DIREITOS HUMANOS E RELAÇÕES DE GÊNERO
Paulo César Santos Bezerra
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Breves reflexões extra-jurídicas
sobre o tema 3. Do tratamento jurídico das relações de gênero
3.1 No direito infra-constitucional 3.2 No direito constitucional
3.2.1 Direitos Humanos e Fundamentais e relações de gênero 4.
Considerações finais. 5. Referências
1. Introdução
O tema das relações de gênero exige abordagens múltiplas para que se evitem
reducionismos que resultem no esvaziamento de certos aspectos que são importantes
vis-a vis.
Assim, como estratégia metodológica do presente trabalho, parte-se de grandes
divisões dicotômicas do conhecimento que, embora superadas pelo discurso atual,
servem de via de arrumação das idéias, a saber: conhecimento filosófico versus
conhecimento científico; ciências naturais versus ciências sociais.
No âmbito filosófico, o tema requer reflexões sobre igualdade, diferença,
equidade, justiça. No que tange às ciências, campos científicos aparentemente
autônomos se entrelaçam na busca de um tratamento mais condizente com a amplitude
que o tema requer, e exigem um tratamento que chamamos de intercientífico, do
conhecimento interdisciplinar e mesmo transdisciplinar.
Só por isso, já fica
evidenciada a dificuldade de tratamento do tema, que requer do pensador, um
conhecimento enciclopédico sobre filosofia e diversas ciências, e dentro destas últimas,
um conhecimento verdadeiramente interdisciplinar. É claro que no Direito, em que
pesem os esforços dos pensadores mais contemporâneos, não há uma cultura de
multisciplinaridade do conhecimento jurídico. Ao contrário, os operadores do direito
parecem caminhar no sentido inverso, da especialização.1
No campo cientifico, atentando-se para a divisão reducionista entre ciências
naturais e ciências sociais, cada vez mais superada, o tema das relações de gênero exige
incursões na Biologia, de um lado, e da Antropologia, Sociologia, Psicologia
(Psicologia Social, Antropologia Social) e Direito, apenas para delimitar o campo de
abordagem do presente trabalho, pois o tema exige incursões em outros campos do
saber.
No que se refere ao Direito, as relações de g~enero exigem abordagens
interdisciplinares, notadamente referentes ao Direito Civil (Família, Obrigações,
Direitos Reais, Sucessões, Criança e Adolescente); Direito Penal 9Proteção da Mulher);
Direito do Trabalho (trabalho da mulher) e, acima de tudo, e dirigindo todo o arcabouço
jurídico em torno das relações de gênero, o Direito constitucional, principalmente no
tocante aos direitos humanos e fundamentais.
Construir uma abordagem mais abrangente sobre o tema das relações de gênero,
que evitem as visões reducionistas sobre ele, é o intento maior do presente trabalho.
2. Breves reflexões extra-jurídicas sobre o tema
Conforme apontado na introdução, as relações de gênero exigem reflexões extrajurídicas imprescindíveis para a compreensão mais abrangente de tal matéria. Assim é
que, conceitos como igualdade, diferença e identidade, dentre outros que escapam à
limitação exigida por um trabalho como este, são necessários ao próprio tratamento
jurídico, sob pena de se construir u conhecimento jurídico enviezado, dessas relações.
Os conceitos acima referidos, no âmbito da Filosofia e da História, têm sido
assim construídos:
1
Os cursos de Pós-Graduação lato sensu, também chamados de “especialização”, e mesmo os de
Graduação, nesse sentido, devem buscar a interdisciparidade necessária para que possam efetivamente
serem especiais.
a) Igualdade: relação entre dois termos em que um pode substituir o outro, no
mesmo contexto, sem mudar o valor do contexto. Essa a idéia de igualdade
em Leibniz, avançando da idéia aristotélica que reduzia a igualdade apenas a
relações de quantidade.2Ou noção lógica ou matemática, significando a
equivalência entre duas grandezas.3
b) Diferença: relação de alteridade. Escolasticamente, distingue-se as coisas
que são numericamente diferentes, das coisas especificamente diferentes,
quer dizer, que diferem pela sua própria essência ou pela sua definição.
