Salvar o artigo O USO DE PRECATÓRIOS PARA PAGAMENTO DE TRIBUTOS Fernando Facury Scaff ∗ Sumário: 1. O que são Precatórios e as duas racionalidades em conflito que presidem sua existência 2. Os Precatórios na Constituição 3. O uso de Precatórios para Pagamento de Tributo 3.1. Moldura Constitucional 3.2. Aspectos Legais: 3.2.1. É necessária lei do ente subnacional para permitir a compensação dos precatórios com tributos? 3.2.2. Qual o conceito de “entidade devedora” para fins do §2º., do art. 78 do ADCT? 3.2.3. É possível usar estes precatórios para garantir a penhora em caso de Embargos? 3.3. Aspectos referentes à natureza do título: 3.3.1. É possível usar créditos próprios ou de terceiros para a quitação fiscal? 3.3.2. A cessão de créditos desnatura sua origem? 3.3.3. Qualquer precatório não pago pode ser usado para quitar tributos 4. Conclusões 1. O QUE SÃO PRECATÓRIOS E AS DUAS RACIONALIDADES EM CONFLITO QUE PRESIDEM SUA EXISTÊNCIA 1. Precatório é uma ordem de pagar quantia certa decorrente de decisão judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública. O montante de precatórios se constitui em dívida consolidada do Poder Público correspondente. Uma vez que no Brasil é proibida a penhora de bens públicos, o processo de execução da dívida pública decorrente de decisões judiciais transitadas em julgado possui um tratamento jurídico diferente daquele que rege as relações privadas ou mesmo as relações de crédito do Fisco contra o contribuinte. Nestas, como é de todos ∗ Professor da Universidade de São Paulo, Professor (licenciado) da Universidade Federal do Pará, Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, Sócio do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados. sabido, uma vez penhorado um bem – o que pode ocorrer até mesmo através da famigerada penhora on line ‐ o bem pode ser levado à praça para que, com sua venda, seja satisfeito o crédito. Na execução de obrigação de pagar contra o Poder Público a fórmula encontrada pelo direito brasileiro foi a do “precatório”, também conhecido como “precatório requisitório”; ou seja, a expedição de uma ordem judicial contra a Fazenda Pública demandada, ao final de um processo transitado em julgado, quando, obedecendo a certos requisitos estabelecidos no art. 100 da Constituição, a Fazenda devedora é obrigada a incluir no orçamento valor suficiente para quitar sua dívida. 2. O sistema é juridicamente engenhoso, pois permite aos credores satisfazerem seus créditos com base em um procedimento orçamentário que garante o pagamento, inclusive com a possibilidade de seqüestro da quantia não paga. Se o orçamento garante, a possibilidade de falência ou de insolvência do devedor fica afastada. Remanesce a hipótese de inadimplência, porém mesmo para esta a norma prevê remédios legais, tal como o seqüestro da quantia necessária ao pagamento da dívida. Ocorre que o sistema padece de um vício que fugiu à análise jurídica original: E se o montante cobrado for superior às disponibilidades orçamentárias, inviabilizando o quotidiano da máquina administrativa? Estas e outras questões estão na gênese do problema atual que aflige os credores de várias esferas do Poder Público no Brasil, pois os precatórios não pagos se acumulam ano após ano, feito uma bola de neve, gerando inadimplências sucessivas que acarretam uma completa insatisfação dos credores ao verem postergados indefinidamente seu direito ao recebimento dos valores judicialmente reconhecidos – e tornando a quitação do inadimplido cada vez mais difícil. A primeira inadimplência do Poder Público acumula a dívida e dificulta sobre maneira seu retorna à regularidade. 2 Na verdade, a base do problema é político, pois algumas unidades federadas encontram‐se absolutamente em dia com o pagamento de seus precatórios, tal como a União e alguns Estados da Federação – curiosamente, dentre eles, alguns dos menos desenvolvidos. Ou seja, alguns entes federados desenvolvidos “financiaram” seu desenvolvimento a custa da inadimplência de seus pagamentos judiciais. Não pagando suas dívidas – mesmo as que decorrem de ordem judicial transitada em julgado ‐ “sobra” mais dinheiro disponível para obras e outros itens de despesa ou de investimento público. O fato é que existe uma espécie de “racionalidade política” através da qual