UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E ENSINO
LINHA DE PESQUISA: PERSPECTIVAS DISCURSIVAS NO ENSINO DE
LÍNGUA
A ESCRITA NA ESCOLA: AS ESTRATÉGIAS DO DIZER EM DUAS
DIFERENTES CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO TEXTUAL
ALUNA: Danielly Vieira Inô
ORIENTADORA: Maria Ester Vieira de Sousa
João Pessoa
2006
Danielly Vieira Inô
A ESCRITA NA ESCOLA: AS ESTRATÉGIAS DO DIZER EM DUAS
DIFERENTES CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO TEXTUAL
Dissertação
apresentada
ao
Programa de Pós-graduação em
Letras, da Universidade Federal
da
Paraíba,
para
obtenção
do
título de Mestre em Lingüística e
Língua Portuguesa.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Ester Vieira de Sousa
João Pessoa
2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Profa. Dra. Maria Ester Vieira de Sousa
(Orientadora)
______________________________________________________
Profa. Dra. Maria Augusta G. de Macedo Reinaldo
(Examinadora Externa – UFCG)
______________________________________________________
Profa. Dra. Maria das Graças Carvalho
(Examinadora Interna – UFPB)
João Pessoa, ____/____/_____
AGRADECIMENTOS
O leitor nem precisa ser apressado para querer pular essas páginas iniciais...
Ficou extenso mesmo, mas jamais poderia reduzir esse texto; talvez aumentá-lo, diminui-lo
não.
Se eu fosse exagerada como uma certa amiga (que adoro!), diria que esta foi a
parte mais difícil do trabalho. E difícil por várias razões: seja porque não gostaria de cair
na mesmice da formalidade, que afasta as pessoas; seja porque todos a quem agradeço aqui
são tão amados (cada um de uma maneira), que as palavras por si só são sempre injustas e
falhas (pronto! Mal comecei e já temos um clichê! Hahahaha).
Muito mais que agradecer, o que quero é dividir este momentos com as pessoas
que gosto; pessoas que fizeram a diferença simplesmente por existirem na minha vida,
mesmo aquelas que permaneceram por um breve período de tempo ou aquelas que estão
comigo desde muito antes de eu “me entender por gente”.
Bem, comecemos, então...
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha família. Tia e Ozinha (minha
bisa): embora nem sempre eu diga ou demonstre, como vocês mereceriam, saibam que
vocês são duas preciosidades na minha vida, meus únicos tesouros. Cada dia que passa
tenho mais certeza de que perdi uma mãe, para ganhar duas! Obrigada pelo amor
incondicional que só as mães podem sentir. Também amo vocês.
Eu não sabia, mas essa família logo iria crescer... Quando eu tinha 15 anos,
ganhei um presente com que toda menina nessa idade sonha: o príncipe encantado. Ele não
veio a cavalo, nem empunhava uma espada, mas, como em todo bom conto de fadas,
enfrentou por mim e comigo os perigos do caminho, fazendo-me sentir mais forte, segura
e, principalmente, a princesa mais amada do reino. Você, William Charles (e não é que ele
tem nome de príncipe!), me mostrou que “sem amor eu nada seria”. Só nós dois sabemos
as renúncias necessárias para chegarmos até aqui, o que só valoriza essa nossa vitória.
“Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos”, mesmo que eu o ame por
toda essa vida e a próxima, ainda não será suficiente, pois “sinto que em meu gesto existe
teu gesto e em minha voz a tua voz”. Ainda preciso dizer que amo você?
E ainda cabe muita gente nessa turma: minha sogra, Genalda, que contraria
todas as piadas de sogra existentes, porque é maravilhosa e alguém muito especial para
mim; meu sogro e meus cunhados, que, mesmo longe, acompanharam minha história e
torceram por mim; meu tio Pedro e meu primo Eduardo, pessoas com quem sempre pude
contar e sem as quais não teria realizado etapas importantes, como, por exemplo, participar
de congressos fora do Estado; e meus irmãos, Felipe e André Luiz, que moram longe e só
vejo a cada dez anos (hahahaha), mas que não saem do meu coração (vocês são meus
amores, como costumo dizer).
Aos 19 anos, ingressei na universidade (na época, ainda era Federal da
Paraíba). E, na graduação, não tive professores, mas anjos da guarda, a guiar meus passos
nos caminhos que desconhecia: a pesquisa, a docência... Poderia citar vários, mas o leitor,
que já deve estar impaciente, não ficaria muito satisfeito. Vou falar de alguns, que podem
muito bem representar os demais.
Entre esses anjos, não poderia deixar de mencionar o prof. Luiz Francisco Dias
– amigo, meu tutor no PET-Letras e depois orientador no PIBIC; alguém que confiou em
mim e de quem jamais esquecerei. Aliás, foi ele quem primeiro me apresentou aos estudos
discursivos, cujos pressupostos me guiam até hoje.
Outra pessoa importante foi a profa. Maria Auxiliadora, a quem admiro desde
que conheci, no primeiro período da graduação. Obrigada pela confiança (acho que posso
dizer carinho mesmo) que sempre me dedicou. Esse momento que vivo hoje se iniciou há
muito tempo, quando fui sua aluna e me inspirei no seu profissionalismo. Gostaria de
agradecer pela generosidade em compartilhar comigo suas idéias, que resultaram no meu
projeto de seleção do mestrado. Hoje ele está um pouco diferente (como era de se esperar),
mas sua orientação, quando a procurei sem saber nem por onde começar, foi essencial!
Não poderia deixar de citar também o prof. Marcos Agra, que foi o primeiro
professor a acreditar em mim, quando eu ainda cursava a graduação; esse apoio eu levei
sempre comigo daí por diante.
Calma, Helder! Não me esqueci de você, não! Embora só tenha sido sua aluna
no final do curso de Letras, suas lições foram valiosas e sua presença foi marcante em
vários momentos da minha vida: na decisão de me preparar para o mestrado, no apoio
durante a seleção para o cargo de professora substituta na UFCG, e, claro, na cerimônia do
meu casamento! Obrigada por tudo.
Ainda durante a graduação, recebi um outro presente da vida. Estou até
começando a achar que sou realmente uma sortuda, pois, como se não bastasse, ganhei
amigas na universidade! Contrariando todas as previsões, encontrei amizades verdadeiras
nessa época, que permanecem até hoje comigo, para o que der e vier: minhas amigas (ou
melhor, A.M.I.G.A.S.) Márcia Tavares, Karine Viana, Noelma Santos e Magna Lúcia. Já
“apelidaram” nosso grupo de várias maneiras diferentes, mas não importa o nome e sim o
carinho e a confiança que nos une, fazendo-nos estar juntas há 06 anos.
Obrigada Márcia, pelo bom-humor com que leva a vida, sem, é claro, deixar de
ser dura nas constatações, quando necessário (hahahaha)! Admiro a sua
incrível
capacidade de observação do cárater humano, e você, nesse sentido, não perde nem para
Machado de Assis!
Obrigada Ka, por me lembrar que dançar é bom, mas trabalhar (e muito) às
vezes também é preciso. Você é uma daquelas poucas pessoas que, assim como a argentina
Mafalda, está sempre disposta a “empurrar esse mundo pra frente”.
Obrigada Noelma, por perdoar minha distância e meus maus-humores
costumeiros, com essa meiguice (insuportável! hahahaha) que só você tem.
Obrigada Mag, por aceitar nossas diferenças e me mostrar que é possível
conciliar sempre, e que às vezes os problemas nem existem mesmo – nós é que os
inventamos!
E já que estou falando de amizade, vou aproveitar para agradecer a duas
pessoas especiais, que entraram na minha vida numa situação inusitada, mas não por acaso
(aliás, sobre esse “encontro”, só posso dizer uma coisa: maktub!). Estou me referindo a
Josélia e Roberta Soares,do Núcleo de Dança Passo a Passo, com quem divido sonhos e
realizações também. Obrigada por me fazerem, a cada dia, enlouquecer aquele pouquinho
necessário para não VIVER a vida, mas DANÇÁ-LA. Agradeço ainda aos meus amigos
Sílvia, Vincy e Daniel, e aos meus alunos da Passo a Passo, cujo carinho recarrega minhas
energias a cada nova aula.
Bem, quando terminei minha graduação, havia chegado a hora de enfrentar o
temido mercado de trabalho – e os obstáculos costumeiros: a falta de prática, o excesso de
teorias, o desejo de uni-las... Mas eis que me deparo não com uma empresa, mas uma
família, que não me contratou, me acolheu: a família Lourdinas. Confiando no trabalho de
alguém que ainda estava a dois meses da formatura, essa escola me abriu as portas e me
deu o que muitos buscam: uma oportunidade. Obrigada a todos os membros dessa família,
em especial: Ir. Terezinha, Vicente Albuquerque, Madalena Nunes e Cloveni Brito.
Depois de pouco mais de um ano nas Lourdinas, adquirindo experiência, já era
o momento de enfrentar mais uma prova de fogo: a seleção do mestrado da UFPB. A
situação era nova em vários sentidos, principalmente pelo fato de ser em outra cidade e de
não conhecer ninguém.
Mas, após ingressar neste curso, encontrei outras pessoas maravilhosas, que me
ensinaram muito (como profissionais e como seres humanos). A primeiríssima delas,
evidentemente, é a minha orientadora: Maria Ester Vieira de Sousa. Acredito que, como
muitos, escolhi para que projeto tentar a seleção contando apenas com as informações do
programa divulgado pela coordenação da pós. Que sorte de novo! Ela não apenas é
competente, mas um ser humano fantástico! Se alguma vez meus passos curtos e inseguros
me faziam ficar para trás, ela parava e me esperava, para seguirmos juntas. Não sei como
agradecer a você, Ester, o “não-estresse” que foi ser sua orientanda. Você é admirável e
sua tranqüilidade foi fundamental para tornar essa etapa menos árdua.
Além de Ester, tenho que agradecer a mais três profissionais de “primeira
grandeza”, que muito contribuíram para o resultado final deste trabalho (que, se não ficou a
contento, a culpa é toda minha): profa. Socorro Barboza, por me mostrar que sempre se
pode melhorar; profa. Graça Carvalho, pelas contribuições valiosas para a minha formação
e para esta pesquisa; e profa. Maria Augusta Reinaldo, que também fez parte da minha
história na graduação e se destaca pela sua sensatez e sabedoria.
Por fim, gostaria de agradecer aos meus alunos (hoje ex-alunos), que
autorizaram o uso dos seus textos escritos e permitiram a gravação das aulas de discussão
do tema; e ao CNPq, que me concedeu uma bolsa de estudos para garantir a minha
dedicação exclusiva a esta pesquisa.
Velha História
Depois de atravessar muitos caminhos
Um homem chegou a uma estrada clara e extensa
Cheia de calma e luz.
O homem caminhou pela estrada afora
Ouvindo a voz dos pássaros e recebendo a luz forte do sol
Com o peito cheio de cantos e a boca farta de risos.
O homem caminhou dias e dias pela estrada longa
Que se perdia na planície uniforme.
Caminhou dias e dias...
Os últimos pássaros voaram
Só o sol ficava
O sol forte que lhe queimava a fronte pálida.
Depois de muito tempo ele se lembrou de procurar uma fonte
Mas o sol tinha secado todas as fontes.
Ele perscrutou o horizonte
E viu que a estrada ia além, muito além de todas as coisas.
Ele perscrutou o céu
E não viu nenhuma nuvem.
E o homem se lembrou dos outros caminhos.
Eram difíceis, mas a água cantava em todas as fontes
Eram íngremes, mas as flores embalsamavam o ar puro
Os pés sangravam na pedra, mas a árvore amiga velava o sono.
Lá havia tempestade e havia bonança
Havia sombra e havia luz.
O homem olhou por um momento a estrada clara e deserta
Olhou longamente para dentro de si
E voltou.
(Vinícius de Moraes)
LEGENDAS
(Utilizadas na transcrição dos dados)
● PROF (professor)
● Axx (fala simultânea de vários alunos)
● L1, l2 ... (numeração correspondente às linhas do recorte para facilitar a referência,
durante a análise)
● Palavra ou sílaba escrita em maiúscula (ênfase na entonação)
● BERN, FABI, MAÍS ... (abreviação dos nomes dos alunos, a fim de preservar sua
identidade)
● ANID (aluno não identificado)
● (+) (pausa breve)
● (++) (pausa mais longa)
● :: (alongamento de vogal)
● (...) (trecho não transcrito)
● (( )) (comentários do analista)
● [ (fala sobreposta)
● / (parada abrupta e/ou hesitação)
RESUMO
O presente trabalho surgiu das minhas inquietações, como professora de
Produção Textual no Ensino Médio, acerca da interferência das práticas pedagógicas do
professor para a formação de indivíduos aptos a assumir o seu papel na interação através
da escrita. Para entender essa interferência, era preciso observar como as imagens e os
papéis sociais atribuídos a professores e alunos interferiam na produção textual realizada
em situação escolar. Assim, procuramos analisar textos produzidos por alunos-autores de
uma escola da rede particular de ensino de Campina Grande-PB, em duas diferentes
situações de produção: uma primeira, realizada antes de haver qualquer discussão sobre o
tema escolhido para os textos (o contrato civil entre homossexuais); e uma segunda,
antecedida por um debate oral em sala de aula. Nosso objetivo foi o de verificar como
essas duas diferentes situações interferiram na construção do dizer dos alunos-autores,
observando, para isso, com quais discursos eles dialogam e como eles delimitam o espaço
para construir o seu discurso, a partir dos já-ditos que retomam. Essa análise foi
desenvolvida a partir de uma perspectiva discursiva sobre linguagem e sujeito, assentada,
principalmente, nas contribuições de Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Eni Orlandi e
Sírio Possenti. Trabalhamos com a hipótese de que, nos textos produzidos nas duas
situações de produção consideradas, teríamos, como estratégia de construção do dizer
desses alunos-autores, o recurso a um já-dito, um diálogo com outros discursos.
Palavras-chave: Condições de produção – Escrita – Discurso - Ensino
ABSTRACT
This paper has emerged from my concerns, as a teacher of Textual Production
in High School, about the interference of our didactic practices to the formation of
individuals who can assume their role in the interaction through writing. To understand this
interference, it was necessary to observe how the image and the social roles attributed to
teachers and students interfered in the textual production made in the school. Thus, we
tried to analyze texts made by student-authors from a private school in Campina Grande –
PB, at two different production situations: first, one text made before any discussion on the
subject chosen (civil contract between homosexuals); and second, one text made after an
oral debate in class. Our objective was to verify how these two different situations would
interfere in the verbal construction of the student-authors, by observing with which
discourse they would dialogue and how they would delimitate the space to construct their
speech, from the already-said that they retake. This analysis was developed from a
discursive perspective about language and subject, settled, mainly, in the contributions by
Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Eni Orlandi and Sírio Possenti.
Key-words: production conditions – writing – discourse – teaching
11
SUMÁRIO
Legendas
Resumo
Abstract
Introdução ...................................................................................... 12
1. Descrição e metodologia da pesquisa........................................... 20
1.1. Descrição da pesquisa........................................................................ 20
1.1.1. A instituição de ensino ............................................................ 20
1.1.2. Os sujeitos da pesquisa ........................................................... 22
1.1.2.1. A professora-pesquisadora ......................................... 22
1.1.2.2. Os alunos-autores...................................................... 24
1.2. Metodologia da pesquisa .................................................................... 25
1.2.1. Instrumentos de coleta dos dados ............................................ 25
1.2.1.1. A primeira situação de produção ................................ 26
1.2.1.2. A segunda situação de produção ................................ 27
1.2.2. Procedimentos de análise ....................................................... 30
2. Concepções de língua, discurso e sujeito..................................... 32
3. A noção de autoria ...................................................................... 49
3.1. A função-autor................................................................................... 49
3.2. A construção da autoria: o aluno-autor............................................... 53
4. A produção textual orientada pela proposta do livro didático ...... 63
4.1. A proposta de redação: o enquadramento do dizer .............................. 63
4.2. A produção escrita e o diálogo com o já-dito ....................................... 69
4.2.1. Pontos de vista diferentes, estratégias parecidas: o dizer ancorado
no discurso do Direito ............................................................ 71
4.2.2. Pontos de vista iguais, estratégias também: o dizer ancorado no
discurso da Religião................................................................ 85
5. A produção textual orientada pelo livro didático e pela discussão
em sala de aula......................................................................... 100
5.1. A discussão oral para a produção escrita ......................................... 101
5.2. Estratégias do dizer: o retorno ao discurso do Direito ........................ 110
5.3. Estratégias do dizer: o retorno ao discurso da Religião....................... 128
Conclusão ..................................................................................... 146
Referências Bibliográficas ............................................................. 152
Anexos.......................................................................................... 156
Anexo
Anexo
Anexo
Anexo
Anexo
A – Unidade do Livro Didático
B – Primeira proposta de redação
C – Textos para debate oral
D – Segunda proposta de redação
E – Transcrição das aulas
12
Introdução
(Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 401)
Todas as nossas práticas sociais ajudam-nos a definir quem somos e como
devemos agir, dependendo das situações, para que sejamos aceitos na sociedade. Ignorar
que há regras a serem seguidas nessas situações de interação é colocar-se à margem da
vida social e correr o risco do ridículo ou da reprovação. Entre essas práticas sociais, sem
dúvida alguma, podemos incluir aquelas vividas em ambiente escolar, no qual aprendemos
o que é ser aluno e que funções nos cabem neste papel, especialmente no que diz respeito
ao outro com quem pretendemos interagir, seja o professor, um colega ou os diretores e
coordenadores (numa situação mais imediata de interação).
É interessante notar que, inconscientemente, essas regras (referentes, por
exemplo, ao modo de se vestir, de sentar, aos gestos, à hora de falar, de calar, de entrar ou
sair dos lugares, ao tom de voz) vão sendo apreendidas e passam a fazer parte do nosso
próprio modo de ser e agir. E com a linguagem não poderia ser diferente, pois escolhemos
as estratégias discursivas para construir o nosso dizer, entre outros aspectos, de acordo com
os objetivos a serem atingidos nas situações de interação das quais participamos e a
imagem que temos do nosso interlocutor, elementos estes que são construídos socialmente
e refletem valores históricos. Assim, não falamos com um diretor da mesma forma que
falaríamos com um colega de sala; ao menos não sem correr o risco de que nossa atitude
seja avaliada como uma rebeldia e recebamos por isso a punição que cabe aos rebeldes. Da
mesma maneira, não usamos os mesmos recursos argumentativos quando queremos
13
solicitar algo possivelmente considerado supérfluo e quando pretendemos reivindicar um
direito.
Em pesquisa anteriormente realizada (Inô, 2002), por exemplo, constatamos
que, em orações construídas com a utilização do mas, a informação que se seguia a este
operador argumentativo era sempre escolhida com base no valor argumentativo dessa
informação para o objetivo que o falante pretendia atingir (o não pagamento imediato de
uma dívida, por exemplo, orientava o falante a dizer/escrever: eu estou te devendo, mas a
minha mulher está doente, pois a segunda parte da oração era um forte argumento para
justificar a falta do pagamento esperado pelo credor).
Essa escolha, então, nos revela a importância da argumentação quanto às
decisões que o falante toma no momento de se utilizar da língua; e esse uso, por sua vez, é
orientado pela existência de um interlocutor (real ou ideal) e construído para agir sobre
esse outro através da linguagem (Bakhtin, 1995).
Em uma situação escolar de produção textual, esse outro sobre quem se
pretende agir é não apenas o leitor do texto, definido pela interação simulada na aula
através da atividade proposta, mas sobretudo o professor, cuja relação com o aluno é de
poder: na visão do aluno, é o professor quem aprova ou desaprova, quem “dá” a nota e,
com ela, define o lugar do avaliado dentro da hierarquia escolar. “Nesse contexto, a
educação é analisada como uma prática disciplinar de normalização e controle social”
(Larrosa, 1994: 52).
Essa afirmação se justifica porque, em situações de produção textual em sala de
aula, fatores como o que dizer, a quem dizer e como dizer, estão sempre delineados e
limitados pela instituição escola, cuja estrutura é disciplinar e cujo funcionamento
estabelece lugares de onde os sujeitos podem (ou não) falar (Foucault, 2004). Dessa
maneira, as condições de produção são ainda simuladas para o aluno, ou seja, o
14
interlocutor dele continua sendo o professor, mesmo que se imagine um outro leitor, pois o
texto provavelmente não sairá dos limites da escola e servirá para seu fim avaliativo. Além
disso, há, para usar um termo foucaultiano, enquadramentos dos quais não se pode (ou não
se deve) fugir. Especificamente no discurso de sala de aula, conforme revelam pesquisas
(dentre as quais Sousa, 2002), é o professor quem distribui as falas e encaminha a aula,
bem como quem define a tarefa e avalia o resultado; é o aluno quem precisa esperar sua
vez de falar (pelo qual também é avaliado) e se submete à tarefa para confirmar que
domina um saber, não podendo, em geral, sugerir qual deva ser essa atividade nem o modo
de sua execução.
Assim, na execução desses papéis, o texto do aluno (seja oral ou escrito) passa a
ser um dos campos de visibilidade que permitem ao professor definir o lugar social desse
aluno. Mas através do texto o aluno também constrói a imagem do professor, pois se ele é
visto pelo que diz, é ao procurar atingir as expectativas do avaliador que ele revela a
imagem que tem do professor. Trata-se, na verdade, de uma intrincada rede de fatores que
contribuem para a construção dessas imagens (Pêcheux, 1995), mediadas por coerções
sociais e pelo modo como o sujeito vê a si mesmo e vê o outro, de maneira que seu dizer é
constituído por essas imagens.
Por outro lado, o texto não existe no vácuo e, mesmo sendo o resultado de uma
situação pedagógica e tendo fins pedagógicos, ele mantém relação com outros textos e
outros dizeres que circulam na sociedade. A coerência desse dizer é avaliada também em
função da sua relação com esses outros saberes culturais e históricos do grupo social a que
pertencem autor e leitor. Por essa razão, ao escrever um texto, o aluno, mesmo sem sabêlo, não ignora a relação de encadeamento do seu dizer com inúmeros já-ditos, em relação
aos quais o seu discurso é uma continuidade, uma resposta (Bakhtin, 1995).
15
Assim, a discussão de textos diversos nas aulas de leitura, com o objetivo de
preparar/informar os alunos sobre o tema ou resgatar na memória um conhecimento é
extremamente importante para o desenvolvimento de estratégias para que estes possam se
colocar frente ao já-dito. Por outro lado, observar essa relação entre o que se lê, o que se
discute oralmente na aula e o que se escreve é essencial para compreender as estratégias
utilizadas pelos alunos-autores para constituírem-se e constituírem o seu dizer.
Por essa razão é que, apesar de ser um fenômeno já bastante estudado, se faz
importante ainda verificar como o aluno da 3a. série do ensino médio lida com essas
tensões entre a simulação de uma situação supostamente real de interação (escrever para
um editor de jornal, para os leitores desse jornal, para um deputado, etc.), na qual ele teria
que se posicionar e convencer o interlocutor, e o papel que de fato lhe cabe no processo de
ensino-aprendizagem.
Evidentemente, ver o texto como o lugar de materialização de discursos e seu
processo de produção como social e dinâmico exige uma mudança no modo de conceber a
escrita. Infelizmente, é comum a prática escolar de ensino-aprendizagem do texto escrito
baseada numa concepção de escrita como uma modalidade homogênea. Como
conseqüência dessa concepção, as atividades realizadas no ensino da produção de textos
escritos costumam tratá-los indiferenciadamente, em oposição à diversidade de textos e de
situações de interação facilmente observados nas práticas sociais de uso da linguagem
(Pasquier e Dolz, 1996).
O resultado dessa prática é a formação de alunos que, recém-egressos dos
cursos de Ensino Médio, chegam à universidade ainda com dificuldade na produção de
textos argumentativos escritos1 (justamente os mais enfatizados no trabalho com produção
1
Em experiência ocorrida em 2003, ministrando a disciplina de Língua Portuguesa para cursos das áreas de
Ciências Humanas e Tecnologia na UFCG (campus I), aplicamos um questionário de sondagem, a fim de
conhecer melhor o perfil do aluno a que atendemos e quais suas necessidades e expectativas quanto à
disciplina. Quando perguntados sobre qual o gênero textual que eles têm mais dificuldade em produzir, a
16
textual na escola), tendo em vista que, em geral, não conseguem perceber as relações de
sentido entre o seu dizer e outros dizeres da sociedade, entre o seu discurso e outros jáditos em relação aos quais ele não é o todo, mas apenas uma parte de uma grande cadeia
discursiva.
Por outro lado, embora o aluno já domine a argumentação informal através da
oralidade, o texto oral e sua estreita relação com o escrito costumam sequer ser
considerados como objeto de estudo em atividades escolares, interessando apenas o
domínio da produção escrita, como se esta não mantivesse nenhuma relação com aquela.
No entanto, se concebermos a linguagem como processo dinâmico de interlocução, de
interação entre sujeitos sociais e históricos, os quais aprendem em sociedade as regras
através das quais podem interagir com o outro, bem como os lugares sociais de onde
podem falar, veremos que não é possível entender: 1o.) a escrita como homogênea, pois,
tendo em vista que o sujeito não é uno, mas atravessado por outros discursos, o seu dizer
também não será uno; 2o.) a oralidade como caótica ou óbvia demais para merecer estudos
sérios sobre seu funcionamento; e 3o.) essas duas modalidades como opostas e/ou
plenamente separadas uma da outra.
Na verdade, o que se tem percebido é que oralidade e escrita passam a ser
compreendidas cada vez mais a partir da noção de continuum2. Por assumir uma
perspectiva discursiva e não entender a língua apenas como sistema estruturado, Gallo
(1995), por exemplo, vai além da noção de modalidades ao afirmar que não há oralidade e
escrita, mas há um discurso da oralidade e um discurso da escrita, os quais muitas vezes
se tocam e se constituem mutuamente, de maneira que há textos escritos que se inscrevem
resposta mais freqüente foi o texto dissertativo, exatamente o mais praticado na escola, o que nos leva a
questionar se essa dificuldade não é o resultado de uma metodologia de ensino pouco significativa para o
aluno. Além disso, eles não responderam qual gênero, mas qual o tipo de texto, uma vez que muitos são os
gêneros que podem ser entendidos como dissertativo-argumentativos; essa resposta dos alunos revela
também a ausência de conhecimento sobre o que seria um gênero textual.
2
Ver a esse respeito, Marcuschi (2001).
17
no discurso da oralidade e vice-versa. O que vai determinar se um texto se aproxima mais
de um ou de outro discurso não é o seu meio de transmissão, ou apenas a sua forma de
organização, mas o seu funcionamento discursivo em uma dada situação de produção. No
caso desta pesquisa, serão duas as situações de produção consideradas: uma primeira, em
que a produção escrita é realizada sem que haja a discussão oral do tema; e a segunda, na
qual a discussão oral precede a produção escrita.
Assim, a questão-problema central que norteará o desenvolvimento da pesquisa
será a seguinte:
Como as diferentes condições de produção aqui consideradas interferem na
constituição do discurso escrito dos alunos-autores?
A partir dessa questão central, surgem outras que também serão abordadas e, se
não respondidas completamente durante a pesquisa, ao menos apontarão caminhos para
futuras respostas em outros trabalhos. São elas: de que maneira o aluno retoma o dizer de
um outro/Outro em cada uma das situações de produção que lhes foram dadas? Como ele
marca o seu dizer e o do outro no seu texto? Como se estabelece esse diálogo (através da
refutação, da confirmação, da ressalva etc.) entre o dizer do aluno e o dizer do outro? De
que maneira se percebem os limites entre o que é mera repetição do já-dito, e o que é
retomada desse já-dito, mas instaurando o novo? Como o discurso construído em sala de
aula, tanto pelos outros alunos quanto pela professora, interfere no discurso do aluno?
Para tanto, analisamos produções textuais escritas por alunos do 3o. ano do
Ensino Médio da rede particular de ensino, elaboradas em dois momentos distintos: um
primeiro, no qual o tema contrato civil entre homossexuais não foi previamente discutido
em sala de aula, mas ainda assim a produção foi solicitada. E um segundo momento, no
qual o mesmo tema mencionado anteriormente foi discutido, através da leitura de textos
variados e do debate oral entre os alunos, no qual estes puderam se posicionar em relação
18
aos textos lidos e à opinião dos outros colegas. Além das produções escritas, contamos
com a gravação, em fita K-7, e a transcrição das aulas que antecederam o segundo
momento de elaboração dos textos.
É importante destacar que não se trata aqui de considerarmos os alunos como
tabulae rasae, que nada sabem sobre o assunto; ou de considerarmos a interação oral na
sala de aula, a partir da discussão do tema, como a marca primeira nessa tábua
supostamente ainda imaculada. Na verdade, pretendemos observar o funcionamento do
discurso dos alunos nesses dois momentos e verificar de que forma houve a retomada de
um discurso outro na construção do deles. Partimos, assim, da hipótese de que as
condições de produção determinam o modo de realização dos discursos e que, nos dois
referidos momentos da nossa coleta de dados, a retomada de outros discursos se dá através
de estratégias diferentes; resta-nos verificar suas marcas e formas de constituição.
Baseando-nos no pressuposto de que ainda estamos longe de uma abordagem
pedagógica que considere a produção textual como um processo conduzido pelo trabalho
do sujeito e por coerções sociais e históricas, esta pesquisa pretende:
a) Descrever e comparar a construção do discurso escrito dos alunos em dois
momentos distintos: primeiro, numa produção escrita realizada sem
qualquer discussão prévia do tema; segundo, numa produção escrita sobre o
mesmo tema, mas desta vez com discussão oral em sala de aula.
b) Identificar as formas de diálogo e/ou de apropriação do dizer entre o
discurso escrito dos alunos e outros discursos que circulam em diferentes
instâncias da sociedade, bem como esse discurso do aluno e as idéias
expostas na discussão oral pelos outros alunos e pela professora;
Este trabalho encontra-se dividido em três partes: uma primeira, na qual são
descritos a pesquisa e os procedimentos metodológicos de coleta e análise dos dados
19
(capítulo 1); uma segunda parte, corresponde à discussão de conceitos como língua,
sujeito, discurso e autoria, com o objetivo de esclarecer o ponto de vista teórico aqui
assumido; e uma terceira, referente aos três últimos capítulos 4 e 5, em que analisamos e
discutimos os dados.
20
1. Descrição e metodologia da pesquisa
(Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 333)
Considerando-se que é o dado que define a abordagem metodológica de uma
pesquisa, não é tarefa fácil para o pesquisador definir um caminho de análise, pois ora o
dado aparece como complexo e quase impossível de apreender, ora ele aparece reduzido
em seu potencial, devido ao recorte insuficiente para sua compreensão3.
Se as bases teóricas estão assentadas sobre as teorias do discurso, essa
dificuldade é relativamente maior, tendo em vista a dificuldade de apreensão do objeto e de
escolha de um caminho coerente com o ponto de vista teórico assumido. Nesta pesquisa,
optamos por realizar uma abordagem qualitativa dos dados, a partir de uma perspectiva
discursiva de abordagem da língua.
Apresentamos a seguir uma descrição da pesquisa e da metodologia utilizada
na coleta dos dados e na análise destes.
1.1. Descrição da pesquisa
1.1.1. A instituição de ensino
Os dados a serem analisados nesta pesquisa foram coletados em uma escola da
rede particular de ensino, na cidade de Campina Grande-PB. A escolha por este
estabelecimento de ensino deveu-se ao fato de a professora-pesquisadora lecionar na
3
Ver, sobre essa questão do dado em AD, o texto “O dado dado e o dado dado”, em Possenti (2002: 27-36)
21
escola, podendo assim gravar suas aulas e proceder à coleta dos textos escritos sem
maiores empecilhos.
A instituição dispõe de turmas que vão desde os primeiros níveis da Educação
Infantil até o Ensino Médio; além disso, no turno da noite, há cursos profissionalizantes na
área de informática. A escola tem uma orientação religiosa, mais especificamente a
católica, e prima pela aprendizagem significativa, ou seja, o objetivo maior não é a
preparação para o vestibular, mas para a vida. Trata-se de uma das escolas mais
tradicionais do município, à qual recorrem as famílias de classe média e média alta da
cidade.
As disciplinas do Ensino Médio encontram-se divididas por áreas de
conhecimento, conforme orientação do Ministério da Educação e Cultura (MEC). As aulas
gravadas e os textos escritos foram coletados na disciplina “Interpretação e Produção
Textual”, referente à área de Códigos e Linguagens, da qual fazem parte duas outras:
Literatura e Língua Portuguesa.
A área de Códigos e Linguagens tem reuniões periódicas (em geral, uma vez
por mês), nas quais são discutidas em conjunto as estratégias de ação de cada disciplina em
particular e de integração entre elas. Além destas, há reuniões mensais envolvendo todas as
áreas, com o objetivo de promover a integração entre elas e permitir a elaboração de planos
de trabalho interdisciplinar.
Embora escolas particulares sejam conhecidas pelo forte controle exercido
sobre o trabalho do professor por parte dos coordenadores, este estabelecimento permite
uma relativa liberdade ao profissional quanto à escolha dos temas a serem discutidos em
sala e das estratégias adotadas no processo de ensino. No entanto, uma preocupação
constante de coordenadores e diretores diz respeito à disciplina dos alunos, de maneira que
este aspecto é sempre alvo de muitas recomendações aos docentes, para que estes “vigiem”
22
o comportamento do aluno. Essa postura reflete o papel que algumas famílias atribuem à
escola: o de responsável por toda a educação, que muitas vezes falta em casa, do aluno.
Para garantir a manutenção da ordem e cumprir com esse papel, a instituição
dispõe de um mecanismo de avaliação, denominada de avaliação qualitativa (em oposição
à quantitativa, que corresponde à tradicional verificação do processo de ensinoaprendizagem através de provas). A avaliação qualitativa corresponde a uma avaliação do
comportamento do aluno durante o bimestre, a partir de quatro critérios: assiduidade e
pontualidade; postura e respeito com professores e colegas; responsabilidade e
envolvimento no cumprimento das atividades; e, por fim, participação em sala de aula.
Cada professor avalia o aluno segundo esses critérios e, a partir da média da nota de todos
os professores, chega-se a uma nota qualitativa final, que tanto poderá melhorar a média do
aluno no bimestre, quanto poderá diminui-la, a despeito dos resultados das provas.
Trata-se, portanto, de uma tentativa de controlar os comportamentos dentro da
instituição, fazendo com que o aluno se torne assíduo, pontual, respeitoso com colegas e
professores e responsável com as atividades.
Em contrapartida, professores, coordenadores e direção também são avaliados
pelos alunos, mas apenas ao término de cada semestre.
1.1.2. Os sujeitos da pesquisa
1.1.2.1. A professora-pesquisadora
Formada em Letras pela UFCG no ano de 2002, a professora-pesquisadora
trabalhava na instituição de ensino anteriormente descrita desde outubro deste mesmo ano
de sua formatura. À época da coleta de dados, havia já cerca de 2 anos que fazia parte do
corpo docente da escola, na qual teve a oportunidade de lecionar no Ensino Médio e
Fundamental, sempre na disciplina “Interpretação e Produção Textual”.
23
Paralelamente ao seu trabalho na escola, prestou concurso público, em 2003,
para professora substituta da UFCG, no qual foi aprovada, lecionando nesta universidade
entre maio de 2003 e maio de 2004, mês em que foi aprovada na seleção de mestrado da
UFPB. Por essa razão, era bastante admirada e respeitada pelos alunos da turma
pesquisada, que se surpreendiam que uma professora jovem (24 anos, na época) pudesse já
ter um cargo na UFCG, ainda que temporário, e, além disso, ter sido aprovada para uma
pós-graduação. Assim, o relacionamento entre professores e alunos era bastante positivo, o
que sem dúvida favorecia o processo de ensino-aprendizagem.
Sua prática em sala de aula estava pautada na noção de escrita como um
processo discursivo de elaboração e reelaboração do texto. Por essa razão, os momentos de
produção textual eram precedidos pela discussão do tema e do funcionamento do gênero a
ser elaborado, seguida pela escrita dos textos e pela sua reescritura, a partir das
observações anotadas pela professora sobre o texto de cada aluno, as quais comentavam os
aspectos a serem melhorados, tais como: coesão, coerência, qualidade dos argumentos
apresentados, adequação da linguagem à situação de interação proposta, entre outros.
Em geral, esse processo era realizado em três aulas, uma para cada etapa,
podendo chegar a quatro aulas, quando a professora, antes da reescritura individual,
expunha e comentava alguns dos textos produzidos, a fim de discutir com a turma os
principais aspectos a serem mantidos ou evitados em produções futuras.
Infelizmente, nesta pesquisa, não foi possível considerar esse processo até a
última etapa, pois a coleta de dados foi realizada no 4o. bimestre, muito próximo dos
vestibulares, quando as aulas já estavam comprometidas com as provas de final de ano.
Além disso, não era o objetivo da pesquisa analisar esta etapa da produção textual, há
outros trabalhos, a exemplo de Garcez (1998), que se dedicou ao estudo do processo de
reescrita, orientado pelas contribuições de um outro: os colegas e/ou o professor.
24
1.1.2.2. Os alunos-autores
Lidamos ao todo com 85 alunos, referentes a duas turmas de 3o. série do Ensino
Médio, entre os quais escolhemos quatro para sujeitos dessa pesquisa. Esses alunos,
sujeitos da pesquisa, têm, em média, 17 anos; três deles estudam nesta escola desde os
primeiros anos da vida escolar, na Educação Infantil; o quarto aluno chegou à escola no 2o.
ano do Ensino Médio. Todos foram alunos da professora-pesquisadora nos anos de 2003,
na 2a. série do Ensino Médio – quando tiveram o primeiro contato, do ponto de vista da
aprendizagem formal, com o gênero carta de solicitação e/ou de reclamação –, e de 2004,
época da coleta de dados desta pesquisa.
Todos mantinham um bom relacionamento com a professora pesquisadora e se
mostravam participativos nas atividades propostas; no entanto, apenas um deles se destaca
com um alto grau de participação no discussão oral sobre o tema, o que não se constituirá
um problema na nossa análise, tendo em vista que consideraremos como constitutivo do
dizer do aluno não apenas o seu próprio dizer na discussão oral, mas também os discursos
dos outros alunos e da professora-pesquisadora.
Vale salientar que a escolha por essa fase escolar (3o. ano do Ensino Médio) se
deveu ao fato de que, segundo a matriz de competências e habilidades do ENEM, um aluno
prestes a concluir o ensino médio já deve ter desenvolvido a competência de “relacionar
informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em
situações concretas, para construir argumentação consistente”, além das seguintes
habilidades:
1) ser capaz de articular idéias e ordenar o pensamento, para convencer os outros
de determinado argumento; 2) identificar pontos de vista diferentes, identificando
os pressupostos de cada interpretação; 3) produzir uma linha de argumentos com
base na coleta de informações; 4) defender seu ponto de vista de maneira
consistente e lógica e contra-argumentar possíveis contestações.” (INEP, 2004 –
página da internet).
25
Além disso, este aluno está prestes a ingressar em uma universidade, bem
próximo, portanto, daquele perfil com o qual nos deparamos em experiência docente na
universidade (perfil este mencionado na introdução): alunos universitários que não
conseguem escrever com segurança textos argumentativos, tão enfatizados no ensino de
produção textual nas escolas. Essa constatação contraria as expectativas do ENEM,
mencionadas acima, uma vez que demonstra a falta de habilidade dos alunos em relacionar
as informações às quais têm acesso, a fim de defender um ponto de vista.
1.2. Metodologia da pesquisa
1.2.1. Instrumentos de coleta dos dados
Os dados foram obtidos de duas maneiras: através da coleta dos textos escritos
pelos alunos em dois momentos de produção escrita (um primeiro, no qual é solicitada uma
produção textual sem que se realize uma discussão prévia do tema; e um segundo, com a
realização de uma discussão oral em sala); e através de gravação em fita cassete e
transcrição das aulas de discussão oral sobre o tema contrato civil entre homossexuais.
A escolha do tema contrato civil entre homossexuais ocorreu a partir de uma
necessidade sentida por nós no decorrer das aulas, pois os próprios alunos comentavam,
em conversas informais, os rumos desse assunto em países como os EUA. Assim, o tema
serviria ao propósito da nossa pesquisa sob três aspectos: tratava-se de um tema polêmico;
era um tema atual e bastante discutido na sociedade; havia o interesse natural dos alunos
sobre o assunto, o que, sem dúvida, ajudaria no desenvolvimento das aulas, incitando-lhes
a participar das discussões.
26
1.2.1.1. A primeira situação de produção
Na primeira produção, além do conhecimento que os alunos já traziam de suas
interações em outras situações (intra e extra-escolares), eles tiveram acesso a uma proposta
de redação, retirada do livro didático Português: linguagens, de Cereja e Magalhães
(2003), volume destinado à 3a. série do Ensino Médio. Essa proposta de redação (ver anexo
1), apresentava dois tipos de informações: o primeiro correspondia a uma coletânea de
textos, composta por um resumo do projeto de lei no. 1151, de 1995, da deputada Marta
Suplicy, o qual versava sobre a regulamentação do contrato civil entre homossexuais; e por
dois textos opinativos, um contrário e outro favorável ao “casamento homossexual”,
publicados na revista Isto É.
O segundo tipo de informação correspondia à comanda da proposta, que dava
as instruções para o aluno sobre como proceder ao escrever o texto, ou seja, que
posicionamentos eram permitidos, qual seria o objetivo do texto (a depender de qual era a
opinião do aluno sobre o tema) e qual gênero deveria ser escrito.
Essa proposta será melhor comentada na etapa de análise do textos, uma vez
que, se estamos diante de uma produção escrita em contexto escolar, sem dúvida o material
didático utilizado é um dado relevante para compreendermos a construção dos discursos
dos alunos.
Desse primeiro momento de produção, resultaram 80 textos e do segundo mais
80, uma vez que a escola mantinha duas turmas de 3o. ano. Destes textos, apenas oito
(quatro de cada momento, tendo sido escritos pelos mesmos alunos-autores, pertencentes a
uma mesma turma) foram selecionados para análise. O recorte foi estabelecido com o
objetivo de aprofundar a análise do discurso escrito desses alunos-autores, já que serão
observados os textos de um mesmo aluno-autor, produzidos nesta primeira situação de
produção, já descrita, e na segunda, detalhada a seguir. Tendo em vista a semelhança entre
27
os textos produzidos quanto às estratégias discursivas utilizadas, a escolha daqueles que
comporiam o corpus foi aleatória.
O gênero textual a que pertencem esses oito textos é a carta, mais
especificamente o subgênero carta de solicitação, que já fazia parte da proposta de redação
tal qual foi formulada em Cereja e Magalhães (2003), livro didático utilizado; os referidos
autores definem as cartas de solicitação e/ou de reclamação a partir de critérios sóciodiscursivos e lingüísticos, procurando identificar o funcionamento desse gênero na
sociedade, bem como a sua estruturação e linguagem próprias, como veremos a seguir, no
item 4.1.
A aula que resultou na primeira produção consistiu apenas na explicação, por
parte da professora-pesquisadora, sobre a atividade a ser realizada, seguida do momento de
escrita dos textos, o qual foi monitorado por ela que, ao ser solicitada, passava pelas
carteiras tirando as possíveis dúvidas dos alunos. Optamos, então, por não gravar esta aula,
pois não haveria, no nosso modo de entender, um discurso consistente que pudesse ser
analisado como fator de influência no discurso escrito dos alunos, os quais não tiveram
acesso sequer à opinião da professora sobre o tema (ao ser perguntada por um dos alunos, a
professora se recusou a dizer naquele momento, afirmando que responderia na hora
oportuna – neste caso, ao final da aula de discussão oral).
Essa aula, que correspondeu à primeira etapa da nossa coleta de dados, foi
realizada em junho de 2004.
1.2.1.2. A segunda situação de produção
O segundo momento da coleta de dados correspondeu à gravação das aulas de
discussão oral do tema (num total de duas aulas, de 50min cada, numa mesma tarde), aulas
que precederam a segunda produção realizada pelos alunos.
28
Na gravação dessas duas aulas de discussão oral, o gravador ficou, a princípio,
na mesa de um dos alunos que sentava à frente, o que dificultou um pouco o momento da
transcrição, tendo em vista que são comuns os trechos de falas de alunos que sentam mais
ao fundo as quais não puderam ser totalmente compreendidas. No entanto, na turma cuja
discussão consideraremos aqui, a segunda aula sofreu uma alteração na disposição dos
indivíduos no espaço da sala de aula: todos sentaram-se no chão, em círculo, no fundo da
sala; nesta nova disposição, o gravador foi colocado no centro do círculo, gerando a
curiosidade de alguns alunos sobre a finalidade deste instrumento na aula, mas, logo que
esclarecidos pela professora-pesquisadora, a aula seguiu normalmente, de maneira que não
acreditamos terem eles ficado inibidos com a gravação.
Como suporte para discussão do tema, a professora-pesquisadora e os alunos
contavam com uma coletânea de textos opinativos, colhidos no fórum de discussão do site
Gramática on-line (ver anexo B). Neste fórum, os internautas expressavam suas idéias
sobre o contrato civil entre homossexuais, mas motivados especialmente pela polêmica
atitude do presidente dos EUA, George W. Bush, que pretendia acrescentar uma emenda
em leis estaduais, para proibir a união civil entre homossexuais, um direito já conquistado
por esse grupo em alguns estados americanos.
Assim, nos textos, há referências à decisão do presidente Bush, mas também
comentários sobre as opiniões dos participantes do fórum acerca deste fato específico nos
EUA e do homossexualismo de uma forma geral.
O que se vai perceber quando analisarmos a discussão oral é que esses textos,
num primeiro momento do debate, são mencionados pela professora-pesquisadora, mas
logo esquecidos; é na segunda aula que eles serão retomados, mas desta vez serão lidos em
voz alta, restando espaço apenas para comentários rápidos e superficiais. As implicações
dessa prática serão abordadas posteriormente, na análise.
29
A segunda etapa deste momento, a produção textual, ocorreu uma semana após
a discussão oral. Essa atividade contava, assim como na primeira produção escrita, com a
mesma proposta de redação descrita anteriormente (retirada de Cereja e Magalhães, 2003);
no entanto, agora com um acréscimo: dois textos jornalísticos recentes na época,
publicados no Jornal da Paraíba. Um dos textos noticiava uma decisão da justiça paraibana,
que reconhecia a “relação homoafetiva” (para usar palavras do próprio jornal) de duas
mulheres em João Pessoa. O outro texto trazia a posição da Igreja sobre o assunto, com
ênfase na opinião de D. Aldo Pagotto, arcebispo da Paraíba.
Da mesma maneira como aconteceu na primeira produção textual (que ocorreu
sem a discussão do tema), nesta também não houve comentários sobre os textos que
compõem a proposta de redação. Esta apenas foi entregue aos alunos, para que lessem e
escrevessem seus textos, os quais deveriam respeitar os mesmos critérios da produção
anterior, já que a comanda da proposta não foi modificada.
Essa segunda etapa de nossa coleta de dados, correspondente à discussão oral
do tema e à segunda produção escrita, que resultou nos outros quatro textos para análise,
foi realizada em novembro de 2004. O intervalo de cinco meses entre uma etapa e outra
deveu-se, entre outros fatores, ao afastamento temporário da professora-pesquisadora da
sala de aula, devido às suas atividades no programa de mestrado da UFPB.
A todo momento, então, lidaremos com dados relativos ao discurso de sala de
aula, cujas condições de produção, como afirma Sousa (2002: 98), “apontam não apenas
para suas regularidades – um sentido esperado, desejado, previsível – mas também para a
sua heterogeneidade, resultante da diversidade e da atividade dos sujeitos envolvidos no
processo discursivo”.
Considerando que o discurso escrito dos alunos concluintes do ensino médio
também faz parte do discurso de sala de aula, ele não pode, portanto, ser avaliado
30
isoladamente em relação às suas condições de produção (neste caso, uma condição de
produção escolar, construída de duas maneiras diferentes, como já descrito). Assim, de um
lado, teremos a proposta de redação e, de outro, as aulas gravadas e o discurso escrito dos
alunos, dados que serão considerados aqui como complementares.
1.2.2. Procedimentos de análise
O texto escrito será, então, o ponto de partida para a análise das estratégias
discursivas utilizadas pelos alunos na retomada de outros discursos, entre eles o discurso
da sala de aula, a fim de construírem o seu dizer. Na situação de produção textual aqui
analisada, estamos considerando que estes outros discursos provêm de diferentes instâncias
e fontes: a) da discussão oral sobre o tema; b) dos textos que compõem a coletânea
utilizada como base para a discussão oral; c) da proposta de redação, em toda sua
constituição, tanto dos textos da coletânea que compõe a proposta, quanto da comanda; d)
de outros discursos que circulam em diferentes instâncias da sociedade, os quais podem ser
retomados através de qualquer um dos itens a, b e c, acima citados, ou simplesmente serem
recuperados individualmente pelo aluno, no momento da produção textual. Esses discursos
podem estar filiados a diversas instâncias: moral, religiosa, jurídica, científica, entre outras.
Tendo em vista que o objetivo maior do nosso trabalho é confrontar o resultado
de dois momentos de produção textual, com condições de produção distintas, a análise foi
dividida em três etapas: uma primeira, na qual analisamos as cartas produzidas na primeira
situação de produção – sem a discussão oral do tema; uma segunda etapa, na qual
observamos os textos precedidos por uma discussão oral do tema em sala de aula, com o
objetivo de confrontar esses dois discursos – o oral e o escrito –, na tentativa de verificar
seus pontos de contato, especialmente as formas de constituição do escrito a partir do oral e
dos outros discursos retomados na discussão oral do tema; por fim, uma terceira etapa, na
31
qual serão confrontados os resultados dos dois momentos anteriores, com o intuito de
estabelecer a conexão entre o espaço da alteridade na constituição do dizer do aluno-autor
e o espaço do eu no discurso do outro. Nesse sentido, objetivamos responder à seguinte
pergunta: que diferenças e semelhanças, em termos de estratégias discursivas, são
percebidas nos textos elaborados a partir de cada uma das condições de produção
mencionadas?
Para tanto, cada texto foi analisado procurando-se observar: a) as marcas
explícitas ou implícitas da alteridade proveniente da situação de interação (imediata, com o
professor, ou mais ampla, com a destinatária da carta); e b) as marcas do diálogo com
outros discursos, neste caso, através de fontes variadas: o diálogo com o projeto da
deputada Marta Suplicy, com a proposta (a comanda e a coletânea que a compõe), com a
coletânea utilizada para a discussão oral e com a própria discussão do tema em sala de
aula.
32
2. Concepções de língua, discurso e sujeito
(Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 391)
Ao longo da história da Lingüística, cada corrente de estudos ou cada teórico
abordou essa questão sob um prisma diferente: ora excluindo a interferência do sujeito no
funcionamento da linguagem (e a interferência desta na constituição do sujeito), ora
colocando-o na origem de todo dizer. Por essa razão, antes de nos aprofundarmos no
estudo da abordagem discursiva sobre a noção de sujeito (a qual adotamos na pesquisa),
(re)traçaremos o percurso das outras abordagens acerca da relação sujeito X linguagem,
explicitando como ela foi e vem sendo abordada nos estudos lingüísticos, desde o
estruturalismo saussuriano até as mais recentes contribuições da Análise do Discurso, que
privilegia, na sua versão atual, a noção de sujeito ativo, ou seja, que trabalha sobre a
linguagem. Assim refeita a história, esperamos definir o nosso lugar.
Comecemos por Ferdinand de Saussure e sua proposta de estabelecer a
Lingüística no campo das ciências humanas. Na tentativa de oferecer esse caráter de
cientificidade aos estudos lingüísticos, Saussure (1998) fez algumas escolhas
epistemológicas que deixavam de fora tudo o que fosse diverso, múltiplo, criativo.
Baseando-se nos modelos das ciências exatas, o teórico suíço excluiu de sua abordagem da
linguagem a face individual, portanto múltipla e heteróclita: a parole.
A partir da célebre dicotomia langue/parole fica clara a perspectiva que esta
nova ciência deveria assumir: a busca pelo que é exato, homogêneo, uniforme, estável e
social. Assim é que Saussure centrará seus estudos não na linguagem como um todo, mas
33
na langue, que possuía, segundo ele, todos os atributos necessários para ser convertida em
objeto de estudo científico.
Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de
diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence
além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar
em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua
unidade. A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de
classificação. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da
linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a
nenhuma outra classificação (...). Com o separar a língua da fala, separa-se ao
mesmo tempo: 1. o que é social do que é individual; 2. o que é essência do que é
acessório e mais ou menos acidental. A língua não constitui, pois, uma função
do falante: é o produto que o indivíduo registra passivelmente; (...) A fala é, ao
contrário, um ato individual de vontade e inteligência, na qual convém
distinguir: 1. as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no
propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2. o mecanismo psicofísico que
lhe permite exteriorizar essas combinações. (Saussurre, 1998: 17; 22)
O que passa a importar é o produto final, entendido como um sistema de peças
que se encaixam para gerar um só e sempre mesmo resultado, ou seja, “a língua em si
mesma”, nas palavras do próprio Saussure. Não há espaço, portanto, para o saber criativo
do falante da língua, pois este saber é entendido como assistemático e a-científico: não
serve, então, para os propósitos ambiciosos da Lingüística. Assim, não cabia à Lingüística,
segundo esse teórico suíço, a descrição da língua em uso, mas da língua enquanto sistema.
Ao afastar, na sua teoria, o trabalho do sujeito sobre a língua (como se esta
existisse exteriormente ao indivíduo), Saussure consegue seu objetivo quanto ao estatuto
científico da Lingüística, mas deixa de lado uma série de questões observáveis no uso da
língua, que põem em xeque a idéia de sistema estável e autônomo.
Por não se ocupar do discurso, mas da língua enquanto sistema, Saussure não
discute o fato de que essas “combinações pelas quais o falante realiza o código da língua”
não são aleatórias ou fruto exclusivo da sua individualidade, mas são determinadas pelo
social. O falante dispõe de um horizonte (a situação de interação, por exemplo) a partir do
qual constrói parâmetros para efetuar suas escolhas (estas nem sempre conscientes).
34
Ampliando-se um pouco o campo de ação, percebe-se que influenciam o dizer
não só a situação imediata de interação, mas a cultura, a história, o que já se disse sobre o
assunto, etc. Mas, como já foi dito, essas não eram preocupações de Saussure, pois seu
propósito era outro, assim como o seu objeto de estudo e sua abordagem sobre esse objeto:
a língua e sua estrutura, não o discurso.
De acordo com Geraldi (1996), há fenômenos lingüísticos que só podem ser
explicados se for trazido para o interior da língua aquilo considerado por Saussure como
seu exterior: a fala. A dêixis, a polifonia, a argumentação, as modalizações, entre outros, só
podem ser compreendidos se a barreira imaginária entre língua e fala for estreitada. Na
argumentação, por exemplo, que nos interessa diretamente nessa pesquisa, será importante
para a construção do dizer não apenas o conteúdo, mas também o modo de organizar e
selecionar as informações/argumentos para convencer.
No entanto, é preciso lembrar que esta é apenas uma das leituras que se faz do
Cours, a partir de certos trechos do pensamento saussureano. Há outros em que fica claro
que Saussure considerava língua e fala como complementares, duas faces da mesma
moeda, que independem “da vontade dos depositários”:
(...) a língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus
efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça; historicamente, o
fato da fala vem sempre antes.
(...) é ouvindo os outros que aprendemos a língua materna (...). Existe, pois,
interdependência da língua e da fala; aquela é ao mesmo tempo instrumento e
produto desta (...). (Saussure, 1998, grifo nosso)
Note-se que há trechos aparentemente contraditórios nestas afirmações de
Saussure em relação às anteriores, o que se explica pelo fato de que ele não se ocupou em
formular claramente uma teoria sobre o sujeito na/da linguagem. Embora reconheça a
contribuição do outro para o aprendizado da língua, ele não considera que esse aprendizado
se dê através da interação como uma atividade constitutiva de ambos os sujeitos
envolvidos, mas como transmissão, o que se confirma na sua metáfora do dicionário,
35
segunda a qual a langue é “uma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou
menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os
indivíduos” (p. 27).
Então, nesta perspectiva, esse processo de ouvir o outro para aprender a língua
materna não seria constitutivo nem do sujeito (simples depositário de formas que já
nascem com ele), nem da língua (pois esta não se modifica, mas é transmitida como um
bloco pronto e sempre igual a si).
Além disso, essa aparente contradição nos revela o fato de que esse teórico
ignorou em sua abordagem uma questão constitutiva da linguagem, que só será abordada
por outros estudiosos anos mais tarde: a tensão entre o interno e o externo da língua, de um
lado, e de outro a relativa autonomia da língua e o espaço de ação do sujeito sobre ela;
compreender essa tensão depende do modo como se concebem esses dois elementos. Sem
dúvida, a concepção estruturalista de língua não permite essa discussão, pois para essa
corrente a langue é autônoma e independe de coerções externas, pois estas não influenciam
o sistema.
Essas não são, portanto, questões discutidas por Saussure4 (por razões
históricas e metodológicas evidentes). Suas dicotomias reforçaram durante muito tempo a
leitura privilegiada de langue/parole como opostos assentados em noções como
homogeneidade/heterogeneidade,estabilidade/instabilidade, sistematicidade/assistematicidade, entre outras.
Um dos críticos a essa perspectiva é Bakhtin (1995), para quem o objetivismo
abstrato, que tem seu representante maior em Saussure, se equivoca ao considerar a língua
um sistema de formas independentes, exteriores ao sujeito e ao defender uma noção de fala
4
Embora ele tenha dedicado um capítulo do Cours à definição dos elementos internos e externos da língua, este trecho da
obra se limita a menos de quatro páginas, destinadas muito mais a reforçar a instituição de uma Lingüística interna, que
considere apenas as regras imanentes ao sistema, do que ao estudo das relações entre a língua e seus fatores externos (a
história política da civilização).
36
como ato estritamente individual. Mas ainda neste capítulo voltaremos às idéias
bakhtinianas, a fim de discuti-las mais detidamente.
Na outra face dessa moeda, encontra-se Emile Benveniste, considerado por
muitos como o responsável por reintroduzir nas discussões lingüísticas a relação entre
homem/linguagem. Se para os estruturalistas seguidores de Saussure o ato individual, a
fala, deveria ser relevado, dado o caráter heteróclito dessa face da linguagem, para
Benveniste o centro dos estudos lingüísticos estaria na relação do eu com a linguagem, e
em como este eu a colocava em uso, ou seja, estaria na enunciação. Segundo ele,
A linguagem é, pois, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter
sempre as formas lingüísticas apropriadas à sua expressão; o discurso
provoca a emergência da subjetividade, pelo fato de consistir de instâncias
discretas. (Benveniste, 1988: 289, grifo nosso)
A linguagem é para Benveniste uma ferramenta que permite a expressão da
subjetividade, não tendo, inclusive, outra finalidade: ela “é tão profundamente marcada
pela expressão da subjetividade que nós nos perguntamos se, construída de outro modo,
poderá ainda funcionar e chamar-se linguagem” (idem: 287).
Essas afirmações levam-nos a concluir que, para ele, a subjetividade precede a
língua e o discurso, pré-existe a estes. Mas como imaginar uma subjetividade sem que esta
seja construída/mediada pela linguagem? É impensável um homem livre das coerções
sociais, já que estas são reconhecidas pelo homem através da linguagem.
Ao estudar os pronomes pessoais, Benveniste afirma serem eles categorias da
língua elementares, independentes de toda determinação cultural, formas vazias das quais
o sujeito se serviria e preencheria na enunciação, como se houvesse uma língua em si
mesma, de um lado, e o discurso, de outro, que seria o seu colocar em uso pelo sujeito,
segundo uma individualidade também em si mesma, em outras palavras, afastada, em certa
medida, das influências do social.
37
Segundo este autor, a enunciação é um processo de realização individual, um
processo de apropriação: “o locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua
posição de locutor por meio de índices específicos, de um lado, e por meio de
procedimentos acessórios, de outro” (Benveniste: 1988, p. 84). Ao considerar a existência
de um aparelho formal da língua, Benveniste reconhece que não se deve abandonar de todo
a visão estruturalista, uma vez que a língua é sim composta também por formas.
Contudo, imaginar a enunciação desta maneira equivale a supor um sujeito
pronto, completo e acabado, e uma língua também pronta para servir aos propósitos (à
intenção, para usar um termo da pragmática) do locutor. Este não atuaria sobre a língua,
mas através dela, ou seja, ela seria um mero instrumento para a comunicação entre locutor
e alocutário. Essa perspectiva “ignora” que a própria escolha de um recurso expressivo, em
detrimento de outro, já revela um trabalho sobre a língua.
Assim, para Benveniste, a língua é um aparelho formal autônomo, e o sujeito é
livre para dele se utilizar, ocupando o lugar de centro e origem de todo dizer, a despeito
das relações sociais que constituem tanto um quanto outro. Aliás, a única referência ao
social aparece quando o autor discute a relação entre o eu e o tu da enunciação, o que
poderia sugerir uma idéia de interação. No entanto, os papéis são fixos, e cabe sempre ao
eu, no próprio ato de se enunciar eu, definir o outro como tu, cuja função seria a de
recuperar a intenção presente no dizer do locutor, a fim de captar o sentido do texto. Em
outras palavras, trata-se de uma relação unilateral, e não constitutiva, pois o tu só se define
a partir do locutor que se diz eu.
Esse social, portanto, é estático: o eu é sempre o mesmo, pronto e acabado,
assim como o tu, já que este só se define em relação àquele, não havendo de fato um
processo de interação e constituição dos sujeitos através da linguagem. A língua seria
entendida como um conjunto de formas vazias a serem preenchidas no ato da enunciação;
38
por essa razão, Benveniste se dedica, entre outros recursos, ao estudo dos dêiticos e dos
pronomes pessoais, pois eles revelariam, segundo o autor, a subjetividade na linguagem e o
modo como se dá esse preenchimento em cada enunciação distinta.
Embora tenha dado contribuições importantes para o desenvolvimento da
Lingüística, Benveniste não escapou das críticas, e a mais forte delas diz respeito
exatamente ao lugar do sujeito na linguagem. Se este teórico avança por inserir nos estudos
lingüísticos a noção de contexto da enunciação, este ainda se limita ao contexto imediato,
não se considerando os lugares sociais ocupados pelos sujeitos, lugares que interferem no
dizer e no compreender, este não podendo ser entendido como um processo passivo.
Essa posição assumida por Benveniste em relação ao par sujeito/linguagem sem
dúvida traria complicações de ordem pedagógica a um já conturbado ensino de língua
materna: se o sujeito é o “todo-poderoso”, senhor da língua que usa, os alunos que
tivessem seus textos com desempenho abaixo do esperado seriam avaliados negativamente,
pois, se a língua está pronta para ser usada e ela é transparente, a culpa das eventuais falhas
é daquele que não sabe utilizá-la. A falha estaria no aluno. Por outro lado, se
compreendemos esse par de outra maneira, como inseridos num contexto mais amplo
(social, histórico), passaremos a observar que fatores levam às dificuldades apresentadas
pelos alunos, podendo ser estes fatores de ordem estritamente lingüística ou não.
Tem-se até aqui que os paradigmas anteriores ou excluíam o sujeito e a
sociedade (portanto, a história também) no estudo da língua, e privilegiavam uma
abordagem imanente; ou colocavam o sujeito como centro e origem de todo dizer. O
teórico russo Mikhail Bakhtin traz uma nova proposta, que modifica o modo de ver o papel
do sujeito no funcionamento da linguagem, pois ele vai abordar a língua como interação
verbal entre sujeitos, que não são o centro e a origem do dizer, mas cujas enunciações são
mediadas pela situação de produção do discurso (seja a mais imediata ou a mais ampla).
39
Essa concepção de língua como interação está relacionada ao conceito talvez
mais importante do pensamento bakhtiniano: a noção de dialogia. Segundo ele, o que
determina a palavra é que esta é sempre orientada para alguém e é “produto da interação do
locutor e do ouvinte”(Bakhtin, 1995:113).
Assim, o sujeito jamais pode ser o centro ou a origem do dizer, tendo em vista
que a língua não se situa nele, mas na relação deste com o seu interlocutor, mesmo que
esse interlocutor não seja conhecido ou que seja o próprio locutor, numa enunciação
monológica. Ou seja, o discurso é sempre orientado para uma resposta, ao mesmo tempo
em que também, ao nascer, já traz consigo a possibilidade dessa resposta.
Por outro lado, não haveria, segundo Bakhtin (1995), uma individualidade em si
mesma, pois, para ele, a própria consciência individual é um resultado social, já que não há
um sujeito livre de ideologia e que é a relação entre ideologia (fator social) e linguagem
que constitui a consciência individual: “o discurso não é, pois, a expressão da consciência,
mas a consciência é formada pelo conjunto dos discursos interiorizados pelo indivíduo ao
longo de sua vida” (Fiorin, 1997:35).
Essa idéia se justifica na própria noção de signo para Bakhtin, que diferencia
signo e sinal: segundo este teórico, só o signo pode ser interpretado, tendo em vista que é
ideológico por natureza e seu significado só poder ser apreendido na relação com a
ideologia que o enunciou; já o sinal é identificado, como algo estranho, pois ele não tem
qualquer relação com a ideologia.
Percebe-se, então, que, para este autor, a palavra não significa em si mesma,
mas significa dentro de um contexto e de um horizonte discursivo dado, de maneira que a
mesma palavra pode assumir significados até mesmo opostos, a depender de sua relação
com o contexto. Sendo social, “o signo torna-se a arena onde se desenvolve a luta de
classes”, pois uma mesma palavra pode servir tanto ao discurso da liberdade, quanto ao da
40
dominação, a depender do lugar social ocupado pelo sujeito que enuncia e, assim, a
formação ideológica que o originou.
Sendo a ideologia e o sujeito sociais (posto que não há consciência individual
sem ideologia, e que é nas situações sociais que o eu interage com o o/Outro), então o seu
dizer será delineado/orientado por essa situação social. É a situação que definirá o como
dizer, a depender de sobre o quê se fala e a quem se fala.
Se não é o sujeito a origem do dizer, e se a enunciação não é mera apropriação
de formas lingüísticas prontas e acabadas, então o movimento desse sujeito é na direção de
uma “corrente de comunicação verbal”, em que ele se insere, de maneira que o seu dizer é
mais um “elo na cadeia dos atos de fala” que o precederam e com os quais dialoga, é
“apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta” (Bakhtin, 1995:
112).
A partir dessas noções fica claro então que, segundo o pensamento bakhtiniano,
nenhuma enunciação pode ser analisada parcial ou isoladamente, mas deve ser analisada
pelo todo social, histórico e cultural que a compõe; ou seja, a enunciação é resultado de
uma construção duplamente social, no sentido de que é produto da interação entre dois
sujeitos (igualmente sociais) e de que se estabelece em relação a outras vozes já ditas. Por
outro lado, é histórica porque mantém relações com um dado momento histórico, com suas
especificidades ideológicas, que dialogam com os momentos históricos precedentes; e é
cultural porque é produzida segundo os valores de uma dada cultura, na qual o sujeito está
inserido e cujos valores lhe são intrínsecos, ainda que este não tenha consciência do fato.
Para o autor russo, a própria enunciação de um texto, o colocar a língua em uso,
já traz consigo a marca (ainda que escondida) de discursos outros, pois “nenhum palavra é
nossa, mas traz em si a perspectiva de outras vozes” (Barros, 2003:3).
41
Essa é uma noção importante para a nossa pesquisa, uma vez que pretendemos
observar nos textos dos alunos como essas “outras vozes” (vindas, num contexto mais
imediato, dos textos lidos e das discussões em sala de aula) serão constitutivas do discurso
escrito dos alunos e de que maneira se relacionam com os lugares sociais ocupados por
esses sujeitos no momento da produção escrita (tanto em relação ao interlocutor proposto
na atividade, quanto ao professor e até mesmo aos outros colegas).
Há que se considerar, por outro lado, que “a intertextualidade na obra de
Bakhtin é, antes de tudo, a intertextualidade ‘interna’ das vozes que falam e polemizam o
texto, nele reproduzindo o diálogo com outros textos” (Barros, op. cit.: 4). Assim, como
qualquer outro texto, aquele produzido na escola será um diálogo em muitos sentidos:
diálogo com o já-dito sobre o assunto, com outros textos do mesmo gênero, com as
discussões orais (através das quais se tem contato com outras idéias), com os dizeres
construídos dentro da sala (que definem as imagens atribuídas a professores e alunos e
aquelas que realmente estes assumem), e com o dizer socialmente aceito.
A partir destas considerações, pode-se perceber que a noção de sujeito
subentendida na perspectiva bakhtiniana não é de unidade, mas de multiplicidade em
vários aspectos, de maneira que o sujeito não é uno, é múltiplo; não é completo, é
constituído através dos processos de interação de que participa ao mesmo tempo em que
também constitui a própria linguagem, uma vez que esta não é vista como conjunto de
formas acabadas. O sujeito não é mais o senhor do conhecimento, a provocar resultados
sempre novos e nem sempre esperados; mas também não é um mero repetidor de formas
prontas, das quais ele se serve, como numa grande indústria de montagem, onde os
funcionários já recebem as peças de que precisam, seguidas das instruções de uso, com
indicações da ordem em que elas devem ser montadas a fim de gerar o mesmo resultado.
42
Outra corrente de estudos que também considerou o problema do sujeito na
linguagem foi a Análise do Discurso. Num primeiro momento dessa linha de pensamento,
pode-se dizer que houve, mais uma vez, a anulação da ação do sujeito, uma vez que este
era entendido como completamente assujeitado; ou seja, não só ele não poderia ser a
origem de qualquer dizer, como ele apenas servia de lugar de passagem para que os
discursos já existentes na sociedade se concretizassem, tomassem forma.
O enunciador é o suporte da ideologia, vale dizer, de discursos que constituem a
matéria-prima com que elabora seu discurso. Seu dizer é a reprodução
inconsciente do dizer de seu grupo social. Não é livre para dizer, mas coagido a
dizer o que seu grupo diz. (Fiorin, 1997: 42)
No entanto, Pêcheux (1997) já considerava que um enunciado, mesmo
textualmente repetido, pode ser novo, pois sua relação com as condições de sua enunciação
produzem um acontecimento, ou seja, produzem outros efeitos de sentido. Assim, não se
pode admitir que toda enunciação seja mera repetição (nem mesmo Benveniste sugeriria
isso), embora todo discurso tenha em sua constituição o já-dito, a repetição de outros
discursos, mas suas circunstâncias o fazem novo: “o novo não está no que é dito, mas no
acontecimento de sua volta” (Foucault, 2004:26).
Já não se fala mais apenas em língua, mas em discurso, entendido como o
colocar a língua em uso, mas agora considerando a junção entre o material lingüístico e as
condições de produção do discurso, sem o que o sentido não se construiria. Assim, o que
vai interessar não é mais apenas a relação do sujeito com a língua que usa, mas o modo
como essa relação se constitui na e a partir da sociedade na qual este sujeito se insere. O
objeto de estudo não é mais a língua em si, mas o discurso, que tem seu suporte no
lingüístico, nos textos. Estamos, portanto, entendendo discurso como
um tipo de sentido – um efeito de sentido, uma posição, uma ideologia – que se
materializa na língua, embora não mantenha uma relação biunívoca com
recursos da expressão da língua. (...) o discurso se constitui pelo trabalho com e
sobre os recursos de expressão, que produzem determinados efeitos de sentido
43
em correlação com posições e condições de produção específicas. (Possenti,
2002:18, grifos do autor)
Quando se fala em condições de produção específicas e em efeitos de sentido,
obrigatoriamente se fala também em exterioridade (constitutiva), que não aparece como
algo imposto de fora para dentro do texto, mas que pode ser percebido na “maneira como
os sentidos se trabalham no texto, em sua discursividade” (Orlandi, 1996: 29). Uma noção
que dialoga diretamente com a de exterioridade constitutiva é a de interdiscurso, entendido
por Orlandi (op. cit.: 39) como algo que
fala sempre antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a dominação
do complexo das formações ideológicas (...). Aí se explicita o processo de
constituição do discurso: a memória, o domínio do saber, os outros dizeres já
ditos ou possíveis que garantem a formulação (presentificação) do dizer, sua
sustentação. (...) Para que nossas palavras façam um sentido é preciso que (já)
signifiquem.
Considerando essa noção de discurso, o sujeito não é completamente livre, nem
totalmente assujeitado, mas trabalha sobre a linguagem, “numa relação regrada” dentro dos
limites que lhe são impostos pelas situações discursivas das quais participa. Ele não é
apenas um lugar vazio ocupado pelos discursos já enunciados e dos quais ele não pode
escapar, mas é, sim, um lugar a partir de onde discursos podem ser recriados.
Essa idéia de sujeito ativo nos leva a um texto publicitário de alguns anos atrás,
cujo anunciante, um Banco, se valia exatamente desse slogan: “seu Banco na era digital”.
No texto veiculado na televisão, tínhamos imagens de crianças brincando, acompanhadas
pela voz de um narrador-criança em suposta carta ao pai; nesta carta, a criança dizia que já
nascera na era digital, pois quando veio ao mundo já existiam o computador, o e-mail, a
internet ... Sendo assim, qual seria o banco ideal para alguém que já nasceu na era digital?
Essa propaganda revela uma idéia de homem que já nasce conectado às mais diferentes
inovações tecnológicas, o que lhe possibilita um saber “de berço”, de maneira que, ao
crescer, ele já estará familiarizado com todas essas novidades, diferentemente de alguém
44
que as recebeu de repente e teve de se adaptar a elas. Essa familiaridade lhe permite não só
usá-las de maneira inovadora, mas também recriá-las, a partir das necessidades impostas
pela evolução do tempo e das formas de viver.
O mesmo ocorre com o falante da língua. Se considerarmos a noção de corrente
verbal, defendida por Bakhtin, veremos que o sujeito é alguém que já nasce e entra
imediatamente nessa corrente, o que lhe permite um conhecimento especializado do
funcionamento da língua e da linguagem; é exatamente esse conhecimento (não
necessariamente aprendido na escola) que possibilita os chistes, as paródias, o uso
inovador de provérbios, as charges, entre outros textos que, valendo-se de um já dito,
renovam-no, transformando-o, através da relação estabelecida entre este e a nova situação
enunciativa, em um acontecimento de linguagem (cf. Pêcheux, 1997). Ou seja, o sujeito
passa a ser visto como alguém que trabalha sobre a linguagem.
Por outro lado, conforme já dito, essa ação não é completamente livre.
Evidentemente, esse trabalho sobre a linguagem não se dá de qualquer forma, a partir de
qualquer lugar social e de quaisquer regras; além disso, a depender do tipo de trabalho
realizado, não poderá ser construído por qualquer pessoa, pois, tendo em vista que somos
seres sociais, a tendência é que levemos conosco também nessa relação com a linguagem
as influências do nosso lugar social. Assim como defende Foucault (2004), ele não pode
dizer qualquer coisa, em qualquer lugar, a qualquer pessoa, de qualquer jeito. Mesmo o seu
trabalho empreendido sobre a linguagem é um resultado do lugar social ocupado pelo
sujeito e sua relação com as condições de produção do discurso.
Nas palavras de Possenti (2002), ao analisar um texto de Luiz Fernando
Veríssimo, fica claro que
não se pode voltar (é impossível voltar...) ao sujeito originário, pois fica
suficientemente claro que o texto resulta de uma montagem com materiais que
certamente não pertencem ao autor, mas que isso não significa postular a
ausência do sujeito, a morte do autor, exatamente porque o que o autor faz com
45
tais materiais não é óbvio ou corrente, mas outra coisa, que até poderia ser
caracterizada eventualmente como bastante original.” (p. 126)
Para confirmar seu ponto de vista, Possenti (2002) apresenta duas evidências
que serviriram, segundo ele, para comprovar a manifestação da subjetividade no uso da
linguagem, bem como a idéia de um sujeito não mais assujeitado (por um lado) ou origem
de todo dizer (por outro), mas de um sujeito ativo; seriam elas: a capacidade de distanciarse ou aproximar-se do seu discurso e do discurso do outro e a capacidade de reconhecer e
seguir regras referentes aos gêneros do discurso.
O sujeito agora passa a ser visto não como alguém que adquire sua língua, mas
que já a encontra fluindo. É a esse fluir que ele procura se adaptar, compreendendo os
processos de significação ao mesmo tempo que se vai constituindo como sujeito, não
individual, mas social e ativo.
Na perspectiva discursiva, com que trabalharemos, o sujeito é um ser
atravessado por discursos vários; não é uno, nem homogêneo; e trabalha sobre a
linguagem, como afirma Possenti (2002); sujeito que orienta o seu dizer em função de um
outro com quem tenta interagir. Ou seja, ele nem é o centro e origem do dizer, nem está à
margem (como nas perspectivas estruturalistas), e nem é também completamente
assujeitado ou mero repetidor de discursos de outros. Na verdade, a noção de sujeito aqui
adotada se situa na encruzilhada entre a perspectiva que o coloca como origem do dizer e a
que o define como assujeitado, sem qualquer possibilidade de trabalho sobre a linguagem
que utiliza. Assim, acreditamos, como Possenti (op. cit.), que o sujeito nem sempre tem o
controle sobre o que diz e sobre o como diz, mas há espaço para o trabalho desse sujeito
sobre o que diz, permitindo-o escolher como e o que dizer para gerar os efeitos de sentido
desejados em uma determinada situação discursiva.
Mas, a partir dessa discussão teórica, de que maneira podemos construir uma
prática de ensino que considere de fato o sujeito como um dos elementos da situação de
46
produção e como alguém que não apenas se apropria da linguagem, mas trabalha sobre
ela? O que mudaria no encaminhamento das aulas de Língua Portuguesa, se essa
perspectiva fosse considerada?
Ora, sabe-se que a toda e qualquer prática de ensino de língua portuguesa
subjaz um conceito de língua que a orienta. A concepção de língua do professor será
determinante para a escolha das atividades a serem desenvolvidas, para o encaminhamento
das aulas de acordo com os objetivos a serem alcançados e que serão diferentes em cada
concepção, e, sobretudo, para a escolha do enfoque a ser dado nas aulas de português: se
elas estarão voltadas exclusivamente para o estudo da descrição da língua, ou se, ao
contrário, estarão voltadas para a língua em funcionamento, ou seja, considerando-se o
conhecimento do seu sistema de regras apenas como um dos aspectos a serem estudados, e
não mais visto como o centro de todo o aprendizado sobre a língua.
Assim é que, por exemplo, um professor que considere a língua apenas como
estrutura, como um sistema de regras imutáveis, para cujo domínio basta o conhecimento
das partes que a constituem, certamente centrará a sua aula no estudo da gramática
(perspectiva tradicional), ignorando os usos efetivos da língua e, desta forma,
negligenciando o preparo do seu aluno para utilizá-la nas diferentes situações que existem
no ambiente extra-escolar.
Por outro lado, se em sua prática de ensino o professor assume uma concepção
de língua mais ampla, considerando-a a partir de uma perspectiva discursiva, como um
recurso que permite a própria constituição dos sujeitos e a interação entre eles, as
possibilidades de atingir objetivos mais amplos no ensino serão, evidentemente,
multiplicadas. A partir dessa perspectiva, o professor passa a elaborar atividades que irão
preparar de fato o aluno para utilizar a língua nas mais variadas situações e possibilitar-lhe
47
a compreensão da relação entre o uso da língua e a situação sociocomunicativa que orienta
tanto a leitura quanto a produção de textos.
Nesta última perspectiva, a descrição da língua é apenas um dos aspectos a
serem estudados e não o fim último do ensino de português, de maneira que leitura e
escrita não são mais tomadas como pretexto para a análise gramatical pura (conforme a
posição tradicional sobre a língua). Dessa forma, a prática de leitura, a produção de textos
e a análise lingüística são vistas como atividades que funcionam integradamente e se
desenvolvem sob a influência de outros fatores, que vão além do mero domínio das regras
gramaticais. Entre esses fatores, podemos citar, por exemplo, o gênero textual a ser
produzido/lido; o interlocutor (o leitor, quando da produção escrita, ou o autor, quando da
leitura); os objetivos a serem atingidos na leitura ou na escrita; e o registro de linguagem
adequado à situação (Geraldi, 1997). Além desses, é preciso considerar ainda que os
sujeitos ocupam lugares sociais e falam a partir de uma determinada formação ideológica,
sem a qual não existe linguagem porque é nela que os sentidos são construídos (Bakhtin,
1995).
Ao contrário da perspectiva estruturalista, a discursiva tem como meta o
desenvolvimento de habilidades para permitir que os falantes assumam sua posição
enquanto sujeitos; ou seja, o que se pretende é formar leitores e escritores efetivos, que não
apenas dominem as regras gramaticais da língua, em sua variedade culta, mas que saibam
como, por que e em que situação devem utilizá-las, considerando o texto a ler/produzir.
Dessa forma, o professor de língua materna estará despertando a reflexão e o
senso crítico dos alunos, uma vez que eles passarão a pensar sobre a própria língua que
usam, com a qual convivem desde cedo e aprenderam, muito bem, a interagir com o outro.
O professor estará, então, ensinando-os a “aprender a aprender” (Geraldi, 1996:73) e a
assumir, através do uso da língua e do conhecimento do seu funcionamento, o seu lugar,
48
mais do que merecido, de sujeito social e político, que constitui a língua que usa e, ao
mesmo tempo, é constituído por ela.
Acreditamos, então, estar clara a noção de língua assumida nesta pesquisa:
língua como interação verbal, conforme defendeu Bakhtin (1995). Assim, o sujeito aqui
passa a ocupar um lugar diferente daquele que vinha ocupando na perspectiva
estruturalista, pois nela o trabalho do sujeito era relegado ao âmbito da fala, não sendo
admitida a possibilidade de sua interferência na língua (o que pressupunha, inclusive, que
há formas prontas e acabadas, significativas por si mesmas). Afastamo-nos aqui também da
concepção de subjetividade de Benveniste (1988), pois este caminha para o outro extremo
da questão do papel do sujeito no uso da linguagem, colocando-o como centro e origem do
dizer.
49
3. A noção de autoria
(Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 38)
3.1. A função-autor
No capítulo anterior, definimos as noções de língua, discurso e sujeito
essenciais para a compreensão da nossa abordagem na análise dos dados. Indissociável da
noção de sujeito como múltiplo e atravessado por discursos está a noção de autoria,
considerada por Foucault (2002) como uma das funções exercidas pelo sujeito. Aliás, é
deste autor que parte um dos principais ensaios que discute a questão da autoria: ao se
perguntar O que é um autor?, ele traz à tona um problema esquecido durante muito tempo:
o da importância da figura do autor para a constituição do discurso e para as leituras que
sejam pertinentes a esse discurso.
Como resposta à pergunta que intitula sua conferência, Foucault construirá uma
série de critérios que serviriam para definir a noção de autoria. Entre estes critérios, o mais
discutido (e discutível) é aquele que considera o autor como uma função do sujeito e um
lugar a partir do que esse sujeito instaura discursividade, ou seja, que constrói um dizer
original, em função do que muitos outros discursos (sob a forma de comentários, críticas,
ensaios etc.) serão escritos e a que se reportarão.
A partir dessa definição, teríamos um grupo restrito de indivíduos a quem
pudéssemos chamar “autores”, pois estes só poderiam ser identificados a partir de uma
característica, no mínimo, difícil de se sustentar: a novidade das idéias apresentadas. Além
disso, estaríamos apoiando uma noção (a de autor) em outra não menos complexa (a de
50
obra). O próprio Foucault (op. cit.) reconhece a dificuldade de se estabelecer onde começa
e termina uma obra, mas garante que um dos seus fatores determinantes é a idéia de
unidade. Possenti (2004, p.3), afirma que, na verdade, autor e obra são indissociáveis; um
não aparece antes do outro, pois, se há autor, há obra e vice-versa: “Ora, é exatamente a
figura do autor que confere essa unidade a uma obra”.
Evidentemente, ao condicionar a existência de um autor à de uma obra e viceversa, estamos nos referindo a uma relação autor/obra que se constituiu como a
conhecemos hoje apenas a partir do final do século XVIII e início do XIX, pois, antes
dessa época, nem sempre o reconhecimento da obra equivalia ao reconhecimento do seu
autor. Isso demonstra não ter sido sempre o autor um elemento essencial para a
compreensão da obra.
Segundo Chartier (1999) e o próprio Foucault (2002), até a Idade Média um
conceito mais comum que o de autor era o de escriba, ligado ao ato (mecânico, desprovido
de reflexão) de escrever. Nesse período, a escrita era considerada uma atividade de
inspiração divina, assim, cabia ao homem apenas transcrever/copiar o que lhe era “ditado”.
Não havia, portanto, nesse período, necessidade, nem mesmo a possibilidade, de se
construir a noção de autor, pois este não existia, vez que não era o criador do que escrevia,
mas era um canal para a palavra de Deus.
Contudo, nesta mesma época, começam a proliferar textos que constituem um
princípio de contradição à concepção sagrada de escrita, vigente até então: os textos
heréticos, condenados pela Igreja Católica. Ora, se escrever é inspiração divina, como se
explicaria a existência desses textos, sem que se negasse com isso a face sagrada da
escrita? Apenas pelo seu pólo oposto e complementar: a inspiração demoníaca, que
justificaria a necessidade de eliminação dessas obras (muitas vezes também de seus atores,
caso não se retratassem). Surge, então, o imperativo de identificar o autor, a fim de
51
responsabilizá-lo por aquele dizer que feria o poder vigente (o da Igreja), e a fim de punilo, garantindo a manutenção desse poder, que não deveria ser contestado. A noção de autor
passa a estar relacionada à de punição.
De acordo com Foucault (2002), esta “apropriação penal dos discursos” é um
dos marcos da noção de autoria:
Os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores (outros
que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida
em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os
discursos se tornaram transgressores. Na nossa cultura (...), o discurso (...) era
essencialmente um acto – um acto colocado no campo bipolar do sagrado e do
profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo. (p. 47)
Além da apropriação penal, há outro fator que, para Foucault, também é
determinante para a compreensão de o que se entende por autor: a historicidade. Na breve
exposição que fizemos até agora, recorremos, ainda que rapidamente, a pelo menos três
momentos diferentes, a fim de compreender a noção de autoria: a atualidade, a Idade
Média e os séculos XVIII e XIX. Isto é, para entender como o autor foi visto e como se
estabeleceu ao longo do tempo sua relação com os discursos que enunciava, foi preciso
observar como essa figura de autor veio sendo definida em cada momento histórico, pois
cada momento constrói e interpreta de maneira diferente a história do livro, dos leitores e
autores. Nas palavras do próprio Foucault (2002):
a função autor não se exerce de forma universal e constante sobre todos os
discursos. Na nossa civilização, nem sempre foram os mesmos textos a pedir
uma atribuição. (p. 48)
Tanto os textos que exigem uma identificação do autor variam ao longo do
tempo, não são sempre os mesmos, quanto um mesmo texto pode exigir ou não essa
identificação, a depender da época. É o caso dos textos literários, que, atualmente, não são
analisados sem que se considere quem os produziu e em que momento histórico:
os discursos ‘literários’ já não podem ser recebidos se não forem dotados da
função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é
que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de
que projecto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe
52
reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões. (p.
49)
Mas nem sempre o estudo desse discurso ‘literário’ se deu dessa forma. Os
enquadramentos (Foucault, 2004) variaram ao longo do tempo e com eles variaram as
maneiras de conceber autor, leitor e obra.
Chartier (1999) registra que durante muito tempo não houve estudos, dentro da
história do livro, que considerassem o autor (nem o editor) como elemento que intervém no
processo de produção da obra. A história dos livros, especialmente na França, estava muito
mais voltada para as maneiras de ler e para a apreensão das leituras preferenciais em
diferentes épocas (basta ver a preocupação em elaborar listas dos títulos encontrados em
bibliotecas particulares5).
Segundo este autor, “na tradição da história social da impressão, tal como ela se
desenvolveu na França, os livros têm leitores, mas não têm autores – ou mais exatamente,
estes não entram no domínio da competência do historiador” (Chartier, 1999: 34).
Ao ignorar a figura do autor como elemento importante na história do livro,
está-se ignorando também as formas de controle que autores (e editores) exercem sobre as
maneiras de recepção, compreensão e interpretação dessa obra (Chartier, op. cit.). Com
essa afirmação, não estamos, evidentemente, defendendo que o autor controla todos os
sentidos possíveis do discurso que produz ou que prevê todos os movimentos de
interpretação do seu leitor, pois isto equivaleria a supor que: a) o sentido é unívoco e está
no texto; e b) o autor está livre para dizer e é senhor do que diz. A partir das concepções de
língua, discurso e sujeito, delineadas no capítulo anterior, tais suposições não se sustentam.
O próprio Chartier (op. cit.) reconhece que
O autor, tal como ele faz a sua reaparição na história da teoria literária, é, ao
mesmo tempo, dependente e reprimido. Dependente: ele não é o mestre do
sentido, e suas intenções expressas na produção do texto não se impõem
necessariamente nem para aqueles que fazem desse texto um livro (livreiros5
A esse respeito, ver, por exemplo, Abreu (2002), Chartier (1999b) e De Certeau (1994).
53
editores ou operários da impressão), nem para aqueles que dele se apropriam
para a leitura. Reprimido: ele se submete às múltiplas determinações que
organizam o espaço social da produção literária, ou que, mais comumente,
delimitam as categorias e as experiências que são as próprias matrizes da escrita.
(p. 35-36)
Essa compreensão do autor como dependente e reprimido se justifica
exatamente pelo fato de ser o autor uma função do sujeito – ele mesmo dependente e
reprimido por coerções sociais de comportamento e de uso da linguagem. Trata-se,
portanto, de perguntar com Foucault (2002): “Que lugar pode o sujeito ocupar em cada
tipo de discurso, que funções pode exercer e obedecendo a que regras?” (p. 70).
Em toda a exposição desenvolvida por Foucault, na conferência O que é um
autor?, percebemos que este limita a noção de autoria a campos específicos do saber (tais
como a Literatura e a Ciência) e aos discursos que neles circulam. Ele não parece cogitar
que se possa, no discurso do cotidiano, nos discursos construídos em interações da vida
comum, aplicar o conceito de autoria. De fato, uma vez que Foucault associa o autor a um
instaurador de discursividade, a um sujeito que, no campo das idéias, formula um dizer
original, torna-se difícil entender que nos textos comuns do dia-a-dia haja um autor.
A mesma limitação se verifica se tentarmos aplicar a perspectiva foucaultiana
de autor aos textos escolares, uma vez que não há, nestes textos, “grandes transformações
em um campo do saber”. Contudo, veremos que há espaço para o novo e para o trabalho do
sujeito sobre o dizer nesses textos. Esclareceremos no item a seguir os pressupostos
teóricos que justificam a perspectiva aqui assumida para a compreensão da autoria em
textos escolares.
3.2. A construção da autoria: o aluno-autor
Discutimos até aqui a noção foucaultiana de autoria e verificamos alguns de
seus avanços e limitações no estabelecimento dessa definição. Vimos também que o autor,
tal como concebido por Foucault, não pode percorrer muitos domínios; entre estes
54
domínios que ele não pode percorrer está o escolar, conforme já assinalamos. Mas como,
então, entender a autoria em textos escolares? Em situação escolar, estaria o discurso
fadado à mera repetição? Ou há um lugar possível para o aluno (que também é uma
posição-sujeito) ocupar a função de autor?
Para responder a essas questões, recorreremos às contribuições de Orlandi
(1996), Possenti (2002), Authier-Revuz (1994) e Bakhtin (1998).
Ao discutir a relação entre os mecanismos de interpretação, de um lado, e
autoria e leitura, de outro, Orlandi (1996) situará a noção de autor na tensão existente entre
unidade e dispersão dos sujeitos e dos discursos. Assim, ela concorda apenas parcialmente
com Foucault (2002), se aliando a este quando ele identifica a unidade como princípio da
autoria, tendo em vista que é esta que garante um fechamento para o texto. A autoria, para
Orlandi (1996) não se limita, então,
como em Foucault (1983) a um quadro restrito e privilegiado de produtores
(originais) de linguagem, que se definiriam em relação a uma obra. Para nós, a
função-autor se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na
origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, nãocontradição e fim. (p. 69)
Mas essa unidade não passa de uma ilusão necessária para que o jogo
interpretativo se instale: se considerarmos o texto como a materialização de um discurso,
para cujo sentido contribuem vários fatores exteriores (porém constitutivos), temos
reinstaurada a dispersão do sujeito – que se colocou na origem desse dizer porque era
necessário que ele assumisse uma posição-sujeito para dela enunciar, mas que não está só –
e do discurso, que dialoga com outros discursos, sejam eles de um outro (interlocutor) ou
de um Outro (interdiscurso):
(...) um texto, do ponto de vista de sua apresentação empírica, é um objeto com
começo, meio e fim, mas que, se considerarmos como discurso, reinstala-se
imediatamente sua incompletude. Dito de outra forma, o texto, visto na
perspectiva do discurso, não é uma unidade fechada (...) pois ele tem relação
com outros textos (existentes, possíveis ou imaginários), com suas condições de
produção (os sujeitos e a situação), com o que chamamos sua exterioridade
constitutiva (o interdiscurso: a memória do dizer). (Orlandi, 1996: 54)
55
Unidade e dispersão, então, caminham juntas na construção dos efeitos de
sentido, seja porque o texto, enquanto discurso, se dá na dispersão de outros discursos
existentes; seja porque o sujeito não é totalmente livre, não pode ser o autor de um dizer
original, pois o ato de enunciar sempre implicará um diálogo com a exterioridade
constitutiva.
Essa perspectiva defendida por Orlandi (1996) nos dá a possibilidade de
estender o conceito de autor a outros textos que não os literários ou científicos, mas
àqueles produzidos em circunstâncias nas quais não temos efetivamente a construção de
uma obra, mas temos, sim, a formulação de um dizer. Contudo, o que se espera desse dizer
não é originalidade, mas uma unidade que o torne um todo compreensível e, ao mesmo
tempo, espera-se que ele mantenha diálogo com outros dizeres já proferidos. Nas palavras
de Orlandi (op. cit.) espera-se que ele se historicize.
Ora, uma das maiores críticas feitas a textos produzidos em situação escolar é a
que diz respeito à repetição das idéias, identificada facilmente como de outro e não do
aluno. Este não se representaria por escrito, portanto, não apresentaria idéias próprias
(originais), mas copiadas (em geral, de um senso-comum). A cópia demonstraria a recusa
(inconsciente) de o indivíduo se colocar na origem do dizer, um dos procedimentos
essenciais para que se reconheça a existência de uma autoria. O sujeito nega assumir esta
função e se limita a repetir um dizer conhecido e congelado, que não é seu – não porque
não foi dito por ele enquanto enunciador, mas porque ele não o interpretou e atualizou.
Em outras palavras, é preciso, nessa repetição do aluno, distinguir dois
caminhos: um, equivaleria ao apagamento do sujeito e da autoria, pelo fato deste não
assumir seu lugar no jogo, não se colocando como autor – seria o caso da cópia, do plágio,
ou efeito papagaio de que fala Orlandi (op. cit.). O outro caminho equivaleria à repetição
necessária para revelar: a) a interpretação do sujeito sobre o mundo e sobre os discursos
56
acerca do mundo; e b) o lugar dessa interpretação em relação às outras já construídas, ou
seja, ao interdiscurso. Neste segundo caminho, temos um movimento constitutivo para que
a autoria aconteça, seja em qual texto for, pois ele demarca até onde as outras
interpretações foram, para esclarecer, assim, onde começam as interpretações do sujeito.
A inscrição do dizer no repetível histórico (interdiscurso) é que traz para a
questão do autor a relação com a interpretação, pois o sentido que não se
historiciza é ininteligível, ininterpretável, incompreensível. (...) a constituição
do autor supõe a repetição, logo, como estamos procurando mostrar, a
interpretação. (...) o dizível é o repetível, ou melhor, tem como condição a
repetição. Não porque é o mesmo, mas é o que é passível de interpretação: o que
é passível de ser repetido, feito de pré-construído (já dito) na relação com o
interdiscurso. (Orlandi, 1996: 70-71)
As operações de retomada de outros discursos (conscientes ou não) são,
portanto, necessárias para tornar o dizer compreensível em qualquer texto, pois é através
dessas operações que o sujeito se insere na corrente da comunicação verbal (Bakhtin,
1998) e que o seu dizer passa a fazer sentido. Assim,
(...) o autor, embora não instaure discursividade (como o autor ‘original’ de
Foucault), produz, no entanto, um lugar de interpretação no meio dos outros.
(...) O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve
sua formulação no interdiscurso, ele historiciza o seu dizer. (Orlandi, op. cit.:
70)
Essa historicização de que fala a autora equivale, em certa medida, aos
enquadramentos do discurso mencionados por Foucault (2004), pois afirmar que o sujeito
precisa ancorar o seu dizer no interdiscurso, na memória discursiva e que esta é o que o
torna interpretável, isto nada mais é que afirmar que ele não pode dizer qualquer coisa
(coisas sem sentido, por exemplo), de qualquer forma, a qualquer pessoa.
Com efeito, podemos dizer que a posição-autor se faz na relação com a
constituição de um lugar de interpretação definido pela relação com o Outro
(interdiscurso) e o outro (interlocutor). (Orlandi, 1996: 74)
Assim, para se constituir como autor de um dizer, é preciso recorrer, sim, à
repetição; mas o que repetir e como se inscrever, enquanto autor, nesse repetível,
dependerá da situação de interação em que se encontra o locutor, pois o interlocutor
57
também interferirá no grau dessa repetição e na sua formulação. Como diz Orlandi (op.
cit.),
(...) o autor, relativamente à injunção à interpretação, fica determinado: a) de um
lado, pelo fato de que não pode dizer coisas que não têm sentido (a sua relação
com o Outro, a memória do dizer) e b) deve dizer coisas que tenham sentindo
para um interlocutor determinado (o outro, seja ele efetivo ou virtual). Desse
modo a historicidade se atualiza na função-autor através da interpretação. (p.
75)
Nos textos produzidos em situação escolar, há que se considerar, portanto,
como funciona a repetição: o aluno apenas se rende à cópia, ao efeito papagaio? Ou ele
recupera já-ditos, trabalhando sobre eles para revelar a sua6 interpretação particular? E
ainda: como essa “interpretação particular” se mostra nesses (e em outros) textos?
Possenti (2002) defende que em toda formulação há espaço para que o eu
trabalhe; não se trata, portanto, de observar sempre como o o/Outro interfere no discurso
de um sujeito, mas também como este modifica o discurso do o/Outro, a fim de provocar
novos efeitos de sentido. O tipo de dados a que mais este autor recorre é exatamente aquele
cuja forma é cristalizada, estereotipada, mas sobre o que se dá uma inscrição de
subjetividade (p. 64): os provérbios. Para ele, “o que mais interessa destacar é diferença
entre enunciar um provérbio, isto é, um discurso ‘de outro’ numa determinada
circunstância, e produzir este novo enunciado, com base no material de outro discurso” (p.
69, grifo do autor).
Nesta eterna discussão entre sujeito assujeitado X sujeito livre, Possenti se
coloca no entremeio, defendendo que esse sujeito nem é totalmente assujeitado, nem livre.
Sendo assim, a noção de autoria também se situaria entre um pólo e outro na questão do
sujeito: há enquadramentos que o sujeito, enquanto autor, deve respeitar; mas há o espaço
para a interpretação e reformulação de já-ditos, a fim de gerar o novo.
6
Ao nos referirmos à interpretação do sujeito, não estamos ignorando que esta se construiu nas interações
sociais da quais o sujeito participou e que ajudaram a compor a sua memória discursiva.
58
Essa reformulação, que marca o trabalha do eu no discurso do outro, pode,
segundo Authier-Revuz (1994) assumir duas formas: a do dizer da falta e a falta do dizer.
Mais que um jogo de palavras, essas duas formulações podem ser importantes para a
compreensão de estratégias utilizadas pelo sujeito para marcar a distância de si e do
discurso. Assim, o dizer da falta poria à tona a própria opacidade e imperfeição da
linguagem, revelando que o dizer não corresponderá exatamente ao efeito de sentido que se
esperava:
(...) falta deve ser tomada em um primeiro sentido: o da falta, da imperfeição,
da anomalia que o dizer apresenta, como se diz que uma roupa, uma madeira,
uma pessoa tem um defeito, do qual se pode descrever as características. (...).
(Authier-Revuz, 1994: 256, grifos da autora)
Seria, portanto, afirmar que a palavra não se basta: é o dizer da rapidez (para
ser breve, do que poder-se-ia chamar rapidamente), do grosso modo e da comodidade,
entre outros. Todos, porém, revelam uma avaliação “de fora” sobre o que se diz, sobre a
própria formulação e as possibilidades que esta tem de garantir (ou não) o objetivo da
interação.
Por outro lado, a falta do dizer seria o reconhecimento de que falta a palavra
para dizer, porque o sujeito não a conhece ou porque a própria língua não tem uma palavra
ideal para dizer, garantido a (suposta) exatidão do que se diz.
O segundo tipo de representação da falta do dizer, inscreve-se do lado do outro
valor da palavra falta, complementar do primeiro, o de uma ausência, de uma
falha, do que faz falta ao dizer – seja a) ‘a’ palavra exata que falta no dizer,
vazando a nomeação por sua ausência; ou b) seja o enunciador que, de algum
modo, faça falta no seu dizer da palavra, como ‘ausentado’ de um dizer que se
esquiva na sua plena realização. (p. 263, grifos da autora)
Essa
duas
formas
apontadas
por
Authier-Revuz
para
marcar
a
imperfeição/limitação do dizer (seja por parte do sujeito ou da língua) incidem sobre a
relação entre o nome e a coisa nomeada, entre a palavra e o referente, associados à
instância discursiva e à situação de interação em que aparecem (vez que a instância e a
59
situação justificam o fato de a palavra ser suficiente ou não). Elas revelariam, por um lado,
o trabalho do sujeito sobre a linguagem, o qual se define pela falta – sinal de que, se há o
reconhecimento de falta, é porque há a busca pela completude. Ou seja, há alguém que
formula um dizer e que, pela falta, reconhece o seu lugar como fluido e impreciso. Por
outro lado, é através da avaliação da situação de produção em que se insere que o sujeito
identifica essa falta.
Na esteira do pensamento de Authier-Revuz, Possenti (2002) menciona duas
formas de provar que há ação do sujeito com a linguagem: a primeira seria a capacidade de
“colocar-se à distância (algo como ver-se de fora, avaliar-se adequadamente), por um lado,
e, por outro, a capacidade de colocar à distância (ver de fora, avaliar adequadamente) seu
discurso” (p. 130). Para tanto, é preciso supor que o sujeito percebe certos elementos da
situação de interação (o interlocutor e o assunto, por exemplo) e que os leva em conta ao
construir o seu dizer.
A segunda forma que prova a ação do sujeito é o fato de que ele conhece,
domina e segue “regras constitutivas de gêneros de discurso” e o fato de que percebe
quando “alguma característica relevante falta um certo tipo de texto”, o que poderia
comprometer a interação (Possenti, 2002: 130).
Assim, tais estratégias de manter-se à distância ou manter o discurso à distância
podem ser marcas que nos auxiliam a identificar a assunção da posição-autor em textos
escolares, pois elas se colocam no ponto mais tenso entre onde começa o trabalho do eu e
termina o discurso do outro (e vice-versa): a formulação.
Outras formas de se perceber essa relação do eu com o o/Outro são definidas
por Bakhtin (1998). Segundo este teórico, há pelo menos três recursos utilizados pelo
sujeito para transmitir e assimilar a palavra de outrem: a forma indeterminada, as
60
modalidades escolares (dizer com as próprias palavras; dizer com as palavras do outro) e a
palavra autoritária.
O primeiro recurso, a forma indeterminada, corresponde ao todos dizem, ao
disseram:
Qualquer conversa é repleta de transmissões e interpretações das palavras dos
outros. A todo instante se encontra nas conversas ‘uma citação’ ou ‘uma
referência’ àquilo que disse uma determinada pessoa, ao que ‘se diz’ ou àquilo
que ‘todos dizem’, às palavras de um interlocutor, às nossas próprias palavras
anteriormente ditas (...). A maioria das informações e opiniões nos são
transmitidas geralmente, em forma direta, originária do próprio falante, mas
referem-se a uma fonte geral indeterminada: ‘ouvi dizer’, ‘consideram’,
‘pensam’, etc. (p. 139-140)
Como em algumas circunstâncias não é possível (e em outras não é
conveniente) identificar a fonte dessas “referências”, desses dizeres de outrem, recorre-se à
indeterminação do dizem que/diz-se que, ou consenso do sabe-se que/é sabido que.
Na argumentação, ao optar por recursos dessa natureza o autor pode sofrer duas
conseqüências. A primeira seria esquivar-se da responsabilidade do que é dito, já que ele
está apenas retomando o que já se disse; a segunda, mencionada por nós ao comentarmos o
papel da repetição do dizer (Orlandi, 1996), é cair no vazio da mera repetição, não
encontrando um lugar para chamar de seu neste discurso. Neste segundo caso, ele escapa,
omitindo-se de se posicionar sobre o tema proposto e sobre os discursos que por ventura
venha a retomar.
O segundo recurso de transmissão e assimilação da palavra do outro, segundo
Bakhtin (1998) é o dizer com as próprias palavras, “de cor”, ou com as palavras do outro.
O teórico russo dará especial destaque ao dizer com as nossas próprias palavras:
(...) relatar um texto com as nossas próprias palavras é, até um certo ponto, fazer
um relato bivocal das palavras de outrem; pois as “nossas palavras” não devem
dissolver completamente a originalidade das palavras alheias, o relato com
nossas próprias palavras deve trazer um caráter misto, reproduzir nos lugares
necessários o estilo e as expressões do texto transmitido.
61
Dizer com nossas próprias palavras, então, não deixa de ser dizer a partir do
modo como interpretamos a palavra do outro, o que significa manter um diálogo com o que
é do outro, mas inserir a nossa maneira de compreender: a) o que o outro disse (em relação
com as condições de produção que motivaram esse dizer) e b)o que dizemos, em função da
condição de produção que orienta a nossa formulação.
Por fim, a palavra autoritária é uma palavra previamente reconhecida, que deve
ser assimilada em sua totalidade, portanto, transmitida também sem restrições no conteúdo
ou ressalvas:
O discurso autoritário exige o nosso reconhecimento incondicional, e não
absolutamente uma compreensão e assimilação livre em nossas próprias
palavras. Também ela não permite qualquer jogo com o contexto que a
enquadra, ou com seus limites, quaisquer comutações graduais ou móveis,
variações livres criativas e estilizantes. Ela entra em nossa consciência como
uma massa compacta e indivisível, é preciso confirmá-la por inteiro ou recusá-la
na íntegra. (Bakhtin, 1998: 144)
Inclui-se no âmbito dessa palavra autoritária o discurso religioso, que, como
veremos no capítulo a seguir, serve de base para a argumentação de alguns alunos. Caberá
verificar, entre outros fatores, como, nesse diálogo com outros discursos, o aluno se
constitui como autor.
Para entender essa questão, consideraremos, como Orlandi (1996) e Possenti
(2002), que a autoria se estabelece em qualquer textos, desde que este seja uma unidade
com coerência e fim; por isso, todo texto (inclusive os escolares) pode ter autores a lhe
conferir esses fechamento e a interferir nos seus sentidos possíveis. Além disso, os traços
dessa autoria serão reconhecidos pelo trabalho do sujeito sobre o discurso do outro; traços
que se tornam perceptíveis através de modificações lingüísticas mais simples (como a troca
de uma palavra por outra) ou operações mais complexas, como aquelas apresentadas por
Authier-Revuz (1994) e Bakhtin (1998). Deste último, retomaremos principalmente as
formas de recuperar o interdiscurso.
Em suma, trata-se de considerar que
62
Toda fala resulta assim de um efeito de sustentação no já dito que, por sua vez,
só funciona quando as vozes que se poderiam identificar em cada formulação
particular se apagam e trazem o sentido para o regime do anonimato e da
universalidade. Ilusão de que o sentido nasce ali, não tem história. (Orlandi,
1996: 71-72)
O aluno, portanto, será autor, na medida em que assume movimentos que
cabem a essa função: dá unidade ao texto e ao mesmo tempo se insere (e insere o seu dizer)
na dispersão de discursos existentes, historicizando o seu discurso através do repetível;
além disso, trabalha com e sobre a linguagem, conseqüentemente, sobre os discursos.
63
4. A produção textual orientada pela proposta do livro didático
(Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 187)
Neste capítulo, serão analisados os textos produzidos no primeiro momento da
coleta de dados, ou seja, a partir de uma condição de produção diferente da que é
construída no segundo momento. Para esta primeira produção, foi dada como subsídio aos
alunos apenas uma proposta de redação, extraída do livro de Cereja e Magalhães (2003),
sem que antes fosse feita qualquer discussão em sala de aula sobre o tema. É importante
salientar que esse manual didático não era adotado pela escola, mas o era pela professora,
que sempre utilizava as atividades e/ou textos desse livro em suas aulas. Como os alunos
não dispunham do livro, os textos eram então digitados e entregues a eles sob a forma de
uma apostila ou folha avulsa. O mesmo aconteceu com a atividade que consideraremos
aqui.
Vejamos, então, alguns aspectos importantes dessa proposta de redação.
4.1. A proposta de redação: o enquadramento do dizer
Conforme já foi descrito no item 1.2.1.1. da Metodologia, a proposta de redação
(Anexo A) contava com uma coletânea de textos, composta por um resumo do projeto de
lei no. 1151, da deputada Marta Suplicy; e por dois textos opinativos, publicados na revista
IstoÉ, sobre o contrato civil entre homossexuais. Além disso, a proposta era finalizada por
uma comanda, que indicava o que deveria ser feito pelo aluno.
64
Propositadamente, nenhum outro material didático além deste foi levado para
sala de aula neste momento, de maneira que o aluno lidou apenas com a proposta e com
suas próprias descobertas sobre o tema, anteriores à produção e construídas em situações
de interação social diversas (em casa, na rua, na escola, através da televisão, da internet
etc.).
Analisemos, portanto, a proposta de redação exposta aos alunos. Logo no
início, o tema é introduzido sob a forma de uma pergunta: “Você é favorável à união civil
de duas pessoas do mesmo sexo?”. Essa pergunta é seguida da síntese do projeto, dividida
em três partes: o que o projeto propõe; o que o projeto não propõe; e como vai funcionar.
Ao trazer apenas uma síntese do projeto, a proposta limita o conhecimento do
aluno a uma leitura sobre esse texto, tendo em vista que autor do livro didático é o
responsável pela escolha dos itens que, na sua opinião, merecem ser expostos. Ou seja, ele
seleciona o que acha essencial no projeto e dá nome às partes desse documento. Ao menos
é o que se pode concluir, já que não fica claro se se trata de citações de partes do texto
original, ou de uma paráfrase feita pelo autor do LD (o que seria bastante comum nesse
tipo de obra, que, historicamente, tende a “facilitar” a compreensão dos alunos,
fornecendo-lhes informações já interpretadas, com leituras prontas e pré-definidas7). Como
a proposta se baseia na publicação eletrônica, em 1995, na página pessoal da deputada
Marta Suplicy, não foi possível recuperar o texto para estabelecer o confronto a fim de
verificar os limites entre a leitura do autor do livro didático e o texto do projeto tal qual
elaborado por Marta Suplicy.
7
Mas nem sempre os manuais didáticos funcionaram dessa forma; as notas e explicações foram
acrescentadas já no século XX, o que revela uma mudança na compreensão dos papéis de professor e aluno,
bem como do papel do livro didático no ensino. A esse respeito, ver, por exemplo, o estudo de Soares (2001),
sobre a Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos Laet; e o trabalho de Batista (2002), sobre a
constituição e circulação dos livros didáticos, no qual ele afirma que “as notas e orientações didáticas
destinam o livro para um leitor em formação e carente de conhecimentos, que lê o romance para o
aprendizado de literatura brasileira e não para o prazer e a ampliação, desinteressada, de seu contato com o
mundo (...)” (p. 541). Sobre o uso do livro didático na sala de aula, ver Sousa (2002) e Bezerra e Dionísio
(2001).
65
Nesta proposta, se por um lado a aluno tinha acesso a outras informações e
posicionamentos sobre o tema, por outro, a própria seleção dos textos para a coletânea e a
sua forma de apresentação já limitavam o seu campo de ação de diversas formas: o aluno
não poderia escrever qualquer gênero (apenas a carta de solicitação), sobre qualquer tema,
nem ter um posicionamento “maleável”, ou seja, ele só poderia optar entre ser favorável ou
contrário ao projeto; não há na proposta nada que permita uma decisão baseada em
ressalvas: por exemplo, ser favorável, mas sob algumas condições.
Por outro lado, a proposta é limitada também na apresentação do projeto de lei,
pois expõe apenas um resumo desse documento, a partir de três categorias: o que o projeto
propõe, o que o projeto não propõe e como vai funcionar.
Outro fator importante a ser considerado é que, na unidade em que se encontra
essa proposta de redação, não há qualquer outro texto sobre o assunto que possa servir de
informação acerca do projeto da deputada. A proposta, portanto, fica isolada, como uma
atividade descontextualizada e descontínua, caracterizando-se como mero exercício de
repetição formal do subgênero carta de solicitação. É possível comprovar isso se voltarmos
ao início desse capítulo no livro didático em questão (ver Anexo A). O texto que é dado a
ler, uma carta de solicitação, aborda os problemas enfrentados por moradores de uma rua
onde foi inaugurado um bar, tais como: o barulho até tarde da noite, a falta de privacidade
e de segurança, entre outros. As perguntas que se seguem ao texto visam à apreensão do
formato do gênero e da linguagem a ser empregada (ver, por exemplo, as perguntas que
compõem as questões 01 e 03, sobre a forma, e 06 e 07, sobre a linguagem) e do teor das
idéias apresentadas (ver as perguntas formuladas nas demais questões).
Após uma explicação sobre o funcionamento desse subgênero, a partir das
perguntas respondidas pelos alunos acerca do texto, é apresentado um quadro-resumo com
as suas principais características:
66
# texto com intencionalidade persuasiva;
# apresenta às autoridades competentes reclamação de um problema
(carta de reclamação) ou solicitação de soluções para um problema
(carta de solicitação);
# tem formato semelhante ao das cartas em geral: local e data, vocativo,
corpo da carta (assunto), expressão cordial de despedida e assinatura;
# tem como estratégia argumentativa mais comum: apresentação do
problema, suas causas e conseqüências; exposição de argumentos
capazes de comprovar que o remetente está com a razão, por estar
sendo desrespeitado em seus direitos (carta de reclamação), ou por estar
enfrentando algum problema (carta de solicitação), etc.
# linguagem clara e objetiva, de acordo com o padrão culto e formal da
língua, podendo ser menos ou mais pessoal (1a. ou 3a. pessoa);
pronomes de tratamento empregados de acordo com o cargo ocupado
pelo destinatário;
# verbos predominantemente no presente do indicativo;
# apresenta sugestões de possíveis medidas para a solução do problema.
(Cereja e Magalhães, 2003: 216)
Essa foi a definição de carta de solicitação e/ou de reclamação à qual os alunos
tiveram acesso, no ano letivo anterior (pela primeira vez) e em 2004, sob a forma de
revisão.
Logo em seguida a este quadro, já aparecem, como culminância do capítulo,
duas propostas de produção textual, entre as quais escolhemos a segunda. Ou seja,
reproduzindo a seqüência do livro didático (como fizemos nesse primeiro momento), o
processo de escrita corresponderá à aplicação de um conhecimento formal sobre um
gênero textual para avaliação acerca do domínio desse conhecimento.
Assim, no próprio texto apresentado no livro didático, não há possibilidade de o
aluno recuperar informações sobre o que seja, por exemplo, direito à sucessão, benefícios
previdenciários, ou mesmo saber o que são os deveres, impedimentos e obrigações dos
homossexuais. Todas estas são expressões que aparecem na proposta, sem qualquer
esclarecimento sobre seus significados, o que pode dificultar a compreensão do projeto
pelo aluno.
Numa prática pedagógica, que tentamos reproduzir neste primeiro momento, na
qual o professor apenas repita o livro didático, a atividade de produção textual se tornará
67
um exercício de repetição de formas/fórmulas textuais, como se estas fossem sempre
homogêneas e imutáveis.
Evidentemente, há que se considerar um avanço em relação a aulas nas quais o
professor escrevia no quadro: REDAÇÃO! TEMA: VIOLÊNCIA. 30 LINHAS
Na proposta analisada, ao menos o aluno-autor conta com textos (ainda que
incompletos, editados e retirados de seu contexto) a partir dos quais ele pode refletir e
retomar outros conhecimentos que por ventura já tenha sobre o assunto.
Dois desses textos foram publicados originalmente pela revista IstoÉ8 e são de
autores que têm opiniões distintas sobre o assunto: um se colocam contra e o outro a favor
do projeto. No entanto, esta parte já se inicia com uma informação, no mínimo, confusa: o
título “Casamento homossexual?”. Essa expressão aparece antes dos dois textos opinativos
divulgados na revista, mas não sabemos se esse título aparece já na IstoÉ ou se é o livro
didático que usa, erroneamente, o termo casamento como sinônimo de contrato civil. Sem
dúvida, isso confunde mais o aluno, ao invés de informá-lo e de ajudá-lo a “colher
informações”, como diz a proposta, uma vez que, no resumo do projeto, tem-se, como
primeiro item do que ele não propõe: “Dar status de casamento ao Contrato de Parceira
Civil Registrada”. Ou seja, na verdade, o projeto deixa claro que casamento e contrato
civil não são sinônimos, portanto, não poderiam ser utilizados aqui como equivalentes.
Além disso, a revista também é de 1995, mesmo ano do projeto da deputada, o
que dificulta a recuperação, quase 10 anos depois, do texto original pelo professor, a fim de
suprir essas lacunas da proposta (embora neste momento visássemos à não interferência do
professor no processo).
Quanto ao teor das idéias discutidas nos dois textos, teremos o reflexo de uma
estratégia constante de argumentação quanto ao assunto contrato civil entre homossexuais:
8
Não se sabe, por exemplo, em qual sessão da revista IstoÉ os textos opinativos foram publicados ou mesmo
em que discussão eles se inseriam, com que outros textos dialogavam? Eles eram uma resposta a quê? A uma
reportagem, a um artigo, a uma pesquisa?
68
aqueles que são favoráveis ao projeto retomam o discurso da cidadania, da igualdade e da
necessidade de extinção do preconceito; já os que são contrários, baseiam-se na religião e
no texto bíblico para justificar a sua posição. Nos textos da coletânea do livro didático, não
é diferente, assim como nos textos produzidos pelos alunos-autores nesta pesquisa. Nesta
proposta, o discurso da cidadania é defendido por Vicente Paulo da Silva (presidente da
CUT, mais conhecido como Vicentinho), que é católico praticante, mas cuja posição sobre
o assunto não tem bases religiosas, e sim sociais, o que se justifica pela lugar social
ocupado por ele: presidente de uma entidade sindicalista. Já o discurso religioso é
defendido por um general da reserva, o que prova que os discursos não são homogêneos e
que, embora haja enquadramentos, há também espaço para fuga (tanto na sala de aula,
como afirma Sousa (2002), quanto fora dela).
Esse retorno à oposição entre cidadania/direitos, de um lado, e, de outro,
preceitos bíblicos/religiosos só vem a reforçar a idéia de que um texto não existe no vácuo,
mas é sempre uma resposta a uma rede de discussões já construída socialmente, que não
podemos (e nem conseguiríamos) ignorar ao interagir com o outro, seja através do texto
oral ou escrito (Bakhtin, 1995).
Assim, nossa intenção é a de observar, no próximo item, como o aluno se move
nesse terreno que lhe foi dado; terreno ainda cheio de acidentes, é verdade, mas que
reproduz uma situação comum nas salas de aula de Língua Portuguesa: a recorrência ao
livro didático como única fonte de saber e a atividade de produção escrita como isolada de
um processo explícito de construção de conhecimento sobre o que se vai escrever. Não
pretendemos aqui fazer avaliações sobre a qualidade dos textos, considerando-os bons ou
ruins, mas entender como, nas condições de produção dadas, o discurso dos alunos-autores
é construído.
69
4.2. A produção escrita e o diálogo com o já-dito
Uma das maiores dificuldades no ensino/aprendizagem da escrita é o
desenvolvimento da habilidade de argumentar para persuadir. Embora cada vez mais o que
se priorize na avaliação dos textos escolares seja a qualidade dos argumentos apresentados
para discutir um tema e convencer um interlocutor, parece que ainda estamos longe de
possibilitar ao aluno o cumprimento desse critério e longe também de compreender por que
o aluno (que vive cercado de informações de toda natureza) tem tanta dificuldade de
desenvolver uma argumentação a fim de convencer o outro.
Talvez pudéssemos elencar aqui algumas das possíveis razões para essa
dificuldade: ausência de uma prática constante de leitura e escrita, na sala de aula e fora
dela; falta de definição dos objetivos a serem atingidos com a produção escrita, ou seja, as
atividades escolares se tornam meros exercícios formais e não exercícios de interação
social; divisão do conhecimento em blocos (matérias), sem que estes se inter-relacionem, o
que impede a compreensão de que são possíveis (até necessários e desejados) a
recuperação e o confronto de informações de disciplinas diversas para auxiliar a
argumentação; ou até a ânsia, mesmo a crença, de que o aluno deve dizer algo totalmente
novo para ser avaliado positivamente.
No entanto, a despeito dessas razões, a dificuldade continua lá a atormentar os
alunos, fazendo-os sentenciar: “não gosto de redação” ou “não sei escrever”. Não caberia
aqui discutir as concepções de escrita e de ensino subjacentes a essas afirmações. O que
nos interessa é saber: como, diante deste quadro pintado sempre sobre o fundo da
adversidade e da dificuldade, o aluno-autor constrói o seu dizer? A que ele recorre ou em
que se ampara, já que impera a ordem: “redija”, “escreva”, “disserte”?
70
Para respondermos a essas questões, recorreremos uma vez mais a Bakhtin,
segundo o qual, em qualquer enunciação, não se pode perder de vista dois fios condutores
da elaboração do discurso: o já-dito e o ouvinte/interlocutor.
Quanto ao primeiro, o autor defende que apenas o “Adão mítico” pôde construir
um discurso primeiro, puro, sem retomar outras palavras, vez que estas ainda não haviam
sido proferidas. Mas o falante comum não encontrará objetos puros sobre os quais falar,
“pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado
sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa
escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele”
(Bakhtin, 1998: 86).
Assim, ao se deparar com um tema para produção escrita, o aluno deve
considerar que o seu dizer não será inaugural (para usar um termo de Foucault), mas
dialogará com o que já foi dito sobre esse tema e ajudou a construir a visão sobre ele em
determinado momento histórico.
Então, o que se espera do aluno na produção escrita é que ele recupere esses jáditos? Não apenas, pois isso se caracterizaria como mera repetição e não é esta a
perspectiva bakhtiniana, tampouco é este o objetivo do ensino. Na verdade, o que se espera
é que o aluno os retome para com eles dialogar, para encontrar o seu espaço e deixar claro
o seu modo de avaliar o objeto e os discursos que cercam este objeto.
Esta é uma das faces que consideramos na produção escrita escolar. A outra
face refere-se ao
segundo
fio
condutor para a elaboração
do
discurso: o
ouvinte/interlocutor. Para Bakhtin, “ao se constituir na atmosfera do ‘já-dito’, o discurso é
orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso,
porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado (1998: 89).
71
Em outras palavras, a própria escolha de que discursos retomar não deveria se
dar aleatoriamente, mas ocorrer em função do interlocutor a quem se dirige o discurso. É
da compreensão desse processo que nasce o texto persuasivo: convencer o outro só se torna
possível quando se compreendem os papéis sociais ocupados pelo autor e pelo interlocutor
(que não é passivo) desse texto, a fim de saber as melhores informações e estratégias
discursivas para convencer. Não se trata, portanto, de repetir infinitamente já-ditos, mas de
dialogar com eles, concordando, discordando, provocando reflexão, humor, etc.
Partiremos, então, das noções de alteridade e interdiscurso (segundo formuladas
por Bakhtin) e da noção de sujeito e autoria (segundo Possenti, 2002 e Orlandi, 1996),
conforme explicitamos nos capítulos 1 e 2 deste trabalho.
4.2.1. Pontos de vista diferentes, estratégias parecidas: o dizer
ancorado no discurso do Direito
Tendo em vista que um problema comum em textos produzidos por alunosautores (portanto, em uma situação escolar) é a recorrência ao senso-comum, às idéias já
gastas e esperadas em discursos sobre aquele tema a ser discutido, parece-nos que esse
diálogo a que Bakhtin (1998) se refere não existe, e os textos se perdem no vazio da
repetição. Viria daí o pouco poder de persuasão desses textos que, ao considerarem o jádito sem problematizá-lo (apenas copiando-o), demonstram conseqüentemente ignorar a
existência de um interlocutor ativo a quem convencer. Talvez esse seja um reflexo da
própria situação escolar de produção textual, que prevê, muitas vezes, o professor como
único interlocutor para o texto escrito dos alunos.
Mas e no caso das produções escritas que compõem o nosso corpus? Conforme
discutido anteriormente sobre a proposta de redação, os alunos tinham (ao menos em tese)
um interlocutor definido e uma situação de interação com objetivos também definidos:
72
discutir o projeto de lei da deputada Marta Suplicy, através de uma carta de solicitação
destinada a ela.
Passaremos a observar a partir de agora como os alunos autores lidam com os
dois fios condutores do discurso (especialmente o já-dito) mencionados por Bakhtin, diante
das condições de produção descritas no item anterior: uma situação escolar, sem discussão
prévia do tema em sala de aula, dispondo os alunos de uma proposta de redação formada
pela coletânea de textos e pela comanda.
Na análise dos modos de retomar o já-dito, consideraremos a classificação de
Bakhtin (1998) sobre os procedimentos de transmissão e assimilação da palavra de outrem:
a forma indeterminada (o “dizem”, “todos dizem”); as modalidades escolares (dizer com
as palavras do outro; e dizer com as próprias palavras); e a palavra autoritária. Entretanto,
não pretendemos limitarmo-nos a essas três categorias, tendo em vista que é possível
descobrirmos outras formas de retomada nos textos dos alunos, conforme será observado
no decorrer da análise.
É importante lembrar que, no nosso corpus, essa retomada da palavra do outro
pode se dar em relação aos textos que compõem a proposta de redação ou aos outros
discursos em circulação na sociedade.
Vejamos o Texto (1a):
TEXTO (1a)
Campina Grande, 08 de junho de 2004
Ilma Senhora deputada Marta Suplicy
Venho por meio desta carta expressar meu desapego ao seu projeto
de lei que legalizaria a união civil entre homossexuais.
Os direitos e leis são e devem ser feitos baseados nos padrões da
sociedade, e não nas excessões. Ser homossexual já é exercer um direito, é
liberdade de escolha, e todo direito exercido tem seu pesar. A união civil é um
direito dos heterossexuais, logo, seria injusto para com estes conceder a casais
“gays” este mesmo direito.
Meu ponto de vista sobre este tipo de união civil não se confunde
nem é influenciado pela minha opinião sobre homossexualismo, mas ainda
assim sou contra sua proposta.
Seria melhor que esta lei fosse mais bem pensada e melhor
analizada.
Atenciosamente,
Camila Ramos
73
Uma breve leitura do Texto (1a) é suficiente para perceber a adequação à
proposta no que diz respeito ao cumprimento do subgênero solicitado e ao objetivo geral
do texto: escrever para a deputada Marta Suplicy, discutindo a legitimidade do projeto
proposto por ela. Essa afirmação se confirma se observarmos (no plano formal) a
obediência à estrutura típica da carta de solicitação: local e data, vocativo, corpo da carta
(em que se expressa a solicitação e se argumenta), despedida e assinatura. O mesmo se
verificará com os outros textos que compõem nosso corpus, o que demonstra o
enquadramento da produção textual dos alunos-autores à situação que lhes é posta nessa
atividade escolar. Evidentemente, como afirma Sousa (2002), estão em jogo aqui os papéis
sociais atribuídos a professor e aluno: cabe àquele elaborar, aplicar e avaliar as atividades;
e a este cabe obedecer, participar das aulas quando solicitado e cumprir com as atividades,
para ser avaliado positivamente. Há que se considerar, é claro, como afirma a autora, que
há o espaço das surpresas e que muitas vezes esses papéis não funcionam como o esperado.
Mas não é apenas na estrutura da carta que os textos dialogam com a proposta e
nem este é o fator mais interessante para a compreensão dos modos de constituição do
dizer dos alunos. É nos recursos argumentativos escolhidos para compor cada uma que será
possível verificar o diálogo efetivo não só com a proposta, mas com outros discursos sobre
o tema que circulam na sociedade.
Especificamente em relação ao Texto (1a), verificamos, logo no primeiro
parágrafo, mais uma maneira de explicitar o atendimento à proposta através da indicação
do posicionamento assumido diante do projeto de lei e a retomada do teor desse projeto,
com as palavras da aluna-autora: “que legalizaria a união civil entre homossexuais”. É
interessante notar o uso do verbo no futuro do pretérito, indicando uma possibilidade
remota, que provavelmente não se confirmará.
74
No parágrafo seguinte, a aluna-autora passa a discutir as razões que, para ela,
justificariam o seu “desapego” ao projeto da deputada. Essa discussão em momento algum
retoma itens do projeto, expostos na proposta, mas vai se basear na problematização do que
é/deve ser considerado um direito. Nas quatro linhas que compõem o parágrafo, a palavra
direito aparece cinco vezes e oscila entre uma acepção jurídica (direito previsto por lei) e
uma acepção comum (direito de escolha). Segundo a aluna-autora, o direito (previsto por
lei) deve se basear “nos padrões da sociedade, e não nas excessões (sic)”.
Por outro lado, para ela, “ser homossexual já é exercer um direito, é liberdade
de escolha”; ou seja, a palavra direito assume aqui o sentido comum de direito de escolha,
pois, se este direito não precisa estar amparado legalmente, é exatamente porque faz parte
do consenso aceito pela sociedade: é fato que todos têm direito de escolher, são “livres”
para definir, por exemplo, sua opção sexual. No entanto, essa liberdade de escolha não
precisa ser, segundo a aluna-autora, assistida por uma lei, pois a lei é para o padrão e não
para a exceção.
Além disso, o argumento de que “ser homossexual já é exercer um direito”
também serviria para os heterossexuais, que usaram sua liberdade de escolha para definir
sua opção sexual. Assim, segundo o raciocínio construído no Texto (1a), os heterossexuais
já haviam se utilizado de um direito, o de escolha, e, portanto, não deveriam reivindicar
outros nem serem beneficiados juridicamente de nenhuma forma. Portanto, esse argumento
se mostra frágil, por permitir que sua lógica se volte contra a tese que se pretende defender
no texto, a de que uma vez exercido o direito de escolha, não há mais o que se exigir da
Justiça.
A aluna-autora utiliza ainda a palavra direito em sua acepção jurídica por mais
duas vezes no final do segundo parágrafo: “A união civil é um direito dos heterossexuais,
logo, seria injusto para com estes conceder a casais ‘gays’ este mesmo direito”. Diante
75
dessa “supervalorização” do direito amparado por lei, podemos dizer que, nessas últimas
ocorrências da palavra no referido parágrafo, ela assume quase o sentido de privilégio, de
regalia que não deve ser repartida com todos, pois não seria “justo” com aqueles que a têm.
Ora, este parece um eco de um discurso do poder, deslocado de vários contextos
ao longo da história: o discurso dos homens livres e brancos, que não querem dar a
“regalia” da liberdade aos escravos negros; ou o discurso dos homens, seres superiores
intelectualmente, que não querem permitir às inferiores mulheres a “regalia” do voto.
Nestes casos e em muitos outros semelhantes, o discurso é um só: alguém, que se
considera melhor ou que detém o poder, não pretende dividir seus direitos/regalias com os
outros considerados inferiores por ele.
Embora se perceba uma preocupação da aluna-autora (basta ver o terceiro
parágrafo) em não demonstrar uma posição anti-homossexualismo, não é isso que o seu
discurso transparece. O que demonstra que o sujeito não controla totalmente os sentidos do
seu dizer. Até porque a concessão dada aos homossexuais de que estes tenham o “direito
de escolha” não é de fato dada pela aluna-autora, que aqui assume este dizer, mas por uma
parcela da sociedade que defende esse direito, ou seja, a idéia de que podemos escolher
nosso caminho (inclusive nossa opção sexual) tornou-se um consenso que não se pode
negar. É o que “todos dizem” (para usar um termo de Bakhtin, 1998), então eles já
deveriam dar-se por satisfeitos, pois já seria mais do que suficiente ou mais do que a
sociedade pode tolerar...
E porque não seria “justo” conceder aos casais homossexuais os mesmos
direitos (na acepção jurídica) dos heterossexuais? Por dois motivos: primeiro porque se
estaria colocando em igualdade heterossexuais e homossexuais, o que seria impensável na
opinião dos que não aceitam esta escolha sexual; e segundo porque “todo direito exercido
tem o seu pesar” (2o. parágrafo), ou seja, no discurso da aluna-autora, não obter direitos
76
quanto à união civil seria a punição cabível aos homossexuais por utilizarem a “liberdade
de escolha” e por colocarem-se, dessa forma, à margem dos “padrões da sociedade”.
Este raciocínio nos remete às reflexões de Foucault (1987), acerca dos
mecanismos de vigilância e punição construídos no sistema penal, mas que também se
aplicam a outros sistemas disciplinares da sociedade, como o escolar, por exemplo. Neste
estudo, o autor afirma que a punição é o mecanismo encontrado para controlar os desvios e
extinguir o que não estiver conforme a “normalidade”, ou seja, o castigo disciplinar tem
uma função corretiva dupla: de um lado, punir as condutas já caracterizadas como
indesejáveis e, de outro, evitar que outros indivíduos a repitam.
Ao negar em seu texto a possibilidade de o homossexual ter direitos, no sentido
jurídico da palavra, a aluna-autora impinge uma punição a estes indivíduos que fugiram da
normalidade, do padrão social. Estabelecendo essa punição, ela também, implicitamente,
condena esse comportamento e desestimula a adesão de outras pessoas a essa escolha, pois
está subentendida a seguinte idéia: aqueles que escolherem esse desvio, serão igualmente
punidos.
Assim, neste trecho do Texto (1a), podemos reconhecer as cinco operações que,
segundo Foucault (1987), são postas em funcionamento com a punição: a comparação, a
diferenciação, a hierarquização, a homogeneidade e a exclusão (p.163-164). Tais operações
caracterizam a punição como uma atitude normalizadora, que privilegia o padrão aceito e
almejado pela sociedade; ou seja, o homossexual é comparado com o heterossexual, é
avaliado primeiramente como diferente e depois como inferior em relação a este, por fugir
da homogeneidade desejada, e, como resultado desse processo, é excluído dos direitos, do
convívio social, do respeito etc.
Para entender as estratégias utilizadas nesse Texto (1a), é importante observar
ainda que os textos que compõem a coletânea da proposta de redação não foram sequer
77
mencionados: não houve discussão alguma sobre os itens do projeto (expostos na
proposta); nem houve qualquer referência aos dois pontos de vista divulgados pela IstoÉ,
nem mesmo àquele que também é contrário ao projeto. Talvez porque esse último se utiliza
de argumentos baseados numa visão religiosa sobre o tema, mas a aluna-autora não
menciona explicitamente aspectos religiosos no seu texto. Esse dado será interessante
quando analisarmos a segunda produção desta aluna-autora.
Passemos ao Texto (2a):
TEXTO (2a)
Campina Grande, 08 de junho de 1995
Ilma. Sra. Deputada Marta Suplicy
Como é de total conhecimento de V. Sra, pois o projeto é seu, a lei
no. 1151, deste ano, é favorável à união civil de dois indivíduos do mesmo sexo.
Esta lei veio a ajudar os indivíduos homossexuais que encontram inúmeros
problemas de descriminação e preconceito dentro de nossa sociedade. Isto
atribui a lei uma enorme importância.
Contudo, a lei citada, apesar de oferecer inúmeros direitos aos
casais homossexuais, ainda apresenta restrições a certos direitos como o status
de casamento ao Contrato de Parceria Civil Registrada e usar o sobrenome do
parceiro.
Este é um caso muito delicado pois envolve questões étnicas que
podem não serem aceitas pela sociedade. Sendo o homossexual um ser humano
e um cidadão, deveria ter o mesmo direito de todos. É certo que a maioria das
pessoas são contra o casamento de homossexuais por puro preconceito. Esta lei,
se reformulada, viria a diminuir este preconceito por estar diminuindo
diferenças, ao menos nos direitos, entre a população.
É com respeito e humildade que solicito a V. Sra. que revise a lei
descrita anteriormente, para que possamos construir uma sociedade cada vez
melhor. Creio que conseguirás um grande apoio da comunidade de nossa
cidade, neste ano de eleições.
Atenciosamente,
Jean Raul
Assim como o Texto (1a), o Texto (2a) responde à proposta de redação quanto à
adequação à estrutura do subgênero solicitado. Contudo, o ponto de vista assumido agora é
outro: haverá no Texto 2 a concordância com o projeto de lei e a opção por discutir alguns
dos itens apresentados pela deputada, estratégia sugerida na comanda da proposta.
O aluno-autor do Texto (2a) também inicia sua carta retomando com as próprias
palavras a idéia central do projeto, mas sem explicitar ainda qual o seu posicionamento em
78
relação a este: “ a lei no. 1151, deste ano, é favorável à união civil de dois indivíduos do
mesmo sexo”. Este período acaba funcionando como uma resposta parcial à pergunta-tema
que é colocada na proposta: Você é favorável à união civil de duas pessoas do mesmo
sexo?.
Consideramos esta uma resposta parcial pelo fato de que a pergunta é dirigida
ao aluno-autor, mas é respondida não com a opinião do aluno sobre o tema, mas com a
explicitação do posicionamento do projeto; é como se o aluno-autor se esquivasse de dizer
logo o que pensa, qual sua posição, para dizer: “a lei (...) é favorável”, tirando de si a
responsabilidade sobre este dizer.
Notemos também que são utilizadas quase as mesmas palavras que compõem a
pergunta-tema, fazendo-nos lembrar daqueles exercícios escolares de leitura que exigem
que se dê a resposta completa, o que indica a repetição de parte da pergunta,
complementada pela resposta. É o que acontece aqui neste primeiro período que introduz o
texto. No entanto, essa repetição de palavras que compõem a pergunta assume um outro
sentido nesse novo contexto; não é apenas uma repetição, mas um recurso para se esquivar
de tomar uma posição sobre “um caso tão delicado” (3o. parágrafo). Tanto é assim que em
momento algum do texto o aluno-autor responde diretamente à pergunta, dizendo ser
favorável, mas, como veremos, prefere se aliar ao coro dos que defendem o fim do
preconceito, inclusive deste tipo.
Essa afirmação pode ser comprovada se observarmos que essa espécie de
resposta dada pelo aluno-autor, mas não assumida como dele, é seguida por uma avaliação
positiva do projeto, destacando sua importância para a redução do preconceito em relação
aos homossexuais:
Esta lei veio a ajudar os indivíduos homossexuais que encontram inúmeros
problemas de descriminação (sic) e preconceito dentro de nossa sociedade. Isto
atribui à lei uma enorme importância.
79
Embora não tenha explicitado até o momento o seu posicionamento, supõe-se
que o aluno-autor será favorável ao projeto, uma vez que apresenta seus aspectos positivos,
os quais se encontram em consonância com um discurso valorizado socialmente: o antipreconceito. Ou seja, ao considerar a lei importante porque iria “ajudar” os homossexuais
quanto ao preconceito sofrido, o aluno-autor está retomando um discurso que também faz
parte do senso-comum da sociedade e que se encontra aliado às idéias ditas politicamente
corretas: o de que o preconceito não deve existir, que esta é uma postura mal-vista pelas
pessoas.
Além de ser um discurso já bastante difundido, também é discutido em um dos
textos da coletânea que compõe a proposta. O texto assinado por Vicente Paulo da Silva,
publicado na IstoÉ, aborda o tema exatamente sobre o prisma do preconceito sofrido pelos
homossexuais. Vicente Paulo se posiciona a favor do projeto, tal qual o faz o aluno-autor
do Texto (2a), e justifica seu ponto de vista através da necessidade de se combater o
preconceito e a injustiça direcionados a esse grupo de pessoas, que merece os mesmos
“direitos básicos” (como diz o presidente da CUT em seu texto) dos outros cidadãos.
Percebe-se, então, que o aluno-autor defenderá o mesmo ponto de vista de
Vicentinho, ao menos é a essa interpretação que nos leva o primeiro parágrafo, até que se
leia a palavra que inicia o segundo: contudo. Tal palavra cria a expectativa de que a partir
de agora o aluno-autor se posicionará contrariamente ao projeto. Vejamos:
Contudo, a lei citada, apesar de oferecer inúmeros direitos aos casais
homossexuais, ainda apresenta restrições a certos direitos como o status de
casamento ao Contrato de Parceria Civil Registrada e usar o sobrenome do
parceiro.
A informação que se segue ao contudo é mais uma concessão às qualidades do
projeto de lei (ele oferece “inúmeros direitos aos casais homossexuais”), seguida do
aspecto negativo: ainda apresenta restrições a certos direitos. Evidentemente, isso não se
caracteriza como uma oposição ao documento. O que se percebe, então, é que, na verdade,
80
o aluno-autor não apenas concorda com o que a deputada propõe, como também acha que
ela ainda poderia ir além e sugerir a inserção de outros direitos para os casais
homossexuais.
Essa estratégia se mostra totalmente diferente da que é utilizada no Texto (1a),
anteriormente analisado. Naquele, como vimos, o discurso do Direito era retomado através
de um paralelo entre o que é padrão (e por isso é desejado e incentivado pela sociedade) e
o que é exceção (e por isso deve ser punido, a fim de se garantir a manutenção do padrão).
Dessa forma, o direito era utilizado como argumento para a homogeneização da sociedade,
mas não através da igualdade de direitos para os diferentes entre si, e sim através da
negação de direitos aos que são diferentes do padrão, com o objetivo de puni-los
exemplarmente, evitando, assim, desvios de comportamento.
Ao contrário do que ocorre no Texto (1a), no Texto (2a) o discurso do direito é
retomado como saída para a discriminação; reconhece-se que há diferenças e é exatamente
por havê-las que os direitos devem existir para assegurar que todos sejam tratados
igualmente, apesar da diversidade de comportamentos. Esse seria o papel da justiça:
assegurar um tratamento igual numa sociedade de multiplicidades e diferenças.
Além dessa quebra de expectativa, o que chama a atenção no Texto (2a) é o
diálogo com os itens do projeto, os quais são retomados com as palavras desse documento,
expostas como se fossem do aluno-autor: “ainda apresenta restrições a certos direitos como
o status de casamento ao Contrato de Parceria Civil Registrada e usar o sobrenome do
parceiro” (grifo nosso). As expressões destacadas são apresentadas na proposta de
redação, dentro do subitem O que o projeto não propõe, de que o aluno se vale para
comprovar o que, na sua opinião, seriam limitações do projeto de lei no. 1151.
Mas esse não é o único momento em que se percebe uma relação entre o que
diz o aluno-autor e o que diz a proposta de redação, em qualquer um dos itens que a
81
compõem: a coletânea e a comanda. Há outras passagens nas quais se registra o recurso a
idéias também presentes no texto do sindicalista Vicente Paulo da Silva, principalmente no
3o. parágrafo do Texto (2a), que recuperamos a seguir:
Este é um caso muito delicado pois envolve questões étnicas (sic) que podem
não serem aceitas pela sociedade. Sendo o homossexual um ser humano e um
cidadão, deveria ter o mesmo direito de todos. É certo que a maioria das pessoas
são contra o casamento de homossexuais por puro preconceito. Esta lei, se
reformulada, viria a diminuir este preconceito por estar diminuindo diferenças,
ao menos nos direitos, entre a população.
Vejamos esse percurso argumentativo no texto de Vicentinho, através das
expressões destacadas por nós, que correspondem exatamente à mesma seqüência
argumentativa seguida pelo aluno-autor no Texto 2(a):
Muita polêmica tem surgido em torno do projeto da deputada Marta Suplicy,
que regulamenta o contrato civil entre parceiros do mesmo sexo. Manifesto meu
apoio porque respeito a individualidade. Respeito o direitos (sic) das pessoas
buscarem a própria felicidade e terem seus direitos assegurados. No caso do
contrato civil entre pessoas do mesmo sexo, o objetivo do projeto é estender aos
homossexuais alguns direitos básicos da cidadania. Pessoas que moram juntas
por anos, como (sic) o falecimento de um dos parceiros o outro não tem direito à
Previdência ou aos bens do falecido. Por quê? Não há explicação razoável, a
não ser o preconceito. Trabalhadores qualificados, que desempenham com
dedicação e talentos suas atividades, são barrados na ascensão profissional
devido à opção sexual. Em muitos casos, suas vidas são abaladas. São vítimas
de chacotas e humilhações nas escolas e nos clubes. O projeto não acaba com
estas injustiças sociais – pudesse um projeto de lei pôr fim às injustiças! Mas
garante um direito.
VICENTE PAULO DA SILVA (presidente da CUT)
Observando o texto do aluno-autor, temos que: primeiro, há o reconhecimento
por ele de que a implantação deste projeto não é da vontade de toda a população; depois,
ele reafirma a necessidade de que os direitos dos homossexuais sejam respeitados, pois eles
também são cidadãos tanto quanto os heterossexuais; em seguida, é apresentada a
justificativa para o fato de a população brasileira não aceitar o projeto, segundo ele, o puro
preconceito; para finalizar o “seu” raciocínio, ele considera, assim como o presidente da
CUT, que o projeto da deputada seria uma forma de diminuir este preconceito, pois estaria
diminuindo as diferenças. Neste último período, é interessante notar a ressalva que o
82
segue: ao menos nos direitos. Ora, até nisso os dois textos se parecem, ao afirmarem que o
projeto sozinho não resolve o problema do preconceito sofrido por essas pessoas, mas já se
mostra um avanço em direção à igualdade de direitos.
Seria possível, então, estabelecer o seguinte paralelo entre esses dois discursos,
construídos em textos e momentos de produção distintos, mas que agora se aproximam
numa situação escolar:
Texto (2a)
Texto de Vicentinho
I) Este é um caso muito delicado, pois envolve I) Muita polêmica tem surgido em torno do projeto
questões étnicas que podem não serem aceitas pela da deputada Marta Suplicy
sociedade
II) Sendo o homossexual um ser humano e um II) Respeito o direitos (...) das pessoas buscarem a
cidadão, deveria ter o mesmo direito de todos
própria felicidade e terem seus direitos assegurados
# (...) alguns direitos básicos da cidadania
III) É certo que a maioria das pessoas são contra o III) Não há explicação razoável, a não ser o
casamento de homossexuais por puro preconceito
preconceito
IV) Esta lei, se reformulada, viria a diminuir este IV) O projeto não acaba com estas injustiças sociais
preconceito por estar diminuindo diferenças, ao (...).Mas garante um direito
menos nos direitos, entre a população
Não é difícil perceber que, embora tenham formulações diferentes, os trechos
acima produzem efeitos de sentido semelhantes, garantidos ora pela repetição de algumas
palavras (tais como direito, cidadão/cidadania, preconceito), ora por uma relação de
contigüidade, ou seja, através da continuidade, da complementação de um discurso pelo
outro. Como exemplo desta relação temos os trechos I e IV, de ambos os textos. Vejamos
mais detalhadamente.
No trecho I, encontramos a afirmativa de Vicentinho de que há “muita
polêmica” em torno do projeto da deputada; no trecho I do Texto (2a), encontramos a idéia
de que este é um assunto “muito delicado”. Uma informação parece complementar a outra,
levando ao seguinte raciocínio: o projeto causa polêmica (texto de Vicentinho), entre
outras razões, porque aborda um assunto muito delicado, com “questões que podem não
83
serem (sic) aceitas pela sociedade”. Há portanto, uma continuidade entre esses dois
discursos, de maneira que um justifica o outro.
No trecho IV de cada texto ocorre o mesmo processo. A idéia, defendida por
Vicente Paulo, de que o projeto “não acaba com estas injustiças sociais”, mas “garante um
direito”, encontra um eco que o continua no texto do aluno. Ambos consideram que o
projeto não é a solução para o problema social vividos pelos homossexuais, mas o
consideram um avanço no sentido de garantir a igualdade entre as pessoas, “ao menos nos
direitos”.
Gostaríamos de chamar a atenção ainda para a relação entre a expressão É
certo que, indicando muita segurança e certeza por parte do aluno-autor acerca da
afirmação que faz; e o trecho no qual Vicentinho categoricamente afirma que não há
explicação razoável, a não ser o preconceito, para o fato de que os homossexuais não
tenham direitos básicos da cidadania, como, por exemplo, à herança.
É possível supor que, ao ter lido essa informação no texto do sindicalista, o
aluno a tome como verdade inquestionável, mostrando-se plenamente convencido pelos
argumentos apresentados pelo sindicalista, aderindo a eles e tornando-os o seu próprio
dizer. Isso justificaria, portanto, o uso dessa expressão É certo que, que demonstra firmeza
no posicionamento. Outra maneira de ver esse dado seria através de sua relação direta com
a situação escolar de produção na qual se inserem os textos comentados; ou seja,
considerando que o texto de Vicentinho passou a fazer parte de uma atividade sugerida por
uma professora, numa escola, pode ter-se tornado também, aos olhos do aluno-autor, um
texto didático a ser copiado e/ou imitado, embora adaptado aos novos objetivos
explicitados na proposta.
Mas é essa “adaptação”, necessária à nova situação de surgimento desse dizer,
que acaba por torná-lo novo. No final deste mesmo parágrafo do Texto (2a), encontramos
84
uma ressalva: a lei, para o aluno-autor, só interessaria “se reformulada”, pois atingiria
metas mais amplas. Assim, embora retome o texto que compõe a proposta, seguindo até a
mesma seqüência de idéias, o aluno-autor não se limita a repetir o já-dito9, mas, ainda que
inconscientemente, o torna seu, através de dois recursos principais: a formulação, isto é, o
modo de sua elaboração, que é feita com suas próprias palavras; e a inserção dessas idéias
nesse novo contexto, que as torna, em certa medida, novas, dadas as circunstâncias de seu
surgimento agora serem diferentes.
Em outras palavras, as idéias são recuperadas com objetivos específicos bem
diferentes nos dois textos, embora o ponto de vista sobre o assunto seja o mesmo; ou seja,
ambos concordam com o projeto, mas o objetivo do Texto (2a), escrito pelo aluno-autor, é
pedir reformulações à deputada, a fim de garantir mais direitos aos homossexuais; o
objetivo do texto publicado na IstoÉ é apenas expressar uma opinião, defender um ponto
de vista favorável ao projeto de Marta Suplicy, respondendo a uma revista de circulação
nacional. Por essa razão, pode-se dizer que as palavras, as idéias, são apenas “quase” as
mesmas, já que, para o aluno-autor, a lei só viria a diminuir este preconceito se fosse
reformulada e incluísse outros itens deixados de fora pela deputada.
Como se vê, as idéias são as mesmas e a seqüência de sua exposição num e
noutro texto é praticamente igual, mas o fato de haver condições de produção diferentes é
suficiente para gerar efeitos de sentido também distintos; trata-se de um novo dizer, que se
baseia no já-dito, evidentemente, mas que não se limita a repeti-lo.
Por fim, assim como o Texto (1a), o (2a) é encerrado como um apelo à
deputada para que o projeto no. 1151 seja repensado; no Texto (1a), esse repensar aparece
num contexto de reprovação das idéias do projeto, enquanto no Texto (2a) surge como um
9
Mesmo que o fizesse, não conseguiria repetir os mesmos efeitos de sentido, tendo em vista os
enquadramentos construídos pelo contexto desse novo dizer.
85
pedido de reformulação com vistas à ampliação das idéias apresentadas em favor dos
homossexuais.
Como pudemos perceber ao longo deste item, os alunos-autores dos Textos
(1a) e (2a) apresentam pontos de vista diferentes e têm objetivos também diferentes em
seus textos: o primeiro, solicita o abandono do projeto, enquanto o segundo sugere que
nele sejam inseridos novos direitos para os homossexuais. Contudo, ambos recorrem ao
mesmo eixo argumentativo: a ancoragem no discurso do Direito, que assume efeitos de
sentido distintos em cada um dos dois textos, conforme explicitado.
4.2.2. Pontos de vista iguais, estratégias também: o dizer ancorado
no discurso da Religião
Os próximos dois textos a serem analisados apresentam uma característica em
comum: ambos são contrários à aprovação do projeto de lei proposto por Marta Suplicy e
recorrem ao discurso religioso, mais especificamente ao católico, para defender os seus
pontos de vista sobre o tema.
Façamos uma leitura do Texto (3a):
Texto (3a)
Campina Grande, 08 de junho de 2004
Sra. Deputada Marta Suplicy
É do consenso de todos que os indivíduos que se relacionam por
meio de um união homossexual não dispõem de direitos legais. Sabe-se também
que há uma série de obstáculos que dificultam a vida destas pessoas, com
destaque para o preconceito, que impede até mesmo a ascensão profissional
delas.
Cada vez mais, surgem órgãos que visam a defender os direitos
homossexuais, lutando pela criação e preservação de leis a favor deste grupo
minoritário da sociedade atual. No entanto, em que se baseiam estas
reivindicações? Quais os fundamentos que as regem? Quais suas justificativas?
Desde a criação da vida, as relações entre os seres vivos têm se
dado coforme as determinações divinas: os organismos de gêneros diferentes
interagem e perpetuam sua espécie, caracterizando o chamado “ciclo da vida”.
Desde os elementares insetos, até os racionais seres humanos, esta lei tem
prevalecido e sido seguida. Entretanto, parece-me que exatamente os seres
humanos, os mais conscientes e racionais organismos do mundo, têm realizado
um movimento retrógrado em sua existência, contrariando, de forma sandia, e
86
por que não dizer blasfema, a vontade do ser supremo do universo, que disse
que o HOMEM e a MULHER deixariam seus pais, unir-se-iam e multiplicar-seiam. Na verdade, destas pessoas, que foram capazes de se opor ao talvez mais
básico dos desígnios divinos, pode-se esperar as mais absurdas idéias e atitudes,
o que as torna, de fato, indivíduos indignos de qualquer consideração. A elas,
que seja destinado apenas o mínimo respeito requerido por um ser humano. E
que não me venham falar em igualdade de pessoas e de direitos, pois, de forma
alguma, aceito ser igualado a estas criaturas “excessivamente modernas”.
A audácia e a insensatez das pessoas aqui referidas chegou a tal
ponto que estas atrevem-se a profanar até mesmo o sagrado sacramento do
Matrimônio, tentando garantir para si o direito de se unir civil e religiosamente,
esquecendo-se que este está reservado para aqueles que não molestaram a
sublimidade e a grandeza desta união. E se elas podem reivindicar direitos como
este, eu também posso exigir o direito de ter e criar um filho sem a preocupação
de este ser influenciado e afetado pelos pensamentos homossexuais.
O projeto de lei que a senhora propõe não prevê a liberação de
certos pontos, como a adoção de crianças. No entanto, já em sua essência atua
como um estímulo para que, cada vez mais, os imaturos jovens de nossa geração
resolvam “experimentar novas aventuras”, e sejam corrompidos por este grave
pecado, passando a avolumar as multidões homossexuais que ridiculamente
lutam por seus “direitos” e que não tardarão a buscar medidas ainda mais
absurdas, como a possibilidade de constituição de uma família. Comover-me-ia
ver um inocente garotinho ser humilhado por seus colegas de escola no
momento em que estes soubessem que aquele era um filho de pais
homossexuais.
Diante do exposto, e ainda extasiado frente a esta proposta de lei,
que me parece ainda mais absurdo quando me recordo de que a senhora é uma já
experiente e renomada sexóloga, proponho, juntamente com milhões de
brasileiros que não se podem calar diante de tamanho absurdo, a imediata
anulação deste projeto, e sugiro que, ao invés de facilitar a vida destas “ovelhas
desgarradas do rebanho”, busque-se dificultá-la ainda mais, a fim de que se
possa diminuir a crescente adesão da população a este grupo de anormais e,
quem, sabe, chegar a uma erradicação desta praga que assola nosso mundo
atual. Do contrário, será necessário que se pense duas vezes antes de se ter um
filho, pois muitos pais podem não estar preparados para ver aquela criança, que
foi tratada com imenso amor e dedicação, de mãos dadas com uma pessoa do
mesmo sexo.
Desde já, agradeço-lhe a sua atenção.
Marcelo Duarte
Este é o mais longo dos quatro textos analisados neste primeiro momento e foi
o único a não ser concluído em sala de aula.
Os dois primeiros parágrafos do Texto (3a) servem para situar a discussão
acerca dos direitos dos homossexuais. Especificamente no primeiro parágrafo, tem-se o
recurso ao consenso ao sabe-se que, para se referir ao projeto e à situação dos
homossexuais na sociedade; este consenso a que se recorre encontra-se fundamentado na
própria proposta de redação, conforme já discutimos anteriormente, uma vez que está
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presente no texto de Vicente Paulo da Silva a informação de que “há uma série de
obstáculos que dificultam a vida destas pessoas, com destaque para o preconceito, que
impede até mesmo a ascensão profissional delas”. Trata-se de uma estratégia de
reconhecimento seguido de negação, pois o aluno-autor recorre ao consenso, reconhecendo
a existência de uma idéia já consagrada, para em seguida negá-la ou condená-la.
É interessante observar que a mesma informação é utilizada nos dois textos, no
entanto, em contextos diferentes e com objetivos também distintos: no texto do presidente
da CUT, o objetivo é criticar o que ele considera ser uma injustiça social; o tom, por um
lado, é de indignação diante da realidade vivida pelos homossexuais, e, por outro, é de
aprovação ao projeto de lei, que visa a amenizar essa injustiça.
Já no Texto (3a), o discurso de que esse grupo de pessoas sofre preconceito,
exemplificado pelos obstáculos à ascensão profissional dos homossexuais, é retomado
apenas como forma de reconhecer um fato, uma situação inegável (que é do consenso e do
saber de todos), mas não para colocá-la como uma injustiça social, tampouco para validar
as idéias do projeto. Na verdade, o aluno-autor as retoma para, em seguida, questioná-las e
questionar também o mérito daqueles órgãos que visam a defender os direitos dos
homossexuais, o que é feito a partir da formulação de perguntas no segundo parágrafo: “no
entanto, em que se baseiam estas reivindicações? Quais os fundamentos que as regem?
Quais suas justificativas?”. Esta estratégia termina por reforçar o preconceito que ele
menciona como situação inegável.
O uso da conjunção no entanto será, neste início de texto, o único indício do
posicionamento assumido por seu autor em relação ao projeto de Marta Suplicy. Ou seja,
neste caso, a expectativa criada pelo uso dessa expressão se confirmará nos parágrafos
seguintes, pois é como se o aluno dissesse: “tudo bem, reconheço que essa realidade é
88
dura, difícil, e que por isso há grupos que lutam para modificá-la; no entanto não concordo
com as reivindicações feitas, nem com suas justificativas e fundamentos”.
É possível confirmar esta leitura no 3o. parágrafo, no qual, embora o alunoautor não responda claramente às perguntas que ele mesmo formulou, implicitamente
percebemos seu descontentamento, não com o projeto de lei (este só será comentado no 5o.
parágrafo), mas com a opção dos homossexuais.
Recuperemos, então, o esse parágrafo:
Desde a criação da vida, as relações entre os seres vivos têm se dado conforme
as determinações divinas: os organismos de gêneros diferentes interagem e
perpetuam sua espécie, caracterizando o chamado “ciclo da vida”. Desde os
elementares insetos, até os racionais seres humanos, esta lei tem prevalecido e
sido seguida. Entretanto, parece-me que exatamente os seres humanos, os mais
conscientes e racionais organismos do mundo, têm realizado um movimento
retrógrado em sua existência, contrariando, de forma sandia, e por que não dizer
blasfema, a vontade do ser supremo do universo, que disse que o HOMEM e a
MULHER deixariam seus pais, unir-se-iam e multiplicar-se-iam. Na verdade,
destas pessoas, que foram capazes de se opor ao talvez mais básico dos
desígnios divinos, pode-se esperar as mais absurdas idéias e atitudes, o que as
torna, de fato, indivíduos indignos de qualquer consideração. A elas, que seja
destinado apenas o mínimo respeito requerido por um ser humano. E que não
me venham falar em igualdade de pessoas e de direitos, pois, de forma alguma,
aceito ser igualado a estas criaturas “excessivamente modernas”.
Um dos recursos mais constantes neste parágrafo é a retomada do discurso
religioso, através de palavras que pertencem a essa esfera ou de referência explícita a
passagens bíblicas e aos preceitos que elas transmitem. No entanto, talvez a fim de
fornecer um caráter de cientificidade aos seus argumentos, o aluno também recorre com
constância a termos e idéias do discurso científico, especificamente a Biologia. Essa
associação é feita neste parágrafo como se as leis divinas e as leis naturais fossem as
mesmas (mas estas subordinadas àquelas), pois seriam regidas pelos mesmos princípios,
sendo o principal deles aquele que diz que cabe aos organismos de gêneros diferentes
interagirem e perpetuarem a espécie, caracterizando o chamado ‘ciclo da vida’. Essa
afirmação se completa com o trecho: Desde os elementares insetos, até os racionais seres
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humanos, esta lei tem prevalecido e sido seguida. É inaceitável, então, a partir dessa
perspectiva, que os homossexuais, seres do mesmo gênero, contrariem essa lei.
Ao utilizar a palavra lei, nesse contexto, há uma fusão entre o que seriam as
leis da natureza e as leis divinas, uma vez que o parágrafo se inicia com a idéia de que tudo
se passa no mundo conforme as determinações divinas e os exemplos concretos
apresentados recorrem ao conhecimento da Biologia. Entretanto, essa ciência não é
retomada imparcialmente; tampouco os exemplos extraídos são quaisquer um. Contudo,
vê-se que o aluno-autor ignora as informações sobre seres vivos que têm um
comportamento que foge a essa lei divina da perpetuação da espécie, como, por exemplo,
os organismos de reprodução assexuada. Além disso, a própria noção de ciclo da vida,
construída pela Biologia, aparece aqui associada a uma “determinação divina”.
A lei, então, em sua acepção jurídica, é ignorada, tendo em vista que há outra
mais importante, que deve prevalecer sobre as demais: a lei divina. Neste texto, a idéia de
igualdade de direitos entre os cidadãos é cogitada apenas para ser refutada, ou seja, há um
reconhecimento para em seguida haver a negação. É o que se verifica especialmente no
trecho: e não me venham falar em igualdade de pessoas e de direitos. Aqui, gostaríamos
de destacar a expressão e não venham me falar em igualdade, pois, embora o aluno-autor
tenha a deputada Marta Suplicy como destinatária sugerida pela proposta, ele se utiliza de
uma indeterminação para se opor ao discurso da igualdade entre as pessoas. Isso revela
que, na verdade, ele não está dialogando apenas com a deputada, mas com o grupo de
pessoas que defende o contrato civil como um direito. Ele não estaria, portanto, recusando
a posição da deputada, mas de todas as pessoas favoráveis ao contrato, inclusive à de
Vicentinho, cujo texto compõe a proposta.
Outro momento em que se pode perceber, ainda neste parágrafo, a forte
influência do discurso religioso é aquele no qual o aluno-autor utiliza o discurso indireto,
90
parafraseando o texto bíblico: ser supremo do universo, que disse que o HOMEM e a
MULHER deixariam seus pais, unir-se-iam e multiplicar-se-iam. Ora, se esta é a palavra
do ser supremo do universo, aqueles que se opõem ou fogem a ela só podem ser
considerados indignos e sandios, ao menos no raciocínio desenvolvido no Texto (3a). O
uso das maiúsculas em toda a extensão das palavras “homem” e “mulher” também reforça
o ponto de vista assumido, segundo o qual não há outra possibilidade de união aceitável, a
não ser a heterossexual.
O tom enfático e incisivo assumido pelo aluno-autor também pode ser
percebido através da observação de outro aspecto do seu texto: a escolha lexical. Os
substantivos e adjetivos assumem sempre um valor positivo ao se referir aos símbolos
religiosos, e negativo ao se referir aos homossexuais e a suas atitudes. Esta avaliação tão
negativa, como vimos demonstrando, tem como base o papel, assumido pelo aluno-autor,
de defensor dos preceitos religiosos. Vejamos alguns exemplos, parágrafo por parágrafo,
de expressões que revelam essa opinião negativa sobre os homossexuais, de um lado, e a
exaltação da religião, de outro:
3o. parágrafo
4o. parágrafo
5o. parágrafo
6o. parágrafo
Expressões relacionadas ao
homossexualismo
movimento retrógrado; forma sandia,
e por que não dizer blasfema; as
mais absurdas idéias e atitudes;
indivíduos indignos de qualquer consideração; criaturas ‘excessivamente
modernas’
audácia e insensatez das pessoas aqui
referidas; profanar; aqueles que não
molestaram a sublimidade e a grandeza desta união
corrompidos por esse grave pecado;
multidões homossexuais que ridiculamente lutam por seus ‘direitos’;
medidas ainda mais absurdas
proposta de lei, que me parece ainda
mais absurdo; não se podem calar
diante de tamanho absurdo; grupo de
anormais; erradicação dessa praga
Expressões relacionadas à
religião
ser supremo do universo;
mais básico dos desígnios
divinos
o sagrado sacramento do
Matrimônio; (...) sublimidade e grandeza desta união
_____________
_____________
91
Gostaríamos de destacar algumas palavras que esclarecem a relação entre o
discurso religioso e a avaliação feita pelo aluno-autor acerca dos homossexuais: blasfema
(3o. parágrafo), profanar e molestaram (4o. parágrafo) e corrompidos (5o. parágrafo). Esses
vocábulos ressaltam o caráter sagrado dos dogmas religiosos, em relação aos quais só se
pode ter duas posições absolutas: a aceitação ou a recusa. Neste último caso, não é uma
decisão que ocorre impunenemente, mas que assume as feições de crime cujo autor deve
ser punido; por essa razão, aqueles que escolhem essa posição são avaliados
negativamente, como pessoas que profanaram, molestaram o sagrado e blasfemaram contra
ele. Em outras palavras, só se pode assumir duas posições: a que aceita sem questionar ou a
que recusa, devendo o sujeito neste caso estar preparado para as sanções que decorrem
dessa decisão. Essa é a base de todo discurso autoritário, conforme Bakhtin (1998), dentro
do qual o religioso se inclui.
Merece também destaque o fato de haver muito mais ocorrências depreciando a
opção e as atitudes dos homossexuais do que expressões enaltecedoras a elementos da
religião. Basta ver a quantidade de expressões dedicadas a cada um nos parágrafos citados
e a inexistência, nos parágrafos 5o. e 6o., de referências ao discurso religioso. Essa
estratégia demonstra que o aluno-autor se ocupa muito mais em denegrir a imagem dos
homossexuais do que propriamente promover os preceitos religiosos que justificariam o
seu ponto de vista sobre o assunto.
Esse mesmo tom no tratamento do tema é encontrado no texto de Newton Cruz,
exposto na proposta de redação como uma opinião contrária ao projeto da deputada Marta
Suplicy. Vejamos:
Considero o casamento entre homossexuais o fim do mundo. O homossexual é
um anormal. O casamento entre eles uma anormalidade dupla. Aceitá-lo é uma
ofensa à sociedade. O homem e a mulher foram criados com uma certa
destinação. Estão destinados à procriação. Crescei e multiplicai-vos, diz a
Bíblia. Como é que dois homens juntos vão crescer e se multiplicar? O
homossexualismo sempre existiu, mas nunca foi aceito. Hoje eles são aceitos
porque fazem parte das minorias. Então traficante também tem que ficar aceito
92
porque também é minoria. O homossexual é um viciado. A sociedade não pode
aceitar isso. Tenho onze netos, nove homens, e graças a Deus são todos
normais.
O Texto (3a), assim como o general da reserva, também se refere aos
homossexuais como anormais, em oposição ao que seria o comportamento considerado
normal: a heterossexualidade. Assim, Newton Cruz faz a mesma avaliação negativa em
relação aos homossexuais, usando o adjetivo viciado para se referir a eles e afirma, quanto
ao casamento homossexual, que é uma anormalidade dupla e que aceitá-lo é uma ofensa à
sociedade.
Se buscarmos no dicionário Larrouse (1992: 803) o significado do vocábulo
ofensa, veremos que é uma “palavra, ação que fere alguém na sua dignidade” ou ainda uma
“transgressão de regras; falta”. Parece-nos que ambos os significados caberiam aqui quanto
à frase supracitada: por um lado, a união civil entre homossexuais fere a dignidade
daqueles que acreditam ser esta apenas associada a ações pautadas nos princípios bíblicos,
e que se sentem incomodados com os que não pensam/agem dessa forma desejada. Por
outro lado, a união civil é uma transgressão, uma fuga à normalidade e ao comportamento
esperado, uma vez que há uma lei explícita na Bíblia sobre a união entre os seres, que, no
caso do homossexualismo, não é cumprida, o que torna os praticantes dessa opção sexual
anormais, transgressores e não desejados.
No texto de Newton Cruz, a idéia de transgressão do homossexualismo também
se confirma se observarmos a comparação estabelecida entre os homossexuais e os
bandidos, que são transgressores da lei: “Hoje eles são aceitos porque fazem parte das
minorias. Então traficante também tem que ficar aceito porque também é minoria”.
Para fundamentar essa avaliação negativa sobre o homossexualismo, o general
também se baseia no texto bíblico sobre a procriação: “O homem e a mulher foram criados
com uma certa destinação. Estão destinados à procriação. Crescei e multiplicai-vos, diz a
Bíblia. Como é que dois homens juntos vão crescer e se multiplicar?”. Então, uma vez
93
criada a lei divina de que a função da existência humana é a procriação, se o homossexual
não pode procriar, não pode ser aceito. Seguindo o mesmo raciocínio, caberia perguntar se
as pessoas estéreis também não podem ser aceitas, porque a sua “anormalidade” fere a
razão de ser da existência humana, proclamada pela Bíblia. Vê-se que não se trata disso,
mas de preconceito em relação aos homossexuais. Tanto é assim que o texto todo os
recrimina (ver os adjetivos empregados), e chega ao limite da ofensa.
É interessante notar que, em ambos os textos, o de Newton Cruz e o Texto (3a),
o projeto não é o centro da discussão, embora tenha sido sua motivação inicial. Essa
motivação, no entanto, se perde, e a discussão muda de foco, passando a estar centrada no
homossexualismo em si mesmo e não na união civil nos termos previstos pelo projeto. A
questão, então, não é mais concordar com ou discordar da legalização de um direito para
um grupo de cidadãos, mas concordar ou não com a opção de vida desse grupo, a qual é
avaliada a partir de critérios bastante fluidos, por não serem unânimes: os religiosos.
Ao escolher esses critérios, os autores avaliam o outro a partir da perspectiva de
uma palavra autoritária, que não aceita questionamentos ou desvios de suas regras. O
discurso religioso, autoritário por excelência, não permite ser contestado, e aqueles que se
atrevem a fazê-lo são considerados blasfemos, hereges, anormais...
Caberia perguntarmo-nos agora: o que revela essa semelhança entre o Texto
(3a) e o de Newton Cruz? Que posição é essa que possibilita esses sujeitos, que vivem
momentos de vida diferentes e tiveram experiências de vida distintas, expressarem-se
através de recursos tão parecidos ao discutir um mesmo assunto (validando, assim, o poder
do discurso religioso)? Poderíamos afirmar que eles apenas repetem já-ditos, marcando
assim a morte do sujeito-autor? Não. Na verdade, o sujeito-autor continua sendo livre para
escolher se, numa dada situação de interação, cabe, por exemplo, o discurso religioso, e
isso já é uma ação com a linguagem.
94
Além disso, o modo como esse discurso aparece faz diferença: nem no Texto
(3a) nem no do general o trecho bíblico sobre a criação e a procriação é retomado
literalmente, através de uma citação direta. Nos dois casos, ele é retomado indiretamente,
com as palavras dos autores de cada texto, como se eles a recuperassem “de memória”,
mas de uma memória que retoma um saber “sempre-lá”, um saber que já faz parte do
conhecimento do autor e de toda a sociedade e que é considerado verdade incontestável por
boa parte desta. Não é impossível, inclusive, que a forma pela qual tomou conhecimento
desse discurso tenha sido também indireta, através não do dizer bíblico original, buscado
na fonte, mas do dizer de outros sobre a Bíblia.
O último texto a ser analisado nesta parte da pesquisa também se posicionará
contrariamente ao projeto de lei, adotando os mesmos critérios religiosos para justificar a
sua opinião. Vejamos o texto:
Texto (4a)
Campina Grande, 01 de junho de 2004
Sra. deputada Marta Suplicy
Diante da proposta apresentada pelo projeto de lei número 1151, do
ano de 1995, de autoria de Vossa Senhoria, o qual defende um contrato de
parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, venho posicioná-la a respeito da
minha visão sobre o tema.
Na criação, a qual, ao contrário do que muitos pensam ser fruto de
uma grande explosão, Deus, em sua onisciência e suprema sabedoria, idealizou
e criou o homem segundo lhe aprouve, promovendo, posteriormente, a criação
de uma auxiliadora que lhe fosse idônea, alegando o fato de não ser produtivo o
homem viver só. Assim, o relacionamento amoroso deve se enquadrar nesse
contexto, pois havendo desvio se contraria totalmente os conceitos bíblicos.
Além das razões expostas, há uma questão fundamental: como um
casal de homossexuais poderão desfrutar do maravilhoso privilégio de serem pai
e mãe? E, para o caso da adoção, qual a imagem que a criança formará dos pais?
Certamente, será uma imagem deturpada e em sua criação irá desenvolver-se
valores errados e sempre irá se perguntar o que levou seus “pais” a fazerem essa
opção sexual e poderá até apresentar um certo receio de falar ou apresentar seus
“pais” para os seus colegas.
Toda criança necessita de crescer em um ambiente familiar
saudável, regido por princípios cristãos, que forneçam base para que ela se torne
um cidadão responsável, cumpridor de seus deveres e participativo, ambiente
este impossível de ser construído em um relacionamento entre pessoas do
mesmo sexo.
Diante dos motivos apresentados, peço que a Vossa Senhoria
reavalie seus conceitos e possa solicitar a imediata não aprovação do projeto a
fim de contribuir para a edificação de uma sociedade justa, cristã e saudável.
95
Agradeço antecipadamente sua compreensão,
Denise Pereira
Diferentemente do Texto (3a), o Texto (4a) se inicia já com referência à
existência do projeto de Marta Suplicy e ao que ele propõe, conforme se pode verificar no
1o. parágrafo.
O trecho seguinte se baseará em passagens da Bíblia, recuperadas pela alunaautora com suas próprias palavras. No entanto, o texto bíblico da criação é retomado sem
que se diga que as idéias ali expostas têm base neste livro cristão; na verdade, o alunaautora reconta a cena da criação do homem por Deus com a convicção de quem a
presenciou e não de quem a leu. Esta convicção se reflete na negação do discurso científico
sobre a criação do mundo: “na criação, ao contrário do que muitos pensam ser fruto de
uma grande explosão, Deus (...) idealizou e criou o homem segundo lhe aprouve”. Ou seja,
de maneira alguma se pode atribuir o surgimento do homem a uma explosão cósmica, mas
à vontade de um ser supremo, onisciente e sábio, que o criou segundo sua vontade. A partir
da criação, o homem contrairia, sem saber, uma dívida pela sua própria vida, a ser paga
seguindo à risca os preceitos bíblicos.
Apenas as palavras utilizadas, tais como Deus, auxiliadora e idônea, e o enredo
já conhecido da criação divina do homem, servem de marcas lingüísticas de pertença desse
texto ao discurso religioso. Além disso, elas são expostas como se fossem a constatação de
uma realidade inquestionável, cabendo ao homem adequar-se aos seus efeitos a todo custo:
“assim, o relacionamento amoroso deve se enquadrar nesse contexto”. Este é mais um
dizer que reforça o discurso religioso como um discurso autoritário, que deve ser aceito e
incorporado como verdade absoluta.
Embora não explicite essa idéia, a criação divina, para esta aluna-autora,
justifica a recusa do projeto. No 3o. parágrafo – iniciado, não por acaso, pela expressão
além das razões expostas, que configura a idéia anterior como uma das razões –, são
96
apresentadas duas supostas razões: o fato de que um casal homossexual não pode
“desfrutar do maravilhoso privilégio” da paternidade; e os constrangimentos possivelmente
sofridos por crianças que tenham pais adotivos do mesmo sexo. Vejamos:
Além das razões expostas, há uma questão fundamental: como um casal de
homossexuais poderão desfrutar do maravilhoso privilégio de serem pai e mãe?
E, para o caso da adoção, qual a imagem que a criança formará dos pais?
Certamente, será uma imagem deturpada e em sua criação irá desenvolver-se
valores errados e sempre irá se perguntar o que levou seus “pais” a fazerem essa
opção sexual e poderá até apresentar um certo receio de falar ou apresentar seus
“pais” para os seus colegas.
Neste fragmento, percebemos que a aluna-autora se vale de um argumento
considerado forte, para se posicionar contra o projeto, ainda que isto signifique ignorar o
fato de que a crítica feita por ela não tem fundamento no texto do projeto, tendo em vista
que a “adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto” é exatamente um
dos itens que esse documento não propõe. Ou seja, o que é utilizado como argumento para
a não aceitação do projeto, na verdade, não se baseia em possíveis falhas do documento (o
que validaria a argumentação), mas em um discurso comum àqueles que discordam do
contrato civil entre homossexuais: o discurso sobre a família ideal para se educar uma
criança. Assim o projeto não propõe aquilo pelo que é criticado no texto da aluna-autora, o
que torna frágil a argumentação por ela construída.
Gostaríamos de destacar, ainda neste parágrafo, a avaliação negativa feita pela
aluna-autora em relação aos homossexuais, o que fica evidente nos comentários feitos
sobre uma situação hipotética de adoção por parte de casais do mesmo sexo: a idéia de que
a criança desenvolverá uma imagem deturpada (embora não se diga exatamente sobre o
quê) e valores errados, além de que passará por constrangimentos na sua vida social. O
próprio uso das aspas na palavra pais revela o não reconhecimento destes para ocupar esse
papel.
Essa mesma avaliação negativa se repete no parágrafo seguinte, cujo argumento
principal continua sendo a formação da família. Neste, a aluna-autora discute o que seria
97
um ambiente familiar saudável para o desenvolvimento de uma criança: “regido por
princípios cristãos, que forneçam base para que ela se torne um cidadão responsável,
cumpridor de seus deveres e participativo, ambiente este impossível de ser construído em
um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo”. A partir da palavra impossível tem-se
mais uma vez a recusa da constituição de uma família saudável se formada por
homossexuais, pois isto fugiria aos valores cristãos que determinaram, desde a criação
humana, o conceito de família como instituição cujo núcleo é formado por um homem e
uma mulher. Como vimos, essa mesma idéia apareceu no Texto (3a), analisado
anteriormente.
Chama-nos particularmente a atenção neste trecho a expressão “cidadão
responsável, cumpridor dos seus deveres e participativo”. No contexto da argumentação
construída neste Texto (4a), estas palavras nos levam a crer que apenas em lares
heterossexuais são formados cidadãos com essas qualidades ou, ainda, que todos que as
possuem são heterossexuais, como aponta o trecho a seguir:
Toda criança necessita de crescer em um ambiente familiar saudável, regido por
princípios cristãos, que forneçam base para que ela se torne um cidadão
responsável, cumpridor de seus deveres e participativo, ambiente este
impossível de ser construído em um relacionamento entre pessoas do mesmo
sexo.
Trata-se de um raciocínio falacioso: se os homossexuais não podem formar
pessoas assim, é porque eles não têm essas características positivas; e vice-versa. Outra
conclusão a que se pode chegar através da análise desse trecho é que apenas famílias
formadas por heterossexuais são capazes de construir “um ambiente familiar saudável,
regido por princípios cristãos”, o que significa dizer que, de um lado, ambientes
homossexuais não são saudáveis, e, de outro, que apenas os heterossexuais podem ter
“valores cristãos”, ou seja, os homossexuais estariam excluídos até mesmo do direito de ter
uma religião, uma crença cristã. Se eles não vivem conforme TODOS os valores cristãos, é
porque não os têm; mais uma vez registramos aqui a identificação do discurso religioso
98
como um discurso autoritário, a que ou se aceita por inteiro ou não se aceita. Não há meio
termo possível.
Por fim, como tem sido comum a todos os textos aqui analisados, o último
parágrafo dirige-se à deputada, a quem é solicitado, neste caso, que desista do projeto de
lei:
Diante dos motivos apresentados, peço que a Vossa Senhoria reavalie seus
conceitos e possa solicitar a imediata não aprovação do projeto a fim de
contribuir para a edificação de uma sociedade justa, cristã e saudável.
Por fim, merece ser comentado aqui o uso dos adjetivos justa, cristã e saudável,
atribuídos a uma sociedade sem homossexuais; estes adjetivos se oporiam, por exemplo, a
injusta, herege e doente, características que teria uma sociedade com homossexuais que
sejam amparados por um projeto de lei como o proposto por Marta Suplicy. Além disso, a
aluna-autora extrapola a avaliação do projeto, ao solicitar que a deputada revalie seus
conceitos, ou seja, não é apenas o projeto que deve ser revisado, mas a própria posição de
Marta Suplicy sobre os homossexuais.
Vimos, então, neste capítulo, que o “mesmo” discurso pode ser utilizado para
defender pontos de vista contrários, o que revela, por um lado, que há espaço para o
trabalho do sujeito sobre os discursos; e, por outro lado, que os efeitos de sentido
dependem da relação do dizer com o contexto em que aparece esse discurso, o que implica
considerar as suas (novas) condições de produção. Essas constatações podem ser
comprovadas, por exemplo, através da análise dos Textos (1a) e (2a), no item 4.2.1., nos
quais há pontos de vista diferentes, mas o recurso a estratégias parecidas a fim de
confirmar uma opinião.
Vimos, também, que o discurso religioso funcionou, nos Textos (3a) e (4a),
como uma legítima palavra autoritária, que cala aquelas que lhe são contrárias, por não
99
admitir sequer uma contestação parcial, mas exigir um reconhecimento como verdade
absoluta.
Quanto ao diálogo com os textos da coletânea que compõe a proposta,
verificamos que, nesta primeira produção escrita, as maneiras de estabelecê-lo foram
diversificadas: o Texto (1a) não retoma em nenhum aspecto os textos da coletânea – nem o
projeto, nem os outros; o Texto (2a) talvez seja o que mais considere a coletânea, pois
comenta diretamente o projeto, além de recuperar o mesmo raciocínio do texto de
Vicentinho; o Texto (3a) praticamente se isenta de comentar o projeto, fazendo-o apenas
superficialmente no final desta carta, mas, devido ao teor religioso do seu discurso, se
aproxima também de um dos textos da coletânea (o de Newton Cruz); por fim, o Texto
(4a) menciona o projeto, mas não o discute, aproximando-se, assim como o 3, dos
argumentos religiosos presentes na opinião de Newton Cruz, general da reserva.
No capítulo a seguir, veremos se esse quadro se modifica ou se mantém e como
os alunos-autores lidarão com o acréscimo de dois itens às condições de produção para o
seu texto escrito: a discussão oral do tema e os textos jornalísticos incluídos na proposta de
redação.
100
5. A produção textual orientada pelo livro didático e pela discussão
em sala de aula
(Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 294)
No capítulo anterior, analisamos os textos produzidos a partir de uma condição
de produção limitada à proposta de redação entregue aos alunos. Observamos nesses textos
os modos de retomada de discursos diversos sobre o assunto, suscitados ou não pela
proposta, na construção do dizer dos alunos-autores.
Neste capítulo, analisaremos as cartas produzidas em uma condição de
produção que se encontra acrescida de um item: a discussão oral do tema contrato civil
entre homossexuais, realizada em sala de aula, subsidiada por outros textos dos quais
falaremos a seguir. Assim, analisaremos o discurso escrito dos alunos-autores levando em
consideração sua relação de constituição também com o discurso de sala de aula,
construído na discussão oral sobre o tema contrato civil entre homossexuais e inexistente
na primeira produção.
Este capítulo tem como objetivo, então, analisar 04 (quatro) produções textuais
dos mesmos alunos-autores dos textos analisados anteriormente, confrontando-as com o
discurso de sala de aula, a fim de observar os modos de constituição do dizer dos alunosautores, a partir do dizer do outro (interlocutor) e de um Outro (interdiscurso). A pergunta
que orientará a análise é: quais as formas de diálogo entre o discurso escrito dos alunos e
101
outros discursos que circulam na sociedade? Houve diferença entre este momento e o
anterior, quanto às estratégias discursivas utilizadas pelos alunos-autores?
Para tanto, partiremos das mesmas noções subjacentes à análise desenvolvida
no capítulo anterior, a saber: alteridade e interdiscurso (segundo formuladas por Bakhtin) e
sujeito e autoria (segundo Possenti, 2002 e Orlandi, 1996).
5.1. A discussão oral em sala de aula e sua influência para a produção
escrita
Conforme descrito na Metodologia, os textos a serem analisados nesta etapa da
pesquisa foram produzidos após debate oral em sala de aula. Foram realizadas duas aulas
para discussão do tema, cada uma com 50 minutos de duração. Essas aulas tiveram como
base uma coletânea de textos extraídos de páginas da internet, que discutiam o
posicionamento do presidente americano George W. Bush a respeito de decisões estaduais
sobre o contrato civil entre homossexuais.
Um dos sites apresenta um texto publicado na Folha de São Paulo, sob o título
Bush pede emenda para banir casamento gay. Seguidos a esse texto encontravam-se os
comentários de internautas a uma enquete do fórum de discussão do site Gramática Online, que se posicionavam sobre a postura do presidente americano.
O objetivo inicial do uso desses textos era suscitar a discussão oral entre os
alunos, a partir do confronto com opiniões diversas, tanto favoráveis quanto contrárias ao
contrato civil, baseadas em critérios também diversos. No entanto, esse objetivo logo se
perde, tendo em vista que a professora, supondo que os alunos leram o texto em casa, não
faz a leitura em conjunto do texto da Folha, e a discussão se encaminha para a opinião dos
alunos e da professora, de maneira que os textos dos internautas são esquecidos durante
toda a primeira aula e até, aproximadamente, a metade da segunda. É neste momento da
102
segunda aula que os textos serão recuperados, mas apenas através da leitura em voz alta,
seguida de comentários rápidos da professora, sem espaço para a discussão (até pelo fato
de que, a essa altura, se aproximava o final da aula e o tempo era escasso para discutir as
opiniões do fórum). Vejamos um fragmento que comprova esse desvio inicial na
discussão:
(1)
L1 PROF: tá + mas guarda as discussões pra gente:: socializar ((os demais
alunos zombam e riem baixinho da colega)) +++ é:: olha + em João
Pessoa essa semana saíram várias matérias no jornal + sobre o
assunto + porque uma + juíza aceitou é:: como se diz? DEU os
direitos devidos a todo cidadão a um casal de mulheres que vivem
numa união homossexual há dezesseis anos + então a discussão/ eu
vou mostrar depois pra vocês esse negócio certo? ++ mas vamo lá +
qual é Raíssa o principal argumento que Bush vai usar pra ((um aluno
faz barulho, arrastando a carteira)) ++ pra justificar a emenda?
L9 ANID: um homem e uma mulher a união é ((incompreensível))
L10 PROF: uma delas é essa + a questão da da durabilidade né? que é uma
instituição humana /tá lá embaixo ((indicando o momento do texto))/
mais duradoura + é honrada e encorajada por todas as culturas e por
todas as religiões ((lendo)) + Erika você falou o quê?
L14 ERIKA: que é contra as leis da Igreja porque segundo ((incompreensível))
L15 PROF: exato + então UM dos argumentos / ele vai usar até a seguinte
expressão + verdade:iro significado ++ então+ levando em
consideração A PESSOA de:le não é? a formação que ele teve /
porque a gente sabe que as nossas opiniões elas não são aleatórias +
você vai construindo ao lo::ngo da sua formação né? dentro do seu
convívio na escola, com os pais e amigos + então levando em
consideração Bush + de onde ele tirou essa história do ver-da-deiro
significado? ... qual é o significado pra ele?...
L22 Axx: ((incompreensível))
L23 PROF: nenhum? ((incompreensível)) que o significado de ca-sa-mento +
seria igual a casamento entre homem e mulher + você não poderia ter
uma variante nisso você não poderia ter outra idéia + certo? AGOra +
é:: SERÁ + que eu posso dizer que o que é verdadeiro pra mim TEM
que ser obrigatoriamente verdadeiro pra Rafaella?...
L28 MAÍS: não
L29 ANID: não
L30 PROF: lembram de um texto que a gente discutiu é:: sobre o aborto + que
dizia o seguinte + se Rafaella é católica e a religião dela não permite
o aborto + + por que que eu + que sou atéia + não sou viu? é uma
hipótese ((a professora esclarece aos alunos e eles riem)) por que eu
L35 RENA:
((rindo))
[Fabiano
que
é
ateu
103
L36 PROF: teria que me submeter às mesmas leis da religião DEla?
O que se verifica nesse início é o domínio do turno por parte da professora, que
comenta o texto distribuído para os alunos e dirige perguntas para incitar a discussão. No
entanto, durante essa aula este será praticamente o único momento em que ela se dirigirá
ao material, desviando a discussão para outras referências, como no trecho citado, no qual
ela retoma um texto, sobre outro assunto, lido anteriormente.
É interessante notar ainda neste trecho que, ao fazer uma pergunta sobre o texto
(qual seria o verdadeiro significado do casamento para Bush), a professora não obtém
resposta, o que talvez se justifique por três motivos: pelo fato de a resposta não estar
explícita na superfície do texto, ou seja, não é uma pergunta fechada, de caça do
significado no texto; ou pelo fato de que os alunos não se sentem motivados a responder;
ou ainda porque não leram o texto, como previa a professora. Qualquer que seja a razão, a
própria professora se vê obrigada a responder a pergunta que formulou e não é questionada
pelos alunos (nem abre espaço para sê-lo, apesar do marcador discursivo certo?, que
deveria indicar a espera de uma concordância ou não por parte dos interlocutores quanto à
informação apresentada). Contudo, quando a pergunta se dirige diretamente à opinião dos
alunos, ela logo obtém resultado: é o caso da pergunta sobre se a expressão verdadeiro
significado tem o mesmo sentido para todas as pessoas.
Considerando que este é ainda o início da primeira aula e que os textos dos
internautas que participam do fórum só serão recuperados ao final da segunda aula,
podemos afirmar que esse material escrito não cumpriu sua função, uma vez que a
discussão baseou-se muito mais no “achismo” dos alunos do que em pontos de vista
fundamentados em informações comprovadas ou suscitados pelos textos para discussão.
Além disso, mesmo quando lidos na segunda aula, não havia discussão sobre a opinião dos
internautas, apenas comentários da professora. No entanto,
apenas o ato de tomar
104
conhecimento desses outros posicionamentos foi suficiente para alterar, de alguma forma,
os textos escritos dos alunos, como veremos mais a seguir. É o que se pode verificar no
trecho a seguir, extraído da transcrição da segunda aula:
(2)
L1 PROF: vamos lá + vamos continuar + Caio lê por favor aí a a próxima
L2 CAIO: eu?
L3 PROF: [é
L4 CAIO: [num sei nem pra onde é que eu vou
L5 PROF: é eu percebi
L6 FABI: aqui danado ((mostrando a Caio qual texto deveria ser lido. Outra
aluna inicia a leitura das primeiras palavras, para também mostrar ao
colega qual é o texto))
L9 PROF: é o terceiro aí ++ é + ((o aluno faz a leitura)) + é aquela história da
divisão né? ((mencionando a divisão de bens. Os alunos comentam
entre si))
L11 MAÍS: e da questão financeira + né? ou seja + é só ter certeza se quer casar
((incompreensível))
L13 PROF: pra ter os direitos + né? / Maísa + lê o próximo ((Maísa inicia a
leitura, mas é interrompida pela professora, que reclama com alguns
alunos que estão conversando)) ++ minha gente::: + você vai dar a
sua opinião? ((dirigindo-se a um aluno que conversava))
L17 ANID: não ((risos de alguns alunos))
L18 PROF: então por favor + colabore com o silêncio ((os alunos se calam e
Maísa continua a leitura))
L20 FABIANO: lascou tudo esse daí ((rindo)).
L21 PROF: Léo + lê o último porque o penúltimo já foi lido ((enquanto ela
pede, os alunos continuam comentando entre si o texto anterior)) +
aliás + só o penúltimo
L23 FABI: VIXE MAri:a ((risos. Leonardo inicia a leitura))
Como se vê, a leitura oral dos textos do fórum é seguida de comentários
rápidos, principalmente da professora, que ignora, na maior parte das vezes, o interesse dos
alunos em comentar também os textos. Quando, por exemplo, o aluno Caio termina a
leitura (L9), alguns colegas seus demonstram concordar com o ponto de vista adotado pela
autora do texto e comentam entre si a opinião apresentada, no entanto, a professora não
105
prossegue a discussão, ignorando o desejo dos alunos de expressarem seu ponto de vista;
logo ela pede que continue a leitura com o texto seguinte (L13).
Outra aluna assume a leitura do novo tópico, a pedido da professora. Este não é
comentado, nem pelos alunos, nem pela professora; esta interrompe a leitura apenas para
pedir silêncio e não se detém em tecer nenhuma consideração sobre o que foi lido, logo
solicitando a leitura do texto seguinte, embora os alunos ainda comentem entre si o texto
anterior, numa clara demonstração de que queriam se expressar (L10, L11, L20 e L22).
É possível perceber através deste e de outros momentos da aula que a
professora tem dificuldade em distribuir e organizar as falas, bem como de concentrar a
atenção dos alunos (o que fica evidente nas constantes brincadeiras destes sobre o assunto
ou uns com os outros).
Outro aspecto importante diz respeito ao teor da discussão construída, que se
pautou quase que exclusivamente em idéias pertencentes ao senso-comum, não permitindo
a problematização de aspectos importantes do assunto, como, por exemplo, o que é
homossexualidade. Este aspecto talvez se torne compreensível se considerarmos que era
uma preocupação constante da professora deixar que os alunos expressassem “livremente”
suas opiniões sobre o assunto, a fim de verificar de que maneira essa opinião, somada à dos
colegas, era retomada no texto escrito. Em outras palavras, o objetivo não era propriamente
ensinar, mas descobrir o que eles já sabiam. No entanto, ainda que tivesse esse objetivo,
verificamos que há momentos de contradição na posição assumida pela professora: ora ela
assume o lugar do controle, quase sempre impedindo que os alunos falassem livremente,
mas apenas quando ela considerava conveniente, como é próprio dos papéis assumidos em
sala de aula; ora ela se esquivava de organizar a discussão, um papel que lhe cabia
enquanto mediadora, o que impediu a progressão da discussão oral.
106
Segundo Sousa (2002), esse não cumprimento das regras do jogo de interação
em sala de aula pode acontecer tanto por atitudes dos alunos quanto do professor, pois
ambos sempre podem encontrar uma maneira de burlar essas regras (o professor, não se
submetendo à injunção à fala, por exemplo; o aluno, entre outras situações, assumindo o
lugar de disciplinador, ao pedir silêncio). Essa burla cria uma nova situação, que exige uma
reorganização dos papéis e das regras, ainda que momentaneamente; ou seja, que em
alguns momentos haja a quebra das regras e em outros ela seja seguida. É o que acontece
na aula que ora comentamos.
É preciso verificar que nem sempre o contrato enunciativo, previamente
estabelecido para a sala de aula, é firmado ou mesmo é, conjuntamente, aceito.
Os alunos freqüentemente desrespeitam as regras básicas da interlocução em
sala de aula: falam ao mesmo tempo; conversam entre si sobre assuntos que não
dizem respeito ao conteúdo de ensino; negam-se como ouvintes de outros
alunos e, por vezes, até mesmo do professor, enfim, negam-se como alunos e
negam o professor. Isso exige que o professor assuma o seu papel de
organizador desse discurso e de autoridade na sala de aula, caso contrário,
ninguém se entende. (SOUSA, 2002, p. 170)
Assim, mesmo quando (de fato) o professor quer ouvir o que o aluno tem a
dizer, como no caso aqui analisado, ele não pode se esquivar totalmente de seu papel de
mediador, de articulador da dispersão de vozes da sala de aula.
não se pode isentar o professor de suas responsabilidades como organizador do
discurso de sala de aula, como autoridade que não tem medo de ser autoridade e
como um profissional que tem o dever e a obrigação (institucional, ética, seja lá
qual for) de dominar mais que o aluno o conteúdo de ensino pelo qual é
responsável. (SOUSA, 2002, p. 175)
Outro aspecto importante para compreender esse momento de aula é a decisão
da professora de não expressar sua opinião sobre o tema, o que ela, na verdade, não
consegue. Embora ela só confirme sua posição no final da segunda aula, há várias
passagens da sua fala que deixam entrever o seu ponto de vista favorável ao contrato civil,
como se pode ver no trecho a seguir:
(3)
107
PROF: falando dessa história do mascaramento da sociedade + é:: + pensando
sempre do ponto de vista jurídico + porque eu acho que a grande questão
dessa discussão toda é que se tem confundido a questão mora::l / a
questão religio::sa / de que cada um tem o direito de ter o seu jeito de ver
de agir de pensar + né? é:: com a questão jurídica + a justiça não prega a
igualdade? agora + pensando nessa história do do mascaramento + né? o
que que é/olha só como a justiça também é contraditória + se você tiver
um/uma relação extraconjugal
Ou seja, embora não seja sua intenção, fica claro nesta fala que ela assume o
discurso da igualdade de direitos para defender o contrato civil entre homossexuais, o que
se confirma no final da segunda aula:
(4)
GUIL: sim professora qual a sua opinião em relação a isso?
PROF: olha a minha opinião / eu sou a favor do contrato civil + eu confesso que
+ é:: ficar vendo casal de homossexual por aí / como foi que eu falei
aquela hora que tu ficasse brincando? ((dirigindo-se a Bernardo. Os
outros tentam retomar a fala da professora em outro momento, quando ela
usou a expressão “demonstrações de afeto” ao se referir ao
relacionamento entre os homossexuais)) pronto + não é fácil + por que?
mas isso já vem desde questões mora::is / religio::sas MINhas + não tem
a ver com o fato de que eles não são cidadãos e que não tenham direitos +
eles são e têm + então eu sou a favor de que eles tenham esses direitos +
certo? ((os alunos mudam de assunto e pedem que a professora entregue o
resultado de uma prova. A aula termina))
Além do quase total esquecimento dos textos dos internautas, que deveriam
servir de base para o debate, praticamente nenhum dos textos que compõem a proposta de
redação foi discutido. Por se tratar de uma aula de produção textual, era esperado que a
discussão se encaminhasse também para a própria formulação do dizer nos textos lidos,
gerando uma reflexão sobre o como se disse e quais os efeitos de sentido gerados a partir
desse modo de dizer. Apenas em uma passagem muita rápida da segunda aula de discussão
a professora comenta a formulação de um dos textos dos internautas:
(5)
L1 PROF: Fabiano vai ler o próximo ((o aluno inicia a leitura e é interrompido
pela professora, que tece comentários sobre a maneira como o texto
foi elaborado))
108
L3 PROF: só um minutinho + essa introdução parece aquelas introduções tipo
receita né? começa retomando o geral + é uma possibilidade não é
que você tenha sempre que ser assim
L6 ANID: a gente faz assim
L7 PROF: vocês costumam normalmente começar os textos assim + não tá
errado + mas é só uma forma ((o aluno continua a leitura)) ... diz
((dando o turno para uma aluna que deseja expressar sua opinião
sobre o texto lido))
Porém, ela não se detém, como se pode ver, na análise dessa maneira de
organizar o texto e nas situações em que ela pode ser eficaz ou não, considerando o
objetivo de cada texto em uma dada situação de interação.
Na aula seguinte, referente à produção textual, a proposta foi entregue quase
com o mesmo formato da anterior, acrescida apenas de dois textos jornalísticos publicados
à época no Estado da Paraíba, acerca de um caso de mulheres que tiveram seus direitos
reconhecidos judicialmente e do comentário da Igreja (na pessoa do arcebispo do Estado)
sobre essa decisão. Conforme já comentado, esses textos não são objeto de discussão na
aula. Contudo, há uma passagem em que a professora utiliza parte das informações de uma
dessas notícias publicadas no Jornal da Paraíba, para a partir dela formular uma questão e
encaminhar a discussão:
(6)
L1 PROF: vocês não acham que seria justo um casal + de homossexuais que +
já convivem + por exemplo + nós temos um cas/ esse caso de João
Pessoa que eu vou mostrar as matérias já convivem há dezesseis anos
+ as duas mulheres + se elas convivem há dezesseis anos +
provavelmente elas batalharam juntas por muitas das conquistas
MATEriais
L6 MAÍS: pois é
L7 PROF: a questão moral a questão da sociedade aceitar ou não elas já
convivem com isso e continuaram e nem por isso deixaram de ter o
casamento delas lá + legalizado ou não + então vocês não acham que
essas duas + que passaram por essa história de vida toda + uma delas
morre + vocês não acham que a outra deveria ter os direitos à
heran::ça + direito é::
Como os alunos ainda não haviam tido contato com os textos jornalísticos, eles
tiveram que se limitar à leitura feita pela professora que, ao comentar a notícia, faz sua
109
avaliação sobre os fatos e direciona, assim, as interpretações futuras dos alunos quando
estes tiverem acesso ao texto. Podemos verificar a avaliação dos fatos pela professora,
quando ela traz, por exemplo, a informação de que, provavelmente, as duas mulheres
referidas na notícia batalharam juntas por muitas das conquistas materiais e passaram por
essa história de vida toda. Estas idéias não estão no texto jornalístico (ver Anexo D), são
resultantes de uma leitura da professora e levam à conclusão de que o resultado do
processo foi justo para a causa delas.
Tendo havido duas aulas para discussão oral do tema, o que se percebe é que o
confronto com idéias diferentes nessa discussão, bem como a explicitação da opinião da
professora representaram mudanças significativas nas condições de produção do segundo
momento observado aqui nesta pesquisa, vez que interferiram na opinião dos alunos,
construída na segunda produção escrita. Além disso, a professora demonstra estar
sintonizada com as teorias recentes de escrita, como comprova o fragmento (7), a seguir,
no qual se percebe uma tentativa de pôr em prática a construção de condições consideradas
ideais para a produção escrita, ou seja, aquelas que permitem aos alunos escreverem sobre
o que conhecem, tendo discutido o tema previamente e com uma situação de interação
claramente definida.
(7)
PROF: tá + aí + olha deixa eu falar ++ acontece o seguinte + que quando você
vai / Guilherme só um pouquinho ((o aluno conversava)) + quando vai
escrever um texto + você tem que levar em consideração essa discussão +
o te::ma normalmente já é um tema bastante comentado pelas ma::/
ma:::is diversas esferas / Tiago por favor ((o aluno conversava)) / da
sociedade + então quando você vai escrever um texto + ele não vem do
vá::cuo + do nada não + você vai entra::r nessa discussão que já existe +
então você / se a sua opinião é contra ou a favor + você tem que imaginar
+ o que é:: que as outras pessoas que não concordam com você diriam +
pra que você já preveja isso no seu texto e argumente pra que seu texto
fique mais forte
No entanto, devido ao uso inadequado da coletânea de textos para debate,
limitados apenas à leitura oral (o que os alunos poderiam perfeitamente fazer sozinhos),
110
seguida de comentários superficiais da professora, verificamos que os procedimentos
foram muito parecidos nos dois momentos da nossa coleta de dados: ambos basearam-se
na leitura e na imediata produção da carta de solicitação.
Evidentemente, não se pode deixar de reconhecer o valor de os alunos ouvirem
opiniões diferentes das suas e posicionarem-se sobre elas. Assim, estudaremos nos
próximos itens como essa situação interferiu na produção escrita dos alunos.
A análise dos textos escritos pelos alunos-autores estará centrada nas formas de
diálogo entre os argumentos escolhidos por eles e outros discursos (sejam estes suscitados
pela coletânea da proposta, pela coletânea para discussão, pela discussão oral ou por outro
fator), a exemplo do discurso religioso, bastante presente na argumentação de dois dos
quatro textos analisados a seguir.
5.2. Estratégias do dizer: o retorno ao discurso do Direito
Como pudemos perceber nos textos analisados no capítulo anterior, os alunosautores são interpelados a entrar na corrente de discussões acerca do tema sobre o qual
deve versar sua argumentação. Para tanto, é preciso que eles recorram a outros textos,
outros já ditos, a fim de confirmarem a tese que defendem, quer seja ela favorável ou
contrária ao projeto da deputada.
Por outro lado, conforme já viemos reforçando, não há como perder de vista
que se trata de produções textuais realizadas em situação escolar, o que interferirá na
construção do texto, uma vez que há uma proposta a seguir e uma coletânea de outros
textos a considerar.
Veremos, ao longo da análise, como esses fatores se presentificam em certas
estratégias
discursivas
conscientemente.
dos
alunos,
sem que,
necessariamente,
eles
o
façam
111
A retomada de outros discursos vai ser bastante recorrente nos textos, sempre
aparecendo como um recurso argumentativo, ora de forma direta (através de citações), ora
indireta (através de paráfrases ou mesmo do uso de algumas expressões/idéias que
identificam certos discursos).
No item 4.2.1., observamos que dois dos quatros textos analisados utilizam o
discurso do Direito para comprovar o seu ponto de vista. Os mesmos alunos-autores que
optaram por esse recurso para sua argumentação naquele momento repetem-no neste
segundo momento de produção escrita. Vejamos o Texto (1b) desta segunda situação:
TEXTO (1b)
Campina Grande, 16 de novembro de 2004
Exa. Deputada Marta Suplicy,
Escrevo-lhe esta rápida carta para dar meu apoio ao seu projeto de
lei no. 1151, que defende a legalização da união estável entre casais
homossexuais.
Começo dizendo que os gregos, especialmente os atenienses, não
passaram anos discutindo sobre democracia sem a intenção de ensinar ao
mundo o respeito às opiniões e escolhas diferentes, ou seja, todos devem ter
direitos iguais perante o Estado e a lei. Os romanos incluíram na sua justiça este
ponto, e se nosso Direito se baseia no Romano, nossa constituição não deve ser
contraditória.
Logo, por que não se dar os mesmos direitos a casais homossexuais
dos heteros? Qual o erro grave nisso? NENHUM! O mundo não vai mudar para
pior, visto que homossexualidade sempre existiu, e inclusive, em muito povos e
civilizações o início da vida sexual dos rapazes era com os homens mais velhos,
a exemplo de Sócrates e seus discípulos.
Para terminar, quanto a Igreja Católica não aceitar isto é um
problema religioso e não jurídico! O fato dela não aceitar não deve se confundir
com a imperfeita e eterna aprimoração que a Justiça. Já dizia Cristo que dai a
César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus.
Atenciosamente,
Camila Ramos
Logo no 1o. parágrafo desse Texto (1b), percebemos que o seu objetivo será
apoiar o projeto de lei no. 1151, proposto por Marta Suplicy. Esse apoio se revela como
uma mudança significativa em relação ao primeiro momento de produção, no qual esta
mesma aulna-autora posicionou-se contrariamente ao projeto. Naquela ocasião, através de
usos diferenciados para a palavra Direito, o texto construído por esta aluna descartava a
igualdade de direitos como discurso válido para defender o contrato civil entre
112
homossexuais, e baseava sua justificativa na afirmação de que os direitos devem se basear
na regra e não na exceção.
No entanto, a estratégia utilizada pela aluna-autora nesta segunda produção será
bem diferente: o discurso do direito, que antes servia para se opor ao projeto, agora serve
para apoiá-lo. Essa mudança acontece exatamente devido à mudança de posicionamento da
aluna quanto ao tema, demonstrando que houve mudança de interpretação de sua parte, o
que ocasionou uma alteração também no seu modo de interpretar o discurso do direito: se
antes este era a justificativa para a não aceitação do projeto, essa situação agora se inverte
e ele passa a ser a base sobre a qual se defende o contrato civil como meio de garantir
igualdade de direitos. Vejamos como esse percurso é desenvolvido no Texto 1:
Começo dizendo que os gregos, especialmente os atenienses, não passaram anos
discutindo sobre democracia sem a intenção de ensinar ao mundo o respeito às
opiniões e escolhas diferentes, ou seja, todos devem ter direitos iguais perante o
Estado e a lei. Os romanos incluíram na sua justiça este ponto, e se nosso
Direito se baseia no Romano, nossa constituição não deve ser contraditória.
A partir desse segundo parágrafo, a aluna-autora retomará a própria história do
Direito, a fim de defender a idéia de que a igualdade é um princípio presente desde a
formação dos direitos civis, na Grécia e depois em Roma, e, portanto, esse princípio não
pode ser negado, pois isto equivaleria a negar a própria instituição do Direito.
Gostaríamos de destacar neste parágrafo a associação entre “o respeito às
opiniões e escolhas diferentes”, de um lado, e, de outro, a defesa de que todos tenham
“direitos iguais perante o Estado e a lei”. A aluna-autora os coloca como indissociáveis,
como uma lição herdada dos gregos e depois incorporada pelos romanos e que, por esta
tradição, não se poderia negar. Mas o mais interessante nesta associação é: a) a conclusão a
que ela leva: a existência de direitos iguais revela o respeito pelas opiniões e escolhas
diferentes (e vice-versa); e b) a mudança de perspectiva em relação à primeira produção
113
(ver Texto (1a), p. 72), na qual a aluna-autora afirmava que o fato de discordar do projeto
não poderia ser associada à sua posição quanto aos homossexuais.
Ou seja, naquela ocasião, a atitude de discordância com o projeto não deveria
estar associada a uma reprovação quanto às escolhas dos homossexuais, pois, para a aluna,
estes seriam dois assuntos diferentes e que por isso merecem ser avaliados a partir de
critérios também diferentes. Neste novo texto, essa perspectiva se inverte e fica claro que,
para ela, dar direitos iguais requer respeitar as opiniões e escolhas diferentes; estas duas
atitudes seriam, portanto, indissociáveis, como já dissemos.
Na seqüência do Texto (1b), permanece o recurso à história das civilizações
clássicas, a fim de comprovar não apenas a relevância do projeto de lei, mas também a
existência do homossexualismo como uma prática antiga e que por isso deveria ser,
finalmente, aceita. Vejamos:
Logo, por que não se dar os mesmos direitos a casais homossexuais dos heteros?
Qual o erro grave nisso? NENHUM! O mundo não vai mudar para pior, visto
que homossexualidade sempre existiu, e inclusive, em muito povos e
civilizações o início da vida sexual dos rapazes era com os homens mais velhos,
a exemplo de Sócrates e seus discípulos.
Neste 3o. parágrafo, reaparece o discurso do Direito, sempre aliado aos
conhecimentos da História. Aqui, a aluna-autora questiona por que homossexuais não
podem desfrutar dos mesmos direitos dos heterossexuais, alegando que não haveria
nenhum erro grave nisso. Aliás, ela é bem enfática ao responder os questionamentos que
formula; basta ver, por exemplo, a grafia da palavra nenhum, toda com letras maiúsculas,
dando-lhe destaque em relação às outras.
Mais uma vez, não há como ignorar a mudança de discurso em relação ao
primeiro texto produzido por esta aluna-autora. Naquela primeira produção, ela assegurava
que não se podia, de forma alguma, igualar os direitos dos homo e dos heterossexuais,
114
alegando que o contrato civil era um direito apenas destes e que concedê-lo àqueles seria
injusto.
Por fim, o quarto e último parágrafo também traz um acréscimo em relação à
primeira produção: naquela, não havia qualquer referência aos valores defendidos pela
Igreja Católica – ao menos não explicitamente, embora seja possível considerar que,
subjacente à recusa ao projeto, esteja uma formação religiosa. Então vejamos o que
acontece neste quarto parágrafo:
Para terminar, quanto a Igreja Católica não aceitar isto é um problema
religioso e não jurídico! O fato dela não aceitar não deve se confundir com a
imperfeita e eterna aprimoração que a Justiça. Já dizia Cristo que dai a César o
que é de César, dai a Deus o que é de Deus. (grifo nosso)
Aqui, a expressão destacada articula o dizer da aluna não com as idéias
anteriormente discutidas no seu texto, mas a algo que lhe é exterior: a avaliação negativa
da Igreja Católica sobre o homossexualismo e, conseqüentemente, sobre o contrato civil
entre estes indivíduos. Este discurso pode ser visto em pelo menos dois dos elementos que
compõem as condições de produção escrita neste segundo momento: nos textos que
formam a proposta de redação e na discussão do tema em sala de aula.
Quanto ao primeiro item – os textos da proposta –, podemos dizer que há uma
relação direta entre o dizer da aluna-autora e um dos textos jornalísticos acrescidos à
proposta, o qual abordava o posicionamento da Igreja Católica (na pessoa de Dom Aldo
Pagotto, arcebispo da Paraíba), quanto à união entre duas mulheres no Estado. O título
dessa notícia, Igreja Católica condena a união entre mulheres, traz à tona toda a discussão
entre religião e justiça e sobre os limites que cabem a cada uma.
Já que não há qualquer referência à posição da Igreja nos parágrafos anteriores
do Texto (1b) – o que explicaria a expressão quanto à Igreja Católica não aceitar, que
articularia este dizer com os que o antecederam –, podemos afirmar que há um diálogo
115
entre o discurso da aluna-autora e o discurso daquela instituição religiosa, recuperado na
proposta de redação através do texto jornalístico.
Quanto ao segundo item, a relação com a discussão realizada em sala de aula,
comentaremos a seguir, juntamente com a análise do Texto (2b), que também sofrerá
influências da discussão oral.
No final deste item retornaremos a essa questão e procuraremos relacionar essas
mudanças ocorridas no discurso da aluna-autora, entre a primeira e a segunda produção,
com as idéias trazidas por alunos e pela professora na aula de discussão do tema. Antes,
analisemos o Texto (2b):
TEXTO (2b)
Ilma Sra. Marta Suplicy,
Tendo lido eu seu projeto de lei que beneficia a união civil entre
homossexuais, venho, por meio desta, parabenizar sua preocupação em relação a
minoria. O contrato civil viria a regularizar os direitos e deveres dos casais de
mesmo sexo, garantindo uma maior igualdade entre a sociedade.
Dentre os itens que a lei propõe, nenhum apresenta falhas, porém
deve-se considerar algo mais em relação a guarda ou tutela de crianças. Creio
que, se a criança é filha de um dos parceiros, deve ser permitida a guarda a esta.
O que deve ser avaliado, neste caso, são as condições psicológicas e financeiras
do casal.
Com relação ao preconceito, creio que a lei referida viria a aumentar
o respeito entre os cidadãos, apesar de representar um grande impacto, no início.
Espero que seu projeto torne-se lei em breve e que nossa sociedade
possa caminhar para um lugar mais justo, sem preconceito.
Atenciosamente,
Jean Raul
(grifo nosso)
Semelhantemente ao Texto (1b), o Texto (2b) inicia-se através de uma
manifestação de apoio à idéia geral do projeto, o que esclarece ao leitor o objetivo do
texto; para reforçar sua posição, o aluno-autor faz uma avaliação dos possíveis efeitos
desse projeto na sociedade, apresentando um aspecto positivo: a existência de uma maior
igualdade entre as pessoas, tese que é retomada no final do texto.
Chama-nos a atenção, particularmente, no 1o. parágrafo desse Texto (2b) o uso
da palavra regularizar relacionada aos direitos e deveres dos casais de mesmo sexo. Ao
116
utilizar essa expressão, o aluno-autor possibilita a interpretação de que esses direitos já
existem na prática, e que a aprovação do projeto seria apenas o reconhecimento de uma
realidade. Regularizar significa, assim, tirar da irregularidade, dando caráter de norma ao
que já existe na “informalidade”, mas nem sempre é aceito.
Outro aspecto importante, suscitado já no início do Texto (2b), é a manutenção
do ponto de vista e da justificativa de apoio ao projeto, manifestados também na produção
escrita produzida no momento anterior, por este mesmo aluno-autor. Ou seja, o aluno
mantém sua posição favorável ao projeto de lei, por acreditar que este representa a saída
para garantir uma maior igualdade entre a sociedade. Inclusive, esta idéias é a mesma que
inicia o texto desse aluno analisado no Capítulo 4.
Embora os Textos (1b) e (2b) se aproximem quanto ao ponto de vista e a uma
certa ancoragem no discurso da igualdade de direitos, eles se diferenciarão quanto às
estratégias escolhidas para defender esse posicionamento. O Texto (1b) se baseará na
história do Direito e das civilizações clássicas, enquanto o Texto (2b) não apresenta
propriamente uma defesa da sua opinião, já que não se verifica o uso de argumentos que a
comprovem. Essa informação pode ser percebida no fato de que o 2o. parágrafo do Texto
(2b) muda completamente o foco da discussão sobre a importância do projeto para a
igualdade social, mencionada no 1o. parágrafo, passando a discutir um dos itens que,
segundo a proposta de redação, o projeto de lei não propõe. Há, portanto, uma quebra na
seqüência das idéias, pois o que se esperava, pelo início do texto, era que ao menos se
justificasse por que esse projeto poderia diminuir a desigualdade, mas não é o que
acontece:
Dentre os itens que a lei propõe, nenhum apresenta falhas, porém deve-se
considerar algo mais em relação a guarda ou tutela de crianças. Creio que, se a
criança é filha de um dos parceiros, deve ser permitida a guarda a esta. O que
deve ser avaliado, neste caso, são as condições psicológicas e financeiras do
casal.
117
Neste parágrafo, é abordado um dos pontos polêmicos do tema: a adoção ou
tutela de crianças por casais de mesmo sexo. Essa informação não aparece no primeiro
texto produzido por este aluno-autor (ver capítulo anterior) e aparece na proposta apenas
no resumo do projeto. No entanto, no debate realizado em sala de aula sobre o tema, este
foi um aspecto bastante discutido pelos alunos. Como este foi um recurso presente apenas
no Texto 2(b), confrontaremos neste momento essa discussão com aquela realizada em sala
de aula:
(8)
L1 TIAG: posso falar?
L2 PROF: pode
L3 TIAG: normalmente os homossexuais convivem com os pais heterossexuais
e nem isso evitou que eles se tornassem homossexuais + então os
homossexuais tendo um filho o que vai mudar é::: é a mente do cara
+ porque eles vão mostrar ao filho
L7 FABI: mas a opção sexual dele vai depender da educação dele
L8 Axx: ((alunos falam ao mesmo tempo))
A partir desse trecho, podemos perceber que a discussão sobre a adoção por
casais homossexuais girará em torno da formação da sexualidade da criança, ou seja, sobre
que tipo de orientação será dada pelos pais (homossexuais) a ela. Nesta parte da aula, um
dos alunos (L3-6) defende que não há relação direta entre a opção sexual dos pais e a dos
filhos, o que se pode comprovar, segundo ele, pelo fato de que homossexuais, em geral,
têm pais heterossexuais. Essa é uma questão que perpassa todo a discussão sobre a adoção:
ser educado por homossexuais significa uma chance maior de desenvolver uma tendência
homossexual?
Essa se mostra uma preocupação tão forte para os alunos que a professora
comenta outro aspecto envolvido na adoção (o olhar da sociedade sobre a criança e o
preconceito que esta pode sofrer), mas logo os alunos voltam para o debate acerca da
formação educacional que supostamente um homossexual daria a seu filho adotivo. É o
que revela o trecho (9), a seguir:
118
(9)
L1 VINÍ: o homossexual que tenta se juntar com outro homossexual pra fazer
é::constituir família ele sabe ele sabe as pressões que ele vai sofrer +
a discriminação
L3 PROF: eu acho que nesse caso Vinícius + o pior + no caso da adoçã::o é o
preconceito que a criança vai sofrer da sociedade
L5 VINÍ: [não eu sei + é o preconceito da sociedade
L6 PROF: porque o adul::to ele já tem toda uma estrutura pra:: rebater pra
enfrentar + agora a criança ((alunos falam ao mesmo tempo))
L8 VINÍ: mas aí tem o seguinte + o que as pessoas dizem é
L9 PROF: [sim + eu tô entendendo
L10 VINÍ: imagine o que esses pais vão ensinar ao filho ((citando o discurso da
sociedade)) + num é o caso do pai ensinar o filho + é o o
L12 FABI: [que a sociedade vai achar a respeito
L13 VINÍ: [é o que ele vai enfrentar
L14 PROF: eu sei + eu concordo
L15 RAÍS: mas o que realmente eles eles seria que iam ensinar ao filho? seria o
quê? seja homo ou seja hetero? ((os alunos falam ao mesmo tempo))
L17 FABI: ia ser gay
L18 PROF: eu acho que nem uma coisa nem outra + essas pessoas elas têm uma
liberdade / um modo de ver muito diferente
Neste trecho (9), a discussão se encaminha para o preconceito que a criança
sofrerá, caso seja criada por um casal homossexual. Mas esse assunto é discutido apenas
até a L14, pois já em L15 uma aluna retoma a preocupação sobre qual seria a orientação
sexual dada por homossexuais a seus filhos: eles orientariam para que a opção fosse pela
heterossexualidade ou não? É interessante notar que esta é uma inquietação tão forte para
que leva esta aluna a burlar as regras do jogo (como diz Sousa, 2002), assumindo,
momentaneamente, o papel em geral referente à professora ao formular questionamentos
que encaminhem a discussão. A professora, por sua vez, assume o papel atribuído aos
alunos, e responde (L18) à pergunta feita pela aluna. Na seqüência, o debate continua em
torno da educação oferecida pelos homossexuais e das suas conseqüências para a opção
sexual das crianças.
Essa discussão se prolongou ainda por várias turnos, demonstrando o grande
destaque dado para a questão da adoção e seus efeitos para a formação da criança,
119
especialmente no que diz respeito à escolha da sexualidade. No entanto, essas idéias não
foram diretamente retomadas pelo aluno-autor no Texto (2b), limitando-se a afirmar, no 2o.
parágrafo, que esse item merece ser melhor analisado, através, por exemplo, da observação
das condições psicológicas e financeiras do casal. Ou seja, ele extrapola, em parte, a
discussão oral do tema em sala, ao estabelecer critérios para orientar a decisão sobre a
adoção ou tutela de crianças: as condições psicológicas e financeiras (apesar de não
esclarecer que condições psicológicas e financeiras seriam consideradas ideais para
justificar a adoção).
A problemática da adoção ou tutela de crianças aparece ainda em um dos textos
jornalísticos (ver Anexo D), retirados do Jornal da Paraíba e adicionados à proposta de
redação neste segundo momento de produção: uma notícia sobre a decisão da justiça
paraibana, que reconheceu o relacionamento de duas mulheres em João Pessoa. No corpo
da notícia é citada a situação de um menor de 12 anos, que é filho de uma das mulheres e
que é criado por elas, formando, portanto, uma família. Essa informação também não é
recuperada pelo aluno-autor no Texto (2b)
Na seqüência do deste, a adoção é esquecida, de maneira que há um retorno à
discussão sobre o preconceito e a necessidade de igualdade entre as pessoas:
Com relação ao preconceito, creio que a lei referida viria a aumentar o respeito
entre os cidadãos, apesar de representar um grande impacto, no início.
Espero que seu projeto torne-se lei em breve e que nossa sociedade possa
caminhar para um lugar mais justo, sem preconceito. (grifo nosso)
Assim como no Texto (1b), analisado no início deste item, o (2b) inicia um
parágrafo com uma estrutura que, em certa medida, lhe é exterior: o discurso do
preconceito sofrido pelos homossexuais. Então, ao iniciar o 3o. parágrafo com a expressão
Com relação ao preconceito, o aluno-autor insere seu dizer na rede de discussões sobre o
tema, as quais, de uma forma ou de outra, sempre se voltam para este discurso. Afirmamos
que o preconceito é apenas “em certa medida” exterior ao dizer do aluno-autor porque ele
120
ainda não havia falado diretamente sobre isso, embora, ao considerar o homossexual como
parte de uma minoria (1o. parágrafo) que precisa ser vista igualmente pela sociedade, ele
esteja implicitamente abordando também o preconceito, pois este é um dos entraves ao
estabelecimento dessa igualdade social.
Há vários elementos dessa segunda situação de produção que levam a essa
discussão do preconceito, suscitada pela expressão destacada no 3o. parágrafo do Texto
(1b): a aula de debate sobre o tema, os textos jornalísticos da coletânea que compõe a
proposta e, nesta mesma coletânea, o texto de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho
(presidente da CUT).
Conforme exposto no capítulo anterior, este aluno-autor, ao produzir seu texto
naquela primeira situação, sofreu forte influência do discurso de Vicente Paulo da Silva,
que defendia também o projeto como uma saída para diminuir o preconceito contra os
homossexuais e, conseqüentemente, a desigualdade social. Essa influência, embora
atenuada, permaneceu neste segundo texto do aluno, que agora formula de maneira mais
“amena” o seu dizer: se antes ele afirmava que a recusa do projeto só podia ser fruto do
preconceito e que o projeto resolveria este problema, agora ele diz ser esta uma crença sua
e não uma verdade absoluta: ver, por, exemplo, a expressão “creio que”, no 3o. parágrafo.
Há ainda uma diferença significativa nos dois textos produzidos por este alunoautor. Embora em ambos o objetivo maior seja apoiar o projeto de lei, no primeiro, ele
defende apaixonadamente o acréscimo de mais direitos para os homossexuais neste
projeto. Tal solicitação é, no mínimo, ingênua, tendo em vista a dificuldade de se aprovar o
projeto como é, muito mais difícil seria sua aprovação se contivesse ainda mais vantagens
para esse grupo.
121
Já nesta segunda produção, talvez devido ao autor ter presenciado dentro de sala
de aula uma amostragem da polêmica e das questões complexas que envolvem o contrato
civil entre homossexuais, ele se limita a defender o projeto, sem que haja acréscimos.
Como se pode perceber a partir da análise realizada até aqui, os Textos (1b) e
(2b) mantêm pontos em comum quanto à escolha do critério que justificaria, segundo seus
autores, a aprovação do projeto: o critério da garantia de igualdade de direitos. Cada um,
no entanto, recorre a estratégias diferentes para fundamentar seu dizer.
Vejamos agora de que maneira esse critério em comum e essas estratégias se
relacionam com o discurso sobre o tema, construído na discussão oral em sala de aula.
Conforme já apontamos ao analisar a influência dessa discussão quanto às informações e à
importância dadas pelo aluno-autor do Texto (2b) ao aspecto da adoção ou tutela de
crianças por homossexuais, há momentos dos dois textos em que se percebe a influência
também da opinião da professora no discurso dos alunos.
Assim, nos Textos (1b) e (2b), é possível perceber alguns momentos nos quais
os alunos-autores parecem recuperar não sua interação com a deputada (que é apresentada
na proposta como interlocutora dos alunos), mas com a professora, tendo em vista que o
dizer destes alunos parece ser uma resposta a certas afirmativas feitas pela professora no
momento da discussão oral do tema.
Para compreendermos melhor, citaremos a seguir algumas passagens do
discurso da professora, coletado no momento da discussão oral sobre o tema, as quais
revelam seu posicionamento sobre o assunto. Vejamos:
(10)
PROF: certo + AN:tes de começar a discussão eu queria dizer o seguinte eu
vou ser MAis ou menos/ pelos textos que vocês me entregaram + a
opinião de vocês + eu vou fazer um pouco o papel do equilíbrio do
contrapeso + vou também traze/vou ficar alfinetando pra ver que é que
vocês me falam + certo? aí eu não vou me posicionar + no final + eu
digo o que é que eu penso sobre isso + no final mesmo + vamos antes
de começar a discussão com relação ao texto aí ((lendo)) Bush pede
emenda ++
122
Embora nesse início da aula a professora afirme que não revelará sua opinião
sobre o assunto, a fim de não interferir na argumentação escrita dos alunos, ela
implicitamente o faz; ou seja, há várias passagens da gravação nas quais se pode identificar
a opinião da professora e o seu modo de avaliar o assunto.
Apresentamos a seguir uma passagem que, embora longa, é essencial, pois nos
permite perceber, no discurso da professora, a sua avaliação do tema.
(11)
L1 PROF: é + é como se fosse uma correçã:o uma acréscimo uma ressalva né?
é:: no caso + é exatamente isso + alguns estados aprovaram né? e ele
agora tá querendo voltar atrás + tirar os direitos dos homossexuais + na
verdade a gente fala assim casamento entre homossexuais mas na
verdade os projetos são sempre a respeito de CONTRAto civil + que é
pra que as pessoas tenham alguns direitos que TOdos os outros
cidadãos têm + como por exemplo o direito à herança + né? no caso de
duas pessoas que convivem numa união estável + MESmo que NÃO
SEjam casados hoje em dia + se for possível comprovar essa:: relação
de algum tempo
L9 RAÍS:
[é
L10 PROF: é:: se um dos cônjuges morrer o outro vai ter direito a herança
((incompreensível))
L12 MAÍS:
já?
[ aqui no Brasil também? +
L14 PROF: já + já é assim + tá? mesmo que seja uma relação extraconjugal ((a
turma se agita e comenta entre si as informações)) no caso da pessoa
que tem duas famílias
L16 MAÍS: homossexual?
L17 PROF: não + homossexual não + aí é:: a homossexual ainda não tem
na/nenhuma posição + com relação aqui à Paraíba viu Renata?
((dirigindo-se a uma aluna que conversava))
L20 RENA: eu tô discutindo aqui o assunto
L21 PROF: tá + mas guarda as discussões pra gente:: socializar ((os demais
alunos zombam e riem baixinho da colega)) +++ é:: olha + em João
Pessoa essa semana saíram várias matérias no jornal + sobre o assunto
+ porque uma + juíza aceitou é:: como se diz? DEU os direitos devidos
a todo cidadão a um casal de mulheres que vivem numa união
homossexual há dezesseis anos + então a discussão/ eu vou mostrar
depois pra vocês esse negócio certo? ++ mas vamo lá + qual é Raíssa o
principal argumento que Bush vai usar pra ((um aluno faz barulho,
arrastando a carteira)) ++ pra justificar a emenda?
123
Como se pode ver, apesar de dizer que não vai expor sua opinião, mas vai “ficar
alfinetando” para ver o que os alunos dirão, a professora não controla totalmente seu dizer,
de maneira que, através de algumas expressões, é possível entrever essa opinião. É
recorrente no seu discurso, por exemplo, o uso de palavras como direitos, cidadania,
cidadão, igualdade, que reforçam uma concordância com o projeto da deputada. Além
disso, a leitura feita pela professora acerca das reportagens que ela cita sobre o assunto
também não é neutra, conforme é possível perceber a partir da maneira como essa
interpretação foi formulada: segundo a professora, a juíza “deu os direitos devidos a todo
cidadão a um casal de mulheres que vivem numa união homossexual há dezesseis anos”.
Ao afirmar que a juíza “deu os direitos devidos a todo cidadão”, a professora se
mostra favorável a essa decisão, avaliando-a como justa pelo fato de que os homossexuais
também deveriam ser considerados cidadãos como os outros, o que implica dizer que eles
mereçam os mesmo direitos dos heterossexuais. Sem dúvida, alguém contrário à
homossexualidade não leria os fatos dessa forma.
Além disso, o encaminhamento dado pela professora na discussão também
revela esse parecer favorável ao projeto de Marta Suplicy, embora fosse sua intenção
anunciada não expor sua opinião.
Na continuidade do trecho de fala citado, a professora escolhe, na coletânea
utilizada para discussão, um fragmento da fala do presidente Bush, o qual é contrário à
união civil entre homossexuais, a fim de confronta-lo. Sua leitura, portanto, não é isenta:
ela escolhe o trecho, interpreta e relaciona com outro texto10 lido pelos alunos em ocasião
anterior; neste, há o argumento de que não se pode aplicar as mesmas leis religiosas a
todos os indivíduos, tendo em vista que há crenças diferentes. Assim, a partir da discussão
sobre qual o sentido da expressão “verdadeiro significado”, utilizada por Bush, a
10
O texto referido é “O direito ao aborto”, publicado na seção Superpolêmica da revista Super Interessante,
em janeiro de 2001.
124
professora induz os alunos a concluírem que o argumento religioso, retomado por este
presidente e pelas pessoas contrárias ao homossexualismo, não é convincente, desse ponto
de vista, uma vez que o sentido dessa expressão é variável.
Tanto é assim que, na seqüência desse trecho de fala, percebe-se uma
confirmação por parte de alguns alunos do raciocínio desenvolvido pela professora e
encerrado com a pergunta “por que eu teria que me submeter às mesmas leis da religião
dela?”. Vejamos a resposta dos alunos a essa pergunta:
(12)
L1 Axx: por quê? por quê? ((alguns alunos brincam, repetindo pergunta))
L2 PROF: esse é um dos argumentos utilizados + né? pelas pessoas que são a
favor do a/do aborto + tá?
L4 MAÍS: no caso assim + por que é que eu sou obrigada a acreditar /a acreditar
na mesma coisa que ela ((incompreensível))?
L6 PROF: exato ++ por que vejam só + se vocês OBSeerv:arem + ((a professora
pára de falar e tenta ouvir os alunos, que falam ao mesmo tempo))
Notemos que, neste trecho (12), a aluna confirma o argumento da professora,
repetindo a mesma idéia sob a forma de uma pergunta; essa resposta é imediatamente
seguida de uma avaliação positiva da professora (“exato”), que segue com a palavra e
parece querer justificar essa idéia, mas é interrompida pelo barulho na sala.
Esse discurso da professora interfere na constituição do discurso escrito dos
alunos, sejam aqueles favoráveis ou contrários ao projeto de Marta Suplicy. Há trechos das
cartas nos quais é possível entrever uma retomada desse discurso da professora, seja para
confirmá-lo ou confrontá-lo. Vejamos.
Nos textos (1b) e (2b), favoráveis ao projeto, o discurso da professora é
recuperado através de expressões como:
Texto (1b):
# “todos devem ter direitos iguais perante a lei”
# “respeito às opiniões e escolhas diferentes”
125
Texto (2b):
# “regularizar os direitos e deveres dos casais de mesmo sexo, garantindo uma
maior igualdade entre a sociedade”
# “aumentar o respeito entre os cidadãos”
# “que nossa sociedade possa caminhar para um lugar mais justo”
Não queremos dizer com isso que essas idéias já não faziam parte do discurso
dos alunos, mas apenas que o reforço e a importância dados a elas pela professora na
discussão oral sem dúvida interferiu no discurso escrito dos alunos, os quais se sentiram
interpelados (inconscientemente) a considera-las, já que a leitora de seus textos seria a
professora.
Há outra passagem que se refere à relação com o discurso da professora, pois
esta faz em sua fala a distinção, segundo ela necessária, entre discurso jurídico e discurso
religioso, a fim de que se possa avaliar mais justamente a questão do contrato civil entre
homossexuais:
(13)
L1 PROF: ((os alunos falam ao mesmo tempo)) espera um pouquinho:: oi ((se
dirigindo a uma aluna que queria falar))
L3 ANID: professora aqui em Campina eu posso dizer que eu vejo que as
mesmas pessoas que são instruídas ao ponto de falarem da
democracia ateniense + e fazer todo o histórico da democracia ao
mesmo tempo são preconceituosas ((incompreensível)) + e uma
pessoa é diferente da outra e a gente tem que respeitar isso + ISso é
que é democracia
((a professora acena afirmativamente com a cabeça))
L9 PROF: olha + a gente pode dividir basicamente é: em dois tipos de
argumentos + essa questão do do casamento entre homossexuais + a
gente vai ver que há + se a gente for discutir aqui a gente vai ver que
cada um vai falar de uma coisa diferente + de um ponto de vista
diferente + o que AS PESSOAS + psssssiu ((pede silêncio)) que +
defendem o contrato civil querem/ elas falam a partir do ponto de
vista do direito da democracia
L15 ANID: hum
L16 PROF: e o argumento que vem em relação a:: NÃO ter essa legalização é
do ponto de vista religioso ++ então
126
L18 MAÍS: [então é mais voltado pro CAsamento e não numa aliança civil né?
++ assim a/ no caso a cerimônia
L20 PROF: é
L21 MAÍS: mas as pessoas falam e o regime? religioso
A professora faz, portanto, uma distinção entre discurso religioso (assumido por
aqueles que são contrários ao contrato civil entre homossexuais) e o discurso jurídico
(defendido por quem é favorável ao contrato). Essa distinção aparece no Texto (1b), no
seguinte trecho: “Para terminar, quanto a Igreja Católica não aceitar isto é um problema
religioso e não jurídico!” Mas a aluna autora não se limita a recuperar o discurso da
professora. Para comprovar a separação (segundo ela, necessária) entre os dois tipos de
discurso, ela recupera uma passagem bíblica: “Já dizia Cristo que dai a César o que é de
César, dai a Deus o que é de Deus”. No trecho da Bíblia em que encontramos essa fala,
Jesus utiliza as mesmas palavras acima, a fim de justificar que os impostos devem ser
pagos, pois é um dever do povo e recebê-los é um direito das autoridades civis instituídas,
neste caso, o imperador César:
Dize-nos, pois, o que te parece: É permitido ou não pagar o imposto a César?
Jesus, percebendo a sua malícia, respondeu: ‘ Por que me tentais, hipócritas?
Mostrai-me a moeda com que se paga o imposto!’ Apresentaram-lhe um
denário. Perguntou Jesus: ‘De quem é esta imagem e esta inscrição?’ – ‘De
César’, responderam-lhe. Disse-lhes então Jesus: ‘Dai, pois, a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus.’ Esta resposta encheu-os de admiração e,
deixando-o, retiraram-se. (Mt, 22, 17-22)
Embora não utilize as aspas, ela separa o seu dizer do bíblico através da
expressão já dizia Cristo que. O mais interessante é que o discurso religioso é utilizado
para concordar com o projeto, ao contrário do que se poderia esperar.
5.3. Estratégias do dizer: o retorno ao discurso da Religião
Os Textos (1b) e (2b) não se constroem exatamente a partir das mesmas
estratégias que os Textos (3b) e (4b), o que se justifica, em parte, pelo fato de que são
127
motivados por posições diferentes em relação ao projeto: enquanto aqueles foram escritos
para expressar a concordância, os outros dois são baseados na discordância frente às
sugestões da deputada. Por essa razão, e subsidiados pelas orientações da proposta, os
alunos-autores optam por serem mais incisivos na sua argumentação e nos dois momentos
em que, nos Textos (1b) e (2b), registra-se o apoio ao projeto, nos textos agora analisados,
registra-se uma interpelação à destinatária (especialmente no último parágrafo), com o
intuito de solicitar-lhe um posicionamento e conseqüente atitude, neste caso, condizente
com o repúdio ao projeto. Vejamos primeiramente o Texto (3b):
TEXTO (3b)
Campina Grande, 16 de novembro de 2004
Prezada Deputada Marta Suplicy:
Surpreende-me seu projeto de lei que visa a legalizar a união civil
entre homossexuais. Mais que um atentado á moral de nossa sociedade, este
projeto é um desrespeito às leis da natureza, assim como uma profanação da
sagrada proposta nos dada por Deus.
De forma muito clara, a bíblia afirma que “o homem deixaria seus
pais para unir-se à mulher e procriar”, ou seja, o sentido da união entre o casal
reside na multiplicação. Assim, a junção entre homossexuais consiste em uma
corrupção deste sentido.
Não vejo o homossexual como cidadão, sequer como uma pessoa
normal, pois, a partir do momento em que ele efetuou sua excêntrica escolha, ele
abriu mão de sua natureza comum, assumindo uma postura completamente
destoante de qualquer concepção, seja civil, seja religiosa. O homossexualismo
é, antes de tudo uma patologia, mas não física, e sim espiritual, o que é pior.
Assim, sugiro que a senhora reveja sua proposta, para que não
tenhamos, em um futuro próximo, de passar pelo constrangimento de ver homens
de mãos dadas pelas ruas, suprema imoralidade.
Atenciosamente,
Marcelo Duarte.
Note-se que o tom do texto mudou completamente em relação aos dois
primeiros exemplares analisados, e que o aluno-autor do Texto (3b) é incisivo, revestindose de defensor da moral e da religião, com o objetivo de expor seu posicionamento
contrário às idéias da deputada Marta Suplicy. Esta era uma possibilidade prevista pela
proposta de redação, na qual se diz claramente: “Tendo discordado do teor do projeto da
deputada, escreva-lhe uma carta argumentativa de reclamação. Apresente o problema,
128
discuta-o, reclame por soluções imediatas e, se possível, apresente sugestões para resolvêlo” (ver Anexos B e D)
Logo no primeiro parágrafo fica claro esse posicionamento do aluno, através do
uso de palavras referentes ao discurso religioso, a partir dos quais pontos de vista
diferentes passam a ter o sentido de transgressão que fere o indivíduo em sua fé e sua
moral. Assim, o projeto do contrato civil entre homossexuais assume o lugar de atentado à
moral, de desrespeito às leis da natureza e de profanação da sagrada proposta nos dada
por Deus. É interessante notar que esse lugar de atentado, desrespeito e profanação se
constrói a partir da instituição de um outro como sagrado, como lei natural e como espelho
da boa moral. Tudo que não está neste espaço e não corresponde às suas leis intocáveis
deve ser, portanto, banido, rechaçado.
Assim, o que vemos é a repetição da mesma estratégia utilizada por este alunoautor na produção escrita anterior: ele opta não por comentar o projeto de lei em seus itens,
enquanto lei dos homens, mas por negá-lo e condená-lo a partir de sua crença nas leis
divinas. Estas são consideradas novamente como superiores àquela; elas não teriam falhas,
por serem sagradas. Por essa razão, o homem deve segui-las antes de qualquer outra, já
que, principalmente, elas nos foram “dadas por Deus”.
Além disso, permanece nesse início do Texto (3b) o recurso a discursos de
instâncias diferentes, mas como se pertencessem à mesma esfera do conhecimento e se
complementassem. As expressões leis da natureza e sagrada proposta seriam,
respectivamente, do discurso científico e do religioso, normalmente considerados opostos
em seus preceitos. Entretanto, aqui nos parece que ambos são retomados com o objetivo de
não deixar margem a dúvidas: ou seja, tanto a ciência (neste caso, a Biologia) quanto a
religião condenariam a união civil, por estar alheia às leis de uma e de outra. Sendo assim,
não restaria a que se recorrer para defendê-la. Essa fusão entre discursos de áreas distintas
129
também foi um recurso empregado por este aluno-autor no seu texto anterior (ver item
4.2.2.).
Essa perspectiva religiosa escolhida para a análise do assunto se mantém no 2o.
parágrafo do Texto (3b), através do recurso a uma passagem bíblica que corrobore, pelo
sagrado, a recusa ao projeto. Vejamos:
De forma muito clara, a bíblia afirma que “o homem deixaria seus pais para
unir-se à mulher e procriar”, ou seja, o sentido da união entre o casal reside na
multiplicação. Assim, a junção entre homossexuais consiste em uma corrupção
deste sentido.
A citação da passagem não é direta, embora haja o uso das aspas para marcar
aquele dizer como de Outro – o dizer sagrado – e não como do aluno-autor. Contudo, se
observarmos o tempo verbal de deixar neste texto (futuro do pretérito – deixaria), veremos
que ele poderia ter duas funções: marcar uma possibilidade ou marcar que este dizer está
sendo retomado “de memória” (não correspondendo, portanto, à formulação exata da
Bíblia).
A primeira função seria contraditória, considerando que o trecho bíblico
aparece para sustentar uma verdade inquestionável, para a qual, portanto, não há
possibilidades; ou seja, não é uma possibilidade, neste discurso, que o homem se unirá à
mulher, é uma realidade. Parece-nos, então, que a segunda função é mais coerente, pois
significaria a marca de que estas palavras estão na Bíblia, mas talvez não exatamente com
essa formulação. O que surge como possibilidade, então, não é o conteúdo do dizer, mas a
sua formulação; e é o uso do futuro do pretérito que delimita esse efeito de sentido no
texto. De fato, há pontos de contato e de afastamento entre a maneira como o aluno-autor
recuperou o trecho bíblico e o modo como ele realmente está escrito (ao menos na versão
consultada por nós):
Por isso deixa o homem pai e mãe, e se une à sua mulher tornando-se os dois
uma só carne. (Gênesis, 2; 24)
130
O aluno-autor fala ainda que a função do casamento é a procriação. Como
vimos no trecho de Gênesis citado acima, não há referência a essa finalidade da união entre
homem e mulher. Mas podemos encontrá-la em uma outra passagem, anterior a esta, do
mesmo livro:
Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e
mulher os criou.
E Deus os abençoou, e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra
e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todo
animal que rasteja pela terra. (Gênesis, 1; 27-28, grifo nosso)
É nesta passagem que podemos interpretar que a função do casamento ou que o
“verdadeiro sentido” da união entre duas pessoas deve ser a procriação. Assim, fica claro
que em seu texto o aluno-autor usa as aspas, mas não faz uma citação direta; pelo
contrário, ele interpreta o livro Gênesis e, a partir da sua interpretação, reformula o texto
bíblico a fim de reforçar o ponto de vista que defende em relação ao projeto de lei. O verbo
deixaria, portanto, revela a fusão feita pelo aluno entre essas duas passagens bíblicas sobre
a criação do homem e da mulher (e a função de ambos) e a reconstrução, em um só
enunciado, de uma idéia que está em dois capítulos diferentes da Bíblia (embora
encontrem-se no mesmo livro – Gênesis).
No texto do aluno-autor, a passagem bíblica, colocada entre aspas, é seguida de
uma paráfrase (ou assim acredita o aluno), indicada pela expressão ou seja. No entanto, o
trecho que segue corresponde a uma leitura consagrada dessa passagem, feita pelos
religiosos para justificar o que seria o sentido do casamento: a multiplicação. Essa
paráfrase se mostra como um importante recurso argumentativo no Texto (3b), por levar a
um silogismo que confirma o ponto de vista contrário ao contrato civil:
I – o sentido da união entre duas pessoas é a procriação
II – um casal homossexual não pode procriar entre si
131
III – logo, não há sentido nesta união (ou há, mas corrompido)
Na discussão em sala de aula, há momentos em que essa visão sobre o
casamento é abordada, mas, como ela também aparecerá no Texto (4b), analisado a seguir,
adiaremos as observações para o momento seguinte, quando analisarmos este último texto.
Até aqui não podemos afirmar que há muitos dados novos em relação às
estratégias discursivas utilizadas na primeira produção deste aluno-autor, analisada no item
4.2.2. deste trabalho. Observemos se na seqüência do Texto (3b) há alguma mudança
nessas estratégias.
Não vejo o homossexual como cidadão, sequer como um a pessoa normal, pois,
a partir do momento em que ele efetuou sua excêntrica escolha, ele abriu mão de
sua natureza comum, assumindo uma postura completamente destoante de
qualquer concepção, seja civil, seja religiosa. O homossexualismo é, antes de
tudo uma patologia, mas não física, e sim espiritual, o que é pior.
Se considerarmos esse 3o. parágrafo do Texto (3b) em sua relação
intradiscursiva, ou seja, com os outros enunciados que o compõem, veremos que há uma
espécie de quebra na seqüência das idéias: o 1o. e o 2o. parágrafos avaliam o assunto do
ponto de vista religioso; o 3o. é iniciado com uma frase sem aparente conexão com as
idéias anteriores, já que não se falava em cidadania, mas em família, segundo a religião
católica. No entanto, a partir da formulação do início desse parágrafo, se supõe que essa
discussão é anterior, que ela já existia no texto; ou seja, através da negativa (Não vejo o
homossexual como um cidadão), é retomado um discurso sobre cidadania, que não vinha
sendo discutido no texto, mas que foi mencionado em sala de aula.
O que se percebe, afinal, é que, se considerarmos o Texto (3b) linha a linha,
essa discussão não existia, mas, na sua relação com o discurso oral construído em sala de
aula, ele passa a fazer sentido, como um discurso-resposta. Ou seja, o enunciado – Não
vejo o homossexual como um cidadão – passa a fazer sentido no discurso do aluno se
considerarmos que se estabelece uma relação com o discurso da professora, segundo o qual
132
o contrato civil entre homossexuais deveria ser analisado do ponto de vista jurídico e não
religioso, como se pode confirmar com os trechos (3) e (4) da aula, citados anteriormente
(ver item 5.1.).
Dessa forma, o aluno-autor parece sentir a necessidade de retomar essa questão
da cidadania do homossexual, devido à ênfase dada a ela pela professora. Além desses dois
momentos da discussão oral, há outro em que a professora incita a discussão sobre a
cidadania do homossexual:
(14)
L1 PROF: vocês não acham que seria justo um casal + de homossexuais que +
já convivem + por exemplo + nós temos um cas/ esse caso de João
Pessoa que eu vou mostrar as matérias já convivem há dezesseis anos
+ as duas mulheres + se elas convivem há dezesseis anos +
provavelmente elas batalharam juntas por muitas das conquistas
MATEriais
L6 MAÍSA: pois é
L7 PROF: a questão moral a questão da sociedade aceitar ou não elas já
convivem com isso e continuaram e nem por isso deixaram de ter o
casamento delas lá + legalizado ou não + então vocês não acham que
essas duas + que passaram por essa história de vida toda + uma delas
morre + vocês não acham que a outra deveria ter os direitos à
heran::ça + direito é::
L12 MAÍSA: á pensão
L13 PROF: exato + até porque ela ajudou + UM DOS pontos do projeto é esse
+ tá? não é simplesmente + às vezes a gente banaliza um pouco +
um fato de + um casal casar + mas a questão de do ponto de vista
do direito então vocês têm que pensar um pouquinho ++ o fato de
ser um casal de homossexuais DIminui a questão da cidadania +
dos dois?...
L18 RAÍSSA: não não
L19 PROF: seja homem ou seja mulher?...
A todo momento a professora reforça a sua opinião, ainda que não a assuma: a
necessidade de, segundo ela, avaliar o tema a partir de uma posição em sintonia com a
justiça, a igualdade de direitos e a cidadania. A própria interpretação que ela faz dos fatos
publicados no jornal não é isenta (e nem poderia), de maneira que se pode perceber sua
concordância em relação à decisão da justiça paraibana, pois, segundo a professora, já que
133
as duas mulheres convivem há 16 anos, provavelmente, construíram um patrimônio juntas
e por isso deveriam ter direito à herança (L3-L5 e L7-L13). Há, portanto, um reforço à
importância das noções de justiça e cidadania para avaliar o assunto. Esse reforço tem seu
ápice na pergunta formulada pela professora (L16 e L17) e dirigida aos alunos.
Mas a resposta para essa pergunta não se restringe à interação mais imediata,
em sala de aula, na ocasião do debate. E, se o aluno-autor do Texto (3b) prefere calar no
momento da discussão, não expondo sua opinião (e não se expondo, por discordar), em seu
texto encontramos o eco dessa pergunta: o enunciado – Não vejo o homossexual como um
cidadão – pode ser visto como resposta a ela, já que não é uma continuação do discurso
que o aluno-autor vinha construindo em seu texto.
Ainda neste mesmo parágrafo, encontramos a idéia de que o homossexual,
segundo o autor desse Texto (3b), não é “uma pessoa normal, pois, a partir do momento
em que ele efetuou sua excêntrica escolha, ele abriu mão de sua natureza comum,
assumindo uma postura completamente destoante de qualquer concepção, seja civil, seja
religiosa”. A discussão entre normalidade/anormalidade já estava presente no outro texto
escrito do aluno-autor e era exposta no mesmo tom incisivo que é nesta produção textual.
Assim, ele coloca, no seu discurso, o homossexual à margem: este grupo será considerado
excêntrico, anormal, de natureza incomum, não merecendo, portanto, qualquer direito que
o inclua como cidadão (concepção civil) ou cristão (concepção religiosa). Ou seja, há um
padrão de conduta que é desviado pelos homossexuais, os quais são (e, para o aluno-autor,
merecem ser) “punidos” por essa “escolha”; punição que vem com a negação de direitos.
No final do 3o. parágrafo, encontramos uma espécie de definição do termo
homossexualismo: “O homossexualismo é, antes de tudo, uma patologia, mas não física, e
sim espiritual, o que é pior”. Chama-nos a atenção neste trecho o uso da palavra patologia,
pertencente ao vocabulário médico, mas aqui utilizada com outro sentido, a fim de opor
134
dois planos: o físico e o espiritual. Sendo o homossexual alguém que sofre de uma
patologia, mereceria ser tratado, mas não julgado, pois, como patologia, a
homossexualidade não teria sido de sua vontade ou escolha. Contudo, isto seria uma
contradição no discurso do aluno-autor, que afirma ser esta opção uma excêntrica escolha.
Então, para não pôr em xeque a sua argumentação, ele atribui um novo sentido à palavra
patologia, aliando-a a questões espirituais, portanto, religiosas (o que é pior, pois
demonstraria falha de caráter, para o aluno). Essa perspectiva religiosa é a base de toda sua
defesa e não pode ser questionado, por constituir-se, do seu ponto de vista, verdades
absolutas.
Para finalizar, o aluno-autor dirige-se, no 4o. e último parágrafo do Texto 3, à
deputada, a fim de solicitar-lhe uma mudança de posicionamento quanto ao projeto.
Mesmo nesse final o tom é bastante incisivo e radical, como se pode perceber pelo uso da
expressão “suprema imoralidade”.
Assim, sugiro que a senhora reveja sua proposta, para que não tenhamos, em um
futuro próximo, de passar pelo constrangimento de ver homens de mãos dadas
pelas ruas, suprema imoralidade.
Mas um aspecto que merece ser comentado é a preocupação de que, se
legalizado o contrato civil entre homossexuais, isso equivaleria à liberação de gestos
públicos de carinho entre esses casais, o que seria um constrangimento para a sociedade,
segundo o aluno-autor. Esta era uma preocupação que já se fazia presente na produção
escrita anterior deste mesmo aluno, embora, naquele outro texto, o foco estivesse sobre a
influência que essa liberação poderia ter sobre as crianças que, vendo casais nas ruas,
poderiam querer imitá-los.
Essa aproximação entre legalização/liberação foi um dos pontos fortes do
debate oral em sala de aula, sendo motivo de divergências entre os alunos. Vejamos uma
das passagens:
135
(15)
L1 ÉRIK: se você legaliza o casamen:to + eles vão se achar no direito de ‘tarem
se relacionando dentro dum shopping, dentro do cinema + e isso é
feio + a sociedade ainda não
L4 RENA:
[é feio?!
L5 ÉRIK: mas Renata
L6 RENA: ((risos))
L7 ÉRIK: eu QUEro falar
L8 RENA: ((risos))
L9 ÉRIK: isso teria que ter a mente mais aberta + mas isso não funciona aqui +
quem estudou nas Damas a vida todinha + num internato como é que
L11 RENA:
[ aí é problema dela
L12 ÉRIK: né problema ((a aluna começa a rir,e perde a paciência, desistindo de
falar))
(...)
L14 CAMI: você não gostar de um gay não quer dizer / como se aquilo não
existisse + fosse uma coisa fora da realidade + só que assim + é o
seguinte + do mesmo jeito que + tem pessoas que num tão a fim de
ver homossexuais se beijando em plena praça da alimentação do
shopping também num tá a fim de ver um homem e uma mulher +
então eu acho que cabe à per-sonalidade de cada um + o respeito de
cada um ao próximo + porque + independente de você ser hetero
homo tem que ter respeito o outro porque são pessoas que não
aceitam nem um beijo de língua assim a: na frente de todo mundo
Em L12, a aluna desiste de falar, só retomando o seu raciocínio depois:
(16)
L1 ÉRIK: é porque tá legalizando o casamento é como tá legalizando isso como
uma coisa normal pra sociedade e que de fato não é + a gente ainda
não tá com a mente preparada pra isso
L4 ANID: a sociedade brasileira é muito pa/patriacal patriarcal
L5 ÉRIK: tá enten/ é a mente muito fechada o povo tema mente muito pequena
+ então num é normal + agora assim ++ re-lação homossexual aí não
acabou + eles que tenham lá + agora o ca-sa-mento aí é uma coisa
mais séria + aí é uma coisa mais ((alguns alunos tumultuam com
gracinhas))
Nesses dois trechos (15 e 16) da aula de debate sobre o tema, percebemos que a
discussão gira em torno da aceitação do comportamento homossexual como normal, oque
incluiria a aceitação também de gestos públicos de carinho entre eles. Segundo a aluna
ÉRIK, a sociedade ainda não estaria preparada para essas situações; já a aluna CAMI
(trecho de fala 15, L12-L20) considera que este não deveria ser um obstáculo para a
legalização do contrato civil, pois há pessoas que não suportam presenciar manifestações
136
de carinho também entre heterossexuais e nem por isso se vai proibir o casamento entre
estes.
De qualquer forma, o que se percebe é a ênfase nas reações diante da situação
(para alguns, constrangedora) de presenciar casais homossexuais trocando carícias em
público. O foco não está mais, portanto, na possível influência que essas cenas podem
causar no comportamento de crianças e adolescentes. Essa influência não deixa de ser
discutida na aula em outros momentos, mas talvez a importância que foi dada às possíveis
reações das pessoas, diante de cenas de carinho entre homossexuais, tenha sido a razão
para que, nesta segunda produção, o aluno-autor do Texto (3b) tenha abordado esse
aspecto neste momento de produção.
Vejamos agora como o aluno-autor do Texto (4b), que defende o mesmo ponto
de vista e a partir do recurso ao discurso religioso, constrói a sua argumentação.
TEXTO 4(b)
Campina Grande, 16 de novembro de 2004
Prezada Deputada Marta Suplicy:
Diante das propostas apresentadas pelo projeto de lei que aprova o
contrato civil entre pessoas do mesmo seco, venho, não objetivando mudar sua
posição, mas trazer esclarecimentos, manifestar minha absoluta objeção a tal
decisão.
Tendo em vista o plano divino da criação, em que o homem foi feito
para ser o sacerdote do lar junto à mulher, sua fiel auxiliadora e adjuntora, tal
projeto fere os princípios bíblicos e morais e desmoraliza totalmente a figura do
ser humano, que deve crescer constituindo uma família estável e feliz.
Não assumindo uma postura preconceituosa em relação a pessoa do
homossexual, visto que ele é digno de misericórdia e Deus o ama, mas aborrece
a sua prática, é de primordial importância levantarmos o seguinte
questionamento: como um casal de homossexuais irão cumprir o propósito da
perpetuação da espécie? E se adotarem, qual o tipo de formação irão passar para
essa possível criança? Com certeza, a pior possível, pois para que a criança tenha
um crescimento saudável, é preciso haver a figura da mãe e do pai.
Além disso, tal contrato visa apenas interesses econômicos,
deteriorando ainda mais o caráter humano. Portanto, espero de sua parte uma
reavaliação de seus conceitos morais e cristãos, a fim de que se possa contribuir
para o respeito a família como instituição sagrada e não a aprovação de tal
aberração.
Atenciosamente,
Denise Pereira
137
Contrariamente ao Texto (3b), o (4b) escolhe como estratégia discursiva um
início menos pretensioso, ao afirmar que quer apenas manifestar a opinião e não modificar
a posição da deputada. Além disso, evita fazer avaliações acerca da moral ou da
religiosidade de sua interlocutora: “venho, não objetivando mudar sua posição, mas trazer
esclarecimentos, manifestar minha absoluta objeção a tal decisão”.
Esse recurso revela uma preocupação em conquistar a simpatia do leitor e se
baseia no jogo de imagens: ao admitir, inicialmente, que não pretende mudar a posição da
deputada quanto ao tema, é como se a aluna-autora perguntasse: quem sou eu para sugerir
tal mudança? No entanto, essa é apenas uma estratégia inicial, pois tanto o Texto 3 quanto
este são encerrados pela solicitação de que Marta Suplicy reavalie seu projeto e o
abandone, o que nada mais é do que uma exigência do próprio subgênero carta de
solicitação e/ou de reclamação. De qualquer forma, embora tome uma posição de absoluta
objeção quanto ao projeto, o tom de todo o texto será menos incisivo que o do Texto (3b).
No 2o. parágrafo, há a retomada do texto bíblico da criação, com a formulação
da aluna-autora, com palavras que ela toma como dela, mas que são facilmente
reconhecidas como pertencentes ao discurso religioso. É assim no uso de palavras como
sacerdote do lar (para se referir ao homem) e fiel auxiliadora e adjuntora (para se referir à
mulher). Construções como essas, típicas do discurso religioso, podem ser vistas, por
exemplo, nos trechos bíblicos a seguir:
Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma
auxiliadora que lhe seja idônea. (Gênesis, 2; 18)
Deu nome o homem todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os
animais selváticos; para o homem, todavia, não se achava uma auxiliadora que
lhe fosse idônea. (Gênesis, 2; 20 – grifos nossos)
Vejamos que há até o uso das mesmas palavras, como auxiliadora, ou de
palavras semelhantes, como fiel e idônea. É interessante que, particularmente nestas
passagens do Gênesis, não há referência à idéia de que a mulher viria a se unir ao homem
para procriar, mas para lhe fazer companhia: não é bom que o homem esteja só. Contudo,
138
para a aluna-autora (certamente apoiada em outras passagens bíblicas e nas interpretações
consagradas destas) o propósito da existência humana, o plano divino da criação, é
constituir uma família estável e feliz. Aqui, fica claro que o conceito de família é
tradicional – formada por um homem, uma mulher e os filhos – o que, embora não a
caracterize necessariamente como estável e feliz, está de acordo com os princípios bíblicos
e morais.
No parágrafo seguinte, também identificamos expressões do discurso religioso,
tais como: digno de misericórdia, Deus o ama, aborrece sua prática:
Não assumindo uma postura preconceituosa em relação a pessoa do
homossexual, visto que ele é digno de misericórdia e Deus o ama, mas aborrece
a sua prática, é de primordial importância levantarmos o seguinte
questionamento: como um casal de homossexuais irão cumprir o propósito da
perpetuação da espécie? E se adotarem, qual o tipo de formação irão passar para
essa possível criança? Com certeza, a pior possível, pois para que a criança
tenha um crescimento saudável, é preciso haver a figura da mãe e do pai.
Assim, retoma-se o caráter superior e misericordioso de Deus que, embora não
aprove as atitudes dos homossexuais, os ama e perdoa. Ao mesmo tempo em que constrói a
imagem de Deus com essas características positivas, o Texto 4 constrói a dos
homossexuais como pecadores, dignos de perdão pelo erro cometido.
Ainda quanto ao vocabulário utilizado, merece destaque neste parágrafo a
expressão “perpetuação da espécie”: como um casal de homossexuais irão (sic) cumprir o
propósito de perpetuação da espécie?”. Este enunciado nos remete ao discurso do cresceivos e multiplicai-vos, presente na Bíblia, conforme já exposto quando analisamos o Texto
(3b). No entanto, aqui ele não aparece com a mesma formulação bíblica, mas o sentido éo
mesmo: ambos defendem a idéia de que o objetivo da união entre duas pessoas é crescer e
multiplicar-se ou perpetuar a espécie.
Esse é o mesmo discurso utilizado em um dos textos da coletânea que compõe
a proposta (o de Newton Cruz), no qual, inclusive, é formulada uma pergunta semelhante:
“como é que dois homens juntos vão crescer e se multiplicar?”. Parece-nos, então, ser este
139
um argumento recorrente para aqueles que não concordam com o contrato civil e baseiam
seu ponto de vista nos preceitos religiosos.
Na seqüência do parágrafo, o mesmo recurso à elaboração de questionamentos
é utilizado quanto à adoção de crianças por casais homossexuais: “E se adotarem, que o
tipo de formação que irão passar para a possível criança?”. Neste trecho, tem-se o seguinte
raciocínio: se o homossexual não pode perpetuar a espécie para formar uma família
estável e feliz, a possibilidade que lhe resta seria a adoção; todavia, essa não seria uma boa
saída, tendo em vista o prejuízo para a formação moral da criança. A pergunta é, em
seguida, respondida pela própria aluna-autora, mas o que se percebe nesse recurso à
formulação de questionamentos é a ausência de uma discussão aprofundada sobre o
assunto, pois ela traz a questão, responde, mas não apresenta argumento para justificar sua
resposta. Como ela se vale de uma palavra autoritária, talvez acredite que apenas enunciar
essa palavra já baste, por esta representar a verdade em si mesma.
Caberia-nos perguntar, ainda, o que se está chamando de crescimento saudável,
em: “para que a criança tenha um crescimento saudável, é preciso haver a figura da mãe e
do pai”. O contexto em que essa expressão surge leva-nos a entender que bastaria um lar
heterossexual para garantir à criança um crescimento com esta qualidade.
Como viemos comentando, tanto este Texto (4b) quanto o (3b) utilizam uma
referência à mesma passagem bíblica (a criação) para defender sua opinião contrária ao
projeto de Marta Suplicy. Vejamos o que ocorre na passagem abaixo (L11 a L13):
(17)
L1 MAÍS: professora! e no caso da da adoção que a senhora ia tocar no assunto
+ é muito relativo um sentido de que: tanto:: há um impacto
psicológico na criança que vai crescer/digamos / que não vai ter a
presença mãe e pai + feminino e masculino + O:u vai ter duas
mulheres ou dois homens né? mas por outro lado é como Raíssa
tocou naquele assunto + tem:: casal que apesar de homem é muito
mais humano + sabe constituir um lar /uma família mu::ito mais +
bem estruturada do que + do que / por exemplo + do que um ca/ um
casal hetero que recentemente casou e já vão se preparar e aquela
agonia + e aquela criança ((incompreensível)) + no sentido assim de
140
que a família não tá:: obrigatoriamente relacionada à figura de um pai
+ mas sim à figura daqueles que + que ze:lam que orientam + que
querem de fato o melhor pra criança + mas aí também por outro lado
já tem também história assim de que + é + o casamento no sentido
assim de que + é::: pra que /no sentido de: digamos casai-vos e
multiplicai-vos que é impossível pra eles aí num tem condições de:
multiplicar né? de de multiplicar né?
L14 PROF: [sim
L15 MAÍS: aí já tá fugindo assim idéia doutrinal né?
L16 PROF:
[sim + é + mas aí você pensando bem
na história do do crescei e multiplicai-vos né? é:: isso aí é religioso
L18 MAÍS:
[sei
L19 PROF: é do ponto de vista da bíblia
A idéia de união ligada à multiplicação não é debatida com ênfase, mas sua
referência aqui e também na proposta de redação é suficiente para ser recuperada no texto
escrito dos alunos. Além disso, há certas idéias trazidas neste trecho que são recuperadas
pela aluna-autora do Texto (4b), como as referentes às conseqüências para a criança por ser
criada por homossexuais (L1 a L5). Contudo, a aluna não se mostra tão segura do seu
ponto de vista, como se pode ver na continuação da sua fala (L6 a L13). A aluna-autora do
Texto (4b) parece dialogar com essas questões trazidas na aula pela sua colega, mas se esta
mantém alguma dúvida, aquela tem certeza do que diz (ao menos é o que seu texto deixa
entrever quanto à discussão sobre a adoção).
Embora seja uma retomada rápida da Bíblia (L11 a L13), como já afirmamos, a
mesma idéia apareceu nos dois textos aqui analisados: o (3b) e o (4b). Esta constatação nos
leva a crer que isso não foi uma influência da discussão oral, mas da própria formação
desses alunos-autores ao longo de sua vida (dentro e fora da escola). Essa suposição se
confirma se nos lembrarmos de que estas idéias com fundamento na religião estão
presentes no discurso desses dois alunos desde a primeira produção escrita, quando não
ainda não havia sido realizada a discussão oral do tema. E, mesmo após a discussão e a
pouca importância dada à questão da “multiplicação”, eles mantiveram seu ponto de vista e
a base religiosa da sua argumentação.
141
Mas recuemos um pouco para o início deste 3o. parágrafo. O primeiro
enunciado é: Não assumindo uma postura preconceituosa em relação ao homossexual. Na
linearidade do Texto (4b) não se havia falado ainda sobre o preconceito contra o
homossexual, de maneira que nos instiga o surgimento desse enunciado, quase como uma
resposta possível a uma crítica futura, como uma defesa a ela: ou seja, embora esteja
discordando do projeto, a aluna-autora não quer ser incluída entre aqueles que o fazem por
preconceito. Há mesmo uma preocupação da aluna-autora em não ser identificada como
preconceituosa, pois estar nessa posição seria desconfortável, tendo em vista a grande
aversão de todos por atitudes dessa natureza.
É o que veremos a seguir, em mais um trecho do debate em que se deu bastante
ênfase ao preconceito como uma atitude negativa, que provoca entraves e demonstra
desrespeito às opiniões/posturas diferentes:
(18)
L1 PROF: você tem então aí duas opiniões favoráveis ao contrato civil, né? à
união entre homossexuais + cada uma se basea::ndo + em que
argumentos? quais são os argumentos que eles usam
L4 FABI: citam o preconceito hoje
L5 PROF: a questão de brigar contra o preconceito + né? e aí então pra essas
pessoas fica implícito que o fato de não querer assumir isso + essa
união civil + seria fruto apenas do preconceito + não teria outra
justificativa + pra essas pessoas + Érika + lê pra mim o próximo, por
favor
L9 RENA: a gente tava comentando aqui que não tem nada ver + num é porque
a pessoa vai ser gay que ela vai queimar no fogo do inferno
L11 CAMI: e quem é ela pra julgar? ((os alunos falam ao mesmo tempo))
Apesar de haver essa preocupação explícita de não se identificar com o
preconceito em relação ao homossexual, percebemos que a aluna-autora do Texto (4b) não
consegue atingir esse propósito, o que fica claro na continuidade desse 3o. parágrafo,
quando ela afirma que uma educação dada por homossexuais só pode ser “com certeza, a
pior possível”. Além disso, ao afirmar que não tem preconceito porque o homossexual é
digno de misericórdia e Deus o ama, ela acaba por revelar esse sentimento: se Deus o ama,
mesmo não corroborando a sua escolha sexual, e se o homossexual é digno do perdão
142
divino, é porque ele está errado e, a princípio, só merece ser perdoado; amor ele só tem
mesmo porque Deus é muito bom e ama a todos os seus filhos por igual, até os que se
desviaram do caminho (como Maria Madalena, por exemplo).
No 4o. e último parágrafo, a aluna-autora retoma o projeto:
Além disso, tal contrato visa apenas interesses econômicos, deteriorando ainda
mais o caráter humano. Portanto, espero de sua parte uma reavaliação de seus
conceitos morais e cristãos, a fim de que se possa contribuir para o respeito a
família como instituição sagrada e não a aprovação de tal aberração.
Ela apresenta o que acredita ser mais uma razão para não concordar com ele:
tal contrato visa apenas interesses econômicos, deteriorando ainda mais o caráter
humano. Em outras palavras, o projeto não deve ser aceito porque se refere a questões
econômicas, como a herança, e isso seria um ponto negativo, por não considerar o “lado
humano” do assunto, apenas o financeiro. Ora, com esse raciocínio, a aluna-autora encerra
a discussão, aparentemente não deixando saídas para os homossexuais: por um lado, eles
não podem se unir porque este não é o modelo de família aceito e porque eles não têm
como cumprir com o propósito da união (que não é ser companheiro um do outro, mas
procriar); por outro lado, se é esquecida a idéia de união (que revelaria o companheirismo e
o desejo de formar uma família), passando a haver uma maior preocupação com questões
financeiras, então também está errado porque isto seria diminuir o aspecto “humano” e só
considerar o “material”.
Na continuação do 4o. parágrafo, temos um pedido de mudança para a deputada
Marta Suplicy: espero de sua parte uma reavaliação de seus conceitos morais e cristãos.
Se considerarmos esse “pedido” em relação ao início do texto, no qual a aluna diz não
pretender mudar a posição da deputada, teríamos uma aparente contradição, já que agora,
ao final do texto, ela muda o objetivo e diz não ser mais apenas expor seu ponto de vista,
mas mudar o de Marta Suplicy. Há alguns aspectos importantes a considerar. O primeiro
deles é a própria comanda da proposta de redação, que exigia uma interpelação do aluno-
143
autor, dirigida á deputada: ou seja, caso ele não concordasse como projeto, deveria
reclamar por soluções imediatas.
Outro aspecto é o fato de que este pode ser um indício de que o sujeito não
controla totalmente o seu dizer (já que a língua não é transparente), mas mantém para si a
ilusão de que o faz. Dito de outra forma, é possível que estejamos diante de uma
explicitação involuntária de um conflito do sujeito: de um lado, ele não pretende ser
acusado de defender um discurso preconceituoso (este bastante condenado pela sociedade
em geral e pelos colegas na discussão oral em sala de aula); mas, de outro, não abre mão de
sua posição contrária ao comportamento homossexual, que vai de encontro aos seus
valores morais e religiosos.
Assim, esse conflito, instaurado no campo discursivo, entre o discurso
religioso/moral e o anti-preconceito sexual, se revela materialmente no Texto (4b) através
dessa mudança de atitude em relação aos seus propósitos (mudar a opinião da deputada
sobre o tema ou apenas expressar a própria opinião? Ser condescendente com os
homossexuais, concedendo-lhes direitos, ou apenas considerá-los dignos de perdão pelos
erros contra a religião e a moral?).
Ao final do parágrafo, volta a idéia da família como instituição sagrada, em
relação à qual a união de homossexuais só pode ser considerada uma aberração. Temos
aqui outro indício do preconceito contra este grupo, embora a aluna-autora não aceite ser
incluída entre os preconceituosos.
Conforme pudemos observar neste capítulo, os quatro textos analisados
mantiveram a estratégia de retomar o discurso do Direito ou da Religião, como ocorreu na
primeira produção textual. Contudo, além destes dois discursos, houve também a retomada
de outros aspectos sobre o assunto, discutidos oralmente em sala de aula e mencionados
pelos alunos, mas, principalmente, pela professora. Então, se antes o ponto de vista do
144
aluno estava associado unicamente ao seu conhecimento de mundo e às idéias suscitadas
pelos textos da proposta de redação, agora ele se fundamenta também na leitura e
interpretação das outras informações sobre o assunto, trazidas para a sala de aula no
momento do debate oral sobre o contrato civil. Assim, mostrou-se importante o confronto
com opiniões diferentes da sua, não necessariamente contrárias, mas que o fizeram
repensar o seu modo de avaliar o projeto de lei (mesmo que não tenha modificado sua
opinião).
145
Conclusão
(Quino. Toda Mafalda. São Paulo: Martin Fontes, 2000, p. 122)
Longe de ser o ponto final, a determinar a interrupção da viagem, essa etapa é
apenas o diário de bordo, no qual se analisa como foi o dia e se faz planos sobre como a
viagem continuará.
Ao analisar os textos que compõem nosso corpus, produzidos em duas
situações de produção na escola, pudemos constatar a manutenção de algumas estratégias
discursivas e mudança de outras nos textos de uma e de outra situação. Entre aquelas que
foram mantidas, temos, por exemplo, o fato de que o sujeito que escreve nunca está só: ora
ele dialoga com textos lidos na proposta de redação; ora com opiniões de outros, ouvidas
em sala de aula (ou não); ora com outros discursos com que teve contato até o presente
momento de sua formação. De qualquer forma, seu texto (como todo texto) será sempre
um diálogo com já-ditos.
No entanto, a presença desse diálogo (que se mostra a partir de diferentes
estratégias de retomada) não significa que esses textos produzidos em situação escolar
sejam mera repetição; nem que os alunos não são autores do texto que escrevem. Muito
pelo contrário, o que percebemos nos oito textos analisados é a retomada de já-ditos, mas
com formulações distintas, que revelam a interpretação do aluno-autor sobre o dizer do
o/Outro e que resultam em efeitos de sentido diferentes. Ou seja, o dizer recuperado, ao ser
146
inserido em outra situação de produção e em outro contexto (dentro do novo texto), assume
outros sentidos.
São vários os momentos em que se pode perceber essa emergência de novos
efeitos de sentido, bem como o trabalho dos sujeitos da pesquisa sobre um dizer, o que
comprova a assunção da função-autor pelos alunos. No Texto (1a), por exemplo, a palavra
Direito assume significações diferentes, em função do ponto de vista adotado pela alunaautora, o que demonstra o trabalho de interpretação e (re)formulação desse discurso por
ela, que o recupera, mas não se limita a repeti-lo tal qual ele circula na sociedade. Já
quanto ao Texto (2a), alguém poderia afirmar que o aluno não se constitui como autor, vez
que ele recorre às mesmas idéias de um dos textos da proposta de redação e as apresenta
até na mesma seqüência. Contudo, a formulação é diferente (como vimos no capítulo 4) e a
conclusão a que essas idéias levam não é igual à do texto da proposta: em (2a), o alunoautor defende que sejam incluídos no projeto de lei novos direitos para os homossexuais, o
que não é mencionado em nenhum outro texto, isto é, trata-se de uma interpretação do
próprio aluno.
Estratégias semelhantes aparecem nos demais textos do corpus, inclusive
naqueles que recorrem à referência a passagens bíblicas: (1b), (3a), (3b), (4a) e (4b).
Nestes, o texto bíblico não é puramente copiado, mas interpretado e reformulado, inserido
em um novo contexto, a partir do qual assume nuances de sentido diferentes daquelas que
aparecem no livro sagrado dos católicos.
Mesmo quando se pretende confirmar o discurso bíblico (como nos Textos (3a),
(3b) (4a) e (4b)), ele é trazido para discutir um assunto que sequer existia na época de
Cristo: os direitos civis para os homossexuais (neste caso, o contrato civil entre as pessoas
desse grupo). Além disso, os trechos escolhidos não são quaisquer trechos, mas aqueles
que servem para os propósitos da argumentação que se pretende construir. Assim, a
147
escolha das passagens bíblicas relacionadas ao que se quer discutir já demonstra o trabalho
do sujeito sobre esse discurso que ele recupera.
Não estamos afirmando, evidentemente, que o sujeito é totalmente livre, mas
que há espaço para o seu trabalho sobre a língua e sobre o discurso. É possível perceber,
por outro lado, os enquadramentos do discurso (Foucault, 2004): todos os textos aqui
analisados se mantêm entre o discurso do Direito e o da Religião, como se fosse permitido
ao sujeito falar sobre o contrato civil entre homossexuais apenas a partir desses dois
lugares. Essa divisão encontra-se já na proposta de redação, cujos textos expressam
opiniões filiadas a um desses pólos – o Direito ou a Religião; encontra-se também nos
textos para debate, coletados na internet, os quais recuperam essa espécie de dicotomia; e,
por fim, encontra-se no enfoque das discussões realizadas oralmente em sala de aula, nas
opiniões dos alunos e da professora, que retomam e reforçam a existência desses dois
lugares de debate do assunto.
Todavia, mesmo dentro desse enquadramento, os sujeitos encontram espaço
para o seu dizer (mesmo que construído a partir do dizer do o/Outro). É o que observamos
nos exemplos já comentados e também no fato de que, embora se suponha que o discurso
do Direito deva servir de argumento para defender o contrato civil, a aluna-autora do Texto
(1a) contraria essa perspectiva e o utiliza, inicialmente, para condenar essa proposta que
beneficia os homossexuais. Essa mesma aluna-autora, em seu segundo texto (1b), usará
estratégia semelhante, ao recorrer ao discurso religioso para defender um ponto de vista
contrário ao da religião: ao citar a passagem “Dai a César o que é de César, e a Deus o que
é de Deus”, ela subverte a lógica aparente em associar o discurso do Direito à concordância
com o projeto e o da Religião à discordância, utilizando-os de maneira “invertida” em
relação ao que se esperava.
148
Outra estratégia recorrente nos oito textos, independentemente de serem
produzidos na primeira ou na segunda situação de produção, é a pouca atenção dada aos
itens do projeto. São raros os momentos em que os alunos-autores discutem as propostas
do projeto (que deveria ser o objeto central da discussão). O que pretendemos dizer é que
eles não dialogam com o texto do projeto, embora discutam esse documento quanto às suas
conseqüências para a sociedade.
Como dissemos no início deste item, todos os textos mantiveram um aspecto
em comum, nas duas situações de produção consideradas neste trabalho: a recorrência ao
diálogo com o já-dito. Paradoxalmente, é neste mesmo aspecto, o diálogo com o já-dito,
que estará uma das diferenças entre os textos produzidos na primeira situação de produção
(sem discussão do tema) e na segunda (com discussão oral em sala de aula). Assim, uma
estratégia discursiva diferente poderá ser vista nos textos escritos na segunda situação:
além dos já-ditos recuperados a partir dos textos lidos na proposta de redação e daqueles
que fazem parte da formação do aluno, eles manterão diálogo com a discussão oral em sala
(conforme visto no capítulo 5).
Percebemos que os alunos, após a discussão oral, sentem-se interpelados a
recuperar as opiniões com as quais tiveram contato nesse momento de interação, ainda que
seja para refutá-las (como se pode perceber, por exemplo, no Texto (3b), acerca da
cidadania do homossexual).
A discussão oral possibilitou também mudanças no ponto de vista assumido
(ver Textos (1a) e (1b)), ou no teor da abordagem do projeto. Este último caso, por
exemplo, pode ser verificado no Texto (2a), em que o aluno exige mais direitos para os
homossexuais, além daqueles já previstos pelo projeto de lei; mas, na sua segunda
produção, (2b), essa reivindicação é “amenizada” e é acrescentada a idéia de que, quanto à
adoção, é preciso ponderar melhor. Essa mudança, sem dúvida, ocorreu devido à influência
149
da discussão oral, pois o aluno pôde, neste momento de debate, refletir sobre o assunto e
sobre aspectos para os quais ele não havia atentado ainda, entre os quais, a adoção e a
intensidade das divergências de opiniões sobre o contrato civil.
Como já afirmamos, essas alterações ocorreram, em geral, devido à influência
do discurso da professora, que, nesta segunda situação de produção, explicitou (ainda que
não pretendesse fazê-lo inicialmente) o seu ponto de vista sobre o assunto. Se o guia antes
era o livro didático, agora será também o discurso da professora.
Podemos dizer, então, que uma situação de produção em que se discuta
oralmente o tema em sala de aula se mostra importante, na medida em que interfere na
própria constituição dos sujeitos, fazendo-os refletir sobre seus posicionamentos e pensar
sobre aspectos diferentes da questão. Essa interferência acontecerá não só no âmbito das
idéias a que o aluno-autor recorre na construção do seu dizer, mas também na elaboração
dos textos escritos, uma vez que, como vimos, neles serão utilizadas estruturas que
retomam idéias da discussão oral, mais especificamente, do discurso da professora. Então,
embora não tenha havido durante a aula de discussão uma reflexão sobre as diferentes
maneiras de formulação do dizer e sobre a influência destas para os efeitos de sentido
possíveis, apenas a discussão já provocou alterações no encadeamento das idéias nos textos
dos alunos.
Acreditamos, portanto, que nossa hipótese inicial foi confirmada: nas duas
situações de produção há a retomada de outros discursos nos textos escritos dos alunos,
retomada que foi, em certa medida, determinada pelas condições de produção dadas em
cada uma das situações. Ou seja, na primeira, o livro didático e os textos da proposta
servem, aliados ao conhecimento prévio do aluno, praticamente como referência única; na
segunda, há outros já-ditos a serem recuperados, neste caso, aqueles construídos na
150
discussão oral, especialmente os identificados como pertencentes ao discurso da
professora.
Quanto à metodologia do ensino da escrita, os resultados encontrados apontam
para a necessidade de uma reflexão constante por parte do professor sobre a sua prática de
ensino. É preciso que o processo de ensino da escrita leve o aluno a refletir sobre as
maneiras possíveis de dizer o que pretende e os efeitos de sentido que cada uma dessas
formulações pode trazer para o texto.
Assim, não basta usar a leitura como ferramenta para aquisição de “conteúdos
do dizer”, como uma fonte de idéias a que recorrer quando nada mais restar; a leitura de
textos variados antes de uma atividade de produção textual escrita se torna mais eficaz se
for também um momento para se pensar sobre as “maneiras de dizer”, pois essa seria a
finalidade da disciplina de produção de textos na escola. Ou seja, não basta que o aluno
tenha o que dizer, mas saiba como dizer e porque dizer de uma maneira e não de outra,
tendo em vista os objetivos que pretende atingir; e um dos caminhos para chegar a essa
compreensão é entender, nos textos lidos, a relação entre a formulação de um dizer e os
efeitos de sentido proporcionados por esta. Embora tenha aspectos positivos, conforme já
mencionado, faltou essa reflexão à aula de discussão oral considerada neste trabalho.
Mas, como esse é um diário de bordo e a professora-pesquisadora está apenas
começando sua viagem profissional, bons ventos ainda virão.
151
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ANEXOS
ANEXO A
UNIDADE DO LIVRO DIDÁTICO
ANEXO B
PRIMEIRA PROPOSTA DE
REDAÇÃO
ANEXO C
TEXTOS PARA DEBATE ORAL
ANEXO D
SEGUNDA PROPOSTA DE
REDAÇÃO
ANEXO E
TRANSCRIÇÃO DAS AULAS
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