Característica que distingue uma espécie das outras espécies do mesmo
gênero.4
c) Identidade: dentre outros sentidos, característica de dois objetos de
pensamento, distintos no tempo e no espaço, mas que apresentariam as
mesmas qualidades.5
De plano, nota-se que essas idéias, embora colaborem para a construção jurídica
das relações de gênero, não são suficientes.
No campo das ciências, atente-se, por mais imediato (embora mais insuficiente),
para o tratamento dado pela Biologia, à questão de gênero. Para esta ciência, gênero é
uma subdivisão de família, que por sua vez divide-se em espécies. Assim, o ser humano
é um gênero da família ser vivo, que se divide em espécies: homem/mulher;
masculino/feminino.
Atente-se, agora, para as ciências sociais, ainda no campo do extra-jurídico.
Nesse diapasão, gênero é um conceito que se distingue do conceito biológico de sexo,
representando os aspectos sociais das relações entre os sexos, que se constói e se
expressa em muitas áreas da vida social, incluindo cultura, ideologia e práticas
discursivas, sem, contudo, se limitar a isso. Gênero, assim, não é sexo. Sexo refere-se
ao biológico, restrito ao que é homem e mulher, enquanto gênero está ligado à
2
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia.São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.534.
JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar,
1996, p.137.
4
LALANDE, André. Dicionário técnico e crítico de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 257;
5
Idem. Ibiden, p.505.
3
construção social do masculino e feminino, ou seja, como ser homem e como ser
mulher.6
As relações de gênero assumem formas diferentes, em diferentes sociedades,
períodos históricos, grupos étnicos, classes sociais e gerações, tendo em comum a
diferenciação entre homens e mulheres.7 Nesse passo, macho e fêmea são realidades
naturais, enquanto que homem e mulher são conceituações culturais. O conceito de
gênero presta-se, pois, para a distinção entre a dimensão ideológica e a social, existindo
então, um sexo físico e um social, sendo o comportamento de uma pessoa de
determinado sexo, produto das convenções sociais acerca do gênero, em um contexto
social específico. E mais, essas idéias acerca do que se espera de homens e mulheres são
produzidas relacionalmente, é dizer, quando se fala em identidade socialmente
construída, o discurso sociológico/antropológico está enfatizando que a atribuição de
papéis e identidades para ambos os sexos forma um sistema simbolicamente
concatenado.
Assim, a categoria gênero é um produto da modernidade principalmente dos
cientistas sociais, que se refere à construção social do sexo, no contesto da construção
sociológica de papéis sociais, contribuindo assim para um novo discurso jurídico que
surge, a saber o discurso jurídico das relações de gênero.
3. Do tratamento jurídico das relações de gênero
Da
Antropologia, da Sociologia, da Psicologia, da Biologia, dentre outras
ciências sociais ou naturais, surge um novo discurso que, aos poucos, vai adquirindo
autonomia, a saber, o dos estudos do gênero.
O Direito, como ciência social, não pode escapar da influência desse novo
discurso, absorvendo conceitos extra-jurídicos, na construção de novos conceitos
6
LOURO, G. Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, MEYER E WALDROW. (Orgs) Gênero e saúde.
Porto Alegre: Artes Médicas, 12-19.
7
OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom. Didionário do pensamento social no século XX. Rio de
Janeiro:Zahar, 1996, p.332.
jurídicos, como igualdade jurídica, direitos de igualdade, e direito à diferença, nãodiscriminação, discriminação positiva, ação afirmativa, dentre outros
De se destacar, de plano, a necessidade de se adotarem abordagens
interdisciplinares e transdisciplinares e de passagem das análises pelo crivo do
multiculturalismo.
Mas, no tocante ao Direito, o conceito que tem construído maiores reflexões dos
operadores jurídicos (advogados, juízes, membros do Ministério Público, doutrinadores,
legisladores, professores e estudantes de direito de todos os níveis) no que se refere às
relações de gênero, é o conceito de isonomia
Comumente confundido com a igualdade, a isonomia é apenas um subproduto
ou subprincípio da igualdade, para significar tratamento igualitário. Assim, deve haver
tratamento igualitário entre as partes do processo, e todos são iguais perante a lei, por
exemplo.
Além disso, o falar em igualdade e isonomia requer algum giz sobre a idéia de
desigualdade (proibida ou permitida pelo direito) e de igualdade formal e material.
De fato, a distinção entre igualdade formal e material é importante por exemplo,
para não gerar a confusão rotineiramente feita pelo hermeneuta e aplicador do direito
sobre a extensão da expressão “todos são iguais perante a lei”, expressa no caput do art.
5º da Constituição Federal de 1988.
Pois bem, uma coisa perante a lei, que quer dizer que todos são iguais em face
da lei quando promulgada e publicada, portanto, quando está apta para produzir efeitos
jurídicos. Essa é a igualdade formal. Outra coisa, é a igualdade na lei, ou seja na
elaboração da lei. Essa é a igualdade material. Na lei são permitidos discrimens, desde
que justificáveis. É por isso que na lei é permitido proibir mulheres grávidas de
trabalharem em ambientes insalubres ou se estabelecerem prioridades nos atendimentos
às gestantes, aos idosos e aos portadores de deficiências, só para ficarmos nesses
exemplos. Tratam-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de
suas desigualdades, no conhecido paradigma atristotélico de justiça.
Assim sendo, tanto a igualdade formal quanto a material (principalmente esta)
são redutos de proteção do direito, e a desigualdade é, vezes, permitida e, vezes,
proibidas pelo direito.
3.1 No direito infraconstitucional
O correto seria tratar a matéria, primeiramente, no direito constitucional, para
depois debruçar-se sobre o tratamento infraconstitucional. A inversão da ordem aqui
procedida resulta de dois motivos: a) o equívoco histórico de se eswtudar a Constituição
a partir do direito infra-constitucional, que aqui se denuncia, para advogar o inverso,
que se estude o direito a partir da Constituição, na perspectiva da “constitucionalização
do direito”ou da “publicização do direito privado”.8 Assim, a ordem das matérias aqui
abordadas obedece prin cipalmente ao segundo motivo: b) a linha de pesquisa aqui
tomada para o tema, a saber, da análise das das relações de gênero, no contexto dos
direitos humanos e fundamentais. Nesse sentido, os direitos humanos e fundamentais
têm sede no direito constitucional, logo, por questão apenas de taxionomia jurídica e de
alocação da matéria tratam-se as relações de gênero na seara dos direitos
infraconstitucionais, para depois, enfrentá-las em nível de direito constitucional.
No que se refere às desigualdades, inúmeros são os exemplos de permissões no
direito infraconstitucional, apontando-se apenas as matérias relativas às gerações de
gênero.
No Direito Civil, só para citar dois exemplos, restritos ao Direito de Família, os
arts. 1523, II e 1.536, I, que dizem, verbis.
Art. 1.523. Não devem casar-se:
... II- a viúva ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo, ou ter sido
anulado até dez meses depois do começo da viuvez ou da dissolução da sociedade
conjugal (grifo nosso).9.
8
Para maiores discussões sobre o tema, ver o nosso BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Lições de teoria da
constituição e de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, passim.
9
Observe-se que o Código não se refere ao homem, como faz nos demais incisos do mesmo Código.
Art. 1.736. Podem escusar-se da tutela:
I – As mulheres casadas.10
;
Também no direito processual civil encontram-se dispositivos que, a exemplo do
art. 10, III, tratam desigualmente homens e mulheres.
Art. 10. O cônjuge somente necessitará do consentimento do outro, para propor
ações que versem sobre direitos reais imobiliários:
... III- fundadas em dívidas contraídas pelo marido , a bem de família, cuja
execução tenha dee recair sobre o produto de trabalho da mulher ou o seus bens
reservados.
Da mesma forma o Direito Penal permite à colação o exemplo da criação
específica de um tipo penal, a saber o infanticídio, um crime que se aplica apenas se
praticado pela mulher, mãe, e sob o efeito de estado puerperal.. Se praticado por
terceiro, homem ou mulher, contra recém-nascidos, cai-se na vala comum do homicídio.
Não deixa de ser um tratamento diferenciado entre agente homem e mulher.
Da mesma forma, a Lei de Execuções Penais, quando trata de ensino
profissional do preso, reserva à mulher condenada, um ensino profissional adequado à
sua condição. O mesmo diploma legal permite regime de prisão domiciliar, à condenada
(mulher), com filho menor, ou deficiente físico ou memtal, e à gestante. Não permite
ao homem com filho menor.
O direito processual penal prevê, no art. 249, que ä busca em mulher será feita
por outra mulher, se não importar prejuízo ou retardamento da diligência. Trata-se ,
aqui, da chamada discriminação positiva.
Em que pese o avanço da legislação em vigor, que dispensa citação, que revogou
atos atentatórios à isonomia entre homens e mulheres, por imperiosas regras
constitucionais, ainda se mantêm regras de diferenciação entre homens e mulheres, nas
searas trabalhistas, previdenciárias, sempre de constitucionalidade passível de controle
rigoroso.
10
De maneira enexplicável, não inclui o homem.
Mas o próprio legislador constitucional cuidou de estabelecer diferenciação entre
homens e mulheres, nas regras constantes nos arts. 7º , XVII, que fixa a licença
maternidade diferente da licença paternidade (inciso XIX); e do inciso XX, referente à
proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos; o art. 40,
que estabelece requisitos de aposentadoria diferenciados para homens e mulheres; em
caso de servidor público, oum o art. 202, sobre a diferenciação também nos tempos de
aposentadoria em geral.
Como se vê, nos supracitados dispositivos constitucionais, o próprio texto da
Constituição, instituidora da igualdade de tratamento entre homens e mulheres,
entendeu dispensar a eles tratamento desequiparados.
Tratando-se de dispositivos constitucionais, todo o cuidado deve ter o intérprete
para haurir ded seus termos o máximo de eficácia. Registre-se que a Constituição, por
ser carta de princípios, é necessariamente genérica, aversa a particularizações, donde
decorre a conclusão inafastável de que o intérprete deve pesquisar a fundo quanis as
conseqüências, na ordem de princípios, a serem atreladas ao tratamento constitucional
da isonomia entre homem e mulher.11
3.2 No direito constitucional
Sendo os homens desiguais por natureza, onde ficariam então a tentativa de
tratamento isinõmico claramente posto no texto constitucional de 1988, e, de resto, em
várias outras constituições estrangeiras e nas Convenções e Tratados internacionais,
mormente nas Declarações de Direito? Seria a fixação de uma igualdade apenas formal?
É claro que não. A despeito de formalmente reconhecida nos textos, busca-se a
igualdade material, e não absoluta, pelo menos o mais abrangente possível. E isso só é
possível na idéia de constituição material. Essa é uma distinção a partir do conteúdo da
Constituição. Partindo do conceito político de Constituição, podem-se identificar
matérias tipicamente constitucionais, ou normas materialmente constitucionais, como as
que identificam a forma de Estado, o sistema de governo, a divisão e o funcionamento
11
LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Isonomia entre os sexos no sistema jurídico nacional. Ao Paulo: RT,
1993, p.24
dos poderes, o modelo econômico e os direitos, deveres e garantias fundamentais; já as
formalmente constitucionais são colocadas no texto constitucional, sem fazer parte da
estrutura mínima e essencial de qualquer Estado, e, por isso, são denominadas
formalmente constitucionais.12
Insatisfeito com a regra geral de que todos são iguais perante a lei, insculpida no
art. 5º, caput , a Constituição se preocupou em condenar as distinções entre homens e
mulheres, no inciso I do referido artigo, e de alardear a igualdade de todos para garantir
a isonomia entre os sexos, pleonasticamente colocado no art. 226 § 5º; a prescrever
igualdade de direitos e obrigações do homem e da mulher diante do casamento e dos
filhos, reafirmando o objetivo de combate a discrimenes que sempre militaram em
desfavor da mulher e, poucas vezes, em desfavor dos homens.13
Reafirme-se, pois, que qualquer discrimen colocado na elaboração da lei, deve
ser
sempre
justificável,
ou
juridicamente,
sociológica,
psicologicamente
ou
biologicamente. E essas discriminações positivas só têm sido possíveis através de
mecanismos de correção das históricas injustiças perpetradas às mulheres.
3.2.1 Direitos humanos e fundamentais e as relações de gênero
Tudo o que foi dito acima preparou a entrada no tema essencial do presente
trabalho, a saber, os direitos humanos e as relações de gênero.
Direitos Humanos e Direitos fundamentais não se confundem. Aqueles
constituem o rol de direitos inerentes á pessoa humana, por essa condição em si,
previstos e fixados nas Convenções e Tratados Internacionais e nas Declarações de
Direitos do Homem e do Cidadão, da França de 1789, e na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, da ONU- organização das Nações Unidas – de 1948. Já os direitos
fundamentais constituem uma parte daqueles direitos humanos que foram positivados
12
ARAUJO, Luiz Alberto David. NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 25
13
LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Op. Cit. P. 26.
nas constituições dos diversos Estados. Ambos por´m (direitos humanos e
fundamentais) fundados no princípio da dignidade da pessoa humana.14
A declaração francesa apesar de servir de argamassa na construção do chamado
Estado Moderno, pouco avançou em termos de concretização da isonomia nas relações
de gênero até a hecatombe que foi a Segunda Guerra Mundial, que marcou, com o seu
término, a fixação das bases do chamado neoconstitucionalismo, fundado,
principalmente, nos direitos humanos e fundamentais, o que causou uma mudança
histórica também para as relações aqui tratadas.
Apesar dos avanços provocados pelas reflexões sobre o tema, ainda é possível
constatar, nos anos 90, que não mudou muito até agora, que, “lãs mujeres son
lasvictimas invisibles de los años 90. La mayoria de lãs victimas de la guerra; de los
refugiados y desplazados, de los pobres, son lãs mujeres e los niños”.15 Portanto, depois
de tanto tempo após a Declaração da Onu de 1948.
Apesar da proliferação de documentos e pactos internacionais, e por não adiantar
muito o prever ou positivar nos textos, as normas de direitos e garantias fundamentais
sem mecanismos de efetiva concretização desses direitos e garantias16 surge, em 1993 a
Declaração e Programa de Ação da Conferência mundial de direitos humanos de Viena,
que registrou o compromisso de todos os Estados de cumprir a obrigação de promover o
respeito universal, assim como a observância e proteção de todos os direitos humanos
e das liberdades fundamentais de todos, de conformidade com a Carta das Nações
Unidas e outros instrumentos relativos aos direitos humanos.
Essa conferência giza, com referência às relações de gênero, a necessidade de
proteção da igualdade de condições e dos direitos humanos da mulher, e, de espantar,
consta no registro da declaração que “ a Conferência Mundial dos Direitos Humanos
pede encarecidamente que se conceda à mulher o pleno desfrute das condições de
igualdade, de todos os direitos humanos, e que esta seja uma prioridade para os
governos e para as Nações Unidas.
14
Para maiores distinções entre direitos humanos e direitos fundamentais e sobre o princípio da
dignidade da pessoa humana, ver nosso BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Temas atuais de direitos
fundamentais. Ilhéus-Ba: EDITUS, primeiro texto.
15
MINGOT, Tomás. La negación universal de los derechos humanos. In: La Declaración Universal de
Derechos Humanos em su cincuenta aniversario: um estúdio interdisciplinar. Bilbao: Universidad de
Deusto, 1999, p. 412.
16
Ver nosso Temas atuais de direitos fundamentais. Op. Cit. Segundo texto.
Tal documento, apesar de sua inspiração, leva a três grandes e inafastáveis
questões: a) a necessidade, sempre renovada, de se fazerem Declarações e Programas de
ações de proteção e efetividade dos direitos humanos; b) o caráter de documento que
implora (pede encarecidamente) que se respeitem tais direitos; c) a ausência de
mecanismos eficazes de coercibilidade e de punições pelo descumprimento de tais
regras, que viram, assim, meros conselhos.
Ora, se os Estados livres e soberanos não podem fazer com que todos cumpram
sua obrigação de proteção e garantia dos direitos humanos e fundamentais, o que dizer
dos titulares desses mesmos direitos, a saber, os homens e mulheres em geral, os
cidadãos de determinado país, em particular?
No Brasil, o descumprimento é tão flagrante que uma mulher guerreira de nome
Maria da Penha, consegue, a duras penas, fazer ouvir sua voz lancinante e, tornando-se
mesmo um ícone da luta pela igualdade da mulher, e publicar a lei n. 11.340, que, em
seu art. 5º, “ para os efeitos desta lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher, qualquer ação ou omissão baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano miral ou patrimonial”.
Desse documento legal duas coisas podem ser sublinhadas: a) a importância para
a chamada à consideração, do conceito de gênero; b) o reducionismo da previsão de
repressão á violência contra a mulher apenas no âmbito do lar ou da família e apenas as
relacionadas ao gênero, excluindo-se as demais formas de violência, quando poder-se-ia
aproveitar o ensejo para combater qualquer tipo de ato ou forma de violência conta a
mulher. É muito pouco para ser tão intensamente festejado o diploma legal em comento.
É preciso avançar e muito.
4. Considerações finais
Como não adianta apontar problemas sem sugerir ao menos algumas hipóteses
de solução possíveis para esses mesmos problemas, atente-se, afinal, para a necessidade
de: a) alteração do discurso jurídico a respeito das relações de g~enero, incluindo-se
uma abordagem interdisciplinar; b) a busca de priorizar a igualdade material em
detrimento da igualdade apenas formal, através de mecanismos de efetivação dos
direitos; c) o reconhecimento da diferença como um direito: o direito à diferença; d) a
instituição massiva de políticas de combate à discriminação negativa e o fomento da
discriminação positiva pela via das ações afirmativas; e) a aplicação de métodos de
vigilância, a exemplo do recurso de amparo dos espanhóis, que viabiliza o acesso direto
de qualquer cidadão às Cortes Supremas dos Estados ( no caso do Brasil, o Supremo
Tribunal Federal), quando se tratar de violação de direitos humanos e fundamentais; f)
ampla política de conscientização e de educação para os direitos humanos e
fundamentais, inserindo-se nos conteúdos de todos os níveis, o tema da educação para
os direitos e deveres.
Qualquer contribuição em termos de idéias, debates, congressos, sobre o tema
das relações de gênero, será sempre altamente contributiva, desde que se avance de
meros planos, idéias, projetos e discursos, jurídicos e extrajudíridos.
5. Referências
ABBAGNANNO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010
BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Temas atuais de direitos fundamentais. Ilhéus-Ba:
EDITUS, 2008
_____. Lições de teoria constitucional e de direito constitucional. Rio de janeiro:
Renovar, 2009
BOLANDERAS, Margarita. Libertad y tolerância. Barcelona: Universidad de
Barcelona, 1993
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da
igualdade. Rio de janeiro: Renovar, 2001
JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Zahar, 1996
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de Filosofia. São Paulo: Martins
Fontes, 1999
LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Isonomia entre sexos no sistema jurídico nacional.
São Paulo: RT, 1993
LOURO, G. Nas redes do conceito de gênero:. In: LOPES, MEYER E WALDROW
(Orgs). Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 12-19
MINGOT, Tomás. La negación universal de los derechos humanos. In: La declaración
universal de derechos humanos em su cincuenta aniversario: um estúdio
interdisciplinar. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999
OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social no
século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
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