0 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS VANESSA CALAIS OLIVEIRA DESCRIÇÃO DOS MECANISMOS DE EXPRESSÃO DA CONCESSÃO NAS GRAMÁTICAS BRASILEIRAS DO SÉCULO XX Niterói 2009 1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA LINHA DE PESQUISA: DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS ÁREA: ESTUDOS DA LINGUAGEM DESCRIÇÃO DOS MECANISMOS DE EXPRESSÃO DA CONCESSÃO NAS GRAMÁTICAS BRASILEIRAS DO SÉCULO XX Por: VANESSA CALAIS OLIVEIRA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Stavola Cavaliere Niterói 2009 2 OLIVEIRA, Vanessa Calais. Descrição dos mecanismos de expressão da concessão nas gramáticas brasileiras do século XX. 2009. 85 f. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. COMPOSIÇÃO DA BANCA ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Stavola Cavaliere (Orientador, UFF) ___________________________________________________________________ Profa. Dra. Edila Vianna da Silva (UFF) _________________________________________________________________ Prof. Dr. José Mário Botelho (UERJ) ___________________________________________________________________ Profa. Dra. Lygia Gonçalves Trouche (UFF, Suplente) ___________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Emília Barcellos da Silva (UFRJ, Suplente) Examinada e aprovada em 26 de março de 2009. 3 Dedico esta dissertação a Deus, aos meus pais e à minha irmã. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço de forma particular ao meu orientador, Professor Doutor Ricardo Cavaliere, por apostar neste trabalho e possibilitar-me aprender com sua imensa sabedoria, competência e, acima de tudo, humildade. Agradeço-lhe pela orientação precisa e dedicada, estreitando minha relação com este ramo da ciência Lingüística, a Historiografia. Às Professoras Doutoras Cláudia Nívea Roncarati de Souza e Mariângela Rios de Oliveira pelas valiosas sugestões na ocasião da defesa do projeto de dissertação. Agradeço também pela total disponibilidade em solucionar os problemas administrativos. À Professora Doutora Edila Vianna da Silva por aceitar o convite para participar desta banca. Ao Professor Doutor José Mário Botelho, por aceitar o convite para fazer parte desta banca examinadora. Às Professoras Doutoras Maria Emília Barcellos da Silva e Lygia Gonçalves Trouche, por aceitarem o convite para compor esta banca. À Equipe de Pós-graduação em Letras da UFF, pelo zelo com que administra e cuida da qualidade do Curso. À minha querida amiga Fabiane, cujo apoio foi fundamental para o resultado final desta dissertação. Agradeço pela paciência com que me ouviu e pela inteligência com que me auxiliou durante esse percurso. Agradeço imensamente por sua incondicional disponibilidade no momento mais difícil e também mais importante do meu trabalho. Jamais me esquecerei da sua presença nesta etapa da minha vida. Aos meus queridos pais, pelo amor incondicional, por existirem em minha vida e serem responsáveis por tudo que sou. Agradeço por toda a dedicação e pelo exemplo de vida. Agradeço pelo incentivo imprescindível, não só nesta, como em todas as etapas de minha vida. Muito obrigada por tudo! À minha irmã, pelo seu apoio nos momentos mais difíceis e por suas palavras de coragem e de otimismo, sobretudo quando o cansaço e o desânimo se abateram. Aos meus amigos João Paulo e Marcel por todo apoio e incentivo. Ao meu querido amigo Guido Schäffer, que agora descansa nos braços do Pai. A Deus, que me concedeu o dom da vida e torna o meu viver repleto de beleza e sentido. 5 RESUMO Neste trabalho realizamos um levantamento dos mecanismos de expressão da concessão em algumas das mais representativas gramáticas brasileiras do século XX e, em seguida, procedemos a uma comparação entre as diversas formas lingüísticas classificadas como concessivas em tais obras. Utilizamos como critério para a seleção das gramáticas sua relevância como texto de referência no ensino do português em nível médio e fundamental. Com o objetivo de examinar obras de autores de referência dentro de um determinado período da Tradição Gramatical buscamos fundamentação teórica na Historiografia da Linguística, baseando-nos, pontualmente, nas obras de Konrad Koerner, entre outros historiógrafos da Linguística, como forma de nos aproximarmos da metodologia historiográfica moderna e de seus conceitos. Desse modo, procedemos a uma diferenciação entre os conceitos de história, historiografia e meta-historiografia, fundamental para o desenvolvimento deste trabalho, já que estes mantêm uma relação bastante estreita entre si, passível de suscitar comparações inapropriadas. Além disso, a corrente historiográfica com a qual nos orientamos (cf. KOERNER, 1978) estabelece como um dos critérios para o procedimento de análise de tais mecanismos um distanciamento necessário da metodologia científica utilizada nos textos da Gramática Tradicional. Por fim, verificamos em que medida a metalinguagem sintática da TG encontrada em tais obras como forma de descrever a concessão seguem a observância do princípio da adequação, um dos três que norteiam tal corrente da Historiografia da Linguística, a saber − o da contextualização, o da imanência e o da adequação (KOERNER, 1996) . Palavras-chave: concessão; gramática brasileira; historiografia. 6 ABSTRACT In this study we survey the mechanisms of expression of the concession in some of the most representative 20th century Brazilian grammar handbooks and hold a comparison between different linguistic forms classified as concessive in such works. We use as a criterion for selecting the grammar handbooks its relevance as text reference in the Portuguese educational system in the medium and fundamental levels. The extent that the proposal to examine author reference within a certain period of grammatical tradition is fundamentally based on the theory of Linguistic Historiography, specifically the works of Konrad Koerner, among other linguistic histiographers, as a way out of the modern historiografic methodology and its concepts. That way, we hold a differentiation between the concepts of history, historiography and meta-historiography, fundamental to the development of this work, as these have a very close relationship between them that can give rise to inappropriate comparisons. In addition, the current historiografic that we are focusing on (cf. KOERNER, 1978) establishes, as one of the criteria for the process of analysis of such mechanisms, a detachment of the necessary scientific methodology used in the texts of the traditional grammar. Finally, we verify to what extent the syntactic metalanguage of TG found in such works to describe the mechanisms of expression of the concession following the adequation principle, one of the three that guide this tide of Linguistic Historiography namely– the contextualization, the immanence and adequation (KOERNER, 1996). KEY-WORDS: concession; Brazilian grammar handbooks; historiography. 7 SUMÁRIO I – INTRODUÇÃO....................................................................................................................9 II – FUNDAMENTOS DA HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA.............................11 III – A GRAMÁTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XX................................................31 IV – PERIODIZAÇÃO DOS ESTUDOS LINGÜÍSTICOS NO BRASIL......................48 V – A CONCESSÃO: CONCEITOS...........................................................................55 VI – CONCLUSÃO.....................................................................................................82 VII – REFERÊNCIAS.................................................................................................84 8 LISTA DE QUADROS: QUADRO 1: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por 7576 Bechara (1976).............................................................................................. QUADRO 2: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Rocha 77 Lima (1974).................................................................................................... QUADRO 3: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Celso Cunha(1985)................................................................................................... 78 QUADRO 4: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Gladstone Chaves de Melo (1970)............................................................. 79 QUADRO 5: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Antenor Nascentes (1937).................................................................... 80 9 I – INTRODUÇÃO A concessão é um processo descrito em todas as gramáticas brasileiras, sejam as didáticas, as apenas descritivas ou as descritivo-prescritivas. Os mecanismos que exprimem esse processo são expressos por conectivos oracionais, locuções conjuntivas, orações, locuções, preposições e também por expressões especiais. A descrição desses mecanismos de expressão da concessão segue determinado padrão expositivo na Tradição Gramatical, o qual podemos observar detalhadamente com exemplificações retiradas de autores cujo prestígio está consolidado no seio da comunidade. O principal objetivo desta dissertação é fazer um levantamento dos mecanismos de expressão da concessão presentes nas mais representativas gramáticas brasileiras do século XX e, em seguida, proceder a uma comparação entre as diversas formas lingüísticas classificadas como concessivas em tais obras. A seleção das gramáticas seguirá o critério de sua relevância como texto de referência no ensino do português em nível médio e fundamental. A partir desse mapeamento, avaliaremos as descrições encontradas, levando em consideração alguns aspectos, como, por exemplo, a preferência dada por alguns autores a determinadas formas de expressão do pensamento concessivo em detrimento de outras; ou ainda, a recorrência de uma dada nomenclatura em obras de diferentes autores. 10 Como encontramos na Tradição Gramatical a descrição da concessão de forma padronizada, o exame de obras de autores de prestígio como Evanildo Bechara, Rocha Lima, Gladstone Chaves de Melo, Celso Cunha, Antenor Nascentes, entre outros, permitirá observarmos em que ponto há divergências ou não entre elas. Não se cuida aqui de estudo histórico da gramática, pois a História trata os fatos sob uma perspectiva geralmente cronológica que leva em conta apenas os aspectos internos do objeto sob estudo, como ele se organiza no tempo, enquanto a Historiografia toma por base a própria História, analisando-a por meio de uma metodologia científica específica. Do prisma historiográfico, busca-se entender o texto gramatical à luz da conjuntura intelectual da época em que foi produzido, de forma que se possam avaliar as forças de cunho pessoal e social que interagiram para seu surgimento no cenário acadêmico a que pertence. Por fim, será atribuída uma especial atenção à metalinguagem utilizada nos textos analisados, uma vez que é por meio dela que imprimiremos credibilidade à leitura dos textos científicos do século XX. De acordo com os três princípios que norteiam a teoria historiográfica de Konrad Koerner (KOERNER, 1996) − o da contextualização, o da imanência e o da adequação −, procuraremos avaliar os textos gramaticais brasileiros do século XX como fruto de um cenário intelectual coeso e extremamente criativo no tratamento dos temas lingüísticos. 11 II – FUNDAMENTOS DA HISTORIOGRAFIA DA LINGÜÍSTICA No âmbito dos estudos historiográficos, de acordo com a perspectiva sistemicista, todo fenômeno deve ser analisado como elemento integrante de um sistema global cujas partes só adquirem seu valor na relação que estabelecem umas com as outras. Ao seguirmos essa ótica na descrição dos fenômenos sociais, obtemos, portanto, um resultado multidimensional. Isto é, temos um mesmo fenômeno visto sob diversos ângulos de análise. Dessa forma, ao tratarmos das teorias relacionadas à história da lingüística, cabe aplicarmos uma análise que englobe não apenas o contexto histórico-cultural da época em que está inserida, como também que estabeleça uma comparação com propostas de épocas anteriores. Paralelamente, a perspectiva sistemicista também deve ser aplicada quando o objetivo é analisar até que ponto uma teoria permaneceu, modificou-se ou transformou-se no tempo. Ao olharmos para a história da lingüística enquanto ciência, observamos que ela se dedica à reflexão sobre o seu passado. Buscando compreender e justificar o presente, tem por finalidade a investigação das raízes sobre as quais este se sustenta. No entanto, tal investigação vai além de uma mera análise cronológica dos fatos, mas visa ao estabelecimento dos pontos de continuidade e de ruptura dentro da ciência lingüística através do tempo, ou seja, à análise transcrônica da evolução dos fatos lingüísticos. 12 Uma nova abordagem da História, originária da França, foi responsável por introduzir, no início do século XX, a língua como fator primordial para uma compreensão global dos fatos históricos. Isso porque, enquanto expressão cultural de um povo, a língua passa por transformações ao longo do tempo, assim como a política e os fatos sociais. Nesse contexto, a historiografia da lingüística desempenha um papel fundamental de acompanhar o desenvolvimento de uma teoria lingüística e seus métodos durante momentos históricos determinados. Por isso, possui uma ligação estreita com a História, colaborando, assim, para observar os fatos lingüísticos de forma mais ampla, como pertencentes a um todo complexo. A historiografia, voltada para a ciência lingüística, permite identificar e compreender as diversas quebras de paradigma, as quais, necessariamente, suscitam novas investigações acerca do complexo fenômeno da linguagem. Como destaca Kuhn (KUHN, 2003) cada novo paradigma surgido indica uma ruptura com o saber anterior, com o qual não devemos estabelecer uma relação comparativa, mas sim observar como um momento de inovação dentro da ciência. Contudo, é necessário ressaltar que nenhuma ruptura em determinado paradigma teórico ocorre sem que seja impulsionada por bases estabelecidas anteriormente. Além disso, essa descontinuidade quando se refere ao percurso da ciência lingüística pode estar ligada a diversos fatores, dentre os quais destacamos os externos, ou seja, os extralingüísticos e os internos, inerentes a uma ciência que se ocupa com a linguagem verbal. 13 A tentativa de investigar a trajetória percorrida pelos diversos momentos da ciência lingüística, a fim de alcançar uma visão ampla dos fenômenos por ela descritos é oferecida, assim, pela Historiografia da Lingüística. Todavia, algumas considerações devem ser feitas acerca do objeto de estudo dessa disciplina, não só com relação à análise da origem do conhecimento lingüístico, como também de qual critério utilizado para estabelecer a escala temporal em que ocorre o seu desenvolvimento. É papel da historiografia, portanto, observar uma trajetória particular onde se desenvolve um enfoque específico da lingüística. Cabe ainda a essa disciplina analisar um dado saber lingüístico de acordo com sua tipologia originária. Assim, a Historiografia da Lingüística pode ser entendida como uma disciplina que está voltada para a busca das raízes nas quais se baseiam as diversas teorias explicativas, ou ainda das fontes autorais de determinados textos. Por outro lado, há autores que definem a Historiografia da Lingüística pelo princípio interpretativo que a norteia, isto é, como uma disciplina que se pauta na investigação das influências constituintes de uma dada teoria, sejam elas tanto de caráter interno quanto externo. Esse segmento do estudo lingüístico pode, ainda, de acordo com alguns autores, ser definido como o que submete teorias explicativas diversas a um olhar comparativo e transcrônico. Com isso, é possível traçar as divergências e convergências existentes entre elas dentro de um determinado espaço geográfico e por certo período de tempo. Tendo em vista tais definições, verificamos, no entanto, que estas não constituem modos distintos de procedimento dentro da Historiografia da 14 Lingüística, mas sim são estágios diferentes do fazer historiográfico, que podem coexistir de forma extensiva ou aparecer de forma independente em uma análise. Para uma abordagem historiográfica das teorias lingüísticas, portanto, é condição sine qua non que seja feita uma análise do contexto sócio-cultural da época em que estão inseridas, assim como dos aspectos estruturais internos de cada uma delas. De acordo com Auroux (1992), “toda análise necessita de uma certa historicidade própria da retrospecção”. Porém, tal historicidade mencionada pelo autor, quando se refere ao trabalho do historiógrafo da lingüística, deve ser capaz de lançar sobre o objeto de análise um olhar amplo, capaz de alcançar desde a essência até as transformações pelas quais este passou. Considerando que o saber lingüístico é múltiplo, espontâneo e epilingüístico antes de ser metalingüístico, em sua análise devem ser priorizadas aquelas características em detrimento desta. A cientificidade dos saberes lingüísticos torna-se passível de questionamento quando tais características não são entendidas como primordiais e a pesquisa em torno desses saberes é baseada, conforme nos informa Auroux (1992), em um “saber especulativo”. Dessa forma, os saberes lingüísticos devem ser acompanhados e analisados com base nos diversos fatores responsáveis por sua constituição, isto é, levando-se em conta os fatos históricos externos que exerceram influência direta ou indireta sobre a ciência lingüística. A Historiografia da Lingüística caracteriza-se, assim, por ser dual, já que para compreendermos um pensamento lingüístico devemos levar em conta os 15 eventos externos da história e, a partir daí, retirar as conseqüências internas que influenciam suposições teóricas dentro da própria lingüística. O olhar do historiógrafo é, por assim dizer, sempre relativista, já que observa os fenômenos dentro do quadro sócio-histórico-cultural em que emergem e não apenas sob um enfoque único e atemporal. Quanto a essa noção do papel do historiógrafo da lingüística, García Marcos (apud FERNANDÉZ CASAS, 2003) afirma: Será preciso constatar quiénes han prestado atención a uma obra lingüística, em qué apartados, a partir de qué planteamientos y em relación a qué aspectos de esa producción, entendiendo que toda lectura es, en alguna medida, reflejo de um tiempo y uma mentalidad lingüísticas [...] Desse modo, o historiógrafo é capaz de estabelecer aproximações entre teorias pertencentes a modelos distintos, bem como avaliar em que ponto conceitos anteriores influenciam o saber lingüístico atual. Em certa medida, é feita uma releitura de conceitos pertencentes às teorias anteriores, sem, contudo, desconstruir os vínculos existentes entre estes e os mais recentes. Sob essa perspectiva, a Historiografia da Lingüística descreve os fenômenos por um prisma semântico, ou seja, de acordo com o valor que possuem não só dentro do sistema em que são gerados, mas também dentro de um contexto estrutural mais abrangente. O trabalho do historiógrafo deve ainda obedecer a certos princípios norteadores sem os quais a aproximação de conceitos pertencentes a épocas distintas torna-se passível de conclusões inapropriadas. 16 Dentre tais princípios, Fernández Casas (2003, p. 5) enumera a impossibilidade de estabelecer “paralelismos absolutos” ou alcançar “semelhanças perfeitas” com as quais o historiógrafo da lingüística se depara. Desse modo, conhecimentos lingüísticos pertencentes a momentos históricos distintos não devem ser sistematizados da mesma forma. Como sinaliza Auroux (op. cit.) esse é o princípio da “neutralidade epistemológica”, que deve orientar o trabalho do historiógrafo, assim como qualquer trabalho de natureza histórica. Outro ponto abordado pelo autor está relacionado ao valor intrínseco a um conhecimento, o qual deve ser privilegiado quando se propõem tentativas de explicação diversas para o mesmo, como por exemplo, as de cunho sociológico. Portanto, é necessário que o historiógrafo oriente sua prática para encontrar os pontos em comum entre as teorias, observando, ao mesmo tempo, os valores que cada uma delas assume dentro do sistema original ao qual pertencem. Um segundo princípio que deve ser observado na prática do historiógrafo diz respeito à visão global lançada sobre as teorias, isto é, o modo de encarar uma determinada estrutura teórica deve levar em conta que esta se constitui apenas dentro de um sistema, o qual, por sua vez, possui suas particularidades. Da mesma forma, uma comparação entre propostas teóricas distintas torna-se fundamental para a verificação do quanto uma dada teoria contribuiu para o avanço da ciência lingüística como um todo ou, ainda, para o estabelecimento de vínculos entre elas. 17 Essas propriedades da Historiografia da Lingüística não só a caracterizam enquanto disciplina, como também fornecem os dados necessários para encontrarmos as raízes da Lingüística Moderna, já que o enfoque utilizado permite traçar o percurso trilhado por uma matéria específica dentro da História da Lingüística. Além disso, a perspectiva historiográfica possibilita verificar as mudanças conceituais, metodológicas ou de metalinguagem sofridas por um objeto de estudo e acompanhar, assim, seu desenvolvimento ao longo do tempo. Como conseqüência, pode-se chegar ao alcance que uma teoria pode atingir e avaliar o quanto ela pode ir além do contexto em que está inserida. Assim, características de uma teoria atual demonstram, na verdade, ligações com momentos teóricos anteriores e vice-versa. O distanciamento temporal proporcionado pela Historiografia, por outro lado, possibilita não só uma visão crítica e neutra dos fenômenos teóricos em foco, mas também nos permite perceber em que medida o clima de época, responsável pela constituição do modo científico de proceder em uma disciplina, exerce influência sobre os estudos da Lingüística. Dessa forma, somente por meio de uma investigação historiográfica possuímos as condições de atribuir a uma teoria seu real valor dentro do universo dos estudos lingüísticos, já que a interpretação, a avaliação e a retrospecção são próprias da Historiografia da Lingüística. 18 Sob essa perspectiva, a Lingüística é levada a investigar tantos os passos precedentes que a constituíram, quanto os que a orienta e a constitui no presente, fazendo uma análise de si própria, de forma a acompanhar o seu desenvolvimento ao longo do tempo enquanto ciência. O próprio modo de proceder da Historiografia da Lingüística torna, portanto, esta disciplina fundamental para a própria teoria da lingüística, tanto que ela pode ser definida como pertencente à Lingüística teórica, à Epistemologia da Lingüística ou até à Filosofia. As contribuições de tal disciplina para a lingüística atual, bem como para teorias anteriores são fornecidas pela visão relativista que a compõe. Enquanto em algumas ciências há um objeto de estudo integralmente delimitado, nas ciências sociais, por outro lado, esse objeto é construído conforme o enfoque utilizado. Assim, não há avanço ou inovação no campo das ciências da linguagem que não esteja fundamentado na tradição que o antecede. A historiografia da lingüística, entendida como sendo a maneira de escrever a história do estudo da linguagem, incluindo a metodologia envolvida, recente dentro da ciência lingüística, opõe-se à noção da historiografia como mero registro da história da lingüística. Nesse sentido, a historiografia da lingüística não deve ser confundida com a história da lingüística ou história das ciências da linguagem. Ao historiógrafo da lingüística cabe, portanto, buscar uma metodologia e um conjunto de conhecimentos próprios em seu trabalho, em vez de transferir idéias e metodologias diretamente de outras ciências para a historiografia. 19 A distinção entre História e Historiografia torna-se necessária conforme algumas lacunas mostram-se recorrentes no que diz respeito às abordagens históricas da lingüística. Uma delas pode ser observada em relação ao historiógrafo da lingüística, pois não só o conhecimento do contexto histórico-cultural em que está inserida determinada teoria é suficiente para que seja desenvolvida uma pesquisa sobre a influência deste na constituição do conhecimento lingüístico, como também é exigida do historiógrafo uma capacidade intelectual devido à natureza interdisciplinar de sua atividade. O historiógrafo deve, ainda, ser capaz de sintetizar as informações obtidas a fim de dar ênfase aos fatos fundamentais para a constituição da historiografia da lingüística. A pesquisa historiográfica pode ser vista de acordo com suas fases de transição que contribuíram para configurar a disciplina nos moldes de uma ciência, tal como é o objetivo do trabalho dos historiógrafos. No início dos anos setenta, uma discussão acadêmica em torno da obra The structure of scientific revolutions, de Thomas Kuhn (op. cit.) deu início a uma busca por características próprias que orientariam o trabalho do historiógrafo. Em sua obra, Kuhn utiliza conceitos, termos e idéias provenientes das ciências sociais, permitindo àqueles que se ocupavam com os estudos da história da lingüística traçar um caminho específico para os estudos historiográficos. 20 Alguns fatores como a indeterminação de alguns termos empregados em seu texto, assim como o desconhecimento dos trabalhos anteriores e dos contemporâneos por parte dos teóricos da época, rendeu ao autor uma proximidade junto aos cientistas sociais, filósofos e historiadores. Tal classificação do trabalho de Kuhn foi estabelecida devido a sua conduta, a qual não delimita o campo de origem de suas definições. Portanto, ele transpõe para a história da lingüística modelos prototípicos de outras disciplinas das ciências sociais. Mais adiante, nos anos oitenta, uma diversidade de estudos oferecia caminhos distintos para o desenvolvimento da pesquisa dentro da história do saber lingüístico. As propostas em historiografia da lingüística são adaptadas ao pesquisador e ao seu campo de estudo. Assim, cada período histórico exige do historiógrafo da lingüística uma abordagem própria, adequada à aplicação do seu propósito e das questões envolvidas por ele. Em contrapartida, a submissão de teorias passadas ao olhar do investigador atual provoca, na maioria das vezes, interpretações desconectadas com as reais questões que as estruturam. Isso ocorre devido ao fato de existirem linhas teóricas diversas dentro da lingüística e estas passarem por transformações ao longo do tempo. Visto que a História da Lingüística está vinculada ao contexto históricocultural da época em que está inserida, parâmetros de comparação desta com a História das Idéias podem ser estabelecidos, conforme observa Koerner (1996, p. 7). 21 Contudo, tal procedimento não interrompe a busca por uma metodologia própria para a Historiografia da Lingüística. Ao contrário, o campo da História das Idéias ou da História Geral possui, da mesma forma, uma metodologia incipiente, que ainda hoje demanda por resoluções mais consistentes. Ao analisarmos os trabalhos de historiógrafos da lingüística, nos deparamos com preocupações de natureza mais epistemológicas e comportamentais do que propriamente metodológicas. Por isso, a reconstrução do passado expresso por meio dos autores e suas obras, fundamental para que seja estabelecido um diálogo teórico com eles, é esquecida em detrimento do mero “discurso dialógico com vozes passadas” (KOERNER, op. cit., p. 8). Desse modo, a tentativa de associar os estudos lingüísticos à História das Idéias requer uma atenção especial por parte dos teóricos, sob pena de reduzirem aqueles a uma mera escala cronológica de fatos e correntes de pensamento, sem uma motivação filosófica. Por outro lado, um termo utilizado por Koerner (op. cit., p. 9) e amplamente discutido entre os historiadores traduz essa necessidade de uma análise conjuntural dos fatos lingüísticos. Assim, o “clima de opinião”, caracteriza-se pela “atmosfera intelectual” de uma determinada época histórica de onde idéias apontaram e, a partir das condições de receptividade, permaneceram. Esse termo indica que a compreensão de uma dada teoria ou de um conceito difundidos em um dado período deve ser resultado da avaliação das idéias e pensamentos pertencentes a um contexto histórico. Isto é, não é possível transpor uma teoria de uma época para outra sem analisar as particularidades que as determinaram. 22 Entretanto, ainda que o clima de época tenha obtido considerável importância entre os estudos da História da Lingüística, outros fatores responsáveis pela constituição de uma conduta teórica específica devem ser igualmente levados em conta na análise do seu desenvolvimento. Nesse contexto, pesquisas históricas em geral podem contribuir com o trabalho dos historiadores da lingüística. Um exemplo são os trabalhos de Hayden White (cf. KOERNER, 1996, p. 9), cuja importância na busca por um método histórico próprio é notadamente reconhecida. Conforme a orientação do trabalho de White, sua obra visa estabelecer um olhar distanciado e crítico da forma de alguns teóricos e historiadores abordar a própria história. O autor caracteriza, assim, o discurso desses teóricos por meio da análise do conjunto das obras deles. Através de uma perspectiva historiográfica, são destacados nesses autores alguns fenômenos científicos em razão da relevância que possuem dentro do contexto epistemológico de uma determinada época. É importante mostrar, no entanto, que a retrospectiva inerente ao trabalho do historiógrafo da lingüística não pode ser comparada a de um historiador tradicional. A Historiografia da Filosofia fornece uma contribuição fundamental para o entendimento da Historiografia da Lingüística ao passo que, de acordo com o filósofo Richard Rorty (cf. KOERNER, 1996, p. 11), aquela se divide em quatro tipos. Estes são enumerados da seguinte forma pelo autor: a reconstrução racional, que é, em sua essência, presentificada; a reconstrução histórica (ou história intelectual); a Geistesgeschichte, que se refere à história intelectual de uma forma mais ampla, e a doxografia, que se relaciona com uma formação modelo e com a manutenção de uma posição particular. 23 Se, por um lado, a reconstrução histórica (ou história intelectual) caracterizase pela abordagem de um fenômeno teórico de forma contextualizada, a reconstrução racional explora todo o saber do teórico e impõe ao historiógrafo uma interpretação atual de conceitos anteriores. Dessa forma, para a perspectiva da Historiografia da Lingüística, uma análise contextual não é possível sem que seja estabelecido um distanciamento com relação ao objeto a ser analisado, fato que não ocorre em uma reconstrução racional. Para uma análise de natureza contextual, portanto, a Historiografia da Lingüística utiliza-se da metodologia e do desenvolvimento já alcançados por algumas ciências, como a História e a Filosofia da ciência e suas correntes teóricas mais recentes. A estrutura fornecida pelos historiadores da ciência aos historiadores da lingüística constitui terreno fértil para as idéias iniciais desenvolvidas dentro da Historiografia da Lingüística. Isso porque, esta, por estar em sua fase incipiente como ciência, pode sofrer a influência de alguns questionamentos já realizados por outras ciências e teorias. De fato, toda ciência é originada a partir de analogias, metáforas e empréstimos de outros campos científicos. Essa transferência torna-se necessária a qualquer pesquisador no processo de construção de sua disciplina. A influência da sociologia na Historiografia da Lingüística está relacionada à importância dos fatos sociais para a abordagem histórica de um fenômeno. Igualmente, revoluções em determinada área do saber são, em grande parte, explicadas pela realidade social de onde surgiram. 24 Assim, a recepção de certas mudanças, sobretudo no paradigma de dada ciência, possui sua base em fatores externos, ainda que cada novo direcionamento epistemológico possua seus fundamentos internos. Embora outras ciências históricas desempenhem um papel fundamental quanto ao fornecimento de métodos e conceitos aplicáveis a uma pesquisa historiográfica, o historiógrafo da lingüística é levado a desenvolver seu próprio sistema, incluindo, inclusive, uma metodologia de trabalho. Por isso, não é considerada significativa a contribuição da História das Idéias à Historiografia da Lingüística, visto que aquela fornece a esta apenas a constatação de que não há teoria lingüística desvinculada do clima de época e da comunidade científica a que pertence. Por outro lado, uma contribuição mais valiosa é exercida por meio dos debates entre filósofos e historiadores, os quais demonstram que a História da Lingüística não deve ser considerada como uma divisão dentro da História das Idéias. Esse fato deve-se ao caráter epistemológico da Lingüística, o que indica a necessidade de ela ser trabalhada com fatos empíricos e práticas de pesquisa mais rigorosas, embora a própria definição da Lingüística como sendo uma ciência deva ser reavaliada continuamente ao longo de sua história. Há, ainda, algumas questões a serem enfrentadas para que a Historiografia das Ciências da Linguagem adquira sua autonomia científica. São elas, por exemplo, a aplicação de conceitos próprios a outras práticas históricas ou a investigação de teóricos do passado que foram responsáveis por uma determinada corrente de pensamento. 25 Além disso, questões relacionadas à periodização, contextualização, procedimentos de pesquisa ou modificações na relevância dada a um determinado fazer dentro da ciência Lingüística, persistem desde a década de oitenta como desafios para o historiógrafo da lingüística. Igualmente, torna-se papel desse a identificação de alguns problemas, como os relacionados à metalinguagem utilizada para descrever fenômenos pertencentes a teorias de períodos passados. Como exemplifica Koerner (1996, p. 16), um lingüista que aplicou de forma inapropriada termos e conceitos de teóricos de séculos passados ao contexto do século XX foi Noam Chomsky (apud KOERNER, op. cit.), em seu trabalho Lingüística Cartesiana. Ao tentar estabelecer uma separação entre o seu ponto de vista com relação aos fenômenos que envolvem a ciência lingüística e o de seus antecessores, Chomsky traduz as idéias desses de forma singular. Embora seja fundamental no trabalho de qualquer teórico tornar acessível para seus leitores os discursos de épocas precedentes, o propósito contido em cada teoria passada não deve ser objeto de interpretações e releituras de forma a adaptálas ao contexto moderno. Tais práticas são inadequadas no que diz respeito ao trabalho do historiógrafo da lingüística, que deve estar atento à questão da metalinguagem e das deformações na própria história da lingüística que esta pode provocar. Segundo Koerner (op. cit., p. 17), três princípios podem ser aplicados pelo historiógrafo da lingüística como alternativa para o emprego inadequado da metalinguagem. 26 O primeiro princípio mencionado pelo autor é o “princípio da contextualização”, o qual propõe o estabelecimento do “clima de opinião” geral de um período. Koerner, ao destacar esse princípio, vincula as idéias lingüísticas às correntes de pensamento e aos intelectuais da época em que surgiram. Da mesma forma, fatores externos como os sócio-econômicos e os políticos também são considerados como item dessa contextualização. O segundo princípio mencionado por Koerner (op. cit., p.18) é o “princípio da imanência”, que consiste em dedicar-se a estabelecer um entendimento total, tanto histórico quanto crítico, possivelmente filológico, do texto lingüístico em questão. Assim, cabe ao historiógrafo nesse caso, a fidedignidade na sua leitura, isto é, o distanciamento com relação ao contexto lingüístico do qual faz parte, para que seja possível a constituição geral da teoria e da terminologia utilizadas. O terceiro princípio traçado por Koerner é expresso como “princípio da adequação”. Este, necessariamente subseqüente aos dois primeiros, refere-se ao procedimento do historiógrafo de se arriscar a introduzir, de forma explícita, equivalências modernas do vocabulário técnico e um quadro conceitual de trabalho que possibilite a observação de um dado trabalho, conceito ou teoria. Os princípios enumerados acima indicam que compete ao historiógrafo da lingüística alertar o leitor sobre a tentativa de aproximação terminológica e deixar explícito quais são os procedimentos utilizados em sua prática. 27 If and only if these three principles, namely, historical and intellectual contextualization, analysis of the text within its own framework (what German literary historians mean by “werkimmanente Interpretation”), and a clear identification of the tools employed in the attempt to make the next more easily accessible to the modern reader, are properly taken into account, is there a good chance that serious distortions of ideas of intentions of linguists, philosophers of language, or grammarians of the past will be avoided. (Koerner, 1996:18) Ao propor tais princípios, contudo, Koerner não exclui outros interesses que podem surgir em trabalhos de natureza histórica. Portanto, a metodologia colocada à disposição do historiógrafo deve ser utilizada não com o propósito de estabelecer uma identificação entre um determinado conceito passado e um moderno, mas somente para encontrar afinidades entre eles. Mais adiante em sua obra, Koerner (op. cit., p. 19) destaca a questão do argumento da influência como um ponto polêmico dentro da Historiografia da Lingüística, uma vez que há dois tipos de influência. Assim, o emprego indiscriminado de tal argumento requer do historiógrafo o estabelecimento dessa distinção. Se, por um lado, a influência pode ser exercida através das experiências compartilhadas, da educação e do clima intelectual da época; por outro, ela pode ser exercida de forma direta por meio do seu registro com base em referências explícitas, paralelos textuais, na preferência e no reconhecimento público. O autor cita em seguida alguns exemplos dessa necessidade de um cuidado na utilização da “influência”. Um deles é o denominado Darwinismo de August Schleicher, isto é, a idéia de que a teoria de Darwin teria exercido influência sobre 28 este. A sociologia durkheimiana, por sua vez, é apontada por Koerner como tendo suposta influência em Saussure (KOERNER, 1996, p.20). O nome de Schleicher é, até os dias atuais, associado ao argumento defendido por ele de que a Lingüística estaria incluída entre as Ciências Naturais, o que se convencionou denominar pelo termo Lingüística darwinista. Schleicher (apud KOERNER, op. cit.) também é reconhecido como o responsável por instaurar uma nova prática de análise e reconstrução das línguas, bem como uma metodologia e uma terminologia avançada para a Historiografia da Lingüística, compilando as contribuições da lingüística comparativa, histórica e tipológica no início do século XIX. A impropriedade da associação do nome de Schleicher com o de Darwin tem sua origem em 1863, quando aquele leu uma tradução alemã de A Origem das Espécies deste. A partir da constatação de Schleicher de que as idéias dele próprio sobre a evolução da linguagem estavam presentes na obra de Darwin e do registro desse fato em 1863, muitos teóricos posteriores, que não conheciam os trabalhos de Schleicher anteriores a esta data, concluíram que aquele influenciara este. O argumento da influência pode, ainda, ter sua equivocidade exemplificada na hipótese de que a caracterização que Saussure faz da linguagem como fato social e a introdução em sua obra do conceito de “langue” seriam resultado da influência das idéias do sociólogo Émile Durkheim (op. cit.). Alguns fatores, como a proximidade temporal, bem como a língua comum contribuíram para que fosse estabelecido esse vínculo entre Saussure e Durkheim, embora não tenha sido fundamentado até hoje por nenhuma evidência concreta e 29 tenha sido, inclusive, negado categoricamente por um pupilo e amigo de Saussure, Antoine Meillet (KOERNER, 1996, p. 20). Além disso, encontramos nos trabalhos de Saussure que tratam da língua como uma instituição social, freqüentemente referência ao nome de Whitney e nunca ao de Durkheim. Tendo em vista esses exemplos, Koerner declara a impossibilidade de um Historiógrafo da Lingüística desconhecer certas evidências, sobretudo quando são estabelecidas exigências relacionadas a esse conhecimento. Koerner mostra, com isso, que o historiógrafo da lingüística deve estar sempre atento para não ser influenciado pelos apelos modernos da busca por originalidade, criatividade e novidade, mas, ao contrário, ele deve procurar identificar as semelhanças entre as teorias atuais e as dos nossos antepassados. A posição positivista de Koerner é definida por ele mesmo em seu texto quando afirma ter seu interesse mais voltado para a prática e a metodologia na Historiografia da Lingüística do que propriamente para o que está registrado. De acordo com essa visão, o pesquisador antes de fornecer especulações deve apenas permitir que os próprios fatos falem por si mesmos. A partir, então, de evidências extraídas do próprio relato histórico, o historiógrafo pode interpretá-lo de uma determinada forma. A validade de uma interpretação de um documento histórico é, assim, comprovada por meio de datas ou evidências textuais, o que demonstra que ela não é simplesmente produto da criatividade do historiógrafo. Koerner esclarece que o objetivo ao qual se propõe não é estabelecer um método para a conduta historiográfica, mas sim estabelecer uma lista de princípios teóricos e práticos cuja flexibilidade de adaptação aos diversos períodos da história 30 das ciências da linguagem, bem como a orientações de investigação específicas os tornam amplamente aceitáveis entre os historiógrafos da lingüística. 31 III – A GRAMÁTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XX O ambiente de mudanças sócio-econômicas e culturais ocorridas no fim do século XIX e início do século XX no cenário internacional foi, no Brasil, o contexto originário de estudos lingüísticos e gramaticais inovadores, assim como do modelo de gramática tal como o concebemos atualmente. A gramática brasileira pode, assim, ser dividida em períodos; um dos quais, denominado científico, tem início com a publicação da gramática de Júlio Ribeiro1 em 1881, a qual rompe com a tradição gramatical purista. A segunda fase desse período compreende desde a virada do século até os anos sessenta. Essa fase, por sua vez, possui três gerações. Um dos filólogos da língua portuguesa considerado como pertencente à primeira geração da segunda fase do período científico é Manuel Said Ali. Uma análise mais apurada do conjunto de sua obra, no entanto, permite-nos ampliar tal classificação, devido à sua contribuição na elaboração e na criação de uma terminologia específica para o estudo da língua. Para o autor, a gramática consiste no conjunto das regras fonológicas, morfológicas e sintáticas que podem ser observadas em um ou mais idiomas. Said Ali enumera os tipos de gramática, de acordo com o objetivo proposto e a organização encontrada em cada uma delas. Assim, se a gramática se ocupa com a evolução dos fatos de uma língua, então ela é denominada histórica. A gramática pode também realizar uma comparação entre duas ou mais línguas, o que a caracteriza como gramática 1 A Grammatica Portugueza (1881), de Julio Ribeiro, foi o primeiro compêndio gramatical brasileiro em que se encontram as orientações do período científico. 32 comparativa. Por fim, o lingüista define como descritiva a obra que expõe os fatos da língua corrente. Segundo Said Ali (apud BASTOS 2004, p. 30) um fato lingüístico é analisável sob diversos ângulos, os quais, em geral, fornecem explicações não só para sua ocorrência como também para as modificações sofridas por ele ao longo da história. O aspecto psicológico para o lingüista, dentre outros, é determinante quando se atribui prestígio a uma forma lingüística. Não dissocio do homem e da sua psychologia as alterações por que passou a linguagem em tantos seculos. É a psychologia elemento essencial e indispensável à investigação de pontos obscuros. As mesmas leis phoneticas seriam inexistentes sem os processos da memória e da analogia. Até o esquecimento, a memória negativa, é factor, e dos mais importantes, na evolução e progressos de qualquer idioma. (SAID ALI, Lexeologia, 1921:III) A língua falada no cotidiano foi, a partir dos estudos de Said Ali, objeto da análise gramatical. Como afirma Neusa Barbosa Bastos (2008, p.33) embora os “estudos de lingüística” publicados na Revista Brazileira em 1895, já tratassem de questões de pronúncia, a gramática brasileira até então trabalhava com um corpus fundamentalmente baseado em textos escritos, em sua maioria de grandes nomes da nossa literatura. Diante do cenário intelectual da Europa em fins do século XIX e início do século XX, em que a busca por uma distinção entre filologia e lingüística predominava sobre os estudos da língua propriamente dita, no Brasil, Said Ali introduzia, pioneiramente, concepções lingüísticas na análise dos fatos da língua. 33 A idéia defendida pelo gramático, por exemplo, de que a língua é expressa por meio de vocábulos, os quais possuem “forma” e “significado” possui fundamento no conceito de signo linguístico preconizado por Ferdinand de Saussure. Dessa forma, Said Ali se identificava mais com os lingüistas e com a investigação da língua por eles desenvolvida do que com os gramáticos com os quais compartilhava o mesmo momento histórico do estudo da língua. O estabelecimento da Linguística como campo de investigação com seu objeto de estudo definido no Brasil, do final do século XIX até meados do século XX, teve, portanto, Manuel Said Ali como principal responsável. No entanto, o nome deste tem sido associado à Filologia, campo concorrente da Lingüística durante algumas décadas no Brasil. Isso ocorreu, portanto, devido ao grande prestígio atribuído àquela e aos seus seguidores em detrimento desta. A gramática brasileira deve, então, em grande parte, aos esclarecimentos dos fatos da língua à luz da Linguística fornecidos por Said Ali: O lingüista de hoje investiga os fatos sem preocupar-se com a questão do que é ou deixa de ser correto. Em geral procuro seguir o mesmo rumo; mas as dúvidas dêsse gênero podem prender-se a questões de ordem mais elevada e aí encontrar solução. Outras vêzes, a documentação geralmente respeitada em que fundo os estudos dará a solução incidentemente. (SAID ALI apud BASTOS; PALMA, 2008, p. 40). Nesse contexto, sob uma perspectiva historiográfica, podemos traçar o ambiente político de meados do século XX que propiciou determinados estudos lingüísticos, bem como o surgimento de certas gramáticas. Um período de referência para os estudos da Língua Portuguesa no Brasil é o que abrange os anos 60 e 70 do século passado, momento em que o cenário 34 político brasileiro foi terreno fértil para o desencadeamento de um nacionalismo lingüístico. A motivação para esse movimento tem origem nas duas ditaduras políticas pelas quais o país passou; a primeira entre os anos de 1930 e 1945 e a segunda, no período de 1964 a 1988. Os gramáticos representativos de tais épocas, portanto, sofreram inegável influência não só desses regimes militares e suas consequências diretas sobre a educação, como também dos reflexos da Revolução Industrial iniciada na Europa no fim do século XIX. Um deles, Gladstone Chaves de Melo, sofreu influência direta desse contexto na medida em que foi um homem politicamente atuante. Assim, a luta em defesa de um ensino público de qualidade e da Língua Portuguesa como expressão da nossa sociedade nortearam sua vida pública. O momento histórico de consolidação de uma Língua Portuguesa distinta em vários aspectos da língua falada e escrita em Portugal no qual o gramático estava inserido foi determinante para a sua formação. Tal análise baseia-se no princípio da contextualização, o qual constitui um modo de proceder em Historiografia da Linguística. Além desse, também outros dois princípios dessa disciplina, o da imanência e o princípio da adequação auxiliam na análise da obra gramatical do autor. O gramático Gladstone Chaves de Melo pode ser considerado um defensor do ensino da norma padrão-culto da Língua Portuguesa como forma de ascensão social e de acesso à variedade exemplar da língua, a qual, segundo ele, constitui um instrumento de preservação do idioma. A esse respeito o linguista afirmou: 35 Em matéria social, histórica ou cultural – a língua é uma delas – a idéia de padrão envolve necessariamente a de “protótipo”, “ideal” para que se caminha, sem necessariamente atingi-lo, mas que está presente ao espírito e ao afeto. Portanto, língua-padrão é a forma lingüística ideal; é a própria língua comum, a coiné, decantada, trabalhada, fixada e, como tal, isto é, como “padrão”, aceita pela comunidade. Historicamente ela nasce de uma tendência alta, nobre, dos homens a viver vida social. Representa, no caso, atitude aristocrática que todo ser humano tem, ao menos latente, e que se patenteia nos melhores momentos, nos de realização própria e especificamente humana. Do mesmo modo que os dialetos e falares se explicam pela força de gravidade, pelo relaxamento, pelo menor esforço, - a constituição da língua-padrão é resultado de atividade contrária, está no vértice do esforço ascencional (sic), esse que produz, por exemplo, as grandes elites (...) (MELO apud BASTOS; PALMA, 2008, p. 80). Diante das mudanças pelas quais passava o ensino da língua com a consolidação da NGB2, Gladstone Chaves de Melo firmou-se como um gramático e lingüista crítico, apresentando os pontos problemáticos existentes na nomenclatura e de que maneira afetavam tanto os estudiosos da língua quanto os professores. Todavia, o caminho inverso, trilhado em fins da década de 1970, ou seja, a desarticulação da NGB em prol de um ensino voltado para a difusão das diversas teorias lingüísticas não configurava uma solução para os problemas que o ensino da língua materna vinha enfrentando. Pelo contrário, instaurava dificuldades, sobretudo nos alunos, com relação à terminologia própria da Lingüística. Portanto, Gladstone preocupou-se em destacar a distinção entre as pesquisas científicas, que exigiam a utilização de uma terminologia específica, e as convenções ligadas ao ensino. Estas, de acordo com o gramático, devem simplificar 2 Nomenclatura Gramatical Brasileira. 36 o conteúdo a ser transmitido, priorizando a utilização de uma terminologia clara e acessível. O posicionamento do autor em sua Gramática Fundamental da Língua Portuguesa (1970) vai exatamente ao encontro desse pensamento, na medida em que toda a exposição da obra é feita de forma simplificada. Além disso, o gramático utiliza, para justificar as regras prescritivas, autores consagrados no seio da comunidade, sobretudo brasileiros. No próprio prefácio da obra, Gladstone (1970, p. 3) demonstra sua crítica com relação ao ensino da gramática ligado a um conjunto de regras prescritivas e ao uso de uma terminologia distante de um propósito didático. Ainda no prefácio, reiterando sua posição, o autor declara: Nos nossos trinta anos de magistério temos tido inúmeras vezes a alegria de ouvir alunos que “assim vale a pena estudar Português”. É que temos sempre feito da Gramática serva da língua e jamais senhora dela. Estamos inteiramente com Marcel Cressot, quando diz que “o renascimento dos estudos do francês que todos esperamos exige um espírito novo e um método decidido”.A meu ver a coisa se encerra numa fórmula: fazer discernir, segundo a capacidade de compreensão de cada idade, pela observação direta e a discussão dos fatos, a relação que existe entre um pensamento e sua expressão. (MELO apud BASTOS; PALMA, 2008, p. 84). É notável na estrutura de tal obra a influência da tradição gramatical grecolatina. Assim, o direcionamento a um determinado público-alvo, ao qual solicita, inclusive, contribuições para a complementação de lacunas ou para correções de possíveis falhas em seu compêndio, caracteriza o estilo do gramático. 37 Da mesma forma, é exposta no prefácio a preocupação com a finalidade de sua gramática. Ele assume um compromisso com os seus leitores em não torná-la objeto de mera memorização, mas sim um meio para um estudo reflexivo e interessante. Tendo em vista o fato de que toda língua possui uma diversidade de usos que atendem às necessidades de cada situação de fala, para Gladstone, a gramática deve analisar apenas os fatos de um dado momento presente da língua e sob determinados critérios, privilegiando sempre a variante culta. Em Melo (1970, p. 11) a concepção de gramática aparece, desse modo, diretamente ligada à da descrição dos fenômenos da língua culta, da língua-padrão, a qual constitui efetivamente um modelo comum a todas as comunidades lingüísticas. O gramático se autodefine como descritivo-normativo, na medida em que prioriza em sua obra o apontamento dos desvios da norma-padrão da língua, como forma de fornecer ao seu público-alvo os recursos lingüísticos necessários a serem utilizados nas diversas situações práticas de uso. Por outro lado, a influência da Lingüística na obra de Gladstone torna-se evidente ao constatarmos a referência feita pelo autor às variedades de uso e suas implicações para o ensino da Língua Portuguesa, tema recorrente em toda sua trajetória como lingüista e gramático. Sendo assim, algumas correntes lingüísticas se destacam por terem orientado teoricamente o autor em suas pesquisas. Uma delas possui nas idéias de Ferdinand de Saussure e em seu Cours de linguistique générale3, o principal fundamento. 3 Curso de Lingüística Geral (1959). 38 Outra corrente com a qual o autor demonstra identificar-se possui ligação com as idéias do lingüista francês Antoine Meillet, o qual estabelece uma distinção entre a Lingüística Geral e a Lingüística Histórica. De acordo com Gladstone, tal distinção desempenhou papel fundamental em um momento em que variadas correntes lingüísticas circulavam entre o corpo docente de Língua Portuguesa, apesar do ainda pequeno domínio dos conceitos relacionados a elas. Um paralelo pode ser traçado entre Gladstone Chaves de Melo e Celso Ferreira da Cunha, já que ambos constituem nomes representativos do século XX, além de possuírem obras com propósito descritivo-normativo e em conformidade com a Nomenclatura Gramatical Brasileira, cujo surgimento ocorreu na segunda metade do século XX. Celso Cunha (1985), em sua obra Nova Gramática do português contemporâneo, a qual trata da variante culta da Língua Portuguesa, confirma a convergência com o pensamento de Gladstone quanto à priorização do ensino dessa língua padrão-culta. Entretanto, ambos os autores constataram a importância do reconhecimento das diversas variantes que compõem uma língua, bem como da presença de tais variantes nas gramáticas brasileiras. Desse modo, há semelhanças entre a concepção de língua dos dois autores, já que esta é entendida por ambos enquanto um sistema cujas partes estão interligadas. Cunha assinala, ainda, o caráter convencional da língua, caracterizando-a como produto da sociedade, e não do indivíduo. Isto é, a língua não pertence à dimensão individual, mas sim à coletiva. 39 Ao plano individual, portanto, pertence o discurso, definido por Cunha como sendo a concretização da língua por meio de um ato de fala. Nesse caso, é atualizada uma dentre as diversas formas existentes no plano paradigmático da língua. Por fim, ao analisarmos esses dois gramáticos da segunda metade do século XX, concluímos que, embora ambos privilegiem a norma padrão-culto da língua, ambos reservam em suas obras um destaque particular para as variantes. Estas podem ser originadas pelo estrato social, pelo espaço geográfico, pelos distintos grupos etários ou, ainda, a variação existente entre o português do Brasil e o de Portugal. Inserido no mesmo contexto histórico, o gramático Celso Pedro Luft foi influenciado por um momento em que a efervescência dos acontecimentos transformava o cenário político e educacional brasileiro. Portanto, na obra Gramática resumida (1960), o autor reflete todas as mudanças pelas quais o ensino de língua materna vinha passando, em particular a implementação da NGB, que representou um fato a favor da democratização do ensino no Brasil. Em um momento em que se buscava tornar menos complexa a NGB, Celso Pedro Luft se propõe à tarefa de elucidar os pontos conflituosos, além de apontar os erros, apresentando possíveis formas de solucioná-los. Celso Luft desenvolve, assim, uma gramática que constitui um guia para o esclarecimento acerca da nova nomenclatura, embora não se direcione aos grandes teóricos e estudiosos da língua. A fundamentação teórica que influenciou o gramático pode ser observada na própria organização e distribuição dos itens na obra. 40 Enquanto na gramática tradicional encontramos, em primeiro lugar, a fonética, logo em seguida a morfologia e, então, a sintaxe; o autor inicia a sua Moderna Gramática Brasileira pela sintaxe, traçando um caminho inverso até a fonética, último assunto tratado no compêndio. A razão para tal modificação possui fundamento tanto na Lingüística Estrutural, quanto nas idéias de Chomsky, teorias que, ainda recentes na época, introduziram novas abordagens para os conceitos de linguagem, língua e fala. Se, por um lado, o estruturalismo de Saussure estabeleceu a dicotomia langue/parole, por outro, o gerativismo de Chomsky introduziu a noção de competência/desempenho, sendo aquela ligada ao “saber-falar” e este ao “falar”. À idéia de competência está também relacionado o conceito de “gramática natural”, ou seja, a intuição inata que todo falante de uma língua possui e que o permite construir um enunciado com sentido completo. Ao contrário, a “gramática artificial” é o registro desse saber intuitivo nas gramáticas descritivo-normativas, as quais podem seguir uma descrição mais tradicional, de acordo com o modelo greco-latino ou se distanciar desse modelo, tomando por base os conceitos lingüísticos. Sendo assim, Celso Luft caracteriza sua gramática como moderna, na medida em que ele utilizou como base em toda sua obra conceitos lingüísticos cuja repercussão encontrava-se em processo na época, opondo-se ao modelo tradicional greco-latino. As distintas correntes teóricas que serviram de alicerce para o posicionamento de Celso Luft fizeram-no adotar uma concepção particular de variação, a qual está ligada à idéia de língua enquanto unidade dentro da variedade. 41 Isto é, um sistema invariável que se atualiza em normas variáveis, conforme a região, a época, os grupos sociais ou as situações. Dentro da perspectiva gerativo-transformacional que o gramático se propõe, a Moderna gramática brasileira divide-se em dois planos, o do conteúdo e o da expressão. O primeiro inclui a sintaxe e o léxico, ao passo que o segundo refere-se à fonologia. Em outra obra, a Gramática resumida (1960), Celso Luft embora demonstre sua identificação com a definição funcionalista de gramática, inclusive no que diz respeito ao propósito descritivo, segue claramente o modelo tradicional na divisão dos assuntos. A influência do funcionalismo pode ser percebida, dessa forma, quando o autor utiliza o termo fonologia ao tratar dos sons da língua. Esse termo designa o aspecto funcional da linguagem, enquanto o termo fonética, por oposição, trata dos sons da língua apenas em seu aspecto material. A abordagem funcionalista da morfologia possibilitou a Luft abranger em sua obra as variações de uso da língua, sem, contudo, deixar de estabelecer o que constitui um desvio da norma padrão-culto. Assim, diversos campos dentro do estudo gramatical se beneficiam ao serem vistos em seu aspecto funcional. No âmbito dos estudos funcionalistas, portanto, o nome de Eugenio Coseriu (1959) foi inegavelmente determinante, tanto em termos do propósito descritivo da gramática, quanto à sua essência normativa. Celso Luft foi, assim, ainda que indiretamente, influenciado pelo lingüista romeno. Dessa forma, a distinção feita por Coseriu entre língua abstrata e língua real norteou todo o trabalho de Luft e contribuiu para a formulação de sua concepção de gramática e de ensino de língua. 42 O ensino de língua voltado para a mera análise gramatical foi totalmente criticado por Luft, que, ao contrário, defendia a importância do falante dominar a sua própria língua em todos os aspectos. A gramática, segundo o autor, deve ser conhecida por todo falante escolarizado, cujo bom uso da língua é exigência para o convívio em sociedade. No entanto, para Luft, o problema está no ensino de língua associado à gramática, já que não só esta é responsável pelos ensinamentos acerca do “bem falar” e do “bem escrever”, mas também a escrita literária exerce papel fundamental nesse domínio. Antes disso, o gramático destacou um conceito só consolidado de fato entre gramáticos e lingüistas anos mais tarde, que é o de Educação Lingüística, o qual é definido por Palma (2006 apud BASTOS, 2008, p.118) da seguinte forma: Processo de aprendizagem que visa a tornar o indivíduo capaz de utilizar a língua materna, conscientemente, nas diferentes situações comunicativas presentes na vida em sociedade, como forma de possibilitar o seu desenvolvimento integral, garantindo-lhe a cidadania plena. O objetivo é focalizar-se, de forma harmoniosa, em saberes pedagógicos e saberes lingüísticos, envolvidos nesse processo educativo, garantindo a diferença entre o saber científico, o saber a ensinar e o saber ensinado (...) Desse modo, é notável em Celso Luft a preocupação com um ensino de língua materna voltado para a formação do cidadão, ou seja, um ensino que propicie uma capacidade plena de uso da língua, nas diversas situações, nos diversos contextos. 43 De acordo com a Educação Lingüística, o ensino da língua deve partir dos textos para atingir uma reflexão, uma análise e, então, um uso consciente e competente da própria língua. Essa concepção do ensino de Língua Portuguesa é, nos dias atuais, amplamente defendida e discutida por gramáticos e professores. Tais pesquisadores compartilham também uma noção de gramática em que o sistema abstrato da língua não está desvinculado do seu funcionamento concreto. A atualidade de Celso Luft é, assim, percebida à medida que se analisa a nomenclatura e os conceitos utilizados por ele para tratar os fatos da língua. Tanto a fundamentação lingüística na qual se baseia, quanto o posicionamento teórico do gramático projetaram suas obras para além do seu tempo. Um contemporâneo de Luft, o gramático Celso Cunha, pode igualmente ser considerado como ícone dos estudos gramaticais do seu tempo. O contexto histórico da segunda metade do século XX no qual estava inserido ao mesmo tempo em que modificou o panorama da educação no Brasil, promoveu avanços na trajetória da gramaticografia. Nesse campo, Celso Cunha produziu obras cuja contribuição para o ensino e para pesquisadores da área o constitui um nome de destaque até os dias atuais. Ao analisarmos a obra Nova gramática do português contemporâneo (1985), identificamos uma abordagem mais liberal, já que os exemplos utilizados pelo gramático são retirados tanto de autores vivos quanto de autores já falecidos, o que não observamos nas gramáticas anteriores de Celso Cunha. Alguns pontos característicos de todo percurso gramatical de Celso Cunha também são claramente notáveis nessa gramática. A preocupação com a descrição da língua em sua forma culta, por exemplo, constitui um deles; da mesma forma, a 44 língua coloquial e as variações de estilo aparecem para o autor como fundamentais em qualquer gramática. Como fundamentação teórica de suas gramáticas encontramos os conceitos de norma e correção lingüística aliados ao de variedade, tanto em âmbito coletivo, quanto individual. A adoção de um perfil intermediário entre o conservadorismo e a inovação lingüística radical perpetua ao longo dos trabalhos do autor. Por isso, é possível afirmar que, embora Celso Cunha e Lindley Cintra (1985) não rompam totalmente com a tradição gramatical conservadora, os avanços da obra voltados para a estilística estabelecem uma configuração mais inovadora à gramática. A proposta contida nesse compêndio, portanto, é a de descrever as diversidades da nossa língua atual, ou seja, o português contemporâneo. Como os próprios autores afirmam, apesar de dedicarem-se à língua tal como é registrada pelos escritores do Romantismo, uma especial atenção é direcionada nessa gramática aos escritores dos dias atuais. Além disso, torna-se evidente na obra a defesa das formas de expressão coloquiais, isto é, da língua falada no cotidiano. Essa posição vai de encontro à tradição gramatical purista, estabelecendo uma nova concepção da Língua Portuguesa. Celso Cunha (1985) é inovador, portanto, não só por mencionar conceitos lingüísticos recentes para sua época, mas, sobretudo, por tratá-los de maneira ampla e aprofundada em comparação a outros autores. Como exemplos desse fato estão os conceitos de “uso padrão”, “norma culta” e “modalidade escrita”, que o gramático relaciona aos conceitos de coloquialismo, oralidade, aceitabilidade social, entre outros. 45 O autor realiza em sua obra uma tentativa de aproximação das três modalidades: a norma coloquial, a norma culta e a norma literária, permitindo, assim, ao usuário da língua uma identificação maior com sua proposta de gramática descritivo-normativa. Paralelamente, o gramático Evanildo Bechara (1961) na obra Moderna Gramática Portuguesa introduz conceitos inovadores, como o de língua exemplar. Este não significa senão uma variante eleita, convencionalmente, por uma comunidade de falantes para ser utilizada como norma. Na obra de Bechara, assim como verificamos em Celso Cunha, são apresentados estudos lingüísticos recentes para sua época, inclusive acerca da idéia de norma e sua ligação com o ensino de língua, na medida em que o gramático acompanhava as novas tendências surgidas dentro e fora do Brasil. De acordo com a proposta de Bechara (1961), a inserção de teorias lingüísticas recentes em sua obra baseia-se no princípio que o autor defende de que toda gramática deve derrubar os obstáculos em torno do aprendizado de língua materna, facilitando, assim, o processo de estudiosos e estudantes. Confirmamos tal posição nas palavras de Manoel Said Ali, autor do qual Bechara foi discípulo: “É dever de todo autor de gramática aplanar tanto quanto possível a estrada ao estudante e ajudá-lo a vencer as dificuldades técnicas próprias do idioma, e não criar-lhe novos embaraços colocando no caminho pedras de tropeço.” (SAID ALI apud BASTOS; PALMA, 2008, p. 153). 46 O contexto em que estava inserida a Moderna Gramática Portuguesa (1961), o período da ditadura militar no Brasil, justifica o objetivo de Bechara em sua obra. Isto é, em um momento de repressão pelo qual passava a sociedade em diversos aspectos, tal obra visava possibilitar a estudantes, professores e estudiosos da língua o acesso aos mais recentes estudos realizados tanto no Brasil quanto no exterior na área da linguagem. Em outra edição da mesma obra, Bechara (1999) dá continuidade à proposta de fundamentar a descrição dos fatos da língua por meio de teorias lingüísticas, o que caracteriza essa edição da Moderna Gramática Portuguesa ao mesmo tempo como normativa, já que não abandona o caráter prescritivo; e como científica, na medida em que reformula o modelo tradicional de gramática. O caráter inovador dessa obra em relação às anteriores do autor evidencia-se em alguns conceitos apresentados, como por exemplo, o conceito de linguagem, tanto em sentido amplo, quanto em sentido restrito. Em relação à primeira, o autor se refere como sendo um sistema de signos qualquer, o que engloba a linguagem verbal e a linguagem não-verbal. Já a linguagem em sentido restrito, refere-se especificamente à linguagem verbal. Bechara (1999) trata, ainda, da linguagem como um ato individual e deixa de lado todo sistema não-verbal da linguagem para enfatizar apenas os signos lingüísticos, os quais, segundo ele, são efetivamente objeto de estudo da Lingüística. Fundamentado nos pressupostos teóricos do lingüista Eugenio Coseriu (1980), para quem a linguagem divide-se nos planos universal, individual e histórico, os quais correspondem, respectivamente, à designação, ao significado e ao sentido, 47 em termos de níveis de funcionalidade, Bechara concebe a linguagem como uma atividade humana, a atividade de falar. Sob uma perspectiva sociolingüística, ou seja, considerando as variantes, a definição de língua é igualmente apresentada dentro da edição de 1999 da Moderna Gramática Portuguesa. A língua, para o autor, é histórica e funcional; àquela característica associa-se o fato de ela constituir uma unidade, podendo ser identificada por seus falantes ou por falantes de outras línguas em qualquer momento histórico. A esta, por sua vez, estão relacionadas as variantes existentes dentro de um sistema. 48 IV – PERIODIZAÇÃO DOS ESTUDOS LINGÜÍSTICOS NO BRASIL O Brasil ainda necessita de uma proposta de periodização dos estudos filológicos e lingüísticos mais abrangente, na medida em que até mesmo a pesquisa científica nessas áreas ainda não alcançou um patamar de investigação mais aprofundado. Alguns trabalhos podem ser destacados dentro dessa linha da pesquisa historiográfica, como por exemplo, a proposta pioneira de Antenor Nascentes, cujo texto A filologia portuguesa no Brasil (NASCENTES, 1939) segmenta e classifica em uma escala de evolução os períodos em que a língua foi objeto de estudo no Brasil. Assim, o período embrionário, compreende desde o surgimento da cultura brasileira até 1834, quando foi publicada a obra de Pereira Coruja, Gramática da Língua Nacional. Inicia-se, logo em seguida, o período empírico, que se estende até 1881, data em que foi publicada a Grammatica Portugueza, de Júlio Ribeiro. A partir desta data e até 1939, quando foi fundada a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, ocorre o denominado período gramatical. Outro autor que propôs uma periodização dos estudos lingüísticos no Brasil foi Silvio Elia, em seu texto Os estudos filológicos no Brasil (ELIA, 1975), incluído no volume Estudos de Filologia e Lingüística. Elia percorre a trajetória da nossa gramática desde a metade do século XIX até os anos 60 do século passado de forma crítica, oferecendo progresso ao desenvolvimento dos estudos na área, principalmente por exprimir seu pensamento a respeito de autores e obras de épocas contemporâneas. Dentro da classificação de Elia são apresentados apenas dois períodos, a saber, o vernaculista, assim denominado devido à valorização das formas 49 exemplares do nosso vernáculo, aquelas que são a expressão do bom uso da língua, já que a descrição gramatical ainda não se estabelecera como tarefa ao gramático. Esse fato foi conseqüência da atmosfera de nacionalismo que se instaurara após a Independência do Brasil, e do momento em que o movimento literário denominado Romantismo surge e se fortalece no país. O período denominado por Elia como científico, por sua vez, é formado por duas fases; com caráter fortemente renovador a primeira, compreendida entre 1880 e 1900, caracteriza-se por acolher novos métodos de investigação, os quais possibilitaram as “primeiras investigações da direção filológica” (ELIA, apud CAVALIERE, 2000, p. 2), já a segunda foi classificada pelo autor dentro do período de 1900 a 1960, década em que Silvio Elia publica o referido estudo historiográfico. De acordo com Cavaliere (2000, p. 2), embora a proposta de Elia nos “revele grande esforço de síntese e coesão”, ela nos deixa lacunas no que se refere à menção a certas obras do período anterior à Independência, sobretudo de alguns autores do início do século XIX, por não serem certamente consideradas como significativas para os estudos do vernáculo em voga na época. Além disso, como nos mostra Cavaliere (op. cit., p.3), Silvio Elia desconsidera a grande contribuição dada por Joaquim Mattoso Câmara Jr. para o avanço dos estudos lingüísticos no Brasil. Tal procedimento é reforçado a partir do procedimento que o autor toma de denominar um longo período, o da segunda fase (1881 a 1960), de “direção filológica”, não abrangendo, portanto, toda a produção científica representativa desse período. Por outro lado, de acordo com Cavaliere (2000, p.5), constitui uma árdua tarefa a de propor uma periodização dos estudos lingüísticos no Brasil da década dos 40 em diante que compreenda ao mesmo tempo a Filologia e a Lingüística. 50 Nessa época, enquanto a Filologia permanecia fiel à herança dos estudos históricos do século XIX, a Lingüística Estrutural, cujo modelo em nada se assemelhava à proposta filológica, consolidava-se como fundamentação teórica dentro dos estudos do vernáculo. Mais cabível, portanto, é “uma tentativa de periodização heterogênea” (CAVALIERE, op. cit., p, 8), isto é, uma proposta que tome por base mais de um fator como responsável pelo desencadeamento de novas idéias, de quebras de paradigmas no percurso da história dos estudos lingüísticos no Brasil. Isso porque, qualquer proposta homogênea nessa área seria passível de falhas em um dado momento. Dois são os fatores adotados por Cavaliere em sua proposta (op. cit., p.8), cujo destaque exercido sobre esses estudos nos levam a dedicar uma atenção especial a eles. Dessa forma, o primeiro fator a ser levado em consideração, o das fontes teóricas, é responsável por moldar novos rumos na aquisição e divulgação das teorias lingüísticas, formando uma unidade e uma identidade à fase; outro fator, o das obras representativas dos momentos de ruptura, representam concreta e historicamente o período em que estão inseridas. Cavaliere (op. cit., p.8) divide, assim, os estudos lingüísticos em quatro períodos. São eles: O período embrionário, termo originalmente usado por Nascentes (1939 apud CAVALIERE, 2000), tem início no ano da publicação da Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, de José de Anchieta, em 1595 e termina em 18064, ano do surgimento do Epitome da grammatica portugueza, de Antonio Moraes Silva. 4 “O Epítome de Moraes Escrita foi escrito em 1802 e publicado, pela primeira vez, em 1806, na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, Lisboa.” (CAVALIERE, 2000, p. 9). 51 Tal espaço de tempo se caracterizou por não representar de forma significativa o pensamento lingüístico no Brasil, oferecendo apenas estudos filológicos dispersos. O segundo período, denominado racionalista, abrange quase todo século XIX, iniciando em 1806 e se estendendo até o ano de 1881. Com efeito, a publicação do Epitome da grammatica portugueza, de Antonio Moraes Silva, reorienta os estudos gramaticais no Brasil, que passam a ter como parâmetro as gramáticas didáticas lusitanas, em detrimento das bases da gramática latina, que, até o momento, eram aplicadas ao vernáculo. A produção gramatical desse período passa, então, por um momento em que prioriza o ensino da norma através de obras literárias. Destacam-se, assim, nomes como Antonio Gonçalves Dias, Odorico Mendes e Francisco Sotero dos Reis. Este, com a Grammatica Portugueza (1871 apud CAVALIERE, 2000) nos mostra seu conhecimento acerca dos limites entre a lingüística, ciência em destaque na Europa, e a arte gramatical. A obra de Sotero dos Reis5 representa um salto qualitativo dentro dos estudos sobre a língua no Brasil, na medida em que dá continuidade a questões relevantes acerca da natureza da linguagem humana. Além disso, seguindo uma tendência da maioria dos autores de destaque do período, mostra-se evidente a considerável influência que o autor sofreu pela Gramática de Port-Royal6, sobretudo no que se refere à síntese gramatical e à teoria sintática fundamentada nas classes sujeito ― verbo ― atributo. Embora o ensino de língua portuguesa do século XIX tenha passado por mudanças determinantes nesse período racionalista, um ponto relegado ao 5 De acordo com Cavaliere (2000, p.10), a terceira edição (1877) da Grammatica Portugueza é a mais recomendada. 6 A Grammaire Générale et Raisonée (1660) representou um corte epistemológico, estabelecendo uma ruptura com o modelo latino e dando início à busca do rigor científico nos estudos gramaticais. 52 esquecimento foi a falta de tratamento dada pelas gramáticas ao português brasileiro, de modo que as gramáticas brasileiras da época se limitavam a copiar modelos e regras das gramáticas lusitanas. O terceiro período, denominado científico, envolve o espaço de tempo que vai desde os últimos anos do século XIX até metade do século XX (1881-1941). O início desse período coincide, portanto, com o ano da publicação da Grammatica Portugueza, de Julio Ribeiro, a qual já demonstrara ter incorporado os recentes estudos histórico-comparativistas europeus. Cavaliere (op. cit., p. 11) nomeia como fundadora a primeira fase desse período, que se estende até a primeira década do século XX e se caracteriza pelo primordial interesse dos compêndios gramaticais em descrever o português contemporâneo, ao passo que grande espaço era também reservado às pesquisas etimológicas. O racionalismo dá lugar, então, ao cientificismo e uma vasta e rica produção lingüística modifica o perfil das gramáticas em geral, que passam a dissecar os fatos da língua, em vez de apenas observá-los. Essa fase conta, ainda, com alguns autores cujos estudos estavam mais voltados para a Filologia, foi a chamada “geração de ouro” de Portugal. Esses autores divergem dos anteriores, principalmente quanto às fontes teóricas e objeto de pesquisa com o qual trabalham. A partir de então, no período científico, é delineada a fase legatária, que dura até o final dos 30 e na qual se percebe claramente a influência do comparativismo europeu, que juntamente com uma pesquisa etimológica detalhada é resultado da preocupação com a preservação das estruturas gramaticais da origem clássica e da tradição vernácula. 53 Como o corpus literário continua sendo utilizado também nessa fase, com predominância dos autores portugueses clássicos, a descrição detalhada das formas da língua portuguesa é feita visando ao alcance daquelas que se assemelham às encontradas nos textos de literatura, tomadas como exemplares. Nessa busca pela língua ideal, a gramática do português ganha destaque em estudos de grande projeção e relevância, dando atenção especial às áreas da sintaxe e da morfologia, fato que confirma o valor científico conferido aos trabalhos produzidos também nesse momento. Nomes como os de João Ribeiro e Said Ali se destacaram tanto na fase fundadora quanto nessa fase devido ao volume da produção intelectual deles, sendo o segundo responsável pela publicação de duas obras, as quais foram as mais expressivas para o seu tempo. O quarto período, denominado lingüístico, inicia-se em 1941 e vai até os dias atuais. Tal denominação é justificada pela dimensão que a ciência Lingüística adquirira no meio acadêmico e, por conseguinte, nas pesquisas e obras pertencentes a esse período. O português como disciplina e objeto de estudo cede lugar para o estudo da língua enquanto fenômeno universal e para as novas teorias que surgiam. As fases estruturalista e diversificada constituem esse período e podem ser definidas de acordo com as correntes teóricas que as caracterizam. Aquela é marcada pela publicação, em 1941, dos Princípios de Lingüística Geral, obra de Mattoso Câmara Júnior, ícone da consolidação da ciência Lingüística como autônoma no meio acadêmico brasileiro. Durante mais de trinta anos o Estruturalismo manteve-se como principal ramo da Lingüística presente no ensino nas Universidades e nas pesquisas acadêmicas. 54 Porém, a partir do final dos anos setenta, essa corrente fundada no Brasil por Mattoso Câmara começa a dividir espaço com outras correntes da Lingüística, como por exemplo, as que possuíam o foco de estudo na língua oral. Mas não apenas o meio acadêmico sofreu influência desses novos estudos em Lingüística, como também as escolas de ensino fundamental e médio, já que os professores passam a utilizar como fonte teórica tais estudos, adaptando-os ao ensino normativo da língua, muitas vezes sem o devido preparo. Além disso, a corrente gerativista, baseada no modelo americano, também surgia nos meios acadêmicos ao lado do Estruturalismo e das pesquisas sobre oralidade. Por volta dos anos oitenta, uma nova onda de estudos lingüísticos, cujo foco está centralizado na análise lingüística do texto e nos estudos da língua utilizada pelo falante, desponta na contramão do excessivo formalismo estruturalista e gerativista. Essa fase caracteriza-se por um afastamento da gramática como objeto de pesquisa para dar lugar ao terreno fértil dos usos lingüísticos. Denominada como diversificada, a convivência entre correntes teóricas plurais é a marca desse momento dos estudos lingüísticos que se estende até os nossos dias. Essa pluralidade é responsável por um novo panorama nas pesquisas científicas na área da linguagem em âmbito nacional, na medida em que se formam grupos de pesquisa interligados em todo país, o que, paulatinamente, modifica o perfil do pesquisador isolado. 55 VI – A CONCESSÃO: CONCEITOS A expressão do pensamento concessivo pode ocorrer, como podemos observar em algumas gramáticas selecionadas para esta pesquisa, por meio de orações. Estas possuem sua classificação, na Tradição Gramatical, via de regra, entre as subordinadas adverbiais. Assim, em Rocha Lima (1974, p. 248) encontramos as orações concessivas, que o autor nomeia também como de oposição. Podemos observar que a utilização desse termo pelo gramático indica que a oração concessiva está sendo considerada como aquela que expressa uma idéia contrária à expressa na oração principal, porém que não constitui impedimento para a sua realização. Observemos, então, o exemplo: “Irei vê-la, / ainda que chova”. Neste período, embora a segunda oração contenha uma idéia oposta à da primeira, esta não deixará de ocorrer por causa daquela. Da mesma forma em Bechara (1976, p. 128), no capítulo sobre as orações subordinadas adverbiais, estão enumeradas as concessivas. Segundo a definição do autor, elas exprimem um impedimento que, mesmo ocorrendo, não constitui uma barreira para a realização do que é declarado na oração principal. São exemplos de conjunções concessivas, de acordo com o gramático: ainda que, embora, posto que, se bem que, conquanto etc. “Embora chova, sairei.” 56 “Ainda que perdoemos aos maus, a ordem moral não lhes perdoa, e castiga a nossa indulgência.” Além disso, o autor ressalta que para exprimir a idéia concessiva as expressões ainda... que, ainda... quando podem ser substituídas por que e quando , as quais são acompanhadas pelo verbo no subjuntivo e “proferidas com tom de voz descendente”. Para exemplificar esse uso concessivo do que e do quando, ele utiliza os seguintes enunciados: “Os obstáculos, que fossem muitos, não tiravam aos rapazes a certeza da vitória.” “E, quando as palavras não o digam, aí estão os fatos para comprovar que só enunciei verdades.” Quando se emprega o que, segundo o autor, há uma preferência pela inversão de termos e a oração concessiva é iniciada por uma expressão que funciona como predicativo ou complemento do verbo. Bechara acrescenta, em seguida, outros exemplos: “Os rapazes, pobres que sejam, merecem a nossa consideração.” “Aqueles livros, difíceis que fossem sempre nos serviram para elucidação de muitas dúvidas.” 57 “Mil desculpas que me desse, eu continuaria achando que procedeu mal comigo.” Para Rocha Lima (1974, p. 248), as orações que exprimem a concessão podem apresentar-se sob a forma desenvolvida ou reduzida. Ambas podem conter um pensamento concessivo que é caracterizado, dessa forma, por meio de algumas conjunções. As desenvolvidas podem ser introduzidas pelas conjunções: “ainda que, ainda quando, apesar de que, conquanto, embora, mesmo que, se bem que, sem que”. O verbo, neste caso, apresenta-se no modo subjuntivo, como nos exemplos abaixo: Ainda que eu vivesse mil anos, / jamais esqueceria aquela mágoa. Embora se esforce muito, / não progride na vida. Não progride na vida, / se bem que se esforce muito.” Conforme exposto acima, as concessivas podem ainda vir antepostas ou pospostas em relação à principal. No primeiro caso, é dada maior ênfase à concessiva e a principal que a acompanha, por sua vez, vem acrescida de uma palavra ou expressão que exerce o papel de destacar a oposição de idéias, como por exemplo: “ainda assim, mesmo assim, contudo, entretanto, sempre, todavia, entre outras”. Vejamos os casos: Embora se esforce muito,/ (ainda assim, mesmo assim, entretanto) não progride na vida. 58 Posto que se tivesse rebelado contra o comandante, / (sempre, todavia) acabou por acatar-lhe as ordens. Sem que seja estudante excelente,/ faz-se (contudo) respeitar de mestres e colegas. Bechara (1976, p.133) também expõe tal emprego das concessivas quando menciona que a oração principal pode conter uma expressão (contudo, todavia, ainda assim, não obstante ou equivalente) que funciona como síntese do pensamento precedente, “avivando ao ouvinte a idéia concessiva da subordinada”. Abaixo se encontram os exemplos relacionados: “Ainda que todos saiam, todavia ficarei.” “Embora não me queiram acompanhar, ainda assim não deixarei de ir à festa.” O autor destaca que “tais expressões memorativas pertencem ao grupo dos advérbios de oração, ou seja, aqueles que se referem a uma oração inteira.” Ainda nas orações desenvolvidas, a concessão pode ser expressa, de acordo com Rocha Lima (op. cit., p. 249), por meio das locuções “por mais... que”, “por muito... que”, “por pouco... que”, etc.; ou somente “por... que”. Os casos que exemplificam esse emprego são descritos pelo autor nas seguintes orações: “Por mais forte que ela seja, / não resistirá a dor tamanha!” “Por muito depressa que andes, / dificilmente o alcançarás.” “Por verdadeiras que sejam tuas palavras, / ninguém acreditará nelas.” 59 Ao retirarmos dessas expressões os adjetivos ou os advérbios o verbo que as acompanha sofrerá uma modificação, como nos mostra o gramático: “Por mais que argumentes com talento, / o júri recusará tuas razões.” “Por pouco que ajudes, / sempre será precioso o teu auxílio.” Em Bechara (1976, p.132) também encontramos esse emprego das concessivas. No entanto, o autor as classifica como “intensivas”, diferenciando-as, assim, das demais, as quais ele considera como “comuns”. Segundo o gramático, as concessivas “intensivas” são empregadas com “o intuito de assinalar qualidade ou modalidade qualquer e são consideradas em grau intensivo e sem limites” (SAID ALI, apud BECHARA). “Por inteligente que seja, encontrará dificuldades em entender o problema.” “Por mais que estude, ainda tem muito que aprender. A caracterização dessa classe das concessivas se dá, de acordo com Bechara, por meio das expressões por mais... que, por menos... que, por muito... que; onde se pode dar ainda a eliminação do advérbio mais, menos, muito. A mesma classificação encontramos em Cunha e Cintra (1985, p. 590), onde o autor faz uma observação sobre as orações concessivas e destaca que elas podem ser intensificadas por meio das expressões por mais que, por maior que, por melhor que, por menos que, por menor que, por pior que; e ainda, mais que, maior que, melhor que, menos que, menor que, pior que, etc. 60 “Por mais que quisesse, não conseguia decidir-se por nenhum.” Em Melo (1970, p. 235), a definição das orações subordinadas está ligada ao papel desempenhado por elas nas orações das quais são dependentes e, logo em seguida, dá-se a enumeração dessas orações. Entre elas está a adverbial concessiva, a qual é demonstrada por meio do exemplo: “Ainda que todos estivéssemos certos da nossa salvação, devíamos fazer o mesmo, só por conseguir os conselhos evangélicos e buscar o maior agrado de Deus.” De acordo com Bechara (1976, p.134) além das tradicionais adverbiais concessivas, outro tipo de oração subordinada adverbial pode exprimir a idéia de concessão, são elas as orações condicionais. Como o autor descreve, as orações condicionais podem veicular, além da idéia de condição, também as idéias de “hipótese, eventualidade, tempo e concessão”. Assim, em “quer... quer (ou... ou, etc)” podemos ter a idéia tanto de concessão quanto de condição. Entre as orações adverbiais justapostas (op. cit., p.143) também encontramos as concessivas. Assim, elas não possuem um conectivo que une a principal à subordinada, mas são identificadas por possuírem o verbo no subjuntivo anteposto ao sujeito ou serem iniciadas pelas expressões “digam o que quiserem; custe o que custar; dê onde der; seja o que for; aconteça o que acontecer; venha donde vier; seja como for, etc.” 61 “Tivesse ele dito a verdade, ainda assim não lhe perdoaríamos.” “Sairemos, aconteça o que acontecer.” O autor destaca, ainda, que a concessão não está contida no subjuntivo do verbo, mas sim é depreendida pelo contexto e pela entoação descendente. No capítulo em que Bechara (op. cit, p. 159) trata das orações adverbiais reduzidas, verificamos, quando o verbo principal ou auxiliar encontra-se no infinitivo, a idéia de concessão sendo expressa por algumas preposições, cuja correspondência ocorre com as conjunções subordinativas adverbiais concessivas. São elas, portanto: a) Com “... ele só, com trabalhar mais que todos, sofria dasassombradamente todas as incomodidades...” A idéia expressa em “com trabalhar” é a mesma de “embora trabalhasse”, onde embora é convencionalmente uma conjunção subordinativa concessiva. Também em Chaves de Melo (1970, p. 310) encontramos descrito o emprego da preposição com expressando o valor concessivo. Assim, o autor destaca como rara a combinação da preposição com e o verbo no infinitivo, indicando concessão, cuja equivalência ocorre com as conjunções concessivas não obstante, apesar de. “Ele [Arcebispo] só, com trabalhar mais que todos [isto é, “não obstante trabalhar...”], sofria incomodidades.” [= “suportava”] desassombradamente todas as 62 Podemos observar a correspondência entre o exemplo utilizado por Bechara e o utilizado por Chaves de Melo. No entanto, enquanto aquele menciona a conjunção concessiva embora, este utiliza a expressão concessiva não obstante, ambas se referindo à idéia concessiva contida na preposição com. Ainda em Chaves de Melo (1970, p. 310), a preposição com pode ser empregada antes de substantivos, uso freqüente em construções atuais, como no exemplo: “Com mais de setenta anos andava a pé, de preferência pelas veredas.” Em Cunha e Cintra (1985, p.553) também é descrito o emprego da preposição com para exprimir situações como adição, associação, companhia, comunidade e simultaneidade. Os autores sinalizam ainda que, em certos contextos, essa preposição pode aparecer exprimindo as noções de modo, meio, causa e concessão. “Rir dos outros é sinal de pobreza de espírito. Deve-se rir com alguém, não de alguém, como dizia Dickens”. Companhia “Vou amanhã de manhã com o Rocha”. Companhia “A proposta foi recebida com reserva”. Modo “Saio do hotel com o sol já alto”. Simultaneidade b) Sem 63 “Este era funestamente o sistema colonial adotado pelas nações que copiavam sem o entender, nem fecundar, como os romanos, o governo discricionário das províncias avassaladoras.” Nesse caso, a idéia concessiva é veiculada na medida em que tanto a causa quanto a conseqüência são negadas. c) Malgrado Estudou malgrado ter perdido o caderno. d) Não obstante Saíram não obstante terem ouvido os conselhos do pai. e) Locuções prepositivas: apesar de, sem embargo de. Apesar, porém, da casa ser tida como imagem dos perigos e privações da guerra, e do duque haver adquirido com ela grande disposição e robustez, observou-se que as armas o atraíam pouco. Paralelamente, em Cunha e Cintra (1985, p. 597) além das orações subordinadas desenvolvidas, em que o verbo encontra-se em sua forma finita, são apresentadas as orações subordinadas reduzidas, em que o verbo encontra-se em uma de suas formas nominais. Portanto, entre as orações subordinadas reduzidas de infinitivo estão enumeradas as adverbiais concessivas, exemplificada com o período: 64 “/Mesmo sem saber/ se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas.” Em Rocha Lima (1974, p. 330), em orações reduzidas de infinitivo, a preposição a pode expressar algumas idéias, dentre as quais a de condição, tempo, fim e concessão. Neste caso, a preposição a forma uma construção arcaica e corresponde à conjunção concessiva ainda que. Analisemos o exemplo: “Os perigos, os casos singulares, Que por mais de mil léguas toleramos, Não contara, depois que no mar erro, A ter o peito de aço, e a voz de ferro.” A expressão a ter o peito de aço, corresponde, portanto, a ainda que tivesse o peito de aço (op. cit., p. 331). Por outro lado, quando o verbo encontra-se no gerúndio, os autores (op. cit., p. 599) observam que é próprio desse tempo verbal a expressão do significado temporal, isto é, a construção de orações subordinadas adverbiais temporais. Entretanto, outras orações subordinadas adverbiais podem ser construídas com o verbo no gerúndio, entre as quais as adverbiais concessivas, como no trecho: “Aqui mesmo, / ainda não sendo padre, / se quiser florear com outros rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, Mana Glória. 65 Outro exemplo de concessão com o verbo no gerúndio pode ser expressa da seguinte forma, conforme Bechara (1976, p. 165): “E quem são estes? São aqueles que sendo hoje tanto mais do que eram, e tendo mais do que tinham, e estando tanto mais levantados do que estavam, ainda se queixam e se chamam mal despachados.” Nestes casos, os gerúndios sendo, tendo e estando equivalem, respectivamente, a embora sejam, embora tenham e embora estejam. Da mesma forma em Chaves de Melo (1970, p. 295) verificamos a existência do gerúndio circunstancial, o qual se caracteriza por desempenhar a mesma função do adjunto adverbial. Ao utilizar um exemplo desse emprego, o autor acrescenta que a idéia expressa pelo gerúndio concessivo, ou seja, o que expressa a circunstância de concessão, é equivalente à expressa por uma oração introduzida pelas conjunções concessivas embora, posto que. Assim, segue-se o trecho citado pelo gramático: “E notem que Quincas Borba, por induções filosóficas que fez, achou que a minha ambição não era a paixão verdadeira do poder, mas um capricho, um desejo de folgar. Na opinião dele, este sentimento, não sendo mais profundo que o outro [embora não seja...], amofina muito mais.” Da mesma forma que encontramos a concessão sendo expressa com os verbos nas formas nominais do gerúndio e do infinitivo, com o verbo no particípio, 66 também ocorrerá a concessão. Comprovemos por meio do exemplo retirado de Cunha e Cintra (1985, p. 601): “Creio, porém, que, ainda admitidas as exagerações do jornal do comércio, pode-se assegurar que a guerra está concluída.” Em Cunha e Cintra (op. cit., p. 589) as orações subordinadas adverbiais são definidas por funcionarem como adjunto adverbial de outras orações e são classificadas de acordo com a conjunção subordinativa que as inicia. Dentre as enumeradas pelos gramáticos estão, dessa forma, as subordinadas adverbiais concessivas, cujos períodos abaixo servem como exemplo: “Ainda que não dessem dinheiro, poderiam colaborar com um ou outro trabalho.” “O Albino, posto que homem correntão, ficou varado.” “A regra era ir sempre desacompanhado, mesmo que levasse o gado até aos confins da serra.” Além das orações subordinadas adverbiais, a concessão pode ser expressa também por meio dos adjuntos adverbiais, item presente em toda a tradição gramatical cuja característica principal é a atribuição de uma circunstância ao verbo. 67 Em sua obra, Bechara reserva um capítulo para os adjuntos adverbiais (1976, p. 70), onde encontramos como característica dessa função sintática o fato de tal como os advérbios, eles exprimirem circunstâncias. As principais são enumeradas como: 1) Assunto 2) Causa 3) Companhia 4) Concessão O autor apresenta como exemplo de um adjunto adverbial de concessão a seguinte oração: “Saíram apesar da chuva.” Em outra obra, no capítulo sobre os termos acessórios da oração (ROCHA LIMA, 1974: p. 224), temos, como um desses, o adjunto adverbial. Este é definido pelo gramático como modificador do verbo, responsável por imprimir uma circunstância delimitadora de sentido. Assim, como exemplo de algumas circunstâncias, enumera-se: 1) assunto 2) causa 3) companhia 4) concessão: “Apesar do mau tempo, o avião levantou vôo”. 68 Nessa oração, o adjunto adverbial é responsável por introduzir uma circunstância que se opõe à ação indicada pelo verbo. Entretanto, assim como nas orações adverbiais concessivas, este fator não é impedimento para que tal ação se realize. No capítulo sobre os adjuntos adverbiais (MELO, 1970, p. 219), define-se tal termo da oração como o que faz referência a verbos, ou intensifica a idéia expressa por adjetivo, verbo, advérbio, pronome ou substantivo. Essa função é desempenhada por advérbios ou expressões equivalentes. Além disso, são classificados de acordo com as circunstâncias que exprimem, tal como as orações adverbiais. São elas: de modo, de lugar, de fim, de concessão, de freqüência, de instrumento, de tempo, de condição, de causa, de companhia, etc.” Mais adiante, no mesmo capítulo da obra, outro termo oracional é caracterizado como exprimindo circunstâncias, entre as quais a de concessão. Tal termo é o “predicativo adjunto”, que possui sua classificação dentro dos elementos acessórios da oração, assim como os adjuntos: adnominais e adverbiais. A definição desse elemento acessório, de acordo com Melo (op. cit., p. 220), é dada como um termo também de “referência nominal (como o predicativo)”, que está relacionado ao sujeito ou ao objeto. O termo predicativo adjunto é privilegiado pelo autor em detrimento de aposto circunstancial, denominação utilizada pela NGB. Conforme observa o gramático, este último termo é passível de suscitar ambigüidade com o aposto, nome utilizado para o adjunto adnominal quando “expresso por substantivo não preposicionado” (op. cit., p. 217). 69 Como exemplo de “predicativo adjunto” que expressa a circunstância de concessão, portanto, é destacado o trecho: “Não sofre muito a gente generosa [isto é,“ainda que generosa”] / Andar-lhe os cães os dentes amostrando.” (op. cit., p. 224) Além das orações, dos adjuntos adverbiais e das expressões equivalentes encontramos entre os mecanismos de expressão da concessão, as conjunções. Na Tradição Gramatical essa classe de palavras é definida entre as invariáveis e é classificada de acordo com as orações que as introduzem. Em Cunha e Cintra (1985, p. 568) as conjunções coordenativas podem assumir alguns valores particulares, como por exemplo, a conjunção e, a qual tradicionalmente é descrita como aditiva. Assim, de acordo com o gramático, a conjunção e pode exprimir um valor adversativo que, em certos casos, é muito próximo do valor concessivo. Verifiquemos os exemplos: “Torço as orelhas e não dão sangue”. “Fui, como as ervas, e não me arrancaram”. No capítulo sobre as conjunções subordinativas (CUNHA, 1985, p. 571) encontramos as concessivas como uma classe dentro das que iniciam as orações adverbiais. Em seguida, o gramático as define como responsáveis por introduzir uma 70 oração subordinada cuja característica é apresentar uma idéia contrária à ação principal, que não constitui, no entanto, impedimento para a sua realização. As conjunções concessivas enumeradas por Cunha e Cintra (op. cit., p. 572) são: embora, conquanto, ainda que, mesmo que, posto que, bem que, se bem que, por mais que, por menos que, apesar de que, nem que, que, etc. “Não saberei nunca escrever sobre ele, embora tenha tentado mais de uma vez.” “Bandeira livre e bandeira oficial foram comuns, posto que em graus diversos, a todo o Brasil.” “Nem que a matassem, confessava.” Em Rocha Lima (1974, p. 162) as conjunções subordinativas são classificadas em causais, condicionais, conformativas, comparativas, consecutivas, finais, proporcionais, temporais, integrantes e concessivas. No item em que exemplifica as concessivas, o autor cita as seguintes conjunções: embora, conquanto, ainda que, posto que, se bem que, etc. “Comprarei o livro, embora o ache caríssimo.” “Posto que estivéssemos cansados, prosseguimos a viagem.” No capítulo sobre as conjunções subordinativas, Nascentes (1937) apresenta a classificação de acordo com a Tradição Gramatical em que temos as causais, as 71 comparativas, as concessivas, as condicionais, as correlativas, as finais, as integrantes, as modais e as temporais. Como conjunções concessivas, o autor enumera: posto que, ainda que, embora, conquanto, se bem que, quando mesmo, que, posto, se bem, mesmo que, suposto que, apesar de que, nem que, ainda mesmo que, dado que, em que, por... que, por mais... que, por muito... que, por menos... que, por pouco... que. Essas conjunções são responsáveis, de acordo com Nascentes (op. cit., p. 200), por ligar “emprestando à outra frase em que não figuram o valor de uma concessão feita.” Em outro volume da obra de Nascentes (1942, p. 110), na medida em que é apresentada no item das conjunções uma explanação sobre as concessivas, é feita também uma observação sobre a conjunção que, a qual segundo o autor “funciona às vezes como concessiva”. Este emprego é comprovado por meio do período: “Que me queira consolar, O meu mal não tem conforto, Nem eu lho posso buscar.” Além da ocorrência acima o autor menciona a expressão em que pese como conservando um vestígio da antiga conjunção concessiva em que. Exemplo: “Assim se traçou limpidamente, em que pese ao caráter da indeterminação que lhe davam três incógnitas...” 72 Outro autor que trata das conjunções concessivas como uma classe dentro das conjunções subordinativas é Chaves de Melo (1970). No capítulo onde são apresentadas as palavras invariáveis o gramático inclui entre elas as conjunções e as define como “uma palavra ligadora” (op. cit., p. 174). Desse modo, as conjunções subordinativas são diferenciadas das coordenativas por estabelecerem uma dependência sintático-semântica entre a oração subordinada e o termo da oração principal a que esta se relaciona. A classificação e a divisão dessas conjunções é feita de acordo com a relação de dependência estabelecida entre as duas (idem, p. 175). Nessa classificação estão incluídas as conjunções subordinativas concessivas, as quais, para o gramático, “exprimem hipótese de raciocínio ou fato embargante”. São elas: embora, conquanto, ainda que, se bem que, mesmo que. Em Cunha e Cintra (1985, p. 458), após as conjunções concessivas embora, ainda que, conquanto, posto que, mesmo que, se bem que etc; em geral, empregase o verbo no modo subjuntivo, caso que os autores denominam como subjuntivo subordinado e caracterizam por não possuir sentido em si mesmo, mas sim estabelecerem uma relação de dependência com certas conjunções, conforme os exemplos a seguir: “O povo não gosta de assassinos embora inveje os valentes.” “Ainda que o morto se chamasse Adalardo, não seria o nosso.” “Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la.” “Por muito que eu desejasse ter aqui uma burra, não trocava a amizade do Barbaças por todas as burras desta freguesia.” 73 Ainda sobre o emprego do subjuntivo, Cunha e Cintra (op. cit., p. 455) descrevem uma outra ocorrência, o subjuntivo independente, o qual de acordo com os autores pode expressar entre várias idéias, a de hipótese, concessão, como observamos nas passagens: “Seja a minha agonia uma centelha De glória!...” “Que a tua música Seja o ritmo de uma conquista! E que o teu ritmo seja a cadência de uma vida nova!” Além dos mecanismos de expressão da concessão acima descritos encontramos na Tradição Gramatical a concessão sendo expressa por meio da locução sem que, como ocorre em Bechara (1976, p. 142). Embora tal locução encontre-se tradicionalmente classificada como conjunção condicional, o autor nos apresenta alguns casos em que essa locução é empregada com a idéia concessiva: “Ele é responsável, sem que o saiba, por todas essas coisas erradas.” Em um outro caso, em que a causa é negada, a idéia de concessão prevalece pelo autor no período abaixo: 74 “Estudou sem que seus pais lho pedissem. (nega-se a causa ou uma das causas do estudo: o pedido dos pais, e vale quase por: estudou ainda que seus pais não lho pedissem). Observamos ainda a referência à conjunção que como concessiva em Rocha Lima (1974, p. 249). No entanto, esse emprego é caracterizado na linguagem “moderna”, segundo o gramático, por ser a oração iniciada com um predicativo ou complemento. Poderosos que sejam, /não me curvarei à vontade deles. Mil anos que eu vivesse, /jamais esqueceria aquela mágoa.” Outro gramático que faz referência à conjunção que como concessiva é Cunha (1985, p. 590). O que ocorre neste caso, de acordo com o autor, é a redução da conjunção subordinativa e a antecipação do predicativo. É o que podemos observar no exemplo: “Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte a cavalo. Pensamentos concessivos podem vir iniciados por conjunções alternativas (neste caso o verbo está no subjuntivo); quando denotam que a possibilidade de ações opostas ou diferentes não impede a declaração principal: “Quer estudes, quer não, aprenderás facilmente a lição.” 75 “Ou estudemos medicina, ou sejamos advogados, conquistaremos na sociedade um lugar de relevo.” O substantivo também pode expressar a concessão quando precedido de preposição, em expressões adverbiais, como no exemplo descrito em Rocha Lima (1974, p. 261): “Partiu apesar da chuva”. Considerando-se o conjunto dos instrumentos de expressão do pensamento concessivo presentes nas gramáticas brasileiras referidas, chegamos ao seguinte quadro geral: 76 Autor Obra Definição Exemplos Evanildo Bechara (1976) Lições de Português pela análise sintática As conjunções subordinadas adverbiais concessivas comuns exprimem um impedimento que, mesmo ocorrendo, não constitui uma barreira para a realização do que é declarado na oração principal. Ainda que, embora, posto que, se bem que, conquanto, etc. 1)“Embora chova, sairei” 2)“Ainda que perdoemos aos maus, a ordem moral não lhes perdoa, e castiga a nossa indulgência.” Evanildo Bechara (1976) Lições de Português pela análise sintática Ainda que e Ainda quando podem ser substituídos por que ou quando em construções com o “tom de voz descendente” e com o “verbo no subjuntivo” para exprimirem a idéia de concessão. Ocorre, assim, uma inversão de termos e a oração concessiva é introduzida por um predicativo ou pelo complemento do verbo. 1) “Os obstáculos, que fossem muitos, não tiravam aos rapazes a certeza da vitória.” 2) “E, quando as palavras não o digam, aí estão os fatos para comprovar que só enunciei verdades.” 3)“Os rapazes, pobres que sejam, merecem a nossa consideração.” 4)“Aqueles livros, difíceis que fossem, sempre nos serviram para elucidação de muitas dúvidas.” 5)“Mil desculpas que me desse, eu continuaria achando que procedeu mal comigo.” Evanildo Bechara (1976) Lições de Português pela análise sintática As concessivas “intensivas” são aquelas empregadas com a intenção de enfatizar “qualidade ou modalidade qualquer” (op.cit., p.132) Algumas expressões como “contudo, todavia, ainda assim, não obstante ou equivalente” quando localizadas na oração principal desempenham o papel de recapitular a concessão expressa na subordinada, destacando-a. Por mais... que; por menos... que; por muito... que. Os advérbios mais, menos, muito podem ser eliminados nesses casos. 1)“Por inteligente que seja, encontrará dificuldades em entender o problema.” 2) “Por mais que estude ainda tem muito que aprender.” 3)“Ainda que todos saiam, todavia ficarei.” 4)“Embora não me queiram acompanhar, ainda assim não deixarei de ir à festa.” Quadro 1: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Bechara (1976). 77 Autor Obra Definição Exemplos Evanildo Bechara (1976) Lições de Português pela análise sintática As conjunções alternativas quando indicam ações contrárias ou distintas que não configuram impedimento para a realização do fato declarado na oração principal também expressam o pensamento concessivo. 1) “Quer estudes, quer não, aprenderás facilmente a lição.” 2) “Ou estudemos medicina, ou sejamos advogados,conquistaremos na sociedade um lugar de relevo.” Quadro 1: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Bechara (1976). 78 Autor Obra Definição Exemplos Rocha Lima (1974) Gramática Normativa da Língua Portuguesa As orações subordinadas adverbiais concessivas (ou de oposição) expressam uma idéia contrária àquela expressa na oração principal, porém que não constitui impedimento para a sua realização. Nas orações desenvolvidas a concessão é expressa por meio das seguintes conjunções: ainda que, ainda quando, apesar de que, conquanto, embora, mesmo que, se bem que, sem que. O verbo, nesses casos, encontrase no subjuntivo. 1) “Ainda que eu vivesse mil anos, / jamais esqueceria aquela mágoa.” 2) “Embora se esforce muito, / não progride na vida.” 3) “Não progride na vida, / se bem que se esforce muito.” Rocha Lima (1974) Gramática Normativa da Língua Portuguesa As locuções “por mais... que”, “por muito... que”, “por pouco... que”, etc.; ou somente “por... que” também expressam a concessão nas orações desenvolvidas. 1)“Por mais forte que ela seja, / não resistirá a dor tamanha!” 2) “Por muito depressa que andes, / dificilmente o alcançarás.” 3)“Por verdadeiras que sejam tuas palavras, / ninguém acreditará nelas.” Quadro 2: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Rocha Lima (1974). 79 Autor Obra Definição Exemplos Cunha e Cintra (1985) Nova Gramática do Português Contemporâneo As orações subordinadas adverbiais são definidas por funcionarem como adjunto adverbial de outras orações e são classificadas de acordo com a conjunção subordinativa que as inicia. 1)“Ainda que não dessem dinheiro, poderiam colaborar com um ou outro trabalho.” 2)“O Albino, posto que homem correntão, ficou varado.” 3)“A regra era ir sempre desacompanhado, mesmo que levasse o gado até aos confins da serra.” Cunha e Cintra (1985) Nova Gramática do Português Contemporâneo Além das orações subordinadas desenvolvidas, em que o verbo encontra-se em sua forma finita, são apresentadas as orações subordinadas reduzidas, em que o verbo encontra-se numa de suas formas nominais. “/Mesmo sem saber/ se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas.” Cunha e Cintra (1985) Nova Gramática do Português Contemporâneo As orações concessivas podem ser intensificadas por meio das expressões por mais que, por maior que, por melhor que, por menos que, por menor que, por pior que; e ainda, mais que, maior que, melhor que, menos que, menor que, pior que, etc. “Por mais que quisesse, não conseguia decidir-se por nenhum.” Quadro 3: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Celso Cunha(1985) 80 Autor Obra Definição Exemplos Chaves de Melo (1970) Gramática Fundamental da Língua Portuguesa As orações subordinadas são definidas de acordo com o papel desempenhado por elas nas orações das quais são dependentes. As orações subordinadas adverbiais concessivas desempenham, dessa forma, o papel de adjunto adverbial de concessão da oração principal. “Ainda que todos estivéssemos certos da nossa salvação, devíamos fazer o mesmo, só por conseguir os conselhos evangélicos e buscar o maior agrado de Deus.” Chaves de Melo (1970) Gramática Fundamental da Língua Portuguesa As conjunções subordinativas concessivas são, para o gramático, as que “exprimem hipótese de raciocínio ou fato embargante”. Embora, conquanto, ainda que, se bem que, mesmo que. Chaves de Melo (1970) Gramática Fundamental da Língua Portuguesa O gerúndio circunstancial se caracteriza por desempenhar a mesma função do adjunto adverbial. O gerúndio concessivo expressa, assim, a circunstância de concessão e é equivalente à uma oração introduzida pelas conjunções concessivas embora, posto que. “E notem que Quincas Borba, por induções filosóficas que fez, achou que a minha ambição não era a paixão verdadeira do poder, mas um capricho, um desejo de folgar. Na opinião dele, este sentimento, não sendo mais profundo que o outro [embora não seja...], amofina muito mais.” Quadro 4: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Gladstone Chaves de Melo (1970) 81 Autor Obra Definição Exemplos Nascentes (1937) O Idioma Nacional As conjunções concessivas são responsáveis, de acordo com Nascentes (op. cit., p. 200), por ligar “emprestando à outra frase em que não figuram o valor de uma concessão feita.” Posto que, ainda que, embora, conquanto, se bem que, quando mesmo, que, posto, se bem, mesmo que, suposto que, apesar de que, nem que, ainda mesmo que, dado que, em que, por... que, por mais... que, por muito... que, por menos... que, por pouco... que. Quadro 5: Os mecanismos de expressão da concessão mencionados por Antenor Nascentes (1937). 82 VII – CONCLUSÃO O estudo da concessão sempre gozou de relevância na Tradição Gramatical brasileira, como expressão da maior importância que a Gramática atribuía à área da sintaxe. Nossa proposta procurou, portanto, a partir do levantamento dos mecanismos de concessão presentes nas mais representativas gramáticas brasileiras do século XX, fornecer uma investigação comparativa entre os diversos mecanismos lingüísticos classificados como concessivos em tais obras. Para tanto, a fundamentação teórica pautada na Historiografia da Lingüística com a qual nos orientamos nos possibilitou um distanciamento da metodologia científica utilizada nos textos da Gramática Tradicional, já que essa é uma condição primordial de qualquer estudo historiográfico. Dessa forma, procuramos mostrar os parâmetros para o desenvolvimento de uma pesquisa historiográfica, baseando-nos não só nos estudos brasileiros sobre tal corrente teórica, como também em autores da literatura estrangeira sobre o tema, como Konrad Koerner, entre outros citados a seguir em nossas referências bibliográficas. Estabelecemos, assim, uma aproximação com a metodologia historiográfica moderna e seus conceitos, o que nos auxiliou no exame das obras gramaticais e nos conferiu em relação a estas uma leitura livre de dogmas e de avaliações prévias. O levantamento dos instrumentos de expressão da concessão nas gramáticas brasileiras do século XX sob o prisma historiográfico nos permitiu entender o texto gramatical à luz da conjuntura intelectual da época em que foi produzido, de tal sorte 83 que pudemos avaliar as forças de cunho pessoal e social que interagiram para seu surgimento no cenário acadêmico a que pertence. Acreditamos que o nosso estudo possa ter contribuído para uma visão ampla e distanciada das obras gramaticais, bem como de seus autores, nos isentando de análises demasiadamente pontuais e, conseqüentemente, inapropriadas. 84 VIII – REFERÊNCIAS ANCHIETA, José de. Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Ed. fac-similar. São Paulo: Edições Loyola, 1990. 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