nenhum governante, com “apenas” 04 anos de mandato (ou 08, em caso de reeleição) tem apreço em comprometer os recursos necessários para cumprir seu programa de governo com o pagamento de dívidas cuja origem remonta a governos passados ‐ e que podem ter sido gestadas por políticos ou partidos que hoje lhe fazem oposição. Logo, em decorrência desta “racionalidade”, os coitados dos credores vêem seus créditos serem postergados sine die, a espera de melhor tempo... A racionalidade jurídica criou um mecanismo legal seguro para o credor e planejado para os dispêndios públicos. A racionalidade política permitiu a transformação, por alguns governantes, do mecanismo jurídico em um engodo. Logo, o que adiante será demonstrado está imbuído deste confronto entre estas duas racionalidades, com prevalência “prima facie” da política sobre a jurídica quando as duas se colocam em conflito. Estes aspectos, muitas vezes negligenciados na análise do problema, é que geram as postergações constitucionalmente estabelecidas e permitem que a solução seja adiada para o governo posterior, e deste para o posterior do posterior do posterior – e assim sucessivamente, tal como o Pedro Pedreiro da música de Chico 3 Buarque 1 , que sempre espera um trem “que já vem, que já vem, que já vem...” ‐ parece o pobre credor dos precatórios expedidos contra alguns entes federativos do Brasil, sempre esperando o pagamento “que já vem, que já vem, que já vem...” 2. OS PRECATÓRIOS NA CONSTITUIÇÃO 3. Originalmente o sistema de precatórios da Constituição de 1988 foi inscrito no artigo 100 2 , que manteve o sistema anteriormente existente de pagamento de sentenças judiciais transitadas em julgado contra a Fazenda Pública, através de exclusiva ordem cronológica de sua apresentação, que deve ocorrer até o dia 30 de junho de cada ano e ser pago até o final do exercício seguinte, atualizado monetariamente. Foi estabelecida a proibição de indicação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias. O orçamento público é o grande garantidor do pagamento dos valores envolvidos. 1 Pedro Pedreiro, música e letra de Chico Buarque: “Pedro pedreiro penseiro esperando o trem/Manhã parece, carece de esperar também/Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém/Pedro pedreiro fica assim pensando/Assim pensando o tempo passa e a gente vai ficando prá trás/Esperando, esperando, esperando, esperando o sol esperando o trem, esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem (...) Pedro pedreiro quer voltar atrás, quer ser pedreiro pobre e nada mais, sem ficar/Esperando, esperando, esperando, esperando o sol/Esperando o trem, esperando aumento para o mês que vem/Esperando um filho prá esperar também/Esperando a festa, esperando a sorte, esperando a morte, esperando o Norte/Esperando o dia de esperar ninguém, esperando enfim, nada mais além/Da esperança aflita, bendita, infinita do apito de um trem/Pedro pedreiro pedreiro esperando/Pedro pedreiro pedreiro esperandoPedro pedreiro pedreiro esperando o trem/Que já vem.../Que já vem/Que já vem” 2 Na redação original de 1988: Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far‐se‐ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. §1º ‐ É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, data em que terão atualizados seus valores, fazendo‐se o pagamento até o final do exercício seguinte.§2º ‐ As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados ao Poder Judiciário, recolhendo‐se as importâncias respectivas à repartição competente, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento, segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito. 4 A requisição do dinheiro (daí o nome de precatório requisitório) é feita pelo Presidente do Tribunal onde o processo transitou em julgado e o pagamento também é determinado pela mesma Corte. Se a ordem de preferência no pagamento dos precatórios foi violada, o Presidente do Tribunal, a requerimento do credor, pode determinar o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito. Caso o Presidente do Tribunal não faça o que a norma lhe incumbe incorrerá em crime de responsabilidade, tal qual os demais servidores envolvidos nesse procedimento. Créditos de natureza alimentícia são: salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez fundadas na responsabilidade civil, e também os honorários advocatícios. Este tipo de créditos possui preferência e deve ser pago com precedência em face dos demais. 4. Ao mesmo tempo em que estas regras foram inscritas no corpo permanente da Constituição, no art. 100, surgiu a primeira prorrogação compulsória do pagamento dos precatórios que estavam pendentes em 1988, inscrita no art. 33 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias 3 . O referido artigo estabeleceu um parcelamento compulsório de 08 prestações anuais para pagamento dos precatórios judiciais pendentes em 05‐10‐1988, ressalvados os alimentícios. Houve até mesmo a possibilidade de ser aumentada a 3 Art. 33. Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição. Parágrafo único. Poderão as entidades devedoras, para o cumprimento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, no exato montante do dispêndio, títulos de dívida pública não computáveis para efeito do limite global de endividamento 5 dívida pública para fazer frente a esta despesa – fato que gerou muita irregularidade no manejo das verbas públicas, segundo apurado pela famosa CPI dos Precatórios de 1997. 5. Posteriormente, através da Emenda Constitucional 30, de 13 de setembro de 2000, foi instituído outro parcelamento compulsório, tendo sido também criada a possibilidade de uso dos precatórios não pagos para a quitação de tributos através da inclusão do §2º. ao art. 78 no ADCT. Em face de sua importância para o perfeito entendimento deste tema, vale a transcrição da norma: Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos. §1º É permitida a decomposição de parcelas, a critério do credor. §2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora. §3º O prazo referido no caput deste artigo fica reduzido para dois anos, nos casos de precatórios judiciais originários de desapropriação de imóvel residencial do credor, desde que comprovadamente único à época da imissão na posse. §4º O Presidente do Tribunal competente deverá, vencido o prazo ou em caso de omissão no orçamento, ou preterição ao direito de precedência, a requerimento do credor, requisitar ou determinar o seqüestro de 6 recursos financeiros da entidade executada, suficientes à satisfação da prestação. Este artigo estabeleceu que os precatórios pendentes em 13/12/2000 e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos. Observe‐se que foram expressamente afastados os que se referiam ao parcelamento anterior, do art. 33 do ADCT e os de natureza alimentícia, dentre outros. Portanto, o parcelamento referido no art. 78 do ADCT alcança apenas os débitos decorrentes de ações ajuizadas ‐ destaca‐se por sua relevância ‐ até 31 de dezembro de 1999, afastados os precatórios alimentícios e os que já haviam sido objeto do parcelamento do art. 33 do ADCT. Assim, consoante o ritmo do Poder Judiciário brasileiro, é bastante plausível a hipótese de não terem transitado em julgado todas as ações propostas antes de 31‐12‐1999; assim, podem existir ações cujos precatórios ainda não foram expedidos, cujo pagamento será regido por esta norma: pagamento em 10 parcelas anuais, iguais e sucessivas, cuja prestação inicial ainda se encontra em data futura. Para estes precatórios a norma constitucional estabeleceu duas outras características: a possibilidade de serem cedidos seus créditos, bem como de terem poder liberatório para pagamento de tributos da entidade devedora, caso não cumprido o parcelamento compulsório imposto. 3. O USO DE PRECATÓRIOS PARA PAGAMENTO DE TRIBUTOS 3.1 Moldura Constitucional 6. Feitas as considerações acima, podem ser usados para pagamento de tributos: 7 1. Os precatórios pendentes de pagamento na data de 13 de setembro de 2000 e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999. a.1 Por exclusão, não podem ser incluídos: a.1.1 os pagamentos que se caracterizarem como RPV – Requisições de Pequeno Valor 4 , a.1.2 os precatórios alimentícios a.1.3 os que tiverem sido objeto de pagamento na forma do art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações a.1.4 e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, 2. Se os pagamentos anuais não forem efetuados, aquela parcela inadimplida poderá ter poder liberatório para o pagamento de tributos; a. O prazo é, como regra geral, para pagamento de uma parcela anual, igual e sucessiva, pelo prazo máximo de 10 anos. b. A exceção à regra geral acima descrita é no caso de precatórios judiciais originários de desapropriação de imóvel residencial do credor, desde que comprovadamente único à época da imissão na posse, quando o prazo é de 02 anos. 3. O crédito só poderá ser utilizado contra a entidade de direito público devedora. 7. Estabelecida a moldura acima, várias questões surgem, algumas já com reflexo na jurisprudência, dentre elas: 4 O art. 100 da CF, decorrente da EC 30, estabelece nos seguintes parágrafos uma outra fórmula de pagamento de seus débitos quando “de pequeno valor“, que foram consagrados pela sigla RPV: “§3º O disposto no caput deste artigo, relativamente à expedição de precatórios, não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor que a Fazenda Federal, Estadual, Distrital ou Municipal deva fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado. §4º São vedados a expedição de precatório complementar ou suplementar de valor pago, bem como fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução, a fim de que seu pagamento não se faça, em parte, na forma estabelecida no § 3º deste artigo e, em parte, mediante expedição de precatório. §5º A lei poderá fixar valores distintos para o fim previsto no § 3º deste artigo, segundo as diferentes capacidades das entidades de direito público. “ 8 1. Aspectos Legais: 1.1 É necessária lei do ente subnacional para permitir a compensação dos precatórios com tributos? 1.2 Qual o conceito de “entidade devedora” para fins do §2º., do art. 78 do ADCT? 1.3 É possível usar estes precatórios para garantir a penhora em caso de Embargos? 2. Aspectos referentes à natureza do título: 2.1 É possível usar créditos próprios ou de terceiros para a quitação fiscal? 2.2 A cessão de créditos desnatura sua origem? 2.3 Qualquer precatório não pago pode ser usado para quitar tributos Buscaremos esclarecer estas dúvidas abaixo. 3.2 Aspectos Legais: 3.2.1 É necessária lei do ente subnacional para permitir a compensação dos precatórios com tributos? 8. Não, pois a Constituição não estabeleceu nenhum requisito desta natureza para o exercício deste direito. O §2o. do art. 78 do ADCT não estabelece este tipo de requisito, como pode ser visto na transcrição acima efetuada. Logo, não se pode criar na legislação um requisito que não existe na norma constitucional, ainda mais quando se trata de uma análise restritiva de uma penalidade imposta ao poder público em face de uma inadimplência constitucional – típico e raro caso de clarividência constitucional, decorrente da quase‐certeza que o parcelamento compulsório, previsto como exceção, poderia não funcionar e as demais sanções previstas também não funcionariam. O uso do precatório como instrumento para a quitação de tributos já é uma excepcionalidade para o sistema permanente criado na Carta. 9 É cediço que não se pode condicionar a eficácia da Constituição à edição de leis ordinárias, pois isso seria invalidar a norma constitucional, o que subverte todo o sistema jurídico. Essa afirmativa é tão mais verdadeira quando se verifica que o direito declarado pode ser exercido sem a necessária intermediação legislativa. 9. Existem julgados da 2ª. Turma do STJ onde é exigida a existência de norma do ente subnacional, como por exemplo o abaixo transcrito, referente ao Estado do Rio Grande do Sul: Relator Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, 2ª. Turma TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. COMPENSAÇÃO DE TRIBUTO ESTADUAL COM PRECATÓRIO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE LEI AUTORIZADORA. 2. In casu, no Estado do Rio Grande do Sul não há lei autorizando a compensação pleiteada, visto que o art. 2° da Lei 11.472/2000, que permitia a utilização de precatórios de terceiros para fins de compensação de créditos inscritos em dívida ativa, foi revogado pela Lei 12.290/2004. (AgRg no REsp 901566 / RS) No mesmo sentido e da mesma 2ª. Turma, existe também o acórdão que segue abaixo transcrito, da lavra da Ministra Eliana Calmon (REsp 938113 / RS), também sobre o Estado do Rio Grande do Sul: TRIBUTÁRIO – PROCESSO CIVIL ‐ COMPENSAÇÃO ‐ PRECATÓRIO – INEXISTÊNCIA DE LEI AUTORIZATIVA – IMPOSSIBILIDADE – ART. 170 DO CTN ‐ ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ‐ ARTS. 286 E 368 DO CC; 106 DO CTN E 6º DA LICC ‐ PREQUESTIONAMENTO ‐ INEXISTÊNCIA ‐ SÚMULA 211/STJ ‐ ACÓRDÃO RECORRIDO ‐ OMISSÃO ‐ NÃO‐OCORRÊNCIA. 10 3. Conforme exigência expressa contida no art. 170 do CTN, somente se admite a compensação de tributos quando existir na esfera do ente federativo lei autorizadora. Precedentes. É bem verdade que o entendimento acima não espelha uma posição uniforme do STJ, pois a 1ª. Turma vem decidindo de maneira diferente, como pode ser constatado abaixo no caso referente ao Estado de Goiás: Relator Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, 1ª. Turma CONSTITUCIONAL, TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PRECATÓRIO. ART. 78, § 2º, DO ADCT. COMPENSAÇÃO COM DÉBITOS TRIBUTÁRIOS. POSSIBILIDADE. 3. A revogação, pela Lei Estadual nº 15.316/2005, da legislação local que regulamentava a compensação de débito tributário com créditos decorrentes de precatórios judiciais (Lei Estadual nº 13.646/2000) não pode servir de obstáculo à compensação pleiteada com base no art. 78, § 2º, do ADCT, referente a parcelas de precatório já vencidas e não pagas, sob pena de negar a força normativa do referido preceito constitucional.(RMS 26500 / GO) Esta decisão afastou o direito estritamente positivado e implementou a norma constitucional diretamente. Pode‐se ver pelo seu texto que muitos Estados (Goiás e Rio Grande do Sul, por exemplo) revogaram leis que permitiam a compensação dos precatórios com tributos para afastar esta responsabilidade. Neste caso da 1ª. Turma, a revogação da lei não trouxe nenhum efeito benéfico ao Estado, exceto mais um argumento judicial para a postergação da compensação prevista na Constituição, o que comprova a “racionalidade política” acima relatada. 11 10. O STF já havia decidido que, havendo lei, poderia ocorrer a compensação, conforme acórdão da lavra do Ministro Carlos Mário, na ADI 2851, referente ao Estado de Rondônia: CONSTITUCIONAL. PRECATÓRIO. COMPENSAÇÃO DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO COM DÉBITO DO ESTADO DECORRENTE DE PRECATÓRIO. C.F., art. 100, art. 78, ADCT, introduzido pela EC 30, de 2002. I. Constitucionalidade da Lei 1.142, de 2002, do Estado de Rondônia, que autoriza a compensação de crédito tributário com débito da Fazenda do Estado, decorrente de precatório judicial pendente de pagamento, no limite das parcelas vencidas a que se refere o art. 78, ADCT/CF, introduzido pela EC 30, de 2000. E se não houver lei autorizando? De forma monocrática, na DMS 550.400, o Ministro Eros Grau, do STF, assim decidiu: 1. Discute‐se no presente recurso extraordinário o reconhecimento do direito à utilização de precatório, cedido por terceiro e oriundo de autarquia previdenciária do Estado‐membro, para pagamento de tributos estaduais à Fazenda Pública. 2. O acórdão recorrido entendeu não ser possível a compensação por não se confundirem o credor do débito fiscal ‐‐‐ Estado do Rio Grande do Sul ‐‐‐ e o devedor do crédito oponível ‐‐‐ a autarquia previdenciária. 3. O fato de o devedor ser diverso do credor não é relevante, vez que ambos integram a Fazenda Pública do mesmo ente federado [Lei n. 6.830/80]. Além disso, a Constituição do Brasil não impôs limitações aos institutos da cessão e da compensação e o poder liberatório de precatórios para pagamento de tributo resulta da própria lei [artigo 78, caput e § 2º, do ADCT à CB/88]. 12 Verifica‐se, portanto, que a tendência do STF é fazer prevalecer a Constituição, não permitindo que manobras estaduais e municipais obstaculizem a plena eficácia do art. 78, §2º., do ADCT da CF, seja pela não‐criação de normas, seja pela revogação das que permitiam este tipo de compensação. 3.2.2 Qual o conceito de “entidade devedora” para fins do §2º. do art. 78 do ADCT? 11. A posição do STJ é no sentido de diferenciar o ente federativo das autarquias, considerando‐as como entidades devedoras distintas. O acórdão abaixo segue nesse diapasão: Relatora Ministra Denise Arruda: 4. Acrescente‐se que a Primeira Turma/STJ, ao apreciar o RMS 24.450/MG (Rel. Min. José Delgado, DJE de 24.4.2008), firmou entendimento no sentido de que é ilegítima a pretensão de se compensar débito tributário (devido à administração direta) com crédito de precatório adquirido de terceiros (por cessão) e da responsabilidade de entidade da administração indireta. Na hipótese, o precatório apresentado em face do Estado do Paraná é de responsabilidade do Departamento de Estradas de Rodagem (autarquia estadual), que possui autonomia administrativa, técnica e financeira, razão pela qual é inviável (por mais essa circunstância) a compensação pretendida. (RMS 28406 / PR) Não nos parece adequado o entendimento. Sendo idêntica a Fazenda Pública, torna‐se irrelevante se a organização administrativa é distinta entre autarquia e ente federativo. O entendimento restritivo que vem sendo adotado pelo STJ no acórdão acima transcrito, dentre outros, não possui base normativa – observe‐se que a norma inscrita no art. 78, §2º., ADCT menciona apenas “entidade devedora”, o que deve ser subsumido ao conceito de “Fazenda Pública” na mesma linha adotada pela Lei 6.830/80. 13 Fazê‐lo de maneira distinta será entender que existem vários Fiscos – o que não é razoável. O caixa de cada ente federativo é único, e não dividido entre vários órgãos. Existem vários órgãos ordenadores de despesas – mas só existe um arrecadador. Logo, dividir a compensação dos precatórios através da lógica adotada pelo STJ é inviabilizar a aplicação plena do instituto, pois existem inúmeros ordenadores de despesas – que podem gerar precatórios não pagos, mas existe apenas um único centro de receita – que é o Fisco de cada ente federativo. Logo, o correto é a identificação técnica do que seja “entidade devedora” como a Fazenda Pública de cada ente federativo, e não como cada ordenador de despesas para fins meramente gerenciais. Aliás, este foi o sentido da decisão proferida pelo Ministro Eros Grau na DMS 550.400 acima transcrita e que deve servir de base para o entendimento jurisprudencial. 3.2.3 É possível usar estes precatórios para garantir a penhora em caso de Embargos? 12. Isso é plenamente possível, pois a norma constitucional fala em “poder liberatório para pagamento de tributos”; logo, se é permitido seu uso para quitar tributos, a possibilidade de oferecer estes créditos como garantia é certa. Ademais, este oferecimento caracteriza‐se como “dinheiro”, na forma do art. 11, I, da Lei 6.830/80; e não como título público, art. 11, II, da mesma Lei, uma vez que na presente situação o precatório não se enquadra como tal. Ao mencionar que possui poder liberatório para a quitação de tributos a Constituição fez a equiparação do precatório a dinheiro. 14 3.3 Aspectos referentes à natureza do título: 3.3.1 Podem‐se usar créditos próprios ou de terceiros para a quitação fiscal? 13. Sem o menor problema. A dicção da norma constitucional é clara: “permitida a cessão de créditos”. Logo, a própria norma constitucional criou esta possibilidade, criando uma espécie de “mercado de compra e venda de precatórios”, muitos dos quais para a quitação de tributos. 3.3.2 A cessão de créditos desnatura sua origem? 14. A origem permanece a mesma, a despeito da cessão. Se, na origem, tratava‐se de um precatório alimentar, a cessão mantém a mesma natureza do precatório ‐ alimentar. Caso fosse um precatório regido pelo art. 33 do ADCT, sua eventual cessão ‐ onerosa ou não ‐, não transmuda sua natureza. O STJ tem se pautado nessa direção, a meu ver com bastante correção. Por todas, transcreve‐se o acórdão abaixo, da lavra da Ministra Denise Arruda. 2. No entanto, é distinta a hipótese dos autos. Do exame dos documentos acostados, verifica‐se que o crédito embutido no Precatório 92.093/2003 tem natureza alimentar, circunstância expressamente ressalvada pelo caput do art. 78 do ADCT, apta a obstar o parcelamento do referido crédito. Assim, inexistindo parcelamento e, consequentemente, parcela inadimplida, não há falar na incidência do § 2º do artigo em comento. Assim, ao contrário do que sustenta a recorrente, o "poder liberatório" está condicionado ao enquadramento na sistemática prevista no art. 78 do ADCT. 15 3. Consoante observam os renomados doutrinadores citados pelo Tribunal de origem, a cessão de crédito não altera a natureza deste. Desse modo, cedido crédito de natureza alimentícia, esta qualidade da obrigação permanece. (RMS 28811 / PR) 3.3.3 Qualquer precatório não pago pode ser usado para quitar tributo? 15. Não. Deve‐se sempre ter atenção ao preceito constitucional constante do §2º. do art. 78 do ADCT, o qual deve ser lido em conjunto com o caput do mesmo artigo, que expressamente determinam as situações e os precatórios que podem ser enquadrados como passíveis de compensação com tributos. O olhar deve sempre estar voltado à “moldura constitucional” estabelecida pelas normas referidas e acima sintetizados em item próprio com este nome. O STJ labora nesse sentido, conforme se pode ver pelo aresto abaixo transcrito, da lavra da Ministra Denise Arruda (RMS 26.908/GO): PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DÉBITOS COM A FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL. COMPENSAÇÃO COM PRECATÓRIO. INVIABILIDADE. 1. Analisando‐se a sistemática prevista no art. 78 do ADCT, constata‐se que, enquadrando‐se o crédito em alguma das hipóteses previstas no caput do artigo referido — precatórios pendentes na data de promulgação da EC 30/2000 e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 —, e estabelecido o parcelamento, o inadimplemento de alguma das parcelas atribui ao respectivo crédito poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora (§ 2º). 2. No entanto, é distinta a hipótese dos autos. Os precatórios que embasam a presente impetração têm natureza alimentar, circunstância expressamente ressalvada pelo caput do art. 78 do ADCT, apta a obstar o parcelamento do 16 referido crédito. Assim, inexistindo parcelamento e, conseqüentemente, parcela inadimplida, não há falar na incidência do § 2º do artigo em comento. Assim, ao contrário do que sustenta a recorrente, o precatório não‐pago não ganha, por si só, poder liberatório para pagamento de tributo. O "poder liberatório" está condicionado ao enquadramento na sistemática prevista no art. 78 do ADCT Ou seja, apenas as normas que obedecem à “moldura constitucional” acima descrita é que podem estar enquadradas nesta hipótese de compensação tributária prevista no §2º. do art. 78 do ADCT. 4. Conclusões 16. Consoante acima demonstrado, o direito brasileiro estabeleceu um sistema de pagamento das dívidas públicas, oriundas de decisões transitadas em julgado, baseado em precatórios requisitórios, que se constitui em uma forma juridicamente segura de recebimento de valores, pois garantido pelo orçamento público. Todavia, fatores políticos vêm burlando esta sistemática e também modificando as normas aplicáveis, impondo aos credores sucessivos parcelamentos compulsórios. Como uma forma de sanção para o caso de descumprimento do parcelamento previsto no art. 78 do ADCT, inserido pela EC 30, de 13 de setembro de 2000, foi prevista a hipótese de utilização dos valores não‐pagos como instrumento para a quitação de tributos. Trata‐se de um instrumento adequado e justo, mas que vem recebendo orientações jurisprudenciais titubeantes, conforme acima demonstrado em diversas situações casuísticas, mas que se revelam importantes no dia a dia da aplicação da norma. 17 Em apertada síntese, pode‐se dizer que a aplicação do §2º. do art. 78 do ADCT, que prevê a possibilidade de utilização do precatório para pagamento de tributo é cabível para as seguintes situações: a) Para os precatórios pendentes de pagamento na data de 13 de setembro de 2000 e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, não sendo possível incluir nesse rol: 1. os pagamentos que se caracterizarem como RPV – Requisições de Pequeno Valor, 2. os precatórios alimentícios, 3. os que tiverem sido objeto de pagamento na forma do art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e 4. aqueles que em 13 de setembro de 2000 tinham seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo. b) Se os pagamentos anuais não forem efetuados, aquela parcela inadimplida poderá ter poder liberatório para o pagamento de tributos; c) O crédito só poderá ser utilizado contra a entidade de direito público devedora, entendida esta como a Fazenda Pública do ente federativo devedor, não considerando a diferença de conformidade com organização administrativa entre ente federativo e suas autarquias; d) Deve ser aplicada a norma constitucional em sua plenitude, não cabendo aguardar lei infraconstitucional para sua plena eficácia. A Constituição deve prevalecer sobre a legislação ordinária, ou mesmo sua ausência, no caso de normas que possuam plena eficácia, como a do art. 78, §2º., do ADCT. 18