"Diário de Campo - As azenhas do Rio Boição" (Planeamento de Trabalho de Campo em Antropologia, ISCSP/UTL, Lisboa, 1984) UNIVERSIDADE TÉCNICA DE LISBOA INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICAS PLANEAMENTO DE TRABALHOS DE CAMPO EM ANTROPOLOGIA DIÁRIO DE CAMPO de Joaquim Evónio de Vasconcelos (Trabalho apresentado no âmbito da Cadeira Semestral do Curso conducente ao Mestrado em Ciências Antropológicas “Planeamento de Trabalhos de Campo em Antropologia” regida pelo Prof. Manuel Alfredo Morais Martins) Ano lectivo de 1983/84 Lisboa, Março de 1984 As Azenhas do Boição INTRODUÇÃO A primeira questão que se me põe é a do método, quer em relação à pesquisa, quer quanto à elaboração do próprio Diário de Campo. Que deverá ser este diário? Repositório de incidentes marginais, da ganga cerebral, de sentimentos ou emoções inoportunos ou instrumento descritivo para fundamentar o trabalho final sobre o tema? Obra literária, calendário ou ficha técnica? Ou nada disso? Ou tudo ao mesmo tempo? Já decidi, este diário vai simplesmente acontecer. Basta que o ensaio final seja disciplinado. Que ao menos aqui o devaneio se acasale com o rigor e a aridez dos números não ensombre a beleza da paisagem ou a alegria da descoberta. Aceitei o tema por atracção dos contrários. Nada como uma perspectiva ergológica para atalhar divagações especulativas. Pés bem assentes no chão. Problemas concretos com soluções adequadas e objectivas. Azenhas. Rio Boição. Óptima, a sugestão do Professor da Cadeira. Juntaram--se-me alguns colegas e o trabalho vai ser de grupo. Hesito. Não sei se o tempo disponível será suficiente para discussões colegiais. Compromisso ou consenso? Encontrámos uma medida equilibrada através da divisão de tarefas. Pesquisa comum, transferência dos dados recolhidos, sistematização individual por capítulos. À partida, um projecto dinâmico e evolutivo a ajustar face ao desenrolar dos acontecimentos e às possibilidades reais. Por fim, quatro abordagens delineadas: histórica, ambiental, sociocultural e tecnológica. Da pequena contribuição para um mais aprofundado estudo das tecnologias tradicionais e das comunidades em que se inserem contam as páginas deste diário. BOIÇÃO DO MEIO 11 Dez 83 LISBOA, 12 Dez 83. – Dos preliminares, antes de chegarmos a local já significativo para o objectivo da pesquisa, apenas referirei dois pequenos incidentes. Primeiro, o termos de arrepiar caminho pela ponte do Zambujal, devido ao facto de a estrada para Bucelas estar visivelmente cortada por abatimento de quase metade da sua largura por efeito das recentes cheias de 18 a 20 Nov. Necessário foi assim ir à volta, por Alverca, com a consequente abordagem de Bucelas pelo lado contrário ao acesso via Loures que antes prosseguíamos. O segundo, logo à entrada de Bucelas, lado direito, Café do Menino, pedimos quatro bicas e um copo de água, gestos acentuados devido à patente surdez do empregado. A semiótica não resultou por inteiro e, em vez de água, é-me servida uma aguardente. Nova explicação, risos, situação sanada com compreensão de parte a parte, referências ao alfaiate surdo de “Os Deuses devem estar loucos”. Somos quatro. Além dos colegas Maria Helena Samouco e António Boavida Pinheiro, acompanha-nos o Gabriel, que conduz a viatura militar em que nos deslocamos. ÉVORA, 25 Dez 83. – Só hoje, dia de Natal, vai ser possível aproveitar esta manhã calma, bem instalado no Convento da Graça, para retomar o Diário interrompido há duas semanas. E desde então já voltámos ao local, donde haver mais um diário em atraso. Depois do café daquele dia 11 Dez, em Bucelas, tomámos a estrada da Bemposta e pouco adiante perguntámos pelas Azenhas a um trabalhador que, num terreno à beira da estrada, por entre destroços das cheias, estava a “tentar salvar as vinhas para beber”. Sabia perfeitamente das Azenhas e aconselhou-nos a procurar o Sr. Augusto, que na sua ideia teria aí uns cinquenta anos. Tomámos logo à direita o caminho do Boição de Cima, ignorando um primeiro, através dum portão que conduz ao Boição de Baixo. Ainda orientados por um caçador cerca de meio quilómetro adiante, facilmente atingimos a margem direita do rio, onde um passante, já de idade avançada, nos indicou a casa do Sr. Augusto, ali mesmo quase defronte, do outro lado da corrente. Panorama envolvente nas proximidades do R. Boição Primeiros passos. Os colegas de Grupo vadeando o Boição. Reconhecido o local, logo verificámos que era possível a passagem a vau, utilizando umas poldras ali colocadas para isso. Tiramos fotografias deste primeiro passo aventuroso e subimos uma vereda de algumas dezenas de metros, encaixada entre muros de pedra, perante o olhar complacente de dois cães silenciosos e pacíficos. A sair, atravessando a vereda no seu topo, enxada às costas, ia um homem a quem perguntámos quem era o Sr. Augusto. Era ele mesmo. Ia trabalhar na sua vinha, lá um bocado mais abaixo. Dissemos-lhe o que pretendíamos, pousou a ferramenta e começou a falar com a maior naturalidade, prontidão e eficácia. É um homem seco, rápido de raciocínio e muito arguto, além de possuir uma memória notável. Tivemos sorte com este informador. Chama-se Augusto Frutuoso Machado, nasceu em 27 Jan 26, é casado com a D. Claudina, não têm filhos. Seu pai, Francisco Machado, morreu há sete anos. Desde 1967, cheias de Novembro, que a sua Azenha deixou de trabalhar. Até então, trabalhava para clientes duma área muito grande, que abrangia S. Tiago dos Velhos, Mourão, A-dos-Velhos e até a freguesia de Calhandriz, em Alverca. Eram os moleiros que iam buscar o grão e entregar a farinha. O transporte era assegurado por gado cavalar, burros e machos, com os “talegues” em cima. Cada animal carregava aí uns 200 quilos. Faziam a viagem duas vezes por dia, normalmente, com quatro animais. O pagamento ao moleiro era da ordem de um a dois quilos por saco. Pesava-se o grão, tirava-se o nosso “restante”. O Sr. Augusto começou nesta faina quando tinha sete anos. Era tão pequeno que os fregueses é que tinham que pôr e tirar os sacos dos animais. A