certo que a maioria das pessoas são contra o casamento de homossexuais por puro preconceito. Esta lei, se reformulada, viria a diminuir este preconceito por estar diminuindo diferenças, ao menos nos direitos, entre a população. Vejamos esse percurso argumentativo no texto de Vicentinho, através das expressões destacadas por nós, que correspondem exatamente à mesma seqüência argumentativa seguida pelo aluno-autor no Texto 2(a): Muita polêmica tem surgido em torno do projeto da deputada Marta Suplicy, que regulamenta o contrato civil entre parceiros do mesmo sexo. Manifesto meu apoio porque respeito a individualidade. Respeito o direitos (sic) das pessoas buscarem a própria felicidade e terem seus direitos assegurados. No caso do contrato civil entre pessoas do mesmo sexo, o objetivo do projeto é estender aos homossexuais alguns direitos básicos da cidadania. Pessoas que moram juntas por anos, como (sic) o falecimento de um dos parceiros o outro não tem direito à Previdência ou aos bens do falecido. Por quê? Não há explicação razoável, a não ser o preconceito. Trabalhadores qualificados, que desempenham com dedicação e talentos suas atividades, são barrados na ascensão profissional devido à opção sexual. Em muitos casos, suas vidas são abaladas. São vítimas de chacotas e humilhações nas escolas e nos clubes. O projeto não acaba com estas injustiças sociais – pudesse um projeto de lei pôr fim às injustiças! Mas garante um direito. VICENTE PAULO DA SILVA (presidente da CUT) Observando o texto do aluno-autor, temos que: primeiro, há o reconhecimento por ele de que a implantação deste projeto não é da vontade de toda a população; depois, ele reafirma a necessidade de que os direitos dos homossexuais sejam respeitados, pois eles também são cidadãos tanto quanto os heterossexuais; em seguida, é apresentada a justificativa para o fato de a população brasileira não aceitar o projeto, segundo ele, o puro preconceito; para finalizar o “seu” raciocínio, ele considera, assim como o presidente da CUT, que o projeto da deputada seria uma forma de diminuir este preconceito, pois estaria diminuindo as diferenças. Neste último período, é interessante notar a ressalva que o 82 segue: ao menos nos direitos. Ora, até nisso os dois textos se parecem, ao afirmarem que o projeto sozinho não resolve o problema do preconceito sofrido por essas pessoas, mas já se mostra um avanço em direção à igualdade de direitos. Seria possível, então, estabelecer o seguinte paralelo entre esses dois discursos, construídos em textos e momentos de produção distintos, mas que agora se aproximam numa situação escolar: Texto (2a) Texto de Vicentinho I) Este é um caso muito delicado, pois envolve I) Muita polêmica tem surgido em torno do projeto questões étnicas que podem não serem aceitas pela da deputada Marta Suplicy sociedade II) Sendo o homossexual um ser humano e um II) Respeito o direitos (...) das pessoas buscarem a cidadão, deveria ter o mesmo direito de todos própria felicidade e terem seus direitos assegurados # (...) alguns direitos básicos da cidadania III) É certo que a maioria das pessoas são contra o III) Não há explicação razoável, a não ser o casamento de homossexuais por puro preconceito preconceito IV) Esta lei, se reformulada, viria a diminuir este IV) O projeto não acaba com estas injustiças sociais preconceito por estar diminuindo diferenças, ao (...).Mas garante um direito menos nos direitos, entre a população Não é difícil perceber que, embora tenham formulações diferentes, os trechos acima produzem efeitos de sentido semelhantes, garantidos ora pela repetição de algumas palavras (tais como direito, cidadão/cidadania, preconceito), ora por uma relação de contigüidade, ou seja, através da continuidade, da complementação de um discurso pelo outro. Como exemplo desta relação temos os trechos I e IV, de ambos os textos. Vejamos mais detalhadamente. No trecho I, encontramos a afirmativa de Vicentinho de que há “muita polêmica” em torno do projeto da deputada; no trecho I do Texto (2a), encontramos a idéia de que este é um assunto “muito delicado”. Uma informação parece complementar a outra, levando ao seguinte raciocínio: o projeto causa polêmica (texto de Vicentinho), entre outras razões, porque aborda um assunto muito delicado, com “questões que podem não 83 serem (sic) aceitas pela sociedade”. Há portanto, uma continuidade entre esses dois discursos, de maneira que um justifica o outro. No trecho IV de cada texto ocorre o mesmo processo. A idéia, defendida por Vicente Paulo, de que o projeto “não acaba com estas injustiças sociais”, mas “garante um direito”, encontra um eco que o continua no texto do aluno. Ambos consideram que o projeto não é a solução para o problema social vividos pelos homossexuais, mas o consideram um avanço no sentido de garantir a igualdade entre as pessoas, “ao menos nos direitos”. Gostaríamos de chamar a atenção ainda para a relação entre a expressão É certo que, indicando muita segurança e certeza por parte do aluno-autor acerca da afirmação que faz; e o trecho no qual Vicentinho categoricamente afirma que não há explicação razoável, a não ser o preconceito, para o fato de que os homossexuais não tenham direitos básicos da cidadania, como, por exemplo, à herança. É possível supor que, ao ter lido essa informação no texto do sindicalista, o aluno a tome como verdade inquestionável, mostrando-se plenamente convencido pelos argumentos apresentados pelo sindicalista, aderindo a eles e tornando-os o seu próprio dizer. Isso justificaria, portanto, o uso dessa expressão É certo que, que demonstra firmeza no posicionamento. Outra maneira de ver esse dado seria através de sua relação direta com a situação escolar de produção na qual se inserem os textos comentados; ou seja, considerando que o texto de Vicentinho passou a fazer parte de uma atividade sugerida por uma professora, numa escola, pode ter-se tornado também, aos olhos do aluno-autor, um texto didático a ser copiado e/ou imitado, embora adaptado aos novos objetivos explicitados na proposta. Mas é essa “adaptação”, necessária à nova situação de surgimento desse dizer, que acaba por torná-lo novo. No final deste mesmo parágrafo do Texto (2a), encontramos 84 uma ressalva: a lei, para o aluno-autor, só interessaria “se reformulada”, pois atingiria metas mais amplas. Assim, embora retome o texto que compõe a proposta, seguindo até a mesma seqüência de idéias, o aluno-autor não se limita a repetir o já-dito9, mas, ainda que inconscientemente, o torna seu, através de dois recursos principais: a formulação, isto é, o modo de sua elaboração, que é feita com suas próprias palavras; e a inserção dessas idéias nesse novo contexto, que as torna, em certa medida, novas, dadas as circunstâncias de seu surgimento agora serem diferentes. Em outras palavras, as idéias são recuperadas com objetivos específicos bem diferentes nos dois textos, embora o ponto de vista sobre o assunto seja o mesmo; ou seja, ambos concordam com o projeto, mas o objetivo do Texto (2a), escrito pelo aluno-autor, é pedir reformulações à deputada, a fim de garantir mais direitos aos homossexuais; o objetivo do texto publicado na IstoÉ é apenas expressar uma opinião, defender um ponto de vista favorável ao projeto de Marta Suplicy, respondendo a uma revista de circulação nacional. Por essa razão, pode-se dizer que as palavras, as idéias, são apenas “quase” as mesmas, já que, para o aluno-autor, a lei só viria a diminuir este preconceito se fosse reformulada e incluísse outros itens deixados de fora pela deputada. Como se vê, as idéias são as mesmas e a seqüência de sua exposição num e noutro texto é praticamente igual, mas o fato de haver condições de produção diferentes é suficiente para gerar efeitos de sentido também distintos; trata-se de um novo dizer, que se baseia no já-dito, evidentemente, mas que não se limita a repeti-lo. Por fim, assim como o Texto (1a), o (2a) é encerrado como um apelo à deputada para que o projeto no. 1151 seja repensado; no Texto (1a), esse repensar aparece num contexto de reprovação das idéias do projeto, enquanto no Texto (2a) surge como um 9 Mesmo que o fizesse, não conseguiria repetir os mesmos efeitos de sentido, tendo em vista os enquadramentos construídos pelo contexto desse novo dizer. 85 pedido de reformulação com vistas à ampliação das idéias apresentadas em favor dos homossexuais. Como pudemos perceber ao longo deste item, os alunos-autores dos Textos (1a) e (2a) apresentam pontos de vista diferentes e têm objetivos também diferentes em seus textos: o primeiro, solicita o abandono do projeto, enquanto o segundo sugere que nele sejam inseridos novos direitos para os homossexuais. Contudo, ambos recorrem ao mesmo eixo argumentativo: a ancoragem no discurso do Direito, que assume efeitos de sentido distintos em cada um dos dois textos, conforme explicitado. 4.2.2. Pontos de vista iguais, estratégias também: o dizer ancorado no discurso da Religião Os próximos dois textos a serem analisados apresentam uma característica em comum: ambos são contrários à aprovação do projeto de lei proposto por Marta Suplicy e recorrem ao discurso religioso, mais especificamente ao católico, para defender os seus pontos de vista sobre o tema. Façamos uma leitura do Texto (3a): Texto (3a) Campina Grande, 08 de junho de 2004 Sra. Deputada Marta Suplicy É do consenso de todos que os indivíduos que se relacionam por meio de um união homossexual não dispõem de direitos legais. Sabe-se também que há uma série de obstáculos que dificultam a vida destas pessoas, com destaque para o preconceito, que impede até mesmo a ascensão profissional delas. Cada vez mais, surgem órgãos que visam a defender os direitos homossexuais, lutando pela criação e preservação de leis a favor deste grupo minoritário da sociedade atual. No entanto, em que se baseiam estas reivindicações? Quais os fundamentos que as regem? Quais suas justificativas? Desde a criação da vida, as relações entre os seres vivos têm se dado coforme as determinações divinas: os organismos de gêneros diferentes interagem e perpetuam sua espécie, caracterizando o chamado “ciclo da vida”. Desde os elementares insetos, até os racionais seres humanos, esta lei tem prevalecido e sido seguida. Entretanto, parece-me que exatamente os seres humanos, os mais conscientes e racionais organismos do mundo, têm realizado um movimento retrógrado em sua existência, contrariando, de forma sandia, e 86 por que não dizer blasfema, a vontade do ser supremo do universo, que disse que o HOMEM e a MULHER deixariam seus pais, unir-se-iam e multiplicar-seiam. Na verdade, destas pessoas, que foram capazes de se opor ao talvez mais básico dos desígnios divinos, pode-se esperar as mais absurdas idéias e atitudes, o que as torna, de fato, indivíduos indignos de qualquer consideração. A elas, que seja destinado apenas o mínimo respeito requerido por um ser humano. E que não me venham falar em igualdade de pessoas e de direitos, pois, de forma alguma, aceito ser igualado a estas criaturas “excessivamente modernas”. A audácia e a insensatez das pessoas aqui referidas chegou a tal ponto que estas atrevem-se a profanar até mesmo o sagrado sacramento do Matrimônio, tentando garantir para si o direito de se unir civil e religiosamente, esquecendo-se que este está reservado para aqueles que não molestaram a sublimidade e a grandeza desta união. E se elas podem reivindicar direitos como este, eu também posso exigir o direito de ter e criar um filho sem a preocupação de este ser influenciado e afetado pelos pensamentos homossexuais. O projeto de lei que a senhora propõe não prevê a liberação de certos pontos, como a adoção de crianças. No entanto, já em sua essência atua como um estímulo para que, cada vez mais, os imaturos jovens de nossa geração resolvam “experimentar novas aventuras”, e sejam corrompidos por este grave pecado, passando a avolumar as multidões homossexuais que ridiculamente lutam por seus “direitos” e que não tardarão a buscar medidas ainda mais absurdas, como a possibilidade de constituição de uma família. Comover-me-ia ver um inocente garotinho ser humilhado por seus colegas de escola no momento em que estes soubessem que aquele era um filho de pais homossexuais. Diante do exposto, e ainda extasiado frente a esta proposta de lei, que me parece ainda mais absurdo quando me recordo de que a senhora é uma já experiente e renomada sexóloga, proponho, juntamente com milhões de brasileiros que não se podem calar diante de tamanho absurdo, a imediata anulação deste projeto, e sugiro que, ao invés de facilitar a vida destas “ovelhas desgarradas do rebanho”, busque-se dificultá-la ainda mais, a fim de que se possa diminuir a crescente adesão da população a este grupo de anormais e, quem, sabe, chegar a uma erradicação desta praga que assola nosso mundo atual. Do contrário, será necessário que se pense duas vezes antes de se ter um filho, pois muitos pais podem não estar preparados para ver aquela criança, que foi tratada com imenso amor e dedicação, de mãos dadas com uma pessoa do mesmo sexo. Desde já, agradeço-lhe a sua atenção. Marcelo Duarte Este é o mais longo dos quatro textos analisados neste primeiro momento e foi o único a não ser concluído em sala de aula. Os dois primeiros parágrafos do Texto (3a) servem para situar a discussão acerca dos direitos dos homossexuais. Especificamente no primeiro parágrafo, tem-se o recurso ao consenso ao sabe-se que, para se referir ao projeto e à situação dos homossexuais na sociedade; este consenso a que se recorre encontra-se fundamentado na própria proposta de redação, conforme já discutimos anteriormente, uma vez que está 87 presente no texto de Vicente Paulo da Silva a informação de que “há uma série de obstáculos que dificultam a vida destas pessoas, com destaque para o preconceito, que impede até mesmo a ascensão profissional delas”. Trata-se de uma estratégia de reconhecimento seguido de negação, pois o aluno-autor recorre ao consenso, reconhecendo a existência de uma idéia já consagrada, para em seguida negá-la ou condená-la. É interessante observar que a mesma informação é utilizada nos dois textos, no entanto, em contextos diferentes e com objetivos também distintos: no texto do presidente da CUT, o objetivo é criticar o que ele considera ser uma injustiça social; o tom, por um lado, é de indignação diante da realidade vivida pelos homossexuais, e, por outro, é de aprovação ao projeto de lei, que visa a amenizar essa injustiça. Já no Texto (3a), o discurso de que esse grupo de pessoas sofre preconceito, exemplificado pelos obstáculos à ascensão profissional dos homossexuais, é retomado apenas como forma de reconhecer um fato, uma situação inegável (que é do consenso e do saber de todos), mas não para colocá-la como uma injustiça social, tampouco para validar as idéias do projeto. Na verdade, o aluno-autor as retoma para, em seguida, questioná-las e questionar também o mérito daqueles órgãos que visam a defender os direitos dos homossexuais, o que é feito a partir da formulação de perguntas no segundo parágrafo: “no entanto, em que se baseiam estas reivindicações? Quais os fundamentos que as regem? Quais suas justificativas?”. Esta estratégia termina por reforçar o preconceito que ele menciona como situação inegável. O uso da conjunção no entanto será, neste início de texto, o único indício do posicionamento assumido por seu autor em relação ao projeto de Marta Suplicy. Ou seja, neste caso, a expectativa criada pelo uso dessa expressão se confirmará nos parágrafos seguintes, pois é como se o aluno dissesse: “tudo bem, reconheço que essa realidade é 88 dura, difícil, e que por isso há grupos que lutam para modificá-la; no entanto não concordo com as reivindicações feitas, nem com suas justificativas e fundamentos”. É possível confirmar esta leitura no 3o. parágrafo, no qual, embora o alunoautor não responda claramente às perguntas que ele mesmo formulou, implicitamente percebemos seu descontentamento, não com o projeto de lei (este só será comentado no 5o. parágrafo), mas com a opção dos homossexuais. Recuperemos, então, o esse parágrafo: Desde a criação da vida, as relações entre os seres vivos têm se dado conforme as determinações divinas: os organismos de gêneros diferentes interagem e perpetuam sua espécie, caracterizando o chamado “ciclo da vida”. Desde os elementares insetos, até os racionais seres humanos, esta lei tem prevalecido e sido seguida. Entretanto, parece-me que exatamente os seres humanos, os mais conscientes e racionais organismos do mundo, têm realizado um movimento retrógrado em sua existência, contrariando, de forma sandia, e por que não dizer blasfema, a vontade do ser supremo do universo, que disse que o HOMEM e a MULHER deixariam seus pais, unir-se-iam e multiplicar-se-iam. Na verdade, destas pessoas, que foram capazes de se opor ao talvez mais básico dos desígnios divinos, pode-se esperar as mais absurdas idéias e atitudes, o que as torna, de fato, indivíduos indignos de qualquer consideração. A elas, que seja destinado apenas o mínimo respeito requerido por um ser humano. E que não me venham falar em igualdade de pessoas e de direitos, pois, de forma alguma, aceito ser igualado a estas criaturas “excessivamente modernas”. Um dos recursos mais constantes neste parágrafo é a retomada do discurso religioso, através de palavras que pertencem a essa esfera ou de referência explícita a passagens bíblicas e aos preceitos que elas transmitem. No entanto, talvez a fim de fornecer um caráter de cientificidade aos seus argumentos, o aluno também recorre com constância a termos e idéias do discurso científico, especificamente a Biologia. Essa associação é feita neste parágrafo como se as leis divinas e as leis naturais fossem as mesmas (mas estas subordinadas àquelas), pois seriam regidas pelos mesmos princípios, sendo o principal deles aquele que diz que cabe aos organismos de gêneros diferentes interagirem e perpetuarem a espécie, caracterizando o chamado ‘ciclo da vida’. Essa afirmação se completa com o trecho: Desde os elementares insetos, até os racionais seres 89 humanos, esta lei tem prevalecido e sido seguida. É inaceitável, então, a partir dessa perspectiva, que os homossexuais, seres do mesmo gênero, contrariem essa lei. Ao utilizar a palavra lei, nesse contexto, há uma fusão entre o que seriam as leis da natureza e as leis divinas, uma vez que o parágrafo se inicia com a idéia de que tudo se passa no mundo conforme as determinações divinas e os exemplos concretos apresentados recorrem ao conhecimento da Biologia. Entretanto, essa ciência não é retomada imparcialmente; tampouco os exemplos extraídos são quaisquer um. Contudo, vê-se que o aluno-autor ignora as informações sobre seres vivos que têm um comportamento que foge a essa lei divina da perpetuação da espécie, como, por exemplo, os organismos de reprodução assexuada. Além disso, a própria noção de ciclo da vida, construída pela Biologia, aparece aqui associada a uma “determinação divina”. A lei, então, em sua acepção jurídica, é ignorada, tendo em vista que há outra mais importante, que deve prevalecer sobre as demais: a lei divina. Neste texto, a idéia de igualdade de direitos entre os cidadãos é cogitada apenas para ser refutada, ou seja, há um reconhecimento para em seguida haver a negação. É o que se verifica especialmente no trecho: e não me venham falar em igualdade de pessoas e de direitos. Aqui, gostaríamos de destacar a expressão e não venham me falar em igualdade, pois, embora o aluno-autor tenha a deputada Marta Suplicy como destinatária sugerida pela proposta, ele se utiliza de uma indeterminação para se opor ao discurso da igualdade entre as pessoas. Isso revela que, na verdade, ele não está dialogando apenas com a deputada, mas com o grupo de pessoas que defende o contrato civil como um direito. Ele não estaria, portanto, recusando a posição da deputada, mas de todas as pessoas favoráveis ao contrato, inclusive à de Vicentinho, cujo texto compõe a proposta. Outro momento em que se pode perceber, ainda neste parágrafo, a forte influência do discurso religioso é aquele no qual o aluno-autor utiliza o discurso indireto, 90 parafraseando o texto bíblico: ser supremo do universo, que disse que o HOMEM e a MULHER deixariam seus pais, unir-se-iam e multiplicar-se-iam. Ora, se esta é a palavra do ser supremo do universo, aqueles que se opõem ou fogem a ela só podem ser considerados indignos e sandios, ao menos no raciocínio desenvolvido no Texto (3a). O uso das maiúsculas em toda a extensão das palavras “homem” e “mulher” também reforça o ponto de vista assumido, segundo o qual não há outra possibilidade de união aceitável, a não ser a heterossexual. O tom enfático e incisivo assumido pelo aluno-autor também pode ser percebido através da observação de outro aspecto do seu texto: a escolha lexical. Os substantivos e adjetivos assumem sempre um valor positivo ao se referir aos símbolos religiosos, e negativo ao se referir aos homossexuais e a suas atitudes. Esta avaliação tão negativa, como vimos demonstrando, tem como base o papel, assumido pelo aluno-autor, de defensor dos preceitos religiosos. Vejamos alguns exemplos, parágrafo por parágrafo, de expressões que revelam essa opinião negativa sobre os homossexuais, de um lado, e a exaltação da religião, de outro: 3o. parágrafo 4o. parágrafo 5o. parágrafo 6o. parágrafo Expressões relacionadas ao homossexualismo movimento retrógrado; forma sandia, e por que não dizer blasfema; as mais absurdas idéias e atitudes; indivíduos indignos de qualquer consideração; criaturas ‘excessivamente modernas’ audácia e insensatez das pessoas aqui referidas; profanar; aqueles que não molestaram a sublimidade e a grandeza desta união corrompidos por esse grave pecado; multidões homossexuais que ridiculamente lutam por seus ‘direitos’; medidas ainda mais absurdas proposta de lei, que me parece ainda mais absurdo; não se podem calar diante de tamanho absurdo; grupo de anormais; erradicação dessa praga Expressões relacionadas à religião ser supremo do universo; mais básico dos desígnios divinos o sagrado sacramento do Matrimônio; (...) sublimidade e grandeza desta união _____________ _____________ 91 Gostaríamos de destacar algumas palavras que esclarecem a relação entre o discurso religioso e a avaliação feita pelo aluno-autor acerca dos homossexuais: blasfema (3o. parágrafo), profanar e molestaram (4o. parágrafo) e corrompidos (5o. parágrafo). Esses vocábulos ressaltam o caráter sagrado dos dogmas religiosos, em relação aos quais só se pode ter duas posições absolutas: a aceitação ou a recusa. Neste último caso, não é uma decisão que ocorre impunenemente, mas que assume as feições de crime cujo autor deve ser punido; por essa razão, aqueles que escolhem essa posição são avaliados negativamente, como pessoas que profanaram, molestaram o sagrado e blasfemaram contra ele. Em outras palavras, só se pode assumir duas posições: a que aceita sem questionar ou a que recusa, devendo o sujeito neste caso estar preparado para as sanções que decorrem dessa decisão. Essa é a base de todo discurso autoritário, conforme Bakhtin (1998), dentro do qual o religioso se inclui. Merece também destaque o fato de haver muito mais ocorrências depreciando a opção e as atitudes dos homossexuais do que expressões enaltecedoras a elementos da religião. Basta ver a quantidade de expressões dedicadas a cada um nos parágrafos citados e a inexistência, nos parágrafos 5o. e 6o., de referências ao discurso religioso. Essa estratégia demonstra que o aluno-autor se ocupa muito mais em denegrir a imagem dos homossexuais do que propriamente promover os preceitos religiosos que justificariam o seu ponto de vista sobre o assunto. Esse mesmo tom no tratamento do tema é encontrado no texto de Newton Cruz, exposto na proposta de redação como uma opinião contrária ao projeto da deputada Marta Suplicy. Vejamos: Considero o casamento entre homossexuais o fim do mundo. O homossexual é um anormal. O casamento entre eles uma anormalidade dupla. Aceitá-lo é uma ofensa à sociedade. O homem e a mulher foram criados com uma certa destinação. Estão destinados à procriação. Crescei e multiplicai-vos, diz a Bíblia. Como é que dois homens juntos vão crescer e se multiplicar? O homossexualismo sempre existiu, mas nunca foi aceito. Hoje eles são aceitos porque fazem parte das minorias. Então traficante também tem que ficar aceito 92 porque também é minoria. O homossexual é um viciado. A sociedade não pode aceitar isso. Tenho onze netos, nove homens, e graças a Deus são todos normais. O Texto (3a), assim como o general da reserva, também se refere aos homossexuais como anormais, em oposição ao que seria o comportamento considerado normal: a heterossexualidade. Assim, Newton Cruz faz a mesma avaliação negativa em relação aos homossexuais, usando o adjetivo viciado para se referir a eles e afirma, quanto ao casamento homossexual, que é uma anormalidade dupla e que aceitá-lo é uma ofensa à sociedade. Se buscarmos no dicionário Larrouse (1992: 803) o significado do vocábulo ofensa, veremos que é uma “palavra, ação que fere alguém na sua dignidade” ou ainda uma “transgressão de regras; falta”. Parece-nos que ambos os significados caberiam aqui quanto à frase supracitada: por um lado, a união civil entre homossexuais fere a dignidade daqueles que acreditam ser esta apenas associada a ações pautadas nos princípios bíblicos, e que se sentem incomodados com os que não pensam/agem dessa forma desejada. Por outro lado, a união civil é uma transgressão, uma fuga à normalidade e ao comportamento esperado, uma vez que há uma lei explícita na Bíblia sobre a união entre os seres, que, no caso do homossexualismo, não é cumprida, o que torna os praticantes dessa opção sexual anormais, transgressores e não desejados. No texto de Newton Cruz, a idéia de transgressão do homossexualismo também se confirma se observarmos a comparação estabelecida entre os homossexuais e os bandidos, que são transgressores da lei: “Hoje eles são aceitos porque fazem parte das minorias. Então traficante também tem que ficar aceito porque também é minoria”. Para fundamentar essa avaliação negativa sobre o homossexualismo, o general também se baseia no texto bíblico sobre a procriação: “O homem e a mulher foram criados com uma certa destinação. Estão destinados à procriação. Crescei e multiplicai-vos, diz a Bíblia. Como é que dois homens juntos vão crescer e se multiplicar?”. Então, uma vez 93 criada a lei divina de que a função da existência humana é a procriação, se o homossexual não pode procriar, não pode ser aceito. Seguindo o mesmo raciocínio, caberia perguntar se as pessoas estéreis também não podem ser aceitas, porque a sua “anormalidade” fere a razão de ser da existência humana, proclamada pela Bíblia. Vê-se que não se trata disso, mas de preconceito em relação aos homossexuais. Tanto é assim que o texto todo os recrimina (ver os adjetivos empregados), e chega ao limite da ofensa. É interessante notar que, em ambos os textos, o de Newton Cruz e o Texto (3a), o projeto não é o centro da discussão, embora tenha sido sua motivação inicial. Essa motivação, no entanto, se perde, e a discussão muda de foco, passando a estar centrada no homossexualismo em si mesmo e não na união civil nos termos previstos pelo projeto. A questão, então, não é mais concordar com ou discordar da legalização de um direito para um grupo de cidadãos, mas concordar ou não com a opção de vida desse grupo, a qual é avaliada a partir de critérios bastante fluidos, por não serem unânimes: os religiosos. Ao escolher esses critérios, os autores avaliam o outro a partir da perspectiva de uma palavra autoritária, que não aceita questionamentos ou desvios de suas regras. O discurso religioso, autoritário por excelência, não permite ser contestado, e aqueles que se atrevem a fazê-lo são considerados blasfemos, hereges, anormais... Caberia perguntarmo-nos agora: o que revela essa semelhança entre o Texto (3a) e o de Newton Cruz? Que posição é essa que possibilita esses sujeitos, que vivem momentos de vida diferentes e tiveram experiências de vida distintas, expressarem-se através de recursos tão parecidos ao discutir um mesmo assunto (validando, assim, o poder do discurso religioso)? Poderíamos afirmar que eles apenas repetem já-ditos, marcando assim a morte do sujeito-autor? Não. Na verdade, o sujeito-autor continua sendo livre para escolher se, numa dada situação de interação, cabe, por exemplo, o discurso religioso, e isso já é uma ação com a linguagem. 94 Além disso, o modo como esse discurso aparece faz diferença: nem no Texto (3a) nem no do general o trecho bíblico sobre a criação e a procriação é retomado literalmente, através de uma citação direta. Nos dois casos, ele é retomado indiretamente, com as palavras dos autores de cada texto, como se eles a recuperassem “de memória”, mas de uma memória que retoma um saber “sempre-lá”, um saber que já faz parte do conhecimento do autor e de toda a sociedade e que é considerado verdade incontestável por boa parte desta. Não é impossível, inclusive, que a forma pela qual tomou conhecimento desse discurso tenha sido também indireta, através não do dizer bíblico original, buscado na fonte, mas do dizer de outros sobre a Bíblia. O último texto a ser analisado nesta parte da pesquisa também se posicionará contrariamente ao projeto de lei, adotando os mesmos critérios religiosos para justificar a sua opinião. Vejamos o texto: Texto (4a) Campina Grande, 01 de junho de 2004 Sra. deputada Marta Suplicy Diante da proposta apresentada pelo projeto de lei número 1151, do ano de 1995, de autoria de Vossa Senhoria, o qual defende um contrato de parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, venho posicioná-la a respeito da minha visão sobre o tema. Na criação, a qual, ao contrário do que muitos pensam ser fruto de uma grande explosão, Deus, em sua onisciência e suprema sabedoria, idealizou e criou o homem segundo lhe aprouve, promovendo, posteriormente, a criação de uma auxiliadora que lhe fosse idônea, alegando o fato de não ser produtivo o homem viver só. Assim, o relacionamento amoroso deve se enquadrar nesse contexto, pois havendo desvio se contraria totalmente os conceitos bíblicos. Além das razões expostas, há uma questão fundamental: como um casal de homossexuais poderão desfrutar do maravilhoso privilégio de serem pai e mãe? E, para o caso da adoção, qual a imagem que a criança formará dos pais? Certamente, será uma imagem deturpada e em sua criação irá desenvolver-se valores errados e sempre irá se perguntar o que levou seus “pais” a fazerem essa opção sexual e poderá até apresentar um certo receio de falar ou apresentar seus “pais” para os seus colegas. Toda criança necessita de crescer em um ambiente familiar saudável, regido por princípios cristãos, que forneçam base para que ela se torne um cidadão responsável, cumpridor de seus deveres e participativo, ambiente este impossível de ser construído em um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Diante dos motivos apresentados, peço que a Vossa Senhoria reavalie seus conceitos e possa solicitar a imediata não aprovação do projeto a fim de contribuir para a edificação de uma sociedade justa, cristã e saudável. 95 Agradeço antecipadamente sua compreensão, Denise Pereira Diferentemente do Texto (3a), o Texto (4a) se inicia já com referência à existência do projeto de Marta Suplicy e ao que ele propõe, conforme se pode verificar no 1o. parágrafo. O trecho seguinte se baseará em passagens da Bíblia, recuperadas pela alunaautora com suas próprias palavras. No entanto, o texto bíblico da criação é retomado sem que se diga que as idéias ali expostas têm base neste livro cristão; na verdade, o alunaautora reconta a cena da criação do homem por Deus com a convicção de quem a presenciou e não de quem a leu. Esta convicção se reflete na negação do discurso científico sobre a criação do mundo: “na criação, ao contrário do que muitos pensam ser fruto de uma grande explosão, Deus (...) idealizou e criou o homem segundo lhe aprouve”. Ou seja, de maneira alguma se pode atribuir o surgimento do homem a uma explosão cósmica, mas à vontade de um ser supremo, onisciente e sábio, que o criou segundo sua vontade. A partir da criação, o homem contrairia, sem saber, uma dívida pela sua própria vida, a ser paga seguindo à risca os preceitos bíblicos. Apenas as palavras utilizadas, tais como Deus, auxiliadora e idônea, e o enredo já conhecido da criação divina do homem, servem de marcas lingüísticas de pertença desse texto ao discurso religioso. Além disso, elas são expostas como se fossem a constatação de uma realidade inquestionável, cabendo ao homem adequar-se aos seus efeitos a todo custo: “assim, o relacionamento amoroso deve se enquadrar nesse contexto”. Este é mais um dizer que reforça o discurso religioso como um discurso autoritário, que deve ser aceito e incorporado como verdade absoluta. Embora não explicite essa idéia, a criação divina, para esta aluna-autora, justifica a recusa do projeto. No 3o. parágrafo – iniciado, não por acaso, pela expressão além das razões expostas, que configura a idéia anterior como uma das razões –, são 96 apresentadas duas supostas razões: o fato de que um casal homossexual não pode “desfrutar do maravilhoso privilégio” da paternidade; e os constrangimentos possivelmente sofridos por crianças que tenham pais adotivos do mesmo sexo. Vejamos: Além das razões expostas, há uma questão fundamental: como um casal de homossexuais poderão desfrutar do maravilhoso privilégio de serem pai e mãe? E, para o caso da adoção, qual a imagem que a criança formará dos pais? Certamente, será uma imagem deturpada e em sua criação irá desenvolver-se valores errados e sempre irá se perguntar o que levou seus “pais” a fazerem essa opção sexual e poderá até apresentar um certo receio de falar ou apresentar seus “pais” para os seus colegas. Neste fragmento, percebemos que a aluna-autora se vale de um argumento considerado forte, para se posicionar contra o projeto, ainda que isto signifique ignorar o fato de que a crítica feita por ela não tem fundamento no texto do projeto, tendo em vista que a “adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto” é exatamente um dos itens que esse documento não propõe. Ou seja, o que é utilizado como argumento para a não aceitação do projeto, na verdade, não se baseia em possíveis falhas do documento (o que validaria a argumentação), mas em um discurso comum àqueles que discordam do contrato civil entre homossexuais: o discurso sobre a família ideal para se educar uma criança. Assim o projeto não propõe aquilo pelo que é criticado no texto da aluna-autora, o que torna frágil a argumentação por ela construída. Gostaríamos de destacar, ainda neste parágrafo, a avaliação negativa feita pela aluna-autora em relação aos homossexuais, o que fica evidente nos comentários feitos sobre uma situação hipotética de adoção por parte de casais do mesmo sexo: a idéia de que a criança desenvolverá uma imagem deturpada (embora não se diga exatamente sobre o quê) e valores errados, além de que passará por constrangimentos na sua vida social. O próprio uso das aspas na palavra pais revela o não reconhecimento destes para ocupar esse papel. Essa mesma avaliação negativa se repete no parágrafo seguinte, cujo argumento principal continua sendo a formação da família. Neste, a aluna-autora discute o que seria 97 um ambiente familiar saudável para o desenvolvimento de uma criança: “regido por princípios cristãos, que forneçam base para que ela se torne um cidadão responsável, cumpridor de seus deveres e participativo, ambiente este impossível de ser construído em um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo”. A partir da palavra impossível tem-se mais uma vez a recusa da constituição de uma família saudável se formada por homossexuais, pois isto fugiria aos valores cristãos que determinaram, desde a criação humana, o conceito de família como instituição cujo núcleo é formado por um homem e uma mulher. Como vimos, essa mesma idéia apareceu no Texto (3a), analisado anteriormente. Chama-nos particularmente a atenção neste trecho a expressão “cidadão responsável, cumpridor dos seus deveres e participativo”. No contexto da argumentação construída neste Texto (4a), estas palavras nos levam a crer que apenas em lares heterossexuais são formados cidadãos com essas qualidades ou, ainda, que todos que as possuem são heterossexuais, como aponta o trecho a seguir: Toda criança necessita de crescer em um ambiente familiar saudável, regido por princípios cristãos, que forneçam base para que ela se torne um cidadão responsável, cumpridor de seus deveres e participativo, ambiente este impossível de ser construído em um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Trata-se de um raciocínio falacioso: se os homossexuais não podem formar pessoas assim, é porque eles não têm essas características positivas; e vice-versa. Outra conclusão a que se pode chegar através da análise desse trecho é que apenas famílias formadas por heterossexuais são capazes de construir “um ambiente familiar saudável, regido por princípios cristãos”, o que significa dizer que, de um lado, ambientes homossexuais não são saudáveis, e, de outro, que apenas os heterossexuais podem ter “valores cristãos”, ou seja, os homossexuais estariam excluídos até mesmo do direito de ter uma religião, uma crença cristã. Se eles não vivem conforme TODOS os valores cristãos, é porque não os têm; mais uma vez registramos aqui a identificação do discurso religioso 98 como um discurso autoritário, a que ou se aceita por inteiro ou não se aceita. Não há meio termo possível. Por fim, como tem sido comum a todos os textos aqui analisados, o último parágrafo dirige-se à deputada, a quem é solicitado, neste caso, que desista do projeto de lei: Diante dos motivos apresentados, peço que a Vossa Senhoria reavalie seus conceitos e possa solicitar a imediata não aprovação do projeto a fim de contribuir para a edificação de uma sociedade justa, cristã e saudável. Por fim, merece ser comentado aqui o uso dos adjetivos justa, cristã e saudável, atribuídos a uma sociedade sem homossexuais; estes adjetivos se oporiam, por exemplo, a injusta, herege e doente, características que teria uma sociedade com homossexuais que sejam amparados por um projeto de lei como o proposto por Marta Suplicy. Além disso, a aluna-autora extrapola a avaliação do projeto, ao solicitar que a deputada revalie seus conceitos, ou seja, não é apenas o projeto que deve ser revisado, mas a própria posição de Marta Suplicy sobre os homossexuais. Vimos, então, neste capítulo, que o “mesmo” discurso pode ser utilizado para defender pontos de vista contrários, o que revela, por um lado, que há espaço para o trabalho do sujeito sobre os discursos; e, por outro lado, que os efeitos de sentido dependem da relação do dizer com o contexto em que aparece esse discurso, o que implica considerar as suas (novas) condições de produção. Essas constatações podem ser comprovadas, por exemplo, através da análise dos Textos (1a) e (2a), no item 4.2.1., nos quais há pontos de vista diferentes, mas o recurso a estratégias parecidas a fim de confirmar uma opinião. Vimos, também, que o discurso religioso funcionou, nos Textos (3a) e (4a), como uma legítima palavra autoritária, que cala aquelas que lhe são contrárias, por não 99 admitir sequer uma contestação parcial, mas exigir um reconhecimento como verdade absoluta. Quanto ao diálogo com os textos da coletânea que compõe a proposta, verificamos que, nesta primeira produção escrita, as maneiras de estabelecê-lo foram diversificadas: o Texto (1a) não retoma em nenhum aspecto os textos da coletânea – nem o projeto, nem os outros; o Texto (2a) talvez seja o que mais considere a coletânea, pois comenta diretamente o projeto, além de recuperar o mesmo raciocínio do texto de Vicentinho; o Texto (3a) praticamente se isenta de comentar o projeto, fazendo-o apenas superficialmente no final desta carta, mas, devido ao teor religioso do seu discurso, se aproxima também de um dos textos da coletânea (o de Newton Cruz); por fim, o Texto (4a) menciona o projeto, mas não o discute, aproximando-se, assim como o 3, dos argumentos religiosos presentes na opinião de Newton Cruz, general da reserva. No capítulo a seguir, veremos se esse quadro se modifica ou se mantém e como os alunos-autores lidarão com o acréscimo de dois itens às condições de produção para o seu texto escrito: a discussão oral do tema e os textos jornalísticos incluídos na proposta de redação. 100 5. A produção textual orientada pelo livro didático e pela discussão em sala de aula (Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 294) No capítulo anterior, analisamos os textos produzidos a partir de uma condição de produção limitada à proposta de redação entregue aos alunos. Observamos nesses textos os modos de retomada de discursos diversos sobre o assunto, suscitados ou não pela proposta, na construção do dizer dos alunos-autores. Neste capítulo, analisaremos as cartas produzidas em uma condição de produção que se encontra acrescida de um item: a discussão oral do tema contrato civil entre homossexuais, realizada em sala de aula, subsidiada por outros textos dos quais falaremos a seguir. Assim, analisaremos o discurso escrito dos alunos-autores levando em consideração sua relação de constituição também com o discurso de sala de aula, construído na discussão oral sobre o tema contrato civil entre homossexuais e inexistente na primeira produção. Este capítulo tem como objetivo, então, analisar 04 (quatro) produções textuais dos mesmos alunos-autores dos textos analisados anteriormente, confrontando-as com o discurso de sala de aula, a fim de observar os modos de constituição do dizer dos alunosautores, a partir do dizer do outro (interlocutor) e de um Outro (interdiscurso). A pergunta que orientará a análise é: quais as formas de diálogo entre o discurso escrito dos alunos e 101 outros discursos que circulam na sociedade? Houve diferença entre este momento e o anterior, quanto às estratégias discursivas utilizadas pelos alunos-autores? Para tanto, partiremos das mesmas noções subjacentes à análise desenvolvida no capítulo anterior, a saber: alteridade e interdiscurso (segundo formuladas por Bakhtin) e sujeito e autoria (segundo Possenti, 2002 e Orlandi, 1996). 5.1. A discussão oral em sala de aula e sua influência para a produção escrita Conforme descrito na Metodologia, os textos a serem analisados nesta etapa da pesquisa foram produzidos após debate oral em sala de aula. Foram realizadas duas aulas para discussão do tema, cada uma com 50 minutos de duração. Essas aulas tiveram como base uma coletânea de textos extraídos de páginas da internet, que discutiam o posicionamento do presidente americano George W. Bush a respeito de decisões estaduais sobre o contrato civil entre homossexuais. Um dos sites apresenta um texto publicado na Folha de São Paulo, sob o título Bush pede emenda para banir casamento gay. Seguidos a esse texto encontravam-se os comentários de internautas a uma enquete do fórum de discussão do site Gramática Online, que se posicionavam sobre a postura do presidente americano. O objetivo inicial do uso desses textos era suscitar a discussão oral entre os alunos, a partir do confronto com opiniões diversas, tanto favoráveis quanto contrárias ao contrato civil, baseadas em critérios também diversos. No entanto, esse objetivo logo se perde, tendo em vista que a professora, supondo que os alunos leram o texto em casa, não faz a leitura em conjunto do texto da Folha, e a discussão se encaminha para a opinião dos alunos e da professora, de maneira que os textos dos internautas são esquecidos durante toda a primeira aula e até, aproximadamente, a metade da segunda. É neste momento da 102 segunda aula que os textos serão recuperados, mas apenas através da leitura em voz alta, seguida de comentários rápidos da professora, sem espaço para a discussão (até pelo fato de que, a essa altura, se aproximava o final da aula e o tempo era escasso para discutir as opiniões do fórum). Vejamos um fragmento que comprova esse desvio inicial na discussão: (1) L1 PROF: tá + mas guarda as discussões pra gente:: socializar ((os demais alunos zombam e riem baixinho da colega)) +++ é:: olha + em João Pessoa essa semana saíram várias matérias no jornal + sobre o assunto + porque uma + juíza aceitou é:: como se diz? DEU os direitos devidos a todo cidadão a um casal de mulheres que vivem numa união homossexual há dezesseis anos + então a discussão/ eu vou mostrar depois pra vocês esse negócio certo? ++ mas vamo lá + qual é Raíssa o principal argumento que Bush vai usar pra ((um aluno faz barulho, arrastando a carteira)) ++ pra justificar a emenda? L9 ANID: um homem e uma mulher a união é ((incompreensível)) L10 PROF: uma delas é essa + a questão da da durabilidade né? que é uma instituição humana /tá lá embaixo ((indicando o momento do texto))/ mais duradoura + é honrada e encorajada por todas as culturas e por todas as religiões ((lendo)) + Erika você falou o quê? L14 ERIKA: que é contra as leis da Igreja porque segundo ((incompreensível)) L15 PROF: exato + então UM dos argumentos / ele vai usar até a seguinte expressão + verdade:iro significado ++ então+ levando em consideração A PESSOA de:le não é? a formação que ele teve / porque a gente sabe que as nossas opiniões elas não são aleatórias + você vai construindo ao lo::ngo da sua formação né? dentro do seu convívio na escola, com os pais e amigos + então levando em consideração Bush + de onde ele tirou essa história do ver-da-deiro significado? ... qual é o significado pra ele?... L22 Axx: ((incompreensível)) L23 PROF: nenhum? ((incompreensível)) que o significado de ca-sa-mento + seria igual a casamento entre homem e mulher + você não poderia ter uma variante nisso você não poderia ter outra idéia + certo? AGOra + é:: SERÁ + que eu posso dizer que o que é verdadeiro pra mim TEM que ser obrigatoriamente verdadeiro pra Rafaella?... L28 MAÍS: não L29 ANID: não L30 PROF: lembram de um texto que a gente discutiu é:: sobre o aborto + que dizia o seguinte + se Rafaella é católica e a religião dela não permite o aborto + + por que que eu + que sou atéia + não sou viu? é uma hipótese ((a professora esclarece aos alunos e eles riem)) por que eu L35 RENA: ((rindo)) [Fabiano que é ateu 103 L36 PROF: teria que me submeter às mesmas leis da religião DEla? O que se verifica nesse início é o domínio do turno por parte da professora, que comenta o texto distribuído para os alunos e dirige perguntas para incitar a discussão. No entanto, durante essa aula este será praticamente o único momento em que ela se dirigirá ao material, desviando a discussão para outras referências, como no trecho citado, no qual ela retoma um texto, sobre outro assunto, lido anteriormente. É interessante notar ainda neste trecho que, ao fazer uma pergunta sobre o texto (qual seria o verdadeiro significado do casamento para Bush), a professora não obtém resposta, o que talvez se justifique por três motivos: pelo fato de a resposta não estar explícita na superfície do texto, ou seja, não é uma pergunta fechada, de caça do significado no texto; ou pelo fato de que os alunos não se sentem motivados a responder; ou ainda porque não leram o texto, como previa a professora. Qualquer que seja a razão, a própria professora se vê obrigada a responder a pergunta que formulou e não é questionada pelos alunos (nem abre espaço para sê-lo, apesar do marcador discursivo certo?, que deveria indicar a espera de uma concordância ou não por parte dos interlocutores quanto à informação apresentada). Contudo, quando a pergunta se dirige diretamente à opinião dos alunos, ela logo obtém resultado: é o caso da pergunta sobre se a expressão verdadeiro significado tem o mesmo sentido para todas as pessoas. Considerando que este é ainda o início da primeira aula e que os textos dos internautas que participam do fórum só serão recuperados ao final da segunda aula, podemos afirmar que esse material escrito não cumpriu sua função, uma vez que a discussão baseou-se muito mais no “achismo” dos alunos do que em pontos de vista fundamentados em informações comprovadas ou suscitados pelos textos para discussão. Além disso, mesmo quando lidos na segunda aula, não havia discussão sobre a opinião dos internautas, apenas comentários da professora. No entanto, apenas o ato de tomar 104 conhecimento desses outros posicionamentos foi suficiente para alterar, de alguma forma, os textos escritos dos alunos, como veremos mais a seguir. É o que se pode verificar no trecho a seguir, extraído da transcrição da segunda aula: (2) L1 PROF: vamos lá + vamos continuar + Caio lê por favor aí a a próxima L2 CAIO: eu? L3 PROF: [é L4 CAIO: [num sei nem pra onde é que eu vou L5 PROF: é eu percebi L6 FABI: aqui danado ((mostrando a Caio qual texto deveria ser lido. Outra aluna inicia a leitura das primeiras palavras, para também mostrar ao colega qual é o texto)) L9 PROF: é o terceiro aí ++ é + ((o aluno faz a leitura)) + é aquela história da divisão né? ((mencionando a divisão de bens. Os alunos comentam entre si)) L11 MAÍS: e da questão financeira + né? ou seja + é só ter certeza se quer casar ((incompreensível)) L13 PROF: pra ter os direitos + né? / Maísa + lê o próximo ((Maísa inicia a leitura, mas é interrompida pela professora, que reclama com alguns alunos que estão conversando)) ++ minha gente::: + você vai dar a sua opinião? ((dirigindo-se a um aluno que conversava)) L17 ANID: não ((risos de alguns alunos)) L18 PROF: então por favor + colabore com o silêncio ((os alunos se calam e Maísa continua a leitura)) L20 FABIANO: lascou tudo esse daí ((rindo)). L21 PROF: Léo + lê o último porque o penúltimo já foi lido ((enquanto ela pede, os alunos continuam comentando entre si o texto anterior)) + aliás + só o penúltimo L23 FABI: VIXE MAri:a ((risos. Leonardo inicia a leitura)) Como se vê, a leitura oral dos textos do fórum é seguida de comentários rápidos, principalmente da professora, que ignora, na maior parte das vezes, o interesse dos alunos em comentar também os textos. Quando, por exemplo, o aluno Caio termina a leitura (L9), alguns colegas seus demonstram concordar com o ponto de vista adotado pela autora do texto e comentam entre si a opinião apresentada, no entanto, a professora não 105 prossegue a discussão, ignorando o desejo dos alunos de expressarem seu ponto de vista; logo ela pede que continue a leitura com o texto seguinte (L13). Outra aluna assume a leitura do novo tópico, a pedido da professora. Este não é comentado, nem pelos alunos, nem pela professora; esta interrompe a leitura apenas para pedir silêncio e não se detém em tecer nenhuma consideração sobre o que foi lido, logo solicitando a leitura do texto seguinte, embora os alunos ainda comentem entre si o texto anterior, numa clara demonstração de que queriam se expressar (L10, L11, L20 e L22). É possível perceber através deste e de outros momentos da aula que a professora tem dificuldade em distribuir e organizar as falas, bem como de concentrar a atenção dos alunos (o que fica evidente nas constantes brincadeiras destes sobre o assunto ou uns com os outros). Outro aspecto importante diz respeito ao teor da discussão construída, que se pautou quase que exclusivamente em idéias pertencentes ao senso-comum, não permitindo a problematização de aspectos importantes do assunto, como, por exemplo, o que é homossexualidade. Este aspecto talvez se torne compreensível se considerarmos que era uma preocupação constante da professora deixar que os alunos expressassem “livremente” suas opiniões sobre o assunto, a fim de verificar de que maneira essa opinião, somada à dos colegas, era retomada no texto escrito. Em outras palavras, o objetivo não era propriamente ensinar, mas descobrir o que eles já sabiam. No entanto, ainda que tivesse esse objetivo, verificamos que há momentos de contradição na posição assumida pela professora: ora ela assume o lugar do controle, quase sempre impedindo que os alunos falassem livremente, mas apenas quando ela considerava conveniente, como é próprio dos papéis assumidos em sala de aula; ora ela se esquivava de organizar a discussão, um papel que lhe cabia enquanto mediadora, o que impediu a progressão da discussão oral. 106 Segundo Sousa (2002), esse não cumprimento das regras do jogo de interação em sala de aula pode acontecer tanto por atitudes dos alunos quanto do professor, pois ambos sempre podem encontrar uma maneira de burlar essas regras (o professor, não se submetendo à injunção à fala, por exemplo; o aluno, entre outras situações, assumindo o lugar de disciplinador, ao pedir silêncio). Essa burla cria uma nova situação, que exige uma reorganização dos papéis e das regras, ainda que momentaneamente; ou seja, que em alguns momentos haja a quebra das regras e em outros ela seja seguida. É o que acontece na aula que ora comentamos. É preciso verificar que nem sempre o contrato enunciativo, previamente estabelecido para a sala de aula, é firmado ou mesmo é, conjuntamente, aceito. Os alunos freqüentemente desrespeitam as regras básicas da interlocução em sala de aula: falam ao mesmo tempo; conversam entre si sobre assuntos que não dizem respeito ao conteúdo de ensino; negam-se como ouvintes de outros alunos e, por vezes, até mesmo do professor, enfim, negam-se como alunos e negam o professor. Isso exige que o professor assuma o seu papel de organizador desse discurso e de autoridade na sala de aula, caso contrário, ninguém se entende. (SOUSA, 2002, p. 170) Assim, mesmo quando (de fato) o professor quer ouvir o que o aluno tem a dizer, como no caso aqui analisado, ele não pode se esquivar totalmente de seu papel de mediador, de articulador da dispersão de vozes da sala de aula. não se pode isentar o professor de suas responsabilidades como organizador do discurso de sala de aula, como autoridade que não tem medo de ser autoridade e como um profissional que tem o dever e a obrigação (institucional, ética, seja lá qual for) de dominar mais que o aluno o conteúdo de ensino pelo qual é responsável. (SOUSA, 2002, p. 175) Outro aspecto importante para compreender esse momento de aula é a decisão da professora de não expressar sua opinião sobre o tema, o que ela, na verdade, não consegue. Embora ela só confirme sua posição no final da segunda aula, há várias passagens da sua fala que deixam entrever o seu ponto de vista favorável ao contrato civil, como se pode ver no trecho a seguir: (3) 107 PROF: falando dessa história do mascaramento da sociedade + é:: + pensando sempre do ponto de vista jurídico + porque eu acho que a grande questão dessa discussão toda é que se tem confundido a questão mora::l / a questão religio::sa / de que cada um tem o direito de ter o seu jeito de ver de agir de pensar + né? é:: com a questão jurídica + a justiça não prega a igualdade? agora + pensando nessa história do do mascaramento + né? o que que é/olha só como a justiça também é contraditória + se você tiver um/uma relação extraconjugal Ou seja, embora não seja sua intenção, fica claro nesta fala que ela assume o discurso da igualdade de direitos para defender o contrato civil entre homossexuais, o que se confirma no final da segunda aula: (4) GUIL: sim professora qual a sua opinião em relação a isso? PROF: olha a minha opinião / eu sou a favor do contrato civil + eu confesso que + é:: ficar vendo casal de homossexual por aí / como foi que eu falei aquela hora que tu ficasse brincando? ((dirigindo-se a Bernardo. Os outros tentam retomar a fala da professora em outro momento, quando ela usou a expressão “demonstrações de afeto” ao se referir ao relacionamento entre os homossexuais)) pronto + não é fácil + por que? mas isso já vem desde questões mora::is / religio::sas MINhas + não tem a ver com o fato de que eles não são cidadãos e que não tenham direitos + eles são e têm + então eu sou a favor de que eles tenham esses direitos + certo? ((os alunos mudam de assunto e pedem que a professora entregue o resultado de uma prova. A aula termina)) Além do quase total esquecimento dos textos dos internautas, que deveriam servir de base para o debate, praticamente nenhum dos textos que compõem a proposta de redação foi discutido. Por se tratar de uma aula de produção textual, era esperado que a discussão se encaminhasse também para a própria formulação do dizer nos textos lidos, gerando uma reflexão sobre o como se disse e quais os efeitos de sentido gerados a partir desse modo de dizer. Apenas em uma passagem muita rápida da segunda aula de discussão a professora comenta a formulação de um dos textos dos internautas: (5) L1 PROF: Fabiano vai ler o próximo ((o aluno inicia a leitura e é interrompido pela professora, que tece comentários sobre a maneira como o texto foi elaborado)) 108 L3 PROF: só um minutinho + essa introdução parece aquelas introduções tipo receita né? começa retomando o geral + é uma possibilidade não é que você tenha sempre que ser assim L6 ANID: a gente faz assim L7 PROF: vocês costumam normalmente começar os textos assim + não tá errado + mas é só uma forma ((o aluno continua a leitura)) ... diz ((dando o turno para uma aluna que deseja expressar sua opinião sobre o texto lido)) Porém, ela não se detém, como se pode ver, na análise dessa maneira de organizar o texto e nas situações em que ela pode ser eficaz ou não, considerando o objetivo de cada texto em uma dada situação de interação. Na aula seguinte, referente à produção textual, a proposta foi entregue quase com o mesmo formato da anterior, acrescida apenas de dois textos jornalísticos publicados à época no Estado da Paraíba, acerca de um caso de mulheres que tiveram seus direitos reconhecidos judicialmente e do comentário da Igreja (na pessoa do arcebispo do Estado) sobre essa decisão. Conforme já comentado, esses textos não são objeto de discussão na aula. Contudo, há uma passagem em que a professora utiliza parte das informações de uma dessas notícias publicadas no Jornal da Paraíba, para a partir dela formular uma questão e encaminhar a discussão: (6) L1 PROF: vocês não acham que seria justo um casal + de homossexuais que + já convivem + por exemplo + nós temos um cas/ esse caso de João Pessoa que eu vou mostrar as matérias já convivem há dezesseis anos + as duas mulheres + se elas convivem há dezesseis anos + provavelmente elas batalharam juntas por muitas das conquistas MATEriais L6 MAÍS: pois é L7 PROF: a questão moral a questão da sociedade aceitar ou não elas já convivem com isso e continuaram e nem por isso deixaram de ter o casamento delas lá + legalizado ou não + então vocês não acham que essas duas + que passaram por essa história de vida toda + uma delas morre + vocês não acham que a outra deveria ter os direitos à heran::ça + direito é:: Como os alunos ainda não haviam tido contato com os textos jornalísticos, eles tiveram que se limitar à leitura feita pela professora que, ao comentar a notícia, faz sua 109 avaliação sobre os fatos e direciona, assim, as interpretações futuras dos alunos quando estes tiverem acesso ao texto. Podemos verificar a avaliação dos fatos pela professora, quando ela traz, por exemplo, a informação de que, provavelmente, as duas mulheres referidas na notícia batalharam juntas por muitas das conquistas materiais e passaram por essa história de vida toda. Estas idéias não estão no texto jornalístico (ver Anexo D), são resultantes de uma leitura da professora e levam à conclusão de que o resultado do processo foi justo para a causa delas. Tendo havido duas aulas para discussão oral do tema, o que se percebe é que o confronto com idéias diferentes nessa discussão, bem como a explicitação da opinião da professora representaram mudanças significativas nas condições de produção do segundo momento observado aqui nesta pesquisa, vez que interferiram na opinião dos alunos, construída na segunda produção escrita. Além disso, a professora demonstra estar sintonizada com as teorias recentes de escrita, como comprova o fragmento (7), a seguir, no qual se percebe uma tentativa de pôr em prática a construção de condições consideradas ideais para a produção escrita, ou seja, aquelas que permitem aos alunos escreverem sobre o que conhecem, tendo discutido o tema previamente e com uma situação de interação claramente definida. (7) PROF: tá + aí + olha deixa eu falar ++ acontece o seguinte + que quando você vai / Guilherme só um pouquinho ((o aluno conversava)) + quando vai escrever um texto + você tem que levar em consideração essa discussão + o te::ma normalmente já é um tema bastante comentado pelas ma::/ ma:::is diversas esferas / Tiago por favor ((o aluno conversava)) / da sociedade + então quando você vai escrever um texto + ele não vem do vá::cuo + do nada não + você vai entra::r nessa discussão que já existe + então você / se a sua opinião é contra ou a favor + você tem que imaginar + o que é:: que as outras pessoas que não concordam com você diriam + pra que você já preveja isso no seu texto e argumente pra que seu texto fique mais forte No entanto, devido ao uso inadequado da coletânea de textos para debate, limitados apenas à leitura oral (o que os alunos poderiam perfeitamente fazer sozinhos), 110 seguida de comentários superficiais da professora, verificamos que os procedimentos foram muito parecidos nos dois momentos da nossa coleta de dados: ambos basearam-se na leitura e na imediata produção da carta de solicitação. Evidentemente, não se pode deixar de reconhecer o valor de os alunos ouvirem opiniões diferentes das suas e posicionarem-se sobre elas. Assim, estudaremos nos próximos itens como essa situação interferiu na produção escrita dos alunos. A análise dos textos escritos pelos alunos-autores estará centrada nas formas de diálogo entre os argumentos escolhidos por eles e outros discursos (sejam estes suscitados pela coletânea da proposta, pela coletânea para discussão, pela discussão oral ou por outro fator), a exemplo do discurso religioso, bastante presente na argumentação de dois dos quatro textos analisados a seguir. 5.2. Estratégias do dizer: o retorno ao discurso do Direito Como pudemos perceber nos textos analisados no capítulo anterior, os alunosautores são interpelados a entrar na corrente de discussões acerca do tema sobre o qual deve versar sua argumentação. Para tanto, é preciso que eles recorram a outros textos, outros já ditos, a fim de confirmarem a tese que defendem, quer seja ela favorável ou contrária ao projeto da deputada. Por outro lado, conforme já viemos reforçando, não há como perder de vista que se trata de produções textuais realizadas em situação escolar, o que interferirá na construção do texto, uma vez que há uma proposta a seguir e uma coletânea de outros textos a considerar. Veremos, ao longo da análise, como esses fatores se presentificam em certas estratégias discursivas conscientemente. dos alunos, sem que, necessariamente, eles o façam 111 A retomada de outros discursos vai ser bastante recorrente nos textos, sempre aparecendo como um recurso argumentativo, ora de forma direta (através de citações), ora indireta (através de paráfrases ou mesmo do uso de algumas expressões/idéias que identificam certos discursos). No item 4.2.1., observamos que dois dos quatros textos analisados utilizam o discurso do Direito para comprovar o seu ponto de vista. Os mesmos alunos-autores que optaram por esse recurso para sua argumentação naquele momento repetem-no neste segundo momento de produção escrita. Vejamos o Texto (1b) desta segunda situação: TEXTO (1b) Campina Grande, 16 de novembro de 2004 Exa. Deputada Marta Suplicy, Escrevo-lhe esta rápida carta para dar meu apoio ao seu projeto de lei no. 1151, que defende a legalização da união estável entre casais homossexuais. Começo dizendo que os gregos, especialmente os atenienses, não passaram anos discutindo sobre democracia sem a intenção de ensinar ao mundo o respeito às opiniões e escolhas diferentes, ou seja, todos devem ter direitos iguais perante o Estado e a lei. Os romanos incluíram na sua justiça este ponto, e se nosso Direito se baseia no Romano, nossa constituição não deve ser contraditória. Logo, por que não se dar os mesmos direitos a casais homossexuais dos heteros? Qual o erro grave nisso? NENHUM! O mundo não vai mudar para pior, visto que homossexualidade sempre existiu, e inclusive, em muito povos e civilizações o início da vida sexual dos rapazes era com os homens mais velhos, a exemplo de Sócrates e seus discípulos. Para terminar, quanto a Igreja Católica não aceitar isto é um problema religioso e não jurídico! O fato dela não aceitar não deve se confundir com a imperfeita e eterna aprimoração que a Justiça. Já dizia Cristo que dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus. Atenciosamente, Camila Ramos Logo no 1o. parágrafo desse Texto (1b), percebemos que o seu objetivo será apoiar o projeto de lei no. 1151, proposto por Marta Suplicy. Esse apoio se revela como uma mudança significativa em relação ao primeiro momento de produção, no qual esta mesma aulna-autora posicionou-se contrariamente ao projeto. Naquela ocasião, através de usos diferenciados para a palavra Direito, o texto construído por esta aluna descartava a igualdade de direitos como discurso válido para defender o contrato civil entre 112 homossexuais, e baseava sua justificativa na afirmação de que os direitos devem se basear na regra e não na exceção. No entanto, a estratégia utilizada pela aluna-autora nesta segunda produção será bem diferente: o discurso do direito, que antes servia para se opor ao projeto, agora serve para apoiá-lo. Essa mudança acontece exatamente devido à mudança de posicionamento da aluna quanto ao tema, demonstrando que houve mudança de interpretação de sua parte, o que ocasionou uma alteração também no seu modo de interpretar o discurso do direito: se antes este era a justificativa para a não aceitação do projeto, essa situação agora se inverte e ele passa a ser a base sobre a qual se defende o contrato civil como meio de garantir igualdade de direitos. Vejamos como esse percurso é desenvolvido no Texto 1: Começo dizendo que os gregos, especialmente os atenienses, não passaram anos discutindo sobre democracia sem a intenção de ensinar ao mundo o respeito às opiniões e escolhas diferentes, ou seja, todos devem ter direitos iguais perante o Estado e a lei. Os romanos incluíram na sua justiça este ponto, e se nosso Direito se baseia no Romano, nossa constituição não deve ser contraditória. A partir desse segundo parágrafo, a aluna-autora retomará a própria história do Direito, a fim de defender a idéia de que a igualdade é um princípio presente desde a formação dos direitos civis, na Grécia e depois em Roma, e, portanto, esse princípio não pode ser negado, pois isto equivaleria a negar a própria instituição do Direito. Gostaríamos de destacar neste parágrafo a associação entre “o respeito às opiniões e escolhas diferentes”, de um lado, e, de outro, a defesa de que todos tenham “direitos iguais perante o Estado e a lei”. A aluna-autora os coloca como indissociáveis, como uma lição herdada dos gregos e depois incorporada pelos romanos e que, por esta tradição, não se poderia negar. Mas o mais interessante nesta associação é: a) a conclusão a que ela leva: a existência de direitos iguais revela o respeito pelas opiniões e escolhas diferentes (e vice-versa); e b) a mudança de perspectiva em relação à primeira produção 113 (ver Texto (1a), p. 72), na qual a aluna-autora afirmava que o fato de discordar do projeto não poderia ser associada à sua posição quanto aos homossexuais. Ou seja, naquela ocasião, a atitude de discordância com o projeto não deveria estar associada a uma reprovação quanto às escolhas dos homossexuais, pois, para a aluna, estes seriam dois assuntos diferentes e que por isso merecem ser avaliados a partir de critérios também diferentes. Neste novo texto, essa perspectiva se inverte e fica claro que, para ela, dar direitos iguais requer respeitar as opiniões e escolhas diferentes; estas duas atitudes seriam, portanto, indissociáveis, como já dissemos. Na seqüência do Texto (1b), permanece o recurso à história das civilizações clássicas, a fim de comprovar não apenas a relevância do projeto de lei, mas também a existência do homossexualismo como uma prática antiga e que por isso deveria ser, finalmente, aceita. Vejamos: Logo, por que não se dar os mesmos direitos a casais homossexuais dos heteros? Qual o erro grave nisso? NENHUM! O mundo não vai mudar para pior, visto que homossexualidade sempre existiu, e inclusive, em muito povos e civilizações o início da vida sexual dos rapazes era com os homens mais velhos, a exemplo de Sócrates e seus discípulos. Neste 3o. parágrafo, reaparece o discurso do Direito, sempre aliado aos conhecimentos da História. Aqui, a aluna-autora questiona por que homossexuais não podem desfrutar dos mesmos direitos dos heterossexuais, alegando que não haveria nenhum erro grave nisso. Aliás, ela é bem enfática ao responder os questionamentos que formula; basta ver, por exemplo, a grafia da palavra nenhum, toda com letras maiúsculas, dando-lhe destaque em relação às outras. Mais uma vez, não há como ignorar a mudança de discurso em relação ao primeiro texto produzido por esta aluna-autora. Naquela primeira produção, ela assegurava que não se podia, de forma alguma, igualar os direitos dos homo e dos heterossexuais, 114 alegando que o contrato civil era um direito apenas destes e que concedê-lo àqueles seria injusto. Por fim, o quarto e último parágrafo também traz um acréscimo em relação à primeira produção: naquela, não havia qualquer referência aos valores defendidos pela Igreja Católica – ao menos não explicitamente, embora seja possível considerar que, subjacente à recusa ao projeto, esteja uma formação religiosa. Então vejamos o que acontece neste quarto parágrafo: Para terminar, quanto a Igreja Católica não aceitar isto é um problema religioso e não jurídico! O fato dela não aceitar não deve se confundir com a imperfeita e eterna aprimoração que a Justiça. Já dizia Cristo que dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus. (grifo nosso) Aqui, a expressão destacada articula o dizer da aluna não com as idéias anteriormente discutidas no seu texto, mas a algo que lhe é exterior: a avaliação negativa da Igreja Católica sobre o homossexualismo e, conseqüentemente, sobre o contrato civil entre estes indivíduos. Este discurso pode ser visto em pelo menos dois dos elementos que compõem as condições de produção escrita neste segundo momento: nos textos que formam a proposta de redação e na discussão do tema em sala de aula. Quanto ao primeiro item – os textos da proposta –, podemos dizer que há uma relação direta entre o dizer da aluna-autora e um dos textos jornalísticos acrescidos à proposta, o qual abordava o posicionamento da Igreja Católica (na pessoa de Dom Aldo Pagotto, arcebispo da Paraíba), quanto à união entre duas mulheres no Estado. O título dessa notícia, Igreja Católica condena a união entre mulheres, traz à tona toda a discussão entre religião e justiça e sobre os limites que cabem a cada uma. Já que não há qualquer referência à posição da Igreja nos parágrafos anteriores do Texto (1b) – o que explicaria a expressão quanto à Igreja Católica não aceitar, que articularia este dizer com os que o antecederam –, podemos afirmar que há um diálogo 115 entre o discurso da aluna-autora e o discurso daquela instituição religiosa, recuperado na proposta de redação através do texto jornalístico. Quanto ao segundo item, a relação com a discussão realizada em sala de aula, comentaremos a seguir, juntamente com a análise do Texto (2b), que também sofrerá influências da discussão oral. No final deste item retornaremos a essa questão e procuraremos relacionar essas mudanças ocorridas no discurso da aluna-autora, entre a primeira e a segunda produção, com as idéias trazidas por alunos e pela professora na aula de discussão do tema. Antes, analisemos o Texto (2b): TEXTO (2b) Ilma Sra. Marta Suplicy, Tendo lido eu seu projeto de lei que beneficia a união civil entre homossexuais, venho, por meio desta, parabenizar sua preocupação em relação a minoria. O contrato civil viria a regularizar os direitos e deveres dos casais de mesmo sexo, garantindo uma maior igualdade entre a sociedade. Dentre os itens que a lei propõe, nenhum apresenta falhas, porém deve-se considerar algo mais em relação a guarda ou tutela de crianças. Creio que, se a criança é filha de um dos parceiros, deve ser permitida a guarda a esta. O que deve ser avaliado, neste caso, são as condições psicológicas e financeiras do casal. Com relação ao preconceito, creio que a lei referida viria a aumentar o respeito entre os cidadãos, apesar de representar um grande impacto, no início. Espero que seu projeto torne-se lei em breve e que nossa sociedade possa caminhar para um lugar mais justo, sem preconceito. Atenciosamente, Jean Raul (grifo nosso) Semelhantemente ao Texto (1b), o Texto (2b) inicia-se através de uma manifestação de apoio à idéia geral do projeto, o que esclarece ao leitor o objetivo do texto; para reforçar sua posição, o aluno-autor faz uma avaliação dos possíveis efeitos desse projeto na sociedade, apresentando um aspecto positivo: a existência de uma maior igualdade entre as pessoas, tese que é retomada no final do texto. Chama-nos a atenção, particularmente, no 1o. parágrafo desse Texto (2b) o uso da palavra regularizar relacionada aos direitos e deveres dos casais de mesmo sexo. Ao 116 utilizar essa expressão, o aluno-autor possibilita a interpretação de que esses direitos já existem na prática, e que a aprovação do projeto seria apenas o reconhecimento de uma realidade. Regularizar significa, assim, tirar da irregularidade, dando caráter de norma ao que já existe na “informalidade”, mas nem sempre é aceito. Outro aspecto importante, suscitado já no início do Texto (2b), é a manutenção do ponto de vista e da justificativa de apoio ao projeto, manifestados também na produção escrita produzida no momento anterior, por este mesmo aluno-autor. Ou seja, o aluno mantém sua posição favorável ao projeto de lei, por acreditar que este representa a saída para garantir uma maior igualdade entre a sociedade. Inclusive, esta idéias é a mesma que inicia o texto desse aluno analisado no Capítulo 4. Embora os Textos (1b) e (2b) se aproximem quanto ao ponto de vista e a uma certa ancoragem no discurso da igualdade de direitos, eles se diferenciarão quanto às estratégias escolhidas para defender esse posicionamento. O Texto (1b) se baseará na história do Direito e das civilizações clássicas, enquanto o Texto (2b) não apresenta propriamente uma defesa da sua opinião, já que não se verifica o uso de argumentos que a comprovem. Essa informação pode ser percebida no fato de que o 2o. parágrafo do Texto (2b) muda completamente o foco da discussão sobre a importância do projeto para a igualdade social, mencionada no 1o. parágrafo, passando a discutir um dos itens que, segundo a proposta de redação, o projeto de lei não propõe. Há, portanto, uma quebra na seqüência das idéias, pois o que se esperava, pelo início do texto, era que ao menos se justificasse por que esse projeto poderia diminuir a desigualdade, mas não é o que acontece: Dentre os itens que a lei propõe, nenhum apresenta falhas, porém deve-se considerar algo mais em relação a guarda ou tutela de crianças. Creio que, se a criança é filha de um dos parceiros, deve ser permitida a guarda a esta. O que deve ser avaliado, neste caso, são as condições psicológicas e financeiras do casal. 117 Neste parágrafo, é abordado um dos pontos polêmicos do tema: a adoção ou tutela de crianças por casais de mesmo sexo. Essa informação não aparece no primeiro texto produzido por este aluno-autor (ver capítulo anterior) e aparece na proposta apenas no resumo do projeto. No entanto, no debate realizado em sala de aula sobre o tema, este foi um aspecto bastante discutido pelos alunos. Como este foi um recurso presente apenas no Texto 2(b), confrontaremos neste momento essa discussão com aquela realizada em sala de aula: (8) L1 TIAG: posso falar? L2 PROF: pode L3 TIAG: normalmente os homossexuais convivem com os pais heterossexuais e nem isso evitou que eles se tornassem homossexuais + então os homossexuais tendo um filho o que vai mudar é::: é a mente do cara + porque eles vão mostrar ao filho L7 FABI: mas a opção sexual dele vai depender da educação dele L8 Axx: ((alunos falam ao mesmo tempo)) A partir desse trecho, podemos perceber que a discussão sobre a adoção por casais homossexuais girará em torno da formação da sexualidade da criança, ou seja, sobre que tipo de orientação será dada pelos pais (homossexuais) a ela. Nesta parte da aula, um dos alunos (L3-6) defende que não há relação direta entre a opção sexual dos pais e a dos filhos, o que se pode comprovar, segundo ele, pelo fato de que homossexuais, em geral, têm pais heterossexuais. Essa é uma questão que perpassa todo a discussão sobre a adoção: ser educado por homossexuais significa uma chance maior de desenvolver uma tendência homossexual? Essa se mostra uma preocupação tão forte para os alunos que a professora comenta outro aspecto envolvido na adoção (o olhar da sociedade sobre a criança e o preconceito que esta pode sofrer), mas logo os alunos voltam para o debate acerca da formação educacional que supostamente um homossexual daria a seu filho adotivo. É o que revela o trecho (9), a seguir: 118 (9) L1 VINÍ: o homossexual que tenta se juntar com outro homossexual pra fazer é::constituir família ele sabe ele sabe as pressões que ele vai sofrer + a discriminação L3 PROF: eu acho que nesse caso Vinícius + o pior + no caso da adoçã::o é o preconceito que a criança vai sofrer da sociedade L5 VINÍ: [não eu sei + é o preconceito da sociedade L6 PROF: porque o adul::to ele já tem toda uma estrutura pra:: rebater pra enfrentar + agora a criança ((alunos falam ao mesmo tempo)) L8 VINÍ: mas aí tem o seguinte + o que as pessoas dizem é L9 PROF: [sim + eu tô entendendo L10 VINÍ: imagine o que esses pais vão ensinar ao filho ((citando o discurso da sociedade)) + num é o caso do pai ensinar o filho + é o o L12 FABI: [que a sociedade vai achar a respeito L13 VINÍ: [é o que ele vai enfrentar L14 PROF: eu sei + eu concordo L15 RAÍS: mas o que realmente eles eles seria que iam ensinar ao filho? seria o quê? seja homo ou seja hetero? ((os alunos falam ao mesmo tempo)) L17 FABI: ia ser gay L18 PROF: eu acho que nem uma coisa nem outra + essas pessoas elas têm uma liberdade / um modo de ver muito diferente Neste trecho (9), a discussão se encaminha para o preconceito que a criança sofrerá, caso seja criada por um casal homossexual. Mas esse assunto é discutido apenas até a L14, pois já em L15 uma aluna retoma a preocupação sobre qual seria a orientação sexual dada por homossexuais a seus filhos: eles orientariam para que a opção fosse pela heterossexualidade ou não? É interessante notar que esta é uma inquietação tão forte para que leva esta aluna a burlar as regras do jogo (como diz Sousa, 2002), assumindo, momentaneamente, o papel em geral referente à professora ao formular questionamentos que encaminhem a discussão. A professora, por sua vez, assume o papel atribuído aos alunos, e responde (L18) à pergunta feita pela aluna. Na seqüência, o debate continua em torno da educação oferecida pelos homossexuais e das suas conseqüências para a opção sexual das crianças. Essa discussão se prolongou ainda por várias turnos, demonstrando o grande destaque dado para a questão da adoção e seus efeitos para a formação da criança, 119 especialmente no que diz respeito à escolha da sexualidade. No entanto, essas idéias não foram diretamente retomadas pelo aluno-autor no Texto (2b), limitando-se a afirmar, no 2o. parágrafo, que esse item merece ser melhor analisado, através, por exemplo, da observação das condições psicológicas e financeiras do casal. Ou seja, ele extrapola, em parte, a discussão oral do tema em sala, ao estabelecer critérios para orientar a decisão sobre a adoção ou tutela de crianças: as condições psicológicas e financeiras (apesar de não esclarecer que condições psicológicas e financeiras seriam consideradas ideais para justificar a adoção). A problemática da adoção ou tutela de crianças aparece ainda em um dos textos jornalísticos (ver Anexo D), retirados do Jornal da Paraíba e adicionados à proposta de redação neste segundo momento de produção: uma notícia sobre a decisão da justiça paraibana, que reconheceu o relacionamento de duas mulheres em João Pessoa. No corpo da notícia é citada a situação de um menor de 12 anos, que é filho de uma das mulheres e que é criado por elas, formando, portanto, uma família. Essa informação também não é recuperada pelo aluno-autor no Texto (2b) Na seqüência do deste, a adoção é esquecida, de maneira que há um retorno à discussão sobre o preconceito e a necessidade de igualdade entre as pessoas: Com relação ao preconceito, creio que a lei referida viria a aumentar o respeito entre os cidadãos, apesar de representar um grande impacto, no início. Espero que seu projeto torne-se lei em breve e que nossa sociedade possa caminhar para um lugar mais justo, sem preconceito. (grifo nosso) Assim como no Texto (1b), analisado no início deste item, o (2b) inicia um parágrafo com uma estrutura que, em certa medida, lhe é exterior: o discurso do preconceito sofrido pelos homossexuais. Então, ao iniciar o 3o. parágrafo com a expressão Com relação ao preconceito, o aluno-autor insere seu dizer na rede de discussões sobre o tema, as quais, de uma forma ou de outra, sempre se voltam para este discurso. Afirmamos que o preconceito é apenas “em certa medida” exterior ao dizer do aluno-autor porque ele 120 ainda não havia falado diretamente sobre isso, embora, ao considerar o homossexual como parte de uma minoria (1o. parágrafo) que precisa ser vista igualmente pela sociedade, ele esteja implicitamente abordando também o preconceito, pois este é um dos entraves ao estabelecimento dessa igualdade social. Há vários elementos dessa segunda situação de produção que levam a essa discussão do preconceito, suscitada pela expressão destacada no 3o. parágrafo do Texto (1b): a aula de debate sobre o tema, os textos jornalísticos da coletânea que compõe a proposta e, nesta mesma coletânea, o texto de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho (presidente da CUT). Conforme exposto no capítulo anterior, este aluno-autor, ao produzir seu texto naquela primeira situação, sofreu forte influência do discurso de Vicente Paulo da Silva, que defendia também o projeto como uma saída para diminuir o preconceito contra os homossexuais e, conseqüentemente, a desigualdade social. Essa influência, embora atenuada, permaneceu neste segundo texto do aluno, que agora formula de maneira mais “amena” o seu dizer: se antes ele afirmava que a recusa do projeto só podia ser fruto do preconceito e que o projeto resolveria este problema, agora ele diz ser esta uma crença sua e não uma verdade absoluta: ver, por, exemplo, a expressão “creio que”, no 3o. parágrafo. Há ainda uma diferença significativa nos dois textos produzidos por este alunoautor. Embora em ambos o objetivo maior seja apoiar o projeto de lei, no primeiro, ele defende apaixonadamente o acréscimo de mais direitos para os homossexuais neste projeto. Tal solicitação é, no mínimo, ingênua, tendo em vista a dificuldade de se aprovar o projeto como é, muito mais difícil seria sua aprovação se contivesse ainda mais vantagens para esse grupo. 121 Já nesta segunda produção, talvez devido ao autor ter presenciado dentro de sala de aula uma amostragem da polêmica e das questões complexas que envolvem o contrato civil entre homossexuais, ele se limita a defender o projeto, sem que haja acréscimos. Como se pode perceber a partir da análise realizada até aqui, os Textos (1b) e (2b) mantêm pontos em comum quanto à escolha do critério que justificaria, segundo seus autores, a aprovação do projeto: o critério da garantia de igualdade de direitos. Cada um, no entanto, recorre a estratégias diferentes para fundamentar seu dizer. Vejamos agora de que maneira esse critério em comum e essas estratégias se relacionam com o discurso sobre o tema, construído na discussão oral em sala de aula. Conforme já apontamos ao analisar a influência dessa discussão quanto às informações e à importância dadas pelo aluno-autor do Texto (2b) ao aspecto da adoção ou tutela de crianças por homossexuais, há momentos dos dois textos em que se percebe a influência também da opinião da professora no discurso dos alunos. Assim, nos Textos (1b) e (2b), é possível perceber alguns momentos nos quais os alunos-autores parecem recuperar não sua interação com a deputada (que é apresentada na proposta como interlocutora dos alunos), mas com a professora, tendo em vista que o dizer destes alunos parece ser uma resposta a certas afirmativas feitas pela professora no momento da discussão oral do tema. Para compreendermos melhor, citaremos a seguir algumas passagens do discurso da professora, coletado no momento da discussão oral sobre o tema, as quais revelam seu posicionamento sobre o assunto. Vejamos: (10) PROF: certo + AN:tes de começar a discussão eu queria dizer o seguinte eu vou ser MAis ou menos/ pelos textos que vocês me entregaram + a opinião de vocês + eu vou fazer um pouco o papel do equilíbrio do contrapeso + vou também traze/vou ficar alfinetando pra ver que é que vocês me falam + certo? aí eu não vou me posicionar + no final + eu digo o que é que eu penso sobre isso + no final mesmo + vamos antes de começar a discussão com relação ao texto aí ((lendo)) Bush pede emenda ++ 122 Embora nesse início da aula a professora afirme que não revelará sua opinião sobre o assunto, a fim de não interferir na argumentação escrita dos alunos, ela implicitamente o faz; ou seja, há várias passagens da gravação nas quais se pode identificar a opinião da professora e o seu modo de avaliar o assunto. Apresentamos a seguir uma passagem que, embora longa, é essencial, pois nos permite perceber, no discurso da professora, a sua avaliação do tema. (11) L1 PROF: é + é como se fosse uma correçã:o uma acréscimo uma ressalva né? é:: no caso + é exatamente isso + alguns estados aprovaram né? e ele agora tá querendo voltar atrás + tirar os direitos dos homossexuais + na verdade a gente fala assim casamento entre homossexuais mas na verdade os projetos são sempre a respeito de CONTRAto civil + que é pra que as pessoas tenham alguns direitos que TOdos os outros cidadãos têm + como por exemplo o direito à herança + né? no caso de duas pessoas que convivem numa união estável + MESmo que NÃO SEjam casados hoje em dia + se for possível comprovar essa:: relação de algum tempo L9 RAÍS: [é L10 PROF: é:: se um dos cônjuges morrer o outro vai ter direito a herança ((incompreensível)) L12 MAÍS: já? [ aqui no Brasil também? + L14 PROF: já + já é assim + tá? mesmo que seja uma relação extraconjugal ((a turma se agita e comenta entre si as informações)) no caso da pessoa que tem duas famílias L16 MAÍS: homossexual? L17 PROF: não + homossexual não + aí é:: a homossexual ainda não tem na/nenhuma posição + com relação aqui à Paraíba viu Renata? ((dirigindo-se a uma aluna que conversava)) L20 RENA: eu tô discutindo aqui o assunto L21 PROF: tá + mas guarda as discussões pra gente:: socializar ((os demais alunos zombam e riem baixinho da colega)) +++ é:: olha + em João Pessoa essa semana saíram várias matérias no jornal + sobre o assunto + porque uma + juíza aceitou é:: como se diz? DEU os direitos devidos a todo cidadão a um casal de mulheres que vivem numa união homossexual há dezesseis anos + então a discussão/ eu vou mostrar depois pra vocês esse negócio certo? ++ mas vamo lá + qual é Raíssa o principal argumento que Bush vai usar pra ((um aluno faz barulho, arrastando a carteira)) ++ pra justificar a emenda? 123 Como se pode ver, apesar de dizer que não vai expor sua opinião, mas vai “ficar alfinetando” para ver o que os alunos dirão, a professora não controla totalmente seu dizer, de maneira que, através de algumas expressões, é possível entrever essa opinião. É recorrente no seu discurso, por exemplo, o uso de palavras como direitos, cidadania, cidadão, igualdade, que reforçam uma concordância com o projeto da deputada. Além disso, a leitura feita pela professora acerca das reportagens que ela cita sobre o assunto também não é neutra, conforme é possível perceber a partir da maneira como essa interpretação foi formulada: segundo a professora, a juíza “deu os direitos devidos a todo cidadão a um casal de mulheres que vivem numa união homossexual há dezesseis anos”. Ao afirmar que a juíza “deu os direitos devidos a todo cidadão”, a professora se mostra favorável a essa decisão, avaliando-a como justa pelo fato de que os homossexuais também deveriam ser considerados cidadãos como os outros, o que implica dizer que eles mereçam os mesmo direitos dos heterossexuais. Sem dúvida, alguém contrário à homossexualidade não leria os fatos dessa forma. Além disso, o encaminhamento dado pela professora na discussão também revela esse parecer favorável ao projeto de Marta Suplicy, embora fosse sua intenção anunciada não expor sua opinião. Na continuidade do trecho de fala citado, a professora escolhe, na coletânea utilizada para discussão, um fragmento da fala do presidente Bush, o qual é contrário à união civil entre homossexuais, a fim de confronta-lo. Sua leitura, portanto, não é isenta: ela escolhe o trecho, interpreta e relaciona com outro texto10 lido pelos alunos em ocasião anterior; neste, há o argumento de que não se pode aplicar as mesmas leis religiosas a todos os indivíduos, tendo em vista que há crenças diferentes. Assim, a partir da discussão sobre qual o sentido da expressão “verdadeiro significado”, utilizada por Bush, a 10 O texto referido é “O direito ao aborto”, publicado na seção Superpolêmica da revista Super Interessante, em janeiro de 2001. 124 professora induz os alunos a concluírem que o argumento religioso, retomado por este presidente e pelas pessoas contrárias ao homossexualismo, não é convincente, desse ponto de vista, uma vez que o sentido dessa expressão é variável. Tanto é assim que, na seqüência desse trecho de fala, percebe-se uma confirmação por parte de alguns alunos do raciocínio desenvolvido pela professora e encerrado com a pergunta “por que eu teria que me submeter às mesmas leis da religião dela?”. Vejamos a resposta dos alunos a essa pergunta: (12) L1 Axx: por quê? por quê? ((alguns alunos brincam, repetindo pergunta)) L2 PROF: esse é um dos argumentos utilizados + né? pelas pessoas que são a favor do a/do aborto + tá? L4 MAÍS: no caso assim + por que é que eu sou obrigada a acreditar /a acreditar na mesma coisa que ela ((incompreensível))? L6 PROF: exato ++ por que vejam só + se vocês OBSeerv:arem + ((a professora pára de falar e tenta ouvir os alunos, que falam ao mesmo tempo)) Notemos que, neste trecho (12), a aluna confirma o argumento da professora, repetindo a mesma idéia sob a forma de uma pergunta; essa resposta é imediatamente seguida de uma avaliação positiva da professora (“exato”), que segue com a palavra e parece querer justificar essa idéia, mas é interrompida pelo barulho na sala. Esse discurso da professora interfere na constituição do discurso escrito dos alunos, sejam aqueles favoráveis ou contrários ao projeto de Marta Suplicy. Há trechos das cartas nos quais é possível entrever uma retomada desse discurso da professora, seja para confirmá-lo ou confrontá-lo. Vejamos. Nos textos (1b) e (2b), favoráveis ao projeto, o discurso da professora é recuperado através de expressões como: Texto (1b): # “todos devem ter direitos iguais perante a lei” # “respeito às opiniões e escolhas diferentes” 125 Texto (2b): # “regularizar os direitos e deveres dos casais de mesmo sexo, garantindo uma maior igualdade entre a sociedade” # “aumentar o respeito entre os cidadãos” # “que nossa sociedade possa caminhar para um lugar mais justo” Não queremos dizer com isso que essas idéias já não faziam parte do discurso dos alunos, mas apenas que o reforço e a importância dados a elas pela professora na discussão oral sem dúvida interferiu no discurso escrito dos alunos, os quais se sentiram interpelados (inconscientemente) a considera-las, já que a leitora de seus textos seria a professora. Há outra passagem que se refere à relação com o discurso da professora, pois esta faz em sua fala a distinção, segundo ela necessária, entre discurso jurídico e discurso religioso, a fim de que se possa avaliar mais justamente a questão do contrato civil entre homossexuais: (13) L1 PROF: ((os alunos falam ao mesmo tempo)) espera um pouquinho:: oi ((se dirigindo a uma aluna que queria falar)) L3 ANID: professora aqui em Campina eu posso dizer que eu vejo que as mesmas pessoas que são instruídas ao ponto de falarem da democracia ateniense + e fazer todo o histórico da democracia ao mesmo tempo são preconceituosas ((incompreensível)) + e uma pessoa é diferente da outra e a gente tem que respeitar isso + ISso é que é democracia ((a professora acena afirmativamente com a cabeça)) L9 PROF: olha + a gente pode dividir basicamente é: em dois tipos de argumentos + essa questão do do casamento entre homossexuais + a gente vai ver que há + se a gente for discutir aqui a gente vai ver que cada um vai falar de uma coisa diferente + de um ponto de vista diferente + o que AS PESSOAS + psssssiu ((pede silêncio)) que + defendem o contrato civil querem/ elas falam a partir do ponto de vista do direito da democracia L15 ANID: hum L16 PROF: e o argumento que vem em relação a:: NÃO ter essa legalização é do ponto de vista religioso ++ então 126 L18 MAÍS: [então é mais voltado pro CAsamento e não numa aliança civil né? ++ assim a/ no caso a cerimônia L20 PROF: é L21 MAÍS: mas as pessoas falam e o regime? religioso A professora faz, portanto, uma distinção entre discurso religioso (assumido por aqueles que são contrários ao contrato civil entre homossexuais) e o discurso jurídico (defendido por quem é favorável ao contrato). Essa distinção aparece no Texto (1b), no seguinte trecho: “Para terminar, quanto a Igreja Católica não aceitar isto é um problema religioso e não jurídico!” Mas a aluna autora não se limita a recuperar o discurso da professora. Para comprovar a separação (segundo ela, necessária) entre os dois tipos de discurso, ela recupera uma passagem bíblica: “Já dizia Cristo que dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus”. No trecho da Bíblia em que encontramos essa fala, Jesus utiliza as mesmas palavras acima, a fim de justificar que os impostos devem ser pagos, pois é um dever do povo e recebê-los é um direito das autoridades civis instituídas, neste caso, o imperador César: Dize-nos, pois, o que te parece: É permitido ou não pagar o imposto a César? Jesus, percebendo a sua malícia, respondeu: ‘ Por que me tentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda com que se paga o imposto!’ Apresentaram-lhe um denário. Perguntou Jesus: ‘De quem é esta imagem e esta inscrição?’ – ‘De César’, responderam-lhe. Disse-lhes então Jesus: ‘Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.’ Esta resposta encheu-os de admiração e, deixando-o, retiraram-se. (Mt, 22, 17-22) Embora não utilize as aspas, ela separa o seu dizer do bíblico através da expressão já dizia Cristo que. O mais interessante é que o discurso religioso é utilizado para concordar com o projeto, ao contrário do que se poderia esperar. 5.3. Estratégias do dizer: o retorno ao discurso da Religião Os Textos (1b) e (2b) não se constroem exatamente a partir das mesmas estratégias que os Textos (3b) e (4b), o que se justifica, em parte, pelo fato de que são 127 motivados por posições diferentes em relação ao projeto: enquanto aqueles foram escritos para expressar a concordância, os outros dois são baseados na discordância frente às sugestões da deputada. Por essa razão, e subsidiados pelas orientações da proposta, os alunos-autores optam por serem mais incisivos na sua argumentação e nos dois momentos em que, nos Textos (1b) e (2b), registra-se o apoio ao projeto, nos textos agora analisados, registra-se uma interpelação à destinatária (especialmente no último parágrafo), com o intuito de solicitar-lhe um posicionamento e conseqüente atitude, neste caso, condizente com o repúdio ao projeto. Vejamos primeiramente o Texto (3b): TEXTO (3b) Campina Grande, 16 de novembro de 2004 Prezada Deputada Marta Suplicy: Surpreende-me seu projeto de lei que visa a legalizar a união civil entre homossexuais. Mais que um atentado á moral de nossa sociedade, este projeto é um desrespeito às leis da natureza, assim como uma profanação da sagrada proposta nos dada por Deus. De forma muito clara, a bíblia afirma que “o homem deixaria seus pais para unir-se à mulher e procriar”, ou seja, o sentido da união entre o casal reside na multiplicação. Assim, a junção entre homossexuais consiste em uma corrupção deste sentido. Não vejo o homossexual como cidadão, sequer como uma pessoa normal, pois, a partir do momento em que ele efetuou sua excêntrica escolha, ele abriu mão de sua natureza comum, assumindo uma postura completamente destoante de qualquer concepção, seja civil, seja religiosa. O homossexualismo é, antes de tudo uma patologia, mas não física, e sim espiritual, o que é pior. Assim, sugiro que a senhora reveja sua proposta, para que não tenhamos, em um futuro próximo, de passar pelo constrangimento de ver homens de mãos dadas pelas ruas, suprema imoralidade. Atenciosamente, Marcelo Duarte. Note-se que o tom do texto mudou completamente em relação aos dois primeiros exemplares analisados, e que o aluno-autor do Texto (3b) é incisivo, revestindose de defensor da moral e da religião, com o objetivo de expor seu posicionamento contrário às idéias da deputada Marta Suplicy. Esta era uma possibilidade prevista pela proposta de redação, na qual se diz claramente: “Tendo discordado do teor do projeto da deputada, escreva-lhe uma carta argumentativa de reclamação. Apresente o problema, 128 discuta-o, reclame por soluções imediatas e, se possível, apresente sugestões para resolvêlo” (ver Anexos B e D) Logo no primeiro parágrafo fica claro esse posicionamento do aluno, através do uso de palavras referentes ao discurso religioso, a partir dos quais pontos de vista diferentes passam a ter o sentido de transgressão que fere o indivíduo em sua fé e sua moral. Assim, o projeto do contrato civil entre homossexuais assume o lugar de atentado à moral, de desrespeito às leis da natureza e de profanação da sagrada proposta nos dada por Deus. É interessante notar que esse lugar de atentado, desrespeito e profanação se constrói a partir da instituição de um outro como sagrado, como lei natural e como espelho da boa moral. Tudo que não está neste espaço e não corresponde às suas leis intocáveis deve ser, portanto, banido, rechaçado. Assim, o que vemos é a repetição da mesma estratégia utilizada por este alunoautor na produção escrita anterior: ele opta não por comentar o projeto de lei em seus itens, enquanto lei dos homens, mas por negá-lo e condená-lo a partir de sua crença nas leis divinas. Estas são consideradas novamente como superiores àquela; elas não teriam falhas, por serem sagradas. Por essa razão, o homem deve segui-las antes de qualquer outra, já que, principalmente, elas nos foram “dadas por Deus”. Além disso, permanece nesse início do Texto (3b) o recurso a discursos de instâncias diferentes, mas como se pertencessem à mesma esfera do conhecimento e se complementassem. As expressões leis da natureza e sagrada proposta seriam, respectivamente, do discurso científico e do religioso, normalmente considerados opostos em seus preceitos. Entretanto, aqui nos parece que ambos são retomados com o objetivo de não deixar margem a dúvidas: ou seja, tanto a ciência (neste caso, a Biologia) quanto a religião condenariam a união civil, por estar alheia às leis de uma e de outra. Sendo assim, não restaria a que se recorrer para defendê-la. Essa fusão entre discursos de áreas distintas 129 também foi um recurso empregado por este aluno-autor no seu texto anterior (ver item 4.2.2.). Essa perspectiva religiosa escolhida para a análise do assunto se mantém no 2o. parágrafo do Texto (3b), através do recurso a uma passagem bíblica que corrobore, pelo sagrado, a recusa ao projeto. Vejamos: De forma muito clara, a bíblia afirma que “o homem deixaria seus pais para unir-se à mulher e procriar”, ou seja, o sentido da união entre o casal reside na multiplicação. Assim, a junção entre homossexuais consiste em uma corrupção deste sentido. A citação da passagem não é direta, embora haja o uso das aspas para marcar aquele dizer como de Outro – o dizer sagrado – e não como do aluno-autor. Contudo, se observarmos o tempo verbal de deixar neste texto (futuro do pretérito – deixaria), veremos que ele poderia ter duas funções: marcar uma possibilidade ou marcar que este dizer está sendo retomado “de memória” (não correspondendo, portanto, à formulação exata da Bíblia). A primeira função seria contraditória, considerando que o trecho bíblico aparece para sustentar uma verdade inquestionável, para a qual, portanto, não há possibilidades; ou seja, não é uma possibilidade, neste discurso, que o homem se unirá à mulher, é uma realidade. Parece-nos, então, que a segunda função é mais coerente, pois significaria a marca de que estas palavras estão na Bíblia, mas talvez não exatamente com essa formulação. O que surge como possibilidade, então, não é o conteúdo do dizer, mas a sua formulação; e é o uso do futuro do pretérito que delimita esse efeito de sentido no texto. De fato, há pontos de contato e de afastamento entre a maneira como o aluno-autor recuperou o trecho bíblico e o modo como ele realmente está escrito (ao menos na versão consultada por nós): Por isso deixa o homem pai e mãe, e se une à sua mulher tornando-se os dois uma só carne. (Gênesis, 2; 24) 130 O aluno-autor fala ainda que a função do casamento é a procriação. Como vimos no trecho de Gênesis citado acima, não há referência a essa finalidade da união entre homem e mulher. Mas podemos encontrá-la em uma outra passagem, anterior a esta, do mesmo livro: Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todo animal que rasteja pela terra. (Gênesis, 1; 27-28, grifo nosso) É nesta passagem que podemos interpretar que a função do casamento ou que o “verdadeiro sentido” da união entre duas pessoas deve ser a procriação. Assim, fica claro que em seu texto o aluno-autor usa as aspas, mas não faz uma citação direta; pelo contrário, ele interpreta o livro Gênesis e, a partir da sua interpretação, reformula o texto bíblico a fim de reforçar o ponto de vista que defende em relação ao projeto de lei. O verbo deixaria, portanto, revela a fusão feita pelo aluno entre essas duas passagens bíblicas sobre a criação do homem e da mulher (e a função de ambos) e a reconstrução, em um só enunciado, de uma idéia que está em dois capítulos diferentes da Bíblia (embora encontrem-se no mesmo livro – Gênesis). No texto do aluno-autor, a passagem bíblica, colocada entre aspas, é seguida de uma paráfrase (ou assim acredita o aluno), indicada pela expressão ou seja. No entanto, o trecho que segue corresponde a uma leitura consagrada dessa passagem, feita pelos religiosos para justificar o que seria o sentido do casamento: a multiplicação. Essa paráfrase se mostra como um importante recurso argumentativo no Texto (3b), por levar a um silogismo que confirma o ponto de vista contrário ao contrato civil: I – o sentido da união entre duas pessoas é a procriação II – um casal homossexual não pode procriar entre si 131 III – logo, não há sentido nesta união (ou há, mas corrompido) Na discussão em sala de aula, há momentos em que essa visão sobre o casamento é abordada, mas, como ela também aparecerá no Texto (4b), analisado a seguir, adiaremos as observações para o momento seguinte, quando analisarmos este último texto. Até aqui não podemos afirmar que há muitos dados novos em relação às estratégias discursivas utilizadas na primeira produção deste aluno-autor, analisada no item 4.2.2. deste trabalho. Observemos se na seqüência do Texto (3b) há alguma mudança nessas estratégias. Não vejo o homossexual como cidadão, sequer como um a pessoa normal, pois, a partir do momento em que ele efetuou sua excêntrica escolha, ele abriu mão de sua natureza comum, assumindo uma postura completamente destoante de qualquer concepção, seja civil, seja religiosa. O homossexualismo é, antes de tudo uma patologia, mas não física, e sim espiritual, o que é pior. Se considerarmos esse 3o. parágrafo do Texto (3b) em sua relação intradiscursiva, ou seja, com os outros enunciados que o compõem, veremos que há uma espécie de quebra na seqüência das idéias: o 1o. e o 2o. parágrafos avaliam o assunto do ponto de vista religioso; o 3o. é iniciado com uma frase sem aparente conexão com as idéias anteriores, já que não se falava em cidadania, mas em família, segundo a religião católica. No entanto, a partir da formulação do início desse parágrafo, se supõe que essa discussão é anterior, que ela já existia no texto; ou seja, através da negativa (Não vejo o homossexual como um cidadão), é retomado um discurso sobre cidadania, que não vinha sendo discutido no texto, mas que foi mencionado em sala de aula. O que se percebe, afinal, é que, se considerarmos o Texto (3b) linha a linha, essa discussão não existia, mas, na sua relação com o discurso oral construído em sala de aula, ele passa a fazer sentido, como um discurso-resposta. Ou seja, o enunciado – Não vejo o homossexual como um cidadão – passa a fazer sentido no discurso do aluno se considerarmos que se estabelece uma relação com o discurso da professora, segundo o qual 132 o contrato civil entre homossexuais deveria ser analisado do ponto de vista jurídico e não religioso, como se pode confirmar com os trechos (3) e (4) da aula, citados anteriormente (ver item 5.1.). Dessa forma, o aluno-autor parece sentir a necessidade de retomar essa questão da cidadania do homossexual, devido à ênfase dada a ela pela professora. Além desses dois momentos da discussão oral, há outro em que a professora incita a discussão sobre a cidadania do homossexual: (14) L1 PROF: vocês não acham que seria justo um casal + de homossexuais que + já convivem + por exemplo + nós temos um cas/ esse caso de João Pessoa que eu vou mostrar as matérias já convivem há dezesseis anos + as duas mulheres + se elas convivem há dezesseis anos + provavelmente elas batalharam juntas por muitas das conquistas MATEriais L6 MAÍSA: pois é L7 PROF: a questão moral a questão da sociedade aceitar ou não elas já convivem com isso e continuaram e nem por isso deixaram de ter o casamento delas lá + legalizado ou não + então vocês não acham que essas duas + que passaram por essa história de vida toda + uma delas morre + vocês não acham que a outra deveria ter os direitos à heran::ça + direito é:: L12 MAÍSA: á pensão L13 PROF: exato + até porque ela ajudou + UM DOS pontos do projeto é esse + tá? não é simplesmente + às vezes a gente banaliza um pouco + um fato de + um casal casar + mas a questão de do ponto de vista do direito então vocês têm que pensar um pouquinho ++ o fato de ser um casal de homossexuais DIminui a questão da cidadania + dos dois?... L18 RAÍSSA: não não L19 PROF: seja homem ou seja mulher?... A todo momento a professora reforça a sua opinião, ainda que não a assuma: a necessidade de, segundo ela, avaliar o tema a partir de uma posição em sintonia com a justiça, a igualdade de direitos e a cidadania. A própria interpretação que ela faz dos fatos publicados no jornal não é isenta (e nem poderia), de maneira que se pode perceber sua concordância em relação à decisão da justiça paraibana, pois, segundo a professora, já que 133 as duas mulheres convivem há 16 anos, provavelmente, construíram um patrimônio juntas e por isso deveriam ter direito à herança (L3-L5 e L7-L13). Há, portanto, um reforço à importância das noções de justiça e cidadania para avaliar o assunto. Esse reforço tem seu ápice na pergunta formulada pela professora (L16 e L17) e dirigida aos alunos. Mas a resposta para essa pergunta não se restringe à interação mais imediata, em sala de aula, na ocasião do debate. E, se o aluno-autor do Texto (3b) prefere calar no momento da discussão, não expondo sua opinião (e não se expondo, por discordar), em seu texto encontramos o eco dessa pergunta: o enunciado – Não vejo o homossexual como um cidadão – pode ser visto como resposta a ela, já que não é uma continuação do discurso que o aluno-autor vinha construindo em seu texto. Ainda neste mesmo parágrafo, encontramos a idéia de que o homossexual, segundo o autor desse Texto (3b), não é “uma pessoa normal, pois, a partir do momento em que ele efetuou sua excêntrica escolha, ele abriu mão de sua natureza comum, assumindo uma postura completamente destoante de qualquer concepção, seja civil, seja religiosa”. A discussão entre normalidade/anormalidade já estava presente no outro texto escrito do aluno-autor e era exposta no mesmo tom incisivo que é nesta produção textual. Assim, ele coloca, no seu discurso, o homossexual à margem: este grupo será considerado excêntrico, anormal, de natureza incomum, não merecendo, portanto, qualquer direito que o inclua como cidadão (concepção civil) ou cristão (concepção religiosa). Ou seja, há um padrão de conduta que é desviado pelos homossexuais, os quais são (e, para o aluno-autor, merecem ser) “punidos” por essa “escolha”; punição que vem com a negação de direitos. No final do 3o. parágrafo, encontramos uma espécie de definição do termo homossexualismo: “O homossexualismo é, antes de tudo, uma patologia, mas não física, e sim espiritual, o que é pior”. Chama-nos a atenção neste trecho o uso da palavra patologia, pertencente ao vocabulário médico, mas aqui utilizada com outro sentido, a fim de opor 134 dois planos: o físico e o espiritual. Sendo o homossexual alguém que sofre de uma patologia, mereceria ser tratado, mas não julgado, pois, como patologia, a homossexualidade não teria sido de sua vontade ou escolha. Contudo, isto seria uma contradição no discurso do aluno-autor, que afirma ser esta opção uma excêntrica escolha. Então, para não pôr em xeque a sua argumentação, ele atribui um novo sentido à palavra patologia, aliando-a a questões espirituais, portanto, religiosas (o que é pior, pois demonstraria falha de caráter, para o aluno). Essa perspectiva religiosa é a base de toda sua defesa e não pode ser questionado, por constituir-se, do seu ponto de vista, verdades absolutas. Para finalizar, o aluno-autor dirige-se, no 4o. e último parágrafo do Texto 3, à deputada, a fim de solicitar-lhe uma mudança de posicionamento quanto ao projeto. Mesmo nesse final o tom é bastante incisivo e radical, como se pode perceber pelo uso da expressão “suprema imoralidade”. Assim, sugiro que a senhora reveja sua proposta, para que não tenhamos, em um futuro próximo, de passar pelo constrangimento de ver homens de mãos dadas pelas ruas, suprema imoralidade. Mas um aspecto que merece ser comentado é a preocupação de que, se legalizado o contrato civil entre homossexuais, isso equivaleria à liberação de gestos públicos de carinho entre esses casais, o que seria um constrangimento para a sociedade, segundo o aluno-autor. Esta era uma preocupação que já se fazia presente na produção escrita anterior deste mesmo aluno, embora, naquele outro texto, o foco estivesse sobre a influência que essa liberação poderia ter sobre as crianças que, vendo casais nas ruas, poderiam querer imitá-los. Essa aproximação entre legalização/liberação foi um dos pontos fortes do debate oral em sala de aula, sendo motivo de divergências entre os alunos. Vejamos uma das passagens: 135 (15) L1 ÉRIK: se você legaliza o casamen:to + eles vão se achar no direito de ‘tarem se relacionando dentro dum shopping, dentro do cinema + e isso é feio + a sociedade ainda não L4 RENA: [é feio?! L5 ÉRIK: mas Renata L6 RENA: ((risos)) L7 ÉRIK: eu QUEro falar L8 RENA: ((risos)) L9 ÉRIK: isso teria que ter a mente mais aberta + mas isso não funciona aqui + quem estudou nas Damas a vida todinha + num internato como é que L11 RENA: [ aí é problema dela L12 ÉRIK: né problema ((a aluna começa a rir,e perde a paciência, desistindo de falar)) (...) L14 CAMI: você não gostar de um gay não quer dizer / como se aquilo não existisse + fosse uma coisa fora da realidade + só que assim + é o seguinte + do mesmo jeito que + tem pessoas que num tão a fim de ver homossexuais se beijando em plena praça da alimentação do shopping também num tá a fim de ver um homem e uma mulher + então eu acho que cabe à per-sonalidade de cada um + o respeito de cada um ao próximo + porque + independente de você ser hetero homo tem que ter respeito o outro porque são pessoas que não aceitam nem um beijo de língua assim a: na frente de todo mundo Em L12, a aluna desiste de falar, só retomando o seu raciocínio depois: (16) L1 ÉRIK: é porque tá legalizando o casamento é como tá legalizando isso como uma coisa normal pra sociedade e que de fato não é + a gente ainda não tá com a mente preparada pra isso L4 ANID: a sociedade brasileira é muito pa/patriacal patriarcal L5 ÉRIK: tá enten/ é a mente muito fechada o povo tema mente muito pequena + então num é normal + agora assim ++ re-lação homossexual aí não acabou + eles que tenham lá + agora o ca-sa-mento aí é uma coisa mais séria + aí é uma coisa mais ((alguns alunos tumultuam com gracinhas)) Nesses dois trechos (15 e 16) da aula de debate sobre o tema, percebemos que a discussão gira em torno da aceitação do comportamento homossexual como normal, oque incluiria a aceitação também de gestos públicos de carinho entre eles. Segundo a aluna ÉRIK, a sociedade ainda não estaria preparada para essas situações; já a aluna CAMI (trecho de fala 15, L12-L20) considera que este não deveria ser um obstáculo para a legalização do contrato civil, pois há pessoas que não suportam presenciar manifestações 136 de carinho também entre heterossexuais e nem por isso se vai proibir o casamento entre estes. De qualquer forma, o que se percebe é a ênfase nas reações diante da situação (para alguns, constrangedora) de presenciar casais homossexuais trocando carícias em público. O foco não está mais, portanto, na possível influência que essas cenas podem causar no comportamento de crianças e adolescentes. Essa influência não deixa de ser discutida na aula em outros momentos, mas talvez a importância que foi dada às possíveis reações das pessoas, diante de cenas de carinho entre homossexuais, tenha sido a razão para que, nesta segunda produção, o aluno-autor do Texto (3b) tenha abordado esse aspecto neste momento de produção. Vejamos agora como o aluno-autor do Texto (4b), que defende o mesmo ponto de vista e a partir do recurso ao discurso religioso, constrói a sua argumentação. TEXTO 4(b) Campina Grande, 16 de novembro de 2004 Prezada Deputada Marta Suplicy: Diante das propostas apresentadas pelo projeto de lei que aprova o contrato civil entre pessoas do mesmo seco, venho, não objetivando mudar sua posição, mas trazer esclarecimentos, manifestar minha absoluta objeção a tal decisão. Tendo em vista o plano divino da criação, em que o homem foi feito para ser o sacerdote do lar junto à mulher, sua fiel auxiliadora e adjuntora, tal projeto fere os princípios bíblicos e morais e desmoraliza totalmente a figura do ser humano, que deve crescer constituindo uma família estável e feliz. Não assumindo uma postura preconceituosa em relação a pessoa do homossexual, visto que ele é digno de misericórdia e Deus o ama, mas aborrece a sua prática, é de primordial importância levantarmos o seguinte questionamento: como um casal de homossexuais irão cumprir o propósito da perpetuação da espécie? E se adotarem, qual o tipo de formação irão passar para essa possível criança? Com certeza, a pior possível, pois para que a criança tenha um crescimento saudável, é preciso haver a figura da mãe e do pai. Além disso, tal contrato visa apenas interesses econômicos, deteriorando ainda mais o caráter humano. Portanto, espero de sua parte uma reavaliação de seus conceitos morais e cristãos, a fim de que se possa contribuir para o respeito a família como instituição sagrada e não a aprovação de tal aberração. Atenciosamente, Denise Pereira 137 Contrariamente ao Texto (3b), o (4b) escolhe como estratégia discursiva um início menos pretensioso, ao afirmar que quer apenas manifestar a opinião e não modificar a posição da deputada. Além disso, evita fazer avaliações acerca da moral ou da religiosidade de sua interlocutora: “venho, não objetivando mudar sua posição, mas trazer esclarecimentos, manifestar minha absoluta objeção a tal decisão”. Esse recurso revela uma preocupação em conquistar a simpatia do leitor e se baseia no jogo de imagens: ao admitir, inicialmente, que não pretende mudar a posição da deputada quanto ao tema, é como se a aluna-autora perguntasse: quem sou eu para sugerir tal mudança? No entanto, essa é apenas uma estratégia inicial, pois tanto o Texto 3 quanto este são encerrados pela solicitação de que Marta Suplicy reavalie seu projeto e o abandone, o que nada mais é do que uma exigência do próprio subgênero carta de solicitação e/ou de reclamação. De qualquer forma, embora tome uma posição de absoluta objeção quanto ao projeto, o tom de todo o texto será menos incisivo que o do Texto (3b). No 2o. parágrafo, há a retomada do texto bíblico da criação, com a formulação da aluna-autora, com palavras que ela toma como dela, mas que são facilmente reconhecidas como pertencentes ao discurso religioso. É assim no uso de palavras como sacerdote do lar (para se referir ao homem) e fiel auxiliadora e adjuntora (para se referir à mulher). Construções como essas, típicas do discurso religioso, podem ser vistas, por exemplo, nos trechos bíblicos a seguir: Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea. (Gênesis, 2; 18) Deu nome o homem todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais selváticos; para o homem, todavia, não se achava uma auxiliadora que lhe fosse idônea. (Gênesis, 2; 20 – grifos nossos) Vejamos que há até o uso das mesmas palavras, como auxiliadora, ou de palavras semelhantes, como fiel e idônea. É interessante que, particularmente nestas passagens do Gênesis, não há referência à idéia de que a mulher viria a se unir ao homem para procriar, mas para lhe fazer companhia: não é bom que o homem esteja só. Contudo, 138 para a aluna-autora (certamente apoiada em outras passagens bíblicas e nas interpretações consagradas destas) o propósito da existência humana, o plano divino da criação, é constituir uma família estável e feliz. Aqui, fica claro que o conceito de família é tradicional – formada por um homem, uma mulher e os filhos – o que, embora não a caracterize necessariamente como estável e feliz, está de acordo com os princípios bíblicos e morais. No parágrafo seguinte, também identificamos expressões do discurso religioso, tais como: digno de misericórdia, Deus o ama, aborrece sua prática: Não assumindo uma postura preconceituosa em relação a pessoa do homossexual, visto que ele é digno de misericórdia e Deus o ama, mas aborrece a sua prática, é de primordial importância levantarmos o seguinte questionamento: como um casal de homossexuais irão cumprir o propósito da perpetuação da espécie? E se adotarem, qual o tipo de formação irão passar para essa possível criança? Com certeza, a pior possível, pois para que a criança tenha um crescimento saudável, é preciso haver a figura da mãe e do pai. Assim, retoma-se o caráter superior e misericordioso de Deus que, embora não aprove as atitudes dos homossexuais, os ama e perdoa. Ao mesmo tempo em que constrói a imagem de Deus com essas características positivas, o Texto 4 constrói a dos homossexuais como pecadores, dignos de perdão pelo erro cometido. Ainda quanto ao vocabulário utilizado, merece destaque neste parágrafo a expressão “perpetuação da espécie”: como um casal de homossexuais irão (sic) cumprir o propósito de perpetuação da espécie?”. Este enunciado nos remete ao discurso do cresceivos e multiplicai-vos, presente na Bíblia, conforme já exposto quando analisamos o Texto (3b). No entanto, aqui ele não aparece com a mesma formulação bíblica, mas o sentido éo mesmo: ambos defendem a idéia de que o objetivo da união entre duas pessoas é crescer e multiplicar-se ou perpetuar a espécie. Esse é o mesmo discurso utilizado em um dos textos da coletânea que compõe a proposta (o de Newton Cruz), no qual, inclusive, é formulada uma pergunta semelhante: “como é que dois homens juntos vão crescer e se multiplicar?”. Parece-nos, então, ser este 139 um argumento recorrente para aqueles que não concordam com o contrato civil e baseiam seu ponto de vista nos preceitos religiosos. Na seqüência do parágrafo, o mesmo recurso à elaboração de questionamentos é utilizado quanto à adoção de crianças por casais homossexuais: “E se adotarem, que o tipo de formação que irão passar para a possível criança?”. Neste trecho, tem-se o seguinte raciocínio: se o homossexual não pode perpetuar a espécie para formar uma família estável e feliz, a possibilidade que lhe resta seria a adoção; todavia, essa não seria uma boa saída, tendo em vista o prejuízo para a formação moral da criança. A pergunta é, em seguida, respondida pela própria aluna-autora, mas o que se percebe nesse recurso à formulação de questionamentos é a ausência de uma discussão aprofundada sobre o assunto, pois ela traz a questão, responde, mas não apresenta argumento para justificar sua resposta. Como ela se vale de uma palavra autoritária, talvez acredite que apenas enunciar essa palavra já baste, por esta representar a verdade em si mesma. Caberia-nos perguntar, ainda, o que se está chamando de crescimento saudável, em: “para que a criança tenha um crescimento saudável, é preciso haver a figura da mãe e do pai”. O contexto em que essa expressão surge leva-nos a entender que bastaria um lar heterossexual para garantir à criança um crescimento com esta qualidade. Como viemos comentando, tanto este Texto (4b) quanto o (3b) utilizam uma referência à mesma passagem bíblica (a criação) para defender sua opinião contrária ao projeto de Marta Suplicy. Vejamos o que ocorre na passagem abaixo (L11 a L13): (17) L1 MAÍS: professora! e no caso da da adoção que a senhora ia tocar no assunto + é muito relativo um sentido de que: tanto:: há um impacto psicológico na criança que vai crescer/digamos / que não vai ter a presença mãe e pai + feminino e masculino + O:u vai ter duas mulheres ou dois homens né? mas por outro lado é como Raíssa tocou naquele assunto + tem:: casal que apesar de homem é muito mais humano + sabe constituir um lar /uma família mu::ito mais + bem estruturada do que + do que / por exemplo + do que um ca/ um casal hetero que recentemente casou e já vão se preparar e aquela agonia + e aquela criança ((incompreensível)) + no sentido assim de 140 que a família não tá:: obrigatoriamente relacionada à figura de um pai + mas sim à figura daqueles que + que ze:lam que orientam + que querem de fato o melhor pra criança + mas aí também por outro lado já tem também história assim de que + é + o casamento no sentido assim de que + é::: pra que /no sentido de: digamos casai-vos e multiplicai-vos que é impossível pra eles aí num tem condições de: multiplicar né? de de multiplicar né? L14 PROF: [sim L15 MAÍS: aí já tá fugindo assim idéia doutrinal né? L16 PROF: [sim + é + mas aí você pensando bem na história do do crescei e multiplicai-vos né? é:: isso aí é religioso L18 MAÍS: [sei L19 PROF: é do ponto de vista da bíblia A idéia de união ligada à multiplicação não é debatida com ênfase, mas sua referência aqui e também na proposta de redação é suficiente para ser recuperada no texto escrito dos alunos. Além disso, há certas idéias trazidas neste trecho que são recuperadas pela aluna-autora do Texto (4b), como as referentes às conseqüências para a criança por ser criada por homossexuais (L1 a L5). Contudo, a aluna não se mostra tão segura do seu ponto de vista, como se pode ver na continuação da sua fala (L6 a L13). A aluna-autora do Texto (4b) parece dialogar com essas questões trazidas na aula pela sua colega, mas se esta mantém alguma dúvida, aquela tem certeza do que diz (ao menos é o que seu texto deixa entrever quanto à discussão sobre a adoção). Embora seja uma retomada rápida da Bíblia (L11 a L13), como já afirmamos, a mesma idéia apareceu nos dois textos aqui analisados: o (3b) e o (4b). Esta constatação nos leva a crer que isso não foi uma influência da discussão oral, mas da própria formação desses alunos-autores ao longo de sua vida (dentro e fora da escola). Essa suposição se confirma se nos lembrarmos de que estas idéias com fundamento na religião estão presentes no discurso desses dois alunos desde a primeira produção escrita, quando não ainda não havia sido realizada a discussão oral do tema. E, mesmo após a discussão e a pouca importância dada à questão da “multiplicação”, eles mantiveram seu ponto de vista e a base religiosa da sua argumentação. 141 Mas recuemos um pouco para o início deste 3o. parágrafo. O primeiro enunciado é: Não assumindo uma postura preconceituosa em relação ao homossexual. Na linearidade do Texto (4b) não se havia falado ainda sobre o preconceito contra o homossexual, de maneira que nos instiga o surgimento desse enunciado, quase como uma resposta possível a uma crítica futura, como uma defesa a ela: ou seja, embora esteja discordando do projeto, a aluna-autora não quer ser incluída entre aqueles que o fazem por preconceito. Há mesmo uma preocupação da aluna-autora em não ser identificada como preconceituosa, pois estar nessa posição seria desconfortável, tendo em vista a grande aversão de todos por atitudes dessa natureza. É o que veremos a seguir, em mais um trecho do debate em que se deu bastante ênfase ao preconceito como uma atitude negativa, que provoca entraves e demonstra desrespeito às opiniões/posturas diferentes: (18) L1 PROF: você tem então aí duas opiniões favoráveis ao contrato civil, né? à união entre homossexuais + cada uma se basea::ndo + em que argumentos? quais são os argumentos que eles usam L4 FABI: citam o preconceito hoje L5 PROF: a questão de brigar contra o preconceito + né? e aí então pra essas pessoas fica implícito que o fato de não querer assumir isso + essa união civil + seria fruto apenas do preconceito + não teria outra justificativa + pra essas pessoas + Érika + lê pra mim o próximo, por favor L9 RENA: a gente tava comentando aqui que não tem nada ver + num é porque a pessoa vai ser gay que ela vai queimar no fogo do inferno L11 CAMI: e quem é ela pra julgar? ((os alunos falam ao mesmo tempo)) Apesar de haver essa preocupação explícita de não se identificar com o preconceito em relação ao homossexual, percebemos que a aluna-autora do Texto (4b) não consegue atingir esse propósito, o que fica claro na continuidade desse 3o. parágrafo, quando ela afirma que uma educação dada por homossexuais só pode ser “com certeza, a pior possível”. Além disso, ao afirmar que não tem preconceito porque o homossexual é digno de misericórdia e Deus o ama, ela acaba por revelar esse sentimento: se Deus o ama, mesmo não corroborando a sua escolha sexual, e se o homossexual é digno do perdão 142 divino, é porque ele está errado e, a princípio, só merece ser perdoado; amor ele só tem mesmo porque Deus é muito bom e ama a todos os seus filhos por igual, até os que se desviaram do caminho (como Maria Madalena, por exemplo). No 4o. e último parágrafo, a aluna-autora retoma o projeto: Além disso, tal contrato visa apenas interesses econômicos, deteriorando ainda mais o caráter humano. Portanto, espero de sua parte uma reavaliação de seus conceitos morais e cristãos, a fim de que se possa contribuir para o respeito a família como instituição sagrada e não a aprovação de tal aberração. Ela apresenta o que acredita ser mais uma razão para não concordar com ele: tal contrato visa apenas interesses econômicos, deteriorando ainda mais o caráter humano. Em outras palavras, o projeto não deve ser aceito porque se refere a questões econômicas, como a herança, e isso seria um ponto negativo, por não considerar o “lado humano” do assunto, apenas o financeiro. Ora, com esse raciocínio, a aluna-autora encerra a discussão, aparentemente não deixando saídas para os homossexuais: por um lado, eles não podem se unir porque este não é o modelo de família aceito e porque eles não têm como cumprir com o propósito da união (que não é ser companheiro um do outro, mas procriar); por outro lado, se é esquecida a idéia de união (que revelaria o companheirismo e o desejo de formar uma família), passando a haver uma maior preocupação com questões financeiras, então também está errado porque isto seria diminuir o aspecto “humano” e só considerar o “material”. Na continuação do 4o. parágrafo, temos um pedido de mudança para a deputada Marta Suplicy: espero de sua parte uma reavaliação de seus conceitos morais e cristãos. Se considerarmos esse “pedido” em relação ao início do texto, no qual a aluna diz não pretender mudar a posição da deputada, teríamos uma aparente contradição, já que agora, ao final do texto, ela muda o objetivo e diz não ser mais apenas expor seu ponto de vista, mas mudar o de Marta Suplicy. Há alguns aspectos importantes a considerar. O primeiro deles é a própria comanda da proposta de redação, que exigia uma interpelação do aluno- 143 autor, dirigida á deputada: ou seja, caso ele não concordasse como projeto, deveria reclamar por soluções imediatas. Outro aspecto é o fato de que este pode ser um indício de que o sujeito não controla totalmente o seu dizer (já que a língua não é transparente), mas mantém para si a ilusão de que o faz. Dito de outra forma, é possível que estejamos diante de uma explicitação involuntária de um conflito do sujeito: de um lado, ele não pretende ser acusado de defender um discurso preconceituoso (este bastante condenado pela sociedade em geral e pelos colegas na discussão oral em sala de aula); mas, de outro, não abre mão de sua posição contrária ao comportamento homossexual, que vai de encontro aos seus valores morais e religiosos. Assim, esse conflito, instaurado no campo discursivo, entre o discurso religioso/moral e o anti-preconceito sexual, se revela materialmente no Texto (4b) através dessa mudança de atitude em relação aos seus propósitos (mudar a opinião da deputada sobre o tema ou apenas expressar a própria opinião? Ser condescendente com os homossexuais, concedendo-lhes direitos, ou apenas considerá-los dignos de perdão pelos erros contra a religião e a moral?). Ao final do parágrafo, volta a idéia da família como instituição sagrada, em relação à qual a união de homossexuais só pode ser considerada uma aberração. Temos aqui outro indício do preconceito contra este grupo, embora a aluna-autora não aceite ser incluída entre os preconceituosos. Conforme pudemos observar neste capítulo, os quatro textos analisados mantiveram a estratégia de retomar o discurso do Direito ou da Religião, como ocorreu na primeira produção textual. Contudo, além destes dois discursos, houve também a retomada de outros aspectos sobre o assunto, discutidos oralmente em sala de aula e mencionados pelos alunos, mas, principalmente, pela professora. Então, se antes o ponto de vista do 144 aluno estava associado unicamente ao seu conhecimento de mundo e às idéias suscitadas pelos textos da proposta de redação, agora ele se fundamenta também na leitura e interpretação das outras informações sobre o assunto, trazidas para a sala de aula no momento do debate oral sobre o contrato civil. Assim, mostrou-se importante o confronto com opiniões diferentes da sua, não necessariamente contrárias, mas que o fizeram repensar o seu modo de avaliar o projeto de lei (mesmo que não tenha modificado sua opinião). 145 Conclusão (Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 122) Longe de ser o ponto final, a determinar a interrupção da viagem, essa etapa é apenas o diário de bordo, no qual se analisa como foi o dia e se faz planos sobre como a viagem continuará. Ao analisar os textos que compõem nosso corpus, produzidos em duas situações de produção na escola, pudemos constatar a manutenção de algumas estratégias discursivas e mudança de outras nos textos de uma e de outra situação. Entre aquelas que foram mantidas, temos, por exemplo, o fato de que o sujeito que escreve nunca está só: ora ele dialoga com textos lidos na proposta de redação; ora com opiniões de outros, ouvidas em sala de aula (ou não); ora com outros discursos com que teve contato até o presente momento de sua formação. De qualquer forma, seu texto (como todo texto) será sempre um diálogo com já-ditos. No entanto, a presença desse diálogo (que se mostra a partir de diferentes estratégias de retomada) não significa que esses textos produzidos em situação escolar sejam mera repetição; nem que os alunos não são autores do texto que escrevem. Muito pelo contrário, o que percebemos nos oito textos analisados é a retomada de já-ditos, mas com formulações distintas, que revelam a interpretação do aluno-autor sobre o dizer do o/Outro e que resultam em efeitos de sentido diferentes. Ou seja, o dizer recuperado, ao ser 146 inserido em outra situação de produção e em outro contexto (dentro do novo texto), assume outros sentidos. São vários os momentos em que se pode perceber essa emergência de novos efeitos de sentido, bem como o trabalho dos sujeitos da pesquisa sobre um dizer, o que comprova a assunção da função-autor pelos alunos. No Texto (1a), por exemplo, a palavra Direito assume significações diferentes, em função do ponto de vista adotado pela alunaautora, o que demonstra o trabalho de interpretação e (re)formulação desse discurso por ela, que o recupera, mas não se limita a repeti-lo tal qual ele circula na sociedade. Já quanto ao Texto (2a), alguém poderia afirmar que o aluno não se constitui como autor, vez que ele recorre às mesmas idéias de um dos textos da proposta de redação e as apresenta até na mesma seqüência. Contudo, a formulação é diferente (como vimos no capítulo 4) e a conclusão a que essas idéias levam não é igual à do texto da proposta: em (2a), o alunoautor defende que sejam incluídos no projeto de lei novos direitos para os homossexuais, o que não é mencionado em nenhum outro texto, isto é, trata-se de uma interpretação do próprio aluno. Estratégias semelhantes aparecem nos demais textos do corpus, inclusive naqueles que recorrem à referência a passagens bíblicas: (1b), (3a), (3b), (4a) e (4b). Nestes, o texto bíblico não é puramente copiado, mas interpretado e reformulado, inserido em um novo contexto, a partir do qual assume nuances de sentido diferentes daquelas que aparecem no livro sagrado dos católicos. Mesmo quando se pretende confirmar o discurso bíblico (como nos Textos (3a), (3b) (4a) e (4b)), ele é trazido para discutir um assunto que sequer existia na época de Cristo: os direitos civis para os homossexuais (neste caso, o contrato civil entre as pessoas desse grupo). Além disso, os trechos escolhidos não são quaisquer trechos, mas aqueles que servem para os propósitos da argumentação que se pretende construir. Assim, a 147 escolha das passagens bíblicas relacionadas ao que se quer discutir já demonstra o trabalho do sujeito sobre esse discurso que ele recupera. Não estamos afirmando, evidentemente, que o sujeito é totalmente livre, mas que há espaço para o seu trabalho sobre a língua e sobre o discurso. É possível perceber, por outro lado, os enquadramentos do discurso (Foucault, 2004): todos os textos aqui analisados se mantêm entre o discurso do Direito e o da Religião, como se fosse permitido ao sujeito falar sobre o contrato civil entre homossexuais apenas a partir desses dois lugares. Essa divisão encontra-se já na proposta de redação, cujos textos expressam opiniões filiadas a um desses pólos – o Direito ou a Religião; encontra-se também nos textos para debate, coletados na internet, os quais recuperam essa espécie de dicotomia; e, por fim, encontra-se no enfoque das discussões realizadas oralmente em sala de aula, nas opiniões dos alunos e da professora, que retomam e reforçam a existência desses dois lugares de debate do assunto. Todavia, mesmo dentro desse enquadramento, os sujeitos encontram espaço para o seu dizer (mesmo que construído a partir do dizer do o/Outro). É o que observamos nos exemplos já comentados e também no fato de que, embora se suponha que o discurso do Direito deva servir de argumento para defender o contrato civil, a aluna-autora do Texto (1a) contraria essa perspectiva e o utiliza, inicialmente, para condenar essa proposta que beneficia os homossexuais. Essa mesma aluna-autora, em seu segundo texto (1b), usará estratégia semelhante, ao recorrer ao discurso religioso para defender um ponto de vista contrário ao da religião: ao citar a passagem “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, ela subverte a lógica aparente em associar o discurso do Direito à concordância com o projeto e o da Religião à discordância, utilizando-os de maneira “invertida” em relação ao que se esperava. 148 Outra estratégia recorrente nos oito textos, independentemente de serem produzidos na primeira ou na segunda situação de produção, é a pouca atenção dada aos itens do projeto. São raros os momentos em que os alunos-autores discutem as propostas do projeto (que deveria ser o objeto central da discussão). O que pretendemos dizer é que eles não dialogam com o texto do projeto, embora discutam esse documento quanto às suas conseqüências para a sociedade. Como dissemos no início deste item, todos os textos mantiveram um aspecto em comum, nas duas situações de produção consideradas neste trabalho: a recorrência ao diálogo com o já-dito. Paradoxalmente, é neste mesmo aspecto, o diálogo com o já-dito, que estará uma das diferenças entre os textos produzidos na primeira situação de produção (sem discussão do tema) e na segunda (com discussão oral em sala de aula). Assim, uma estratégia discursiva diferente poderá ser vista nos textos escritos na segunda situação: além dos já-ditos recuperados a partir dos textos lidos na proposta de redação e daqueles que fazem parte da formação do aluno, eles manterão diálogo com a discussão oral em sala (conforme visto no capítulo 5). Percebemos que os alunos, após a discussão oral, sentem-se interpelados a recuperar as opiniões com as quais tiveram contato nesse momento de interação, ainda que seja para refutá-las (como se pode perceber, por exemplo, no Texto (3b), acerca da cidadania do homossexual). A discussão oral possibilitou também mudanças no ponto de vista assumido (ver Textos (1a) e (1b)), ou no teor da abordagem do projeto. Este último caso, por exemplo, pode ser verificado no Texto (2a), em que o aluno exige mais direitos para os homossexuais, além daqueles já previstos pelo projeto de lei; mas, na sua segunda produção, (2b), essa reivindicação é “amenizada” e é acrescentada a idéia de que, quanto à adoção, é preciso ponderar melhor. Essa mudança, sem dúvida, ocorreu devido à influência 149 da discussão oral, pois o aluno pôde, neste momento de debate, refletir sobre o assunto e sobre aspectos para os quais ele não havia atentado ainda, entre os quais, a adoção e a intensidade das divergências de opiniões sobre o contrato civil. Como já afirmamos, essas alterações ocorreram, em geral, devido à influência do discurso da professora, que, nesta segunda situação de produção, explicitou (ainda que não pretendesse fazê-lo inicialmente) o seu ponto de vista sobre o assunto. Se o guia antes era o livro didático, agora será também o discurso da professora. Podemos dizer, então, que uma situação de produção em que se discuta oralmente o tema em sala de aula se mostra importante, na medida em que interfere na própria constituição dos sujeitos, fazendo-os refletir sobre seus posicionamentos e pensar sobre aspectos diferentes da questão. Essa interferência acontecerá não só no âmbito das idéias a que o aluno-autor recorre na construção do seu dizer, mas também na elaboração dos textos escritos, uma vez que, como vimos, neles serão utilizadas estruturas que retomam idéias da discussão oral, mais especificamente, do discurso da professora. Então, embora não tenha havido durante a aula de discussão uma reflexão sobre as diferentes maneiras de formulação do dizer e sobre a influência destas para os efeitos de sentido possíveis, apenas a discussão já provocou alterações no encadeamento das idéias nos textos dos alunos. Acreditamos, portanto, que nossa hipótese inicial foi confirmada: nas duas situações de produção há a retomada de outros discursos nos textos escritos dos alunos, retomada que foi, em certa medida, determinada pelas condições de produção dadas em cada uma das situações. Ou seja, na primeira, o livro didático e os textos da proposta servem, aliados ao conhecimento prévio do aluno, praticamente como referência única; na segunda, há outros já-ditos a serem recuperados, neste caso, aqueles construídos na 150 discussão oral, especialmente os identificados como pertencentes ao discurso da professora. Quanto à metodologia do ensino da escrita, os resultados encontrados apontam para a necessidade de uma reflexão constante por parte do professor sobre a sua prática de ensino. É preciso que o processo de ensino da escrita leve o aluno a refletir sobre as maneiras possíveis de dizer o que pretende e os efeitos de sentido que cada uma dessas formulações pode trazer para o texto. Assim, não basta usar a leitura como ferramenta para aquisição de “conteúdos do dizer”, como uma fonte de idéias a que recorrer quando nada mais restar; a leitura de textos variados antes de uma atividade de produção textual escrita se torna mais eficaz se for também um momento para se pensar sobre as “maneiras de dizer”, pois essa seria a finalidade da disciplina de produção de textos na escola. Ou seja, não basta que o aluno tenha o que dizer, mas saiba como dizer e porque dizer de uma maneira e não de outra, tendo em vista os objetivos que pretende atingir; e um dos caminhos para chegar a essa compreensão é entender, nos textos lidos, a relação entre a formulação de um dizer e os efeitos de sentido proporcionados por esta. Embora tenha aspectos positivos, conforme já mencionado, faltou essa reflexão à aula de discussão oral considerada neste trabalho. Mas, como esse é um diário de bordo e a professora-pesquisadora está apenas começando sua viagem profissional, bons ventos ainda virão. 151 Referências Bibliográficas ABREU, M. (org.). Leitura, História e História da Leitura – Histórias de Leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras/FAPESP, 2002. AUTHIER-REVUZ, J. Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio. In: ORLANDI, E. P. (org.). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1994. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995. _____________. Questões de Estética e de Literatura: a teoria do romance. 4. ed. São Paulo: UNESP/Hucitec, 1998 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de & FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003. BATISTA, A. A. G. Um objeto variável e instável: textos, impressos e livros didáticos. In: ABREU, Márcia (org.). 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(p. 31-76) 155 ANEXOS ANEXO A UNIDADE DO LIVRO DIDÁTICO ANEXO B PRIMEIRA PROPOSTA DE REDAÇÃO ANEXO C TEXTOS PARA DEBATE ORAL ANEXO D SEGUNDA PROPOSTA DE REDAÇÃO ANEXO E TRANSCRIÇÃO DAS AULAS