Azenha já vem do seu bisavô, que a comprou com muitas dificuldades aos proprietários da Quinta do Boição de Cima, que não tem moagem. Do ponto de vista arquitectónico, existem duas casas justapostas, colocadas perpendicularmente uma à outra, sendo mais extensa a mais afastada da margem e muito mais antiga a que está sobre o rio, a azenha propriamente dita. O Sr. Augusto estima que terá duzentos ou trezentos anos. Quando precisou de fazer algumas obras, verificou que a casa mais recente tem incorporados nos seus alicerces bocados de mós, o que justifica a anterioridade da azenha. Pacientemente, o Sr. Augusto explica o funcionamento. A água vinha pela levada e fazia andar a roda de água, onde tinha os cubos, metade da qual ficava debaixo de água. No eixo, mas já dentro do “inferno”, havia a outra roda, a “entrosga”, onde estava a engrenagem, trinta e dois dentes, que ligava ao carreto pequeno, só com seis fuseis. O veio do carreto é o das mós. Cá em cima havia uma caixa – o “teigão” – onde se colocava o grão que caía para o olho da mó através duma quelha. Os piais eram de madeira de carvalho. Havia ainda os cambeiros para amparar a farinha, e duas tábuas que eram as guardas para não a deixar espalhar à volta. Em frente, um pano, “o panal”, em linho ou algodão. Com o rodo puxava-se a farinha. Havia ali dois casais de mós. As de trigo são de pedra de Pêro Pinheiro e as do milho de “granizo”. Ainda ali se encontrava o aparelho de aviar o trigo, o “aviador”. A D. Claudina acercou-se do grupo e aproveitei para libertar parcialmente o nosso informador de tão cerrado e até indisciplinado bombardeamento de perguntas, desviando para ela a colheita de algumas confidências. Já cá está há 31 anos. Quando foi das cheias de 67, o Estado (a Cruz Vermelha ou sei lá), deu dinheiro a alguns, um deles até foi fazer uma moagem em S. Tiago. Ao ficarem sem trabalho, o marido foi trabalhar para a construção civil e ela “a dias”. O sogro pediu até luz mas não a têm, pois aquilo até podia trabalhar a electricidade. “Sabe, há pessoas mais metediças e quem não tem padrinhos morre moiro!”. Voltando ao Sr. Augusto... A queda de água era forte. O açude e o resto abalou tudo com a cheia de 67. Quando deixou de trabalhar na azenha, o pai comprou um moinho na Serra d’Arrota, a três ou quatro quilómetros de Bucelas. Ali havia três moinhos, mas só um é que era do pai e até tinha um motor a gasóleo. O pai trabalhou aí uns dois anos e depois foi para S. Tiago dos Velhos, para um moinho que ainda hoje funciona, perto do lagar, e que é do tio. O Sr. Augusto trabalha na construção civil já vai para quinze anos. No exterior explica que, lá em baixo, onde estão as árvores grandes, é a Quinta do Boição de Baixo. Aqui é o Boição do Meio e há ainda o Boição de Cima, aonde pertencia este. Via-se moer trinta e seis moinhos nesta zona. Hoje, o trabalho de moagem é mais bem pago, em cada 12 kg aí 2 ou 3 são para o moleiro. A sua Azenha tinha alvará e em 1966 ainda pagou a contribuição de cerca de 500$00 (cont. industrial) e cerca de 30$00 (licença de porta aberta). Num livro grande fazia o registo dos fregueses que tinha, quanto tiravam em cada saco, etc.. Quando foi da guerra, os fiscais vinham cá quase todos os dias. O alvará está em nome de Francisco Machado, seu avô, e lembra-se de tudo isso Ter sido regularizado quando era pequenino, teria aí 10 ou 12 anos. Agora tem 58. Quando a azenha foi construída não havia contribuição nem nada. Hoje, o moinho de vento está isento de contribuição se for só para fazer farinha para si. E se o senhor quer que lhe faça a sua “para exempros”, tiro a minha “maquia”. Para comprar e vender é que se tem de pagar. E neste momento há uma deliciosa interrupção da D. Claudina: - “Sr. Augusto, aonde está o sarrote grande!? Prosseguindo, diz o nosso informador que aí há uns trinta anos, a seguir à guerra, só trabalhavam nisto, depois já não estavam só ‘atidos’ a isto, estavam também atidos à fazenda. A família era só ele, a sua mulher e o seu pai. O Sr. Augusto é filho único. Ao perguntar-lhe quem fazia a escrita, respondeu: - Era o meu pai, eu nunca fui à escola. Quando isto parou, acabou-se, só há aí um livro de fiados. Quanto ao pai, eram seis irmãos, 4 rapazes e 2 raparigas. O pai era o segundo filho e só ele e a irmã mais nova é que tinham a 4.ª classe. - “Eu não fui à escola, tinha de ir trabalhar, não era obrigado a pôr os filhos e os netos. Ainda apanhei algumas vezes por ir a algumas lições”. Fui à tropa, em Setúbal, e quase todos os dias tinha que ir a Albarquel. Assentei praça em Oeiras e fiz 16 meses e 8 dias de serviço. Tinha um calendário para ir abatendo. Cheguei a estar 3 meses sem vir a casa. De Setúbal até Lisboa, com barco, pagava 7$70 e do Terreiro do Paço a Bucelas 8$00. O ano passado fui à festa de N.ª S.ª da Boa Viagem à Moita, e já paguei 60$00. De pré, o mais que recebeu foi 25$00. Além do pré tinha prémio de especialidade, que recebia a meio do mês. (É óbvio que o Sr. Augusto foi artilheiro). Casou aos 27 anos, era para Ter sido a 27 Jan, seu aniversário, mas foi a 22 Fev. Namorou 13 meses. Antes disso, quando tinha aí 14 ou 15 anos, namorou uma moça de 13. “Da outra, fizemos desvios, desta não tenho filhos!”. Continuando a falar da sua vida, o Sr. Augusto diz que, ao Domingo de manhã, ainda gosta de ir à missa – onze, meio-dia. Na parede interior da azenha tem panfletos de propaganda eleitoral do PS, PSD e Ramalho Eanes. Ainda dentro da Azenha, o Sr. Augusto explicou-nos o que era o “apajadouro”, uma tábua que, quando se puxava para cá, por dentro, fazia a água cair em cima da roda. Funcionava praticamente como o sistema de arranque do conjunto, desempenhando também a função de desligar. O trigo, depois de estar aviado, o que era feito pelo “aviador”, era regado com um regador pequenino, aí de ½ litro de água, que era utilizado para o grão ficar mais húmido e punha-se então na alcofa. O trigo inchava e a farinha saía mais clara e o farelo menos cortado mais aberto (asa de mosca). Costumava comprar 10 sacos de 66 quilos – a que se chama um “mói”. Só com a quebra – a mó também come, iam uns seis quilos, fora a maquia. Mostrou-nos depois alguma utensilagem que ainda ali existe, “crivos” diversos e uma “bandeja”. Esta servia para quando o trigo tinha muita pedra depois de passar ao aparelho, separá-la balanceando de trás para diante. Fomos depois ver os exteriores. No curral dos animais chegou a haver quatro animais e depois dois. Nesta altura já o Sr. Augusto decidira não ir à vinha. A parede exterior, segundo o Sr. Augusto que já viu a sua secção, no telhado, é de reboco de massa e cal, enquanto a interior é só de barro. Existem ainda sinais evidentes de calcário na parte exterior das paredes, depósito que assinala o sítio em que rodavam as rodas. “Tirei a roda porque já estava podre... cheia rebentou mas foi com o açude e com o princípio da vala”. Esta azenha, em toda a região, era a que tinha o açude a maior distância. A levada e a vala eram limpas todos os anos, ou ano sim, ano não, com pás de valar. A levada é de cimento e a vala de terra. Deslocámo-nos então a cerca de 200m a montante. Vamos conversando com o Sr. Augusto, que se sente feliz por ser o herói da festa, papel que muito lhe apraz como saudoso apaixonado da sua azenha. A paisagem é bela, ouve-se murmurar a água que corre e nos obriga a falar mais alto, mas sente-se a nostalgia dum engenho que está parado, mutilado na sua juventude por uma cheia que veio mudar os destinos de algumas famílias. No brilho dos olhos do nosso informador, na rapidez reflexa com que se recorda de todos os pormenores, espelha-se o prazer de todo este recordar. E parece-me fácil gostar duma azenha como dela gosta o seu dono, como se duma coisa viva se tratasse. Não fora todo o entusiasmo narrador do Sr. Augusto e a sensação seria a de um autêntico relógio de parede parado Local onde existiu o açude da Az. do Sr. Augusto Machado. Ao fundo, parte da estrutura de pedras deixada intacta pelas cheias de 67. E ali estavam as ruínas do açude, sinais do começo da vala e do sistema de comportas. Aí fizemos fotografias, remetendo para a ficha técnica os pormenores mais significativos. Os açudes eram construídos pelos proprietários das azenhas. Este, nem com dois mil contos voltaria a ser o que era. Além da destruição implacável da força das águas (de 67) a vala está completamente assoreada. Toda a área a montante é um autêntico repositório de detritos e sedimentos até quase à altura que seria a normal da água. Quanto às comportas, eram quadrangulares, de cerca de 1m de lado, de madeira de pinho – tábua de solho tosco – e tinham um postigo até uns 10cm desviado do fundo. Jogavam numa calha de pedra que ainda é visível. De regresso à Azenha, continuamos a conversar. Diz-nos que, à saída de Bucelas, havia uma Azenha de rodízio que tocava duas mós por meio de engrenagem. Na sua azenha, como aliás em outras, existia um autêntico dispositivo de despertar. Enchiam o teigão e iam dormir. Para fazer dois móios em 24 horas era preciso acelerar. Em média faziam dez sacos em 24h. Um conjunto de objectos metálicos atados a uma das extremidades dum cordel caía sobre a mó quando a outra extremidade, retida por uma espera no fundo do teigão, era solta por falta de peso. O ruído produzido era um verdadeiro despertador. Naquele pequeno e simpático vale do Boição do Meio existiam três azenhas. A de cima, do Sr. Augusto. A do meio desapareceu com a cheia de 67 e tem no seu lugar uma casa de veraneio. A de baixo, que era do Manuel Ferro Velho, ainda está inteira no interior mas também perdeu o açude. “Trabalhávamos todos separados mas também dávamos uma ajuda quando era preciso”. Era um assunto a aprofundar, este da solidariedade entre os moleiros. No que respeita a “distraimento”, o Sr. Augusto ia ao lugar da S.ª da Ajuda (festa de 8 Set), à Festa de Bucelas, Ano Novo, Natal, “e pronto”. Às vezes ia a pé até Trancoso, juntava-se com os rapazes da minha geração. Quantas e quantas vezes vinha dos bailaritos e já vinha atrás de mim o pessoal que vinha trabalhar... E o meu avô tinha bronquite, já estava a pé. Então passei a ficar com a minha camada e a minha roupa na casa de cima para não ser apanhado. (Esta casa dista cerca de 50m do conjunto das outras duas já referidas). Às nove, nove e meia era o jantar, mas aí havia mais sono que fome. O meu avô não se importava que eu saísse aí às 3 ou 4 horas, o que queria era que voltasse ao anoitecer. Eu queria era andar na galderice, enquanto houvesse acordeon e uma rapariga não queria sair, tinha que ser eu a fechar o baile!” A alimentação fazia-se com produtos da terra, coelho, às vezes iam comprar alguma carne ou chouriço. Mas não era má. A minha mulher era de origem mais pobre do que eu. Aqui se regista uma ementa diária média de que o Sr. Augusto se recorda: Almoço – 9h –Café, pão (o que tivesse na vontade), queijo (eu gostava muito era sopas de café e azeitonas, não, nada de sopas de vinho!) Jantar – 12/13h – Batatas com bacalhau, sardinha assada, chouriço, açorda. Ceia – à noite, nove, nove e meia. Se andava fora, saía almoçado e vinha cear. Ao chegar o moleiro para fazer a entrega da farinha havia quem fosse buscar qualquer coisa para se comer. Ia por A-dos-Potes, ao pé de Alverca à curva da morte, mas aí, se estavam a almoçar nem interrompiam e eu tinha de descarregar e deixar ficar os sacos para os entregar só à volta. Já quase no fim da nossa conversa, longa e útil, aprazado que foi o regresso para Sábado, 18 Dez, às 14h, ainda nos foi indicada a moagem do Sr. Luís Fernandes (Luís Farrapo) em Vila Nova. No fim de tudo, e voltando ao assunto da sua vinha, ainda fiquei a saber que o Sr. Augusto costuma fazer o seu vinho, tem uma produção de cerca de 200l/ano e só compra quando lhe falta. E ainda uma outra palavra, sobre iluminação. Havia 3 candeeiros de azeite e ainda cá estão. Agora, usamos candeeiros a petróleo e a gás. Cada canto da chaminé tinha uma candeia. Quando se ia deitar, cada um levava uma – ou um copo com sal e uma torcida. Havia ainda mais dois candeeiros junto da azenha. Só mais tarde é que começou a haver um colchão no moinho, deitava-me era nos sacos de milho, que são mais quentes do que os de trigo. No cambeiro estava a caixa de fósforos. O meu avô, durante a noite, tomava sempre dois ou três comprimidos. O candeeiro servia para aquecer a água do púcaro. Há aqui um entrosamento muito interessante de verificar. Além da sua função própria, as peças da azenha, conforme as circunstâncias também constituem peças de mobiliário. Estamos perante soluções expeditas, daquelas a que a necessidade e o hábito obrigam. À laia de encerramento deste dia proveitoso, parece importante sublinhar que tudo, ou quase tudo quanto foi dito, se refere a uma azenha que, como tal, já existe desde 1967. Mas o entusiasmo e a capacidade descritiva do Sr. Augusto são tais, que é fácil Ter a impressão de ver e ouvir tudo a funcionar no ambiente próprio, a que apenas faltam as mãos, cara e roupas enfarinhadas. E como conclusão deste primeiro dia de trabalho de campo, parece que a azenha não passa dum pretexto para começarmos a imiscuirmo-nos na vida duma família ou duma comunidade sem a vibração das quais seria extremamente árduo fazer um estudo descritivo de base exclusivamente tecnológica. Aqui reside o grande Dom das coisas culturais. Não existem fenómenos separados. As azenhas do Sr. Francisco Machado, as outras azenhas, as famílias envolvidas e a sua inserção territorial, tudo são elementos dum sistema, pedaços que não podem viver isoladamente e interpretáveis apenas no seu conjunto. Será que este estudo das tecnologias tradicionais está destinado a acabar numa monografia completa da região? E qual região? BOIÇÃO DO MEIO E VILA NOVA 17 Dez 83 LISBOA, 28 Dez 83 – Inicio mais uma vez este diário com atraso, mas com o propósito de que os próximos sejam elaborados mais sobre o acontecimento. De qualquer modo, não me parece mau deixar passar um certo tempo sobre a deslocação ao campo. Não se perde o detalhe já registado mas ganha-se em perspectiva. Era Sábado e por acordo entre todos saímos de Lisboa, via auto-estrada do Norte, às 14h15m. Tripulação, a colega M. Helena, o B. Pinheiro e eu próprio. Estamos a utilizar o meu carro em vez do de matrícula militar em que nos deslocámos ao Boição pela primeira vez. Pelo caminho, dividimos as pequenas tarefas que vão preencher o nosso dia. O colega B. Pinheiro ficaria na Azenha da Vila Nova enquanto a colega M. Helena entrevista a mulher do Sr. Augusto e eu próprio, desta vez ordenadamente e de acordo com uns quesitos de que sou portador, irei recolher os dados descritivos e tecnológicos, fotografando tudo o que for pertinente. Fomos ainda todos juntos até a azenha da Vila Nova, do Sr. Luís Farrapo. Depois de passar um periclitante pontão guardado por um cão ligado por argola a um arame longitudinal e de cujo pacifismo nada sabíamos, chamamos Ó da casa! A uma janela do 1.º andar surgiu uma senhora de meia-idade, sem qualquer aspecto de moleira que, depois de informada da razão da nossa visita, disse que o pai se encontrava na padaria, junto à estrada, e que só ele nos poderia dar informações. Subimos a inclinada rampa de regresso à estrada e, depois de verificarmos que o Sr. Luís Fernandes (Farrapo) regressaria dentro de momentos, prometemos voltar para recolher o colega B. Pinheiro às 16h30m e dirigimo-nos para a casa do Sr. Augusto com uma óbvia hora de atraso. Ao chegar ao rio logo verificámos que a corrente era mais forte, até pelo ruído ensurdecedor que fazia, e que o volume de água não permitiria a passagem a vau como na semana anterior. Nem se viam as pedras que tinham servido de poldras. Decidimos continuar até à ponte, junto ao antigo açude do Sr. Augusto, aí estacionar o carro e seguir a pé para a azenha. Face à manifesta impossibilidade de estacionar sem obstruir a precária via enlameada, a colega seguiu a pé pela margem esquerda, para ganhar tempo, e eu voltei pela direita, evitando de novo e cautelosamente a parte abatida do caminho para ir estacionar em local mais apropriado. E já que o local de estacionamento acabou por ser quase contíguo à Azenha do Manuel Ferro Velho, decidi efectuar um rápido reconhecimento ao local. Por ali andava um pastor com ovelhas e ali mesmo junto à casa, moderna e contígua à azenha, chega entretanto a D. Claudina, esposa do Sr. Augusto, que vai trabalhar a dias. Disse que o Sr. Augusto tinha esperado por nós mas como já passava da hora, tivera que sair. Havia um baptizado próximo e tinha ido para esse local, lá mais acima da encosta. Voltando ao caminho anterior fronteiro à casa do Sr. Augusto, mas desta vez a pé, a colega, do outro lado, já informava que não encontrara ninguém em casa. Gritando por cima do ruído da água, combinámos ir ter junto da Azenha do Ferro Velho, onde me antecipei, falando com o pastor, primeiro acerca do caminho, depois acerca da azenha. A relativa frieza do Sr. Pedro (assim se chama) só se atenuaria depois de nos ver falar com a D. Claudina e de perceber que poderia dar folga à sua desconfiança inicial. Começou por dizer que o caminho de pé-posto em que estávamos era público mas que os da Quinta (do Boição de Baixo) o tinham fechado mais abaixo com arame farpado. Quanto a chaves para visitar a Azenha, nada feito. Tratava-se de objectivo de partilhas litigiosas e era muito difícil localizar qual dos herdeiros estava de posse dela. Mas dizia, e era visível, que uma das portas, a do lado do rio, estava apenas trancada e outra fechada com um cadeado. Entretanto, regressava a colega e ambos falámos com a D. Claudina. Que tinha muito que fazer, que a altura era má, o marido também tivera que sair, que só depois do Natal, que ia passar à sua terra – Arruda-dos-Vinhos – é que poderia falar connosco. A atitude era de completa frieza se comparada com a alegria e entusiasmo hospitaleiro da semana passada. Entregámos-lhe o bolo-rei e os doces com que tínhamos decidido obsequiar a família. A sua atitude foi de agradecimento cerimonioso, para que estiveram a maçar-se, se estivesse em casa também tinha uns bolos para nos dar. Quanto à chave da azenha, acrescentou o precioso elemento de que o Sr. Pedro a tinha e que, se quisesse, poderia perfeitamente abri-la para a vermos. Aprazámos nova visita ao casal Machado para o dia 7 Jan 84, Sábado ás 14h, e lá deixamos a D. Claudina com a sua faina de mulher-a-dias na casa da D. Lourdes. O Sr. Pedro Augusto Vitorino (que mais tarde soubemos, na padaria da Vila Nova, que tem por alcunha hereditária “o comboio”, apascenta um rebanho de 29 ovelhas. Começando por falar de si próprio sem reservas, diz que trabalhou na Quinta do Boição de Baixo durante mais de 20 anos, tendo sido porqueiro durante 4 ou 5 anos. Competia-lhe ultimamente um salário de onze contos, mas o actual patrão, que é fascista, declarou só cinco e por isso é que está a receber um subsídio da Caixa muito pequeno. Fez-lhe um barraco que não presta, para onde nunca devia ter ido, ali no alto do monte, já que tinha direito à residência dentro da Quinta e onde está não tem condições nenhumas. O antigo patrão, sogro do actual, era outro género de pessoa. Quanto a este, corrige-me, não é do género fascista é mesmo fascista. No que à azenha concerne, era dos avós da mulher. Para ver por dentro o melhor era procurar o Sr. António, em Sobral-de-Monte-Agraço. Existe um litígio de partilhas, negócio complicado. A sua saúde não é boa, regelou-lhe o sangue do joelho para baixo e, segundo o médico, tem que andar, senão… cadeira de rodas. Entrementes, não vê inconveniente que a colega M. Helena vá falar com a sua mulher ao barraco. A D. Claudina já nos dissera que não eram casados, assim à laia de prevenção, como se fosse pecado, mas que ele não se importava. Continuando a apascentar as ovelhas, ia dizendo em resposta que uma das mais pequenas poderia valer quatro contos. Pedrada aqui, praga acolá, o cão ainda é novo e não ajuda muito, vai contando da sua vida entrecortando a história com um ou outro elemento sobre a azenha. Mas a mulher é que sabe mais do que ele. A casa dos avós da mulher era a casa mais rica do local. Era uma moaria valente. O rio nunca secava, havia, bogas e eirozes que vinham com a maré, era só apanhar com cabazes. E havia quatro cabeças de gado, 2 machos, uma mula e um burro. No fim de tudo, morreu na azenha o tio da mulher, cheio de piolhos, uma vergonha. A sua sogra é que paga a décima da azenha e dos terrenos. Ao conjunto pertenciam também dois moinhos na serra d’Arrota, um deles até foi ardido. A certa altura o Sr. Pedro tornou-se mais comunicativo, principalmente depois de eu lhe ter mostrado algumas gravuras de azenhas e desenhos dos mecanismos. Disse que já tinha percebido de que se tratava, que tinha a chave da azenha e que ma poderia mostrar apesar de não ter ordem para isso. Bastava que viéssemos aí num dia pelas 10 horas da manhã, pois só saía com as ovelhas à tarde. Fuma Kentucky, está habituado a esta marca já há muitos anos. As suas ovelhas estão marcadas com placas metálicas nas orelhas, sinal de que foram examinadas pelos serviços veterinários. Só um mês depois do exame é que as poderia vender ou abater mas esse prazo já passou há muito tempo. Tive entretanto que despedir-me para ir buscar o colega B. Pinheiro, o qual encontrei muito satisfeito com a recolha que havia conseguido. Fomos depois ter a casa, ao barraco do Sr. Pedro, onde a colega falava com a mulher. Ambiente sórdido, uma só divisão, trata-se de um contentor de madeira e tem um presépio no chão, logo ao lado esquerdo da entrada. No caminho de regresso, cruzáramo-nos com o Sr. Augusto que ia à Vila, garrafão empalhado na mão. Cumprimentou-nos efusivamente, agradeceu os doces, mais um abraço, lá nos espera no dia 7 Jan, conforme combináramos com a mulher. Aproveitei para lhe mostrar um desenho de rodas, entrosgas e outros mecanismos, os quais começou a baptizar imediatamente. A ponte, o bácoro, etc.. A sua entrosga tinha 32 dentes. Depois de um dia aparentemente desencontrado ou mal começado, comentávamos, no regresso a Lisboa que, afinal, as coisas se tinham composto bastante bem. Chegámos a Lisboa às 18 horas. Em retrospectiva sobre os sentimentos que me assaltaram nesse dia, julgo que não vai ser fácil manter toda a neutralidade acerca das misérias que vamos encontrando. Reforça-se a ideia da globalidade já anteriormente sentida como essencial. Recordo os prosélitos da Antropologia militante. Pelo menos, compreendo-os. E o tempo, o factor tempo. É mais do que escasso para reunir matériaprima que possa considerar-se significativa. Há muita ganga a destrinçar do essencial. Há que ser rigoroso, ater-se aos verdadeiros documentos que vamos encontrando e interpretá-los através dum método eficaz Estudo definitivo ou simples relatório de progresso? Estou convencido de que a pressão do tempo, manifestada através das exigências académicas de apresentar trabalho, é um elemento que contraria a seriedade deste estudo. O tempo faz parte do conjunto de ingredientes a incorporar. BOIÇÃO DO MEIO 7 Jan 84 LISBOA, 15 Jan 84. – Hoje contamos com o quarto elemento do grupo, que ainda não tivera possibilidades de nos acompanhar nas incursões anteriores. Trata-se do colega João Vicente Martins, que chegou a minha casa ainda mais cedo do que o combinado, às 8h45m. Saímos para ir buscar a colega M. Helena às 9h. O grupo está desfalcado do B. Pinheiro, que se encontra doente. Dia de muito mau começo. O meu carro tinha um furo no pneu traseirodireito. Substituímo-lo pelo sobressalente. Por insistência do colega Martins, tentei remediar a questão de levar um pneu de reserva em condições de rolar. Tinha razão. A análise dos restantes determinou que, por razões de segurança, tivesse de adquirir quatro pneus novos quando nada o faria prever senão a péssima qualidade do fabrico. Foi o colega que passou o cheque, no regresso lhe daria o meu de igual valor. Tudo isto nos fez incorrer num atraso de cerca de uma hora e meia. Quando chegámos a casa do Sr. Pedro ele não estava, tinha ido a pé até à Bemposta, por um caminho de pé-posto quase directo. Deixei o carro estacionado quase à porta do Sr. Pedro, já virado para baixo sobre as irregularidades do caminho agravadas pelas últimas chuvas. Regressado o Sr. Pedro, lá fomos com ele e com a mulher, a pé, a caminho da Azenha. Durante as duas ou três centenas de metros de percurso, lá vai o Sr. Pedro a queixar-se destes “comunas”, destes comunistas, esclareceu, que pensam que é tudo deles. Refere-se ao estado lastimoso do caminho, cheio de derrocadas. A Câmara limpou-o deitando as pedras, pedregulhos enormes, para o lado de baixo. “Quem é que as vai tirar dali? Eu cá não posso!”. Ao seguir pela margem direita do rio, já perto da Azenha, mostra que o caminho antigo, de pé-posto, foi alargado para dentro à custa duma faixa de terreno. Refere-se ao litígio que daí decorre, que o terreno é seu e que vai ganhar a causa. Abordámos a Azenha pelo lado do rio, por detrás, e parámos primeiro ao pé da roda a que decidimos chamar do Moinho n.º 2, que é a que está mais inteira. A outra está completamente desfeita. O Sr. Pedro começou por dizer o nome que se dá ao apoio do aguilhão do eixo, o apoio grande. Chama-lhe enxáusso (ou xausso?) e diz que ali existia uma chumaceira de bronze, dentro de que trabalhava o eixo para não se gastar. O eixo é de carvalho e era feito pelo seu sogro ou outros mais carpinteiros de obra grossa. O sogro também trabalhava no campo, não era moleiro, e também fazia arados, charruas e madeirava telhados. Explicou que a moenda do milho era a de trás, a que está destruída e a que convencionámos chamar a n.º 1. Diz que, lá dentro, as mós são iguais, as pedras para o milho é que são picadas mais largo e as do trigo mais fininhas, o material é o mesmo, a picadeira é que é diferente. Chamou calha e levada àquilo que o Sr. Augusto chama bica e cano. Há que ter em atenção que, não tendo nunca sido moleiro, não se pode esperar que o Sr. Pedro seja um especialista nestas matérias, donde há que confirmar uma parte substancial das suas declarações. Voltámos atrás, subimos ao nível da levada e ouvimos a sua explicação perfeitamente plausível sobre o funcionamento da comporta. A Azenha do Ferro Velho (AFV), vista da margem esquerda do Boição. O Sr. Pedro explica o funcionamento da comporta da AFV, indicando como jogava o postigo e onde estava pendurado. O postigo era posto do lado donde vinha a água, havia um pau horizontal dependurado atravessado, aí uns dois palmos acima do bordo superior da pedra, que servia para amarrar o postigo. À entrada da Bica n.º 2, ao mesmo nível da entrada do cano n.º 1, havia uma divisão de madeira longitudinal que repartia a água, sem postigos nem comportas. Parece que seria apenas um septo vertical colocado na extremidade mais avançada da levada. Ao chegar à entrada da Azenha, lá estava uma ferradura no exterior, sobre o lado superior direito da ombreira da porta. E afinal não era preciso chave para nada, a porta estava apenas presa por uma tranca, sem segurança nenhuma, colocada pelo exterior e mantendo-a puxada, já que abre para dentro. O interior é um autêntico caos em desalinho total, cheiro a bafio, mobílias e restos de mobílias de mistura com os mais diversos utensílios, tudo sórdido e bolorento, teias de aranha habitadas ou desertas e cheias de lixo, bocados de manta e roupa sujas e empapadas. O recinto é mais ou menos rectangular, com os dois casais de mós do lado direito. Por cima, existe um sótão sensivelmente da mesma dimensão, para onde se sobe por uma escada de pedra ao fundo, perpendicular à parede direita que é a que corre paralela à corrente do rio. No sótão existe uma porta por onde se passava para a casa anexa, que era a residência. Ao cimo da já referida escada há uma janela de dimensões reduzidas a qual, mesmo aberta, em quase nada contribui para que a escuridão deixe de ser total. E estamos desprovidos de lanternas, viva o planeamento! O Sr. Pedro chama batente ao que o Sr. Augusto chama cadela e também é conhecido por cachorrinho e, segundo o colega Martins, ramela. Serve para fazer vibrar a quelha do teigão e assim apressar a queda do cereal. Depois de uma rápida explicação de como se desmontam as mós para picar, confirma que ambas são da mesma pedra, mas uma mais dura que a outra e que são de Estremoz. Sobre uma trave do teto, logo à entrada, está uma gravura do Anjo Custódio da Nação, que é o Anjo de Bucelas. Depenicando no meio de toda aquela confusão, lá fomos descobrindo artefactos e utensílios que o Sr. Pedro vai tentando descrever do ponto de vista de funcionamento. Lá está um aviador, com todo o aspecto de ainda poder funcionar, e o Sr. Pedro diz que sim, que está em boas condições. E vão-se identificando cunhas, colete, cepo, alqueires, pá, uma caixa de recepção do aviador. Entretanto, demos atenção ao sistema de transmissão do movimento do veio da mó para o tambor do aviador, prefigurando a posição em que teria de estar colocado para que funcionasse em conjunto com as mós. Aviador da AFV, reconstituído com as peças que foi possível encontrar. Falta-lhe a “ciranda” ou “joeira”, entre o teigão e o funil. Idem, colocando em evidência o lado contrário da tampa, onde está o funil. Os colegas apontam para as esperas de fixação da tampa. A extremidade do funil fica inclinada ligeiramente para dentro do aparelho O mesmo aviador visto de topo e colocando em evidência a roda coroa que vai receber o movimento rotativo do pinhão de ataque que colocámos em cima e à esquerda. A maquia era tirada antes, parece que era aí de um quilo por alqueire, diz a D. Maria da Purificação, mulher do Sr. Pedro. E acrescenta que esse seu primo Augusto, lá da moagem em A-de-Mourão é que sabe explicar tudo, que é moleiro. A explicação do Sr. Pedro sobre o funcionamento do aviador não foi muito conducente, o que também não era de estranhar, pois parte dos seus componentes estava desmontada. Conseguimos sem dificuldade colocar o aviador no exterior para o montarmos devidamente e estudarmos em pormenor o seu funcionamento. O nosso pastor seguira entretanto a buscar o seu rebanho, que já eram horas, mas nós continuámos com a D. Maria a fazer as honras da casa. E não largámos o trabalho sem Ter colhido todos os elementos pretendidos, quer medidas quer fotografias, que se remetem para as fichas técnicas. Neste momento era crescente a nossa apetência para ir até o “inferno”, depois de muitas buscas no meio de toda a lixeira do soalho lá se descobriu onde era a entrada, que deixámos de novo tão camuflada quanto possível, coisa fácil com tanta matéria-prima. A D. Maria insiste que vamos ao inferno, consta que os seus familiares esconderam lá alguns valores. Tento explicar-lhe que, se esse é o caso, mais uma razão para não metermos o nariz no que será apenas um assunto privado da família. Ainda antes do almoço fomos a casa do Sr. Augusto, a dizer que seríamos forçados a chegar um pouco atrasados. A D. Maria acompanhou-nos. Era de novo possível a passagem a vau e eu fui à frente, seguido do colega Martins. A D. Claudina tem más notícias para nós, diz-nos que o Sr. Augusto teve que sair por ter recebido notícias da doença duma tia que mora para os lados de Vila Franca e, como não veio na camioneta da uma, só deve chegar depois das cinco e meia. Chama entretanto a D. Maria, que ficara com a Colega no outro lado do rio, tendo ambas vindo ter connosco à porta da casa onde nos encontramos. A D. Claudina não quer assumir compromissos sobre dia e hora para voltarmos e prosseguirmos o trabalho. “Apareçam, e se calhar...” Algo se deve ter passado para esta atitude, talvez a isso não seja estranho facto de verificar que a sua azenha, para nós, não tem o exclusivo da região. Pode até haver antigas malquerenças para com as pessoas que temos interrogado. Perguntámos pelo inferno da sua Azenha e mostrou-nos que a entrada está completamente obstruída por bocados de lenha e outros objectos, desencorajando obviamente qualquer tentativa de penetração. Noto que tenho um alto na testa, do lado direito, dói e arde e logo a ilustre assembleia aventa as hipóteses de peçonha ou mordedura. A D. Claudina vai buscar um frasco de álcool e algodão. Lavo as mãos primeiro, estou sujo que sei lá, de tanto mexer no meio do lixo. Conforme me inclino, A D. Maria tece um comentário ao facto de usar cuecas, que vê marcadas nas calças. Pede desculpa pela graça e parece que preferia ou pretendia que usasse ceroulas, como será comum na região. Coloco álcool na testa, lembro-me do discurso do Papalagui, espécie de antropologia centrada no paciente. Já passa das duas horas. Tentámos planificar o que vai ser a parte da tarde, já que não dispomos do Sr. Augusto. A D. Claudina empresta-nos uma lanterna de bolso, para, depois do almoço, descermos ao inferno da Azenha do Ferro Velho. Lá nos dirigimos a pé até o carro. O apetite é muito e começo a sentir uma certa fraqueza por Ter estado tanto tempo sem comer nada. De qualquer modo, a manhã foi lucrativa do ponto de vista da pesquisa e esse é que é o objectivo da nossa presença por estas terras do Boição das Azenhas. Cerca das 14h30m começámos a encomendar o almoço na sala interior do Café do menino, que já reconhecêramos de manhã. O vinho é bom, o resto é normal e não é barato. Depois do almoço, demorado devido ao movimento da casa, chegámos à conclusão de que já era tarde demais para iniciar a aventura do inferno, especialmente aquele e nas condições precaríssimas em que devia encontrarse, cheio de lama das recentes cheias, como já nos advertira o Sr. Pedro. Aproveitámos ainda para ir à moagem do Sr. Luís Farrapo, a quem fui dizer que o colega B. Pinheiro estava doente e por isso é que ainda não voltara a visitá-lo. Respondeu que, de facto, estava em falta por não Ter aparecido como prometera e que já tinha em seu poder os alvarás que ficara de procurar. Discutindo pelo caminho que temos sempre de cumprir as promessas que fazemos aos nossos informadores e já decididos a não ir neste dia ao inferno, fomos de qualquer modo dar uma satisfação à D. Maria da Purificação. Já esperava que não viéssemos, até pensava que eu tivesse piorado do alto da cabeça que, afinal, até já melhorara sensivelmente. Combinámos voltar uma semana depois, no Domingo 15, mas logo de manhã, para vermos o Inferno e para a levar a A-de-Mourão, a casa do primo que nos pode dar todas as explicações que quisermos. Ensinou-nos o caminho para o Boição de Baixo, que seguimos de regresso à estrada principal, parámos junto à ponte e à balança dos porcos, onde a colega M. Helena aproveitou para tirar algumas fotografias. Regressámos a Lisboa, deixei a colega M. Helena perto de sua casa e dirigi-me com o colega Martins para a minha, onde o ressarci do cheque que me havia adiantado de manhã. Depois do banho e de mudar de roupa, saímos em direcção a Pedrouços, deixei o colega junto da estação e segui com a minha mulher, já muito sobre as 19 horas, para o jantar na messe. BOIÇÃO DO MEIO Az. Manuel Ferro Velho 15 Jan 84 LISBOA, 15 Jan 84. – à semelhança da semana passada, o colega João Martins veio ter a minha casa para sairmos juntos. Face à diversidade das tarefas a cumprir neste dia, os colegas M. Helena e B. Pinheiro vão noutro carro para se garantir a mobilidade autónoma de duas equipas. Combinámos o encontro dos dois carros no Café do Menino, em Bucelas às 9h30m. A minha mulher também vai. Chegámos quase às 10 horas. Responsável pelo atraso, a informação errónea da Brigada de Trânsito que contactada telefonicamente às 8h, disse não haver qualquer interrupção na estrada Loures – Bucelas. Mas havia. Tivemos de ir à volta, via Alverca, tal e qual como nos dias anteriores. Em Bucelas fomos tomar café e reforçar o pequeno-almoço com algumas especialidades de pastelaria. O motorista Gabriel trouxe a esposa consigo. Somos quase uma multidão. O João Martins toma o seu habitual copo de água morna. Seguimos para casa do Sr. Pedro. Já tenho revelado o primeiro rolo de películas e ofereço-lhe uma em que ele está junto da comporta a dar-nos explicações. Levei também algumas peças de roupa para ele, que me tinham sido pedidas pela D. Maria da Purificação. Agradecimentos. Um grupo de sete pessoas já parece uma invasão. Avanço para a Azenha do Manuel Ferro Velho onde, momentos depois, chegaram todos. Aí demos os retoques finais na repartição de tarefas. O grupo M. Helena / B. Pinheiro vai a casa do Sr. Augusto e terminará o trabalho que temos pendente com ele, enquanto o colega J. Martins e eu próprio vamos escalpelizar o inferno do Ferro Velho e medir tudo quanto já foi referenciado na semana passada. Conforme a situação com o Sr. Augusto, o primeiro grupo levará a D. Maria a A-de-Mourão, em cumprimento do combinado na semana passada. O motorista Gabriel e a esposa estão adidos ao primeiro grupo, enquanto a minha mulher fica junto do segundo. Hoje resolvemos poupar o tempo que levaríamos a almoçar e somos portadores da respectiva merenda, com a vantagem de a podermos consumir quando bem entendermos, sempre sem prejuízo do trabalho. O Sr. Pedro ficou a ajudar-nos, só depois do meio-dia é que teria de levar o seu rebanho a pastar. Abrimos o alçapão do inferno. Há que ir já direito ao assunto, sem tempo a perder. Estamos hoje muito bem providos de luz, tanto o B. Pinheiro como o J. Martins trouxeram ao grupo uma boa lanterna de mão. O primeiro aspecto do piso inferior é muito mais convidativo do que o daquele em que nos encontramos, muito mais fresco e limpo. Desço acompanhado pelo Sr. Pedro. O chão está ainda completamente enlameado devido às últimas cheias e já lá vão praticamente dois meses. É a “lateira”, diz o Sr. Pedro, que, entretanto, vai colocando sobre a lama alguns paus e pedras para que não me enterre tão completamente. Ao descer na vertical do alçapão, volto-me para a direcção do rio, dando as costas à parede interior. Estou numa espécie de átrio muito reduzido e tenho à minha direita os mecanismos do moinho n.º 2 e à esquerda os do n.º 1. O lado direito (n.º 2) é mais espaçosa, ia quase dizer “confortável” mas isso é quase o inverso da realidade. A luz natural é praticamente nula, apenas filtrada pelos buracos naturais dos eixos. De qualquer modo, defronte da entrosga e ao longo da parede que lhe é fronteira existe uma espécie de beliche natural, elevado cerca de uns 70cm em relação ao solo, coberto por uma camada de lama que já secou em muitos pontos e até permite que se trabalhe sentado de vez em quando. O colega João Martins está lá em cima a tomar apontamentos do que vou ditando e vai também fazendo perguntas sobre as posições e medidas dos espaços e artefactos que estão ao alcance da minha observação. O Sr. Pedro está cá em baixo, é meu companheiro de inferno, e colabora com algumas explicações e fazendo concentrar a luz de uma das lanternas para pormenores que interessa medir ou fotografar. Acrescente-se que, sem a luz artificial, não era sequer possível enquadrar os objectos a fotografar, quanto mais ver o suficiente para os medir. A posição em que me encontro é extremamente incómoda e as articulações e a roupa vão constituir um bom documento deste novo desporto a que talvez se pudesse chamar “infernismo”. Além de ditar a descrição e as medidas, também estou a gravar, pelo que o trabalho só ficará completo depois de integrar os meus registos com os do colega. Estou junto da ponte do moinho n.º 2. A entrosga tem 32 dentes, é de carvalho e foi feita pelo sogro do Sr. Pedro, segundo o próprio diz. Por mim, confesso que não posso avaliar da paternidade nem conheço os tipos de madeira para confirmar o que nos diz o informador. Está cintada com uma cinta de ferro. “Vou ler uma inscrição que se encontra gravada na parte de madeira, perto do terminal interior do eixo (mastro): MJFJ, em maiúsculas e uma data: 26-11-1960. O Sr. Pedro diz que é a data em que este mastro foi colocado, em novo. O eixo é de secção octogonal. O meu ajudante diz que deve ser de nove oitavados, quando contei a primeira vez também me pareciam nove, mas a nomenclatura acaba por estar certa, tem oito faces. Imaginemos a secção do eixo na posição em que se encontra. O primeiro oitavado da esquerda mede 128mm, o segundo 93mm, o terceiro 128mm e assim sucessivamente e alternadamente. A cinta da entrosga tem 95mm de largura e 4mm de espessura.” A largura do eixo, no local logo à saída da entrosga em que está cintado com arvielas quadrangulares é de 250mm o que somado a 520mm mais 520mm dá o diâmetro total. Não é de facto possível, sem enorme perda de tempo, colher as medidas finais logo à primeira. A posição de trabalho e a própria configuração do artefacto não permitem, na maior parte das vezes, senão medidas parciais a integrar posteriormente. No meio desta operação, mantenho o método em crítica permanente. Tudo correria de modo mais fácil se, numa primeira fase, fotografasse os objectos a medir e depois inscrevesse as medidas nas próprias fotografias ou em desenhos elaborados a partir delas. Mas o tempo está contra nós e este trabalho de reconstituição não deixa de ser rigoroso ao mesmo tempo que tem os seus aliciantes. Durante mais de uma hora vou vasculhando todos os pormenores à minha volta. Registo no gravador as legendas das fotografias e as medidas que vou tirando. Não vou sobrecarregar o diário com todos esses pormenores a inserir no trabalho final. Que ao menos esta passagem pelo inferno pareça um pouco mais suave do que foi. Boição do Meio. Inferno da AFV. Carreto e entrosga do moinho n.º 2) AFV - Pormenor revelador da solidez deste artefacto. Ligação do mastro à entrosga, com as arvielas em evidência. (Moinho n.º 2) O conjunto da esquerda (moinho n.º 1) é diferente. A entrosga tem na mesma 32 dentes, o carreto também tem seis fuseis mas é mais baixo do que o do n.º 2. Segundo o Sr. Pedro, este eixo pertenceu a um moinho de vela, já do tempo do bisavô da sua mulher e foi um castigo para o trazer cá para baixo depois de Ter colocado um mastro novo no moinho de vento, lá em cima. O eixo anterior da azenha já estava pobre. E continua a série de medidas que se remete para a ficha técnica. O n.º 2 permitiu melhores ângulos às fotografias tiradas, no lado do n.º 1 o espaço é mais restrito, nem sequer há o equivalente daquela espécie de beliche que já referenciei no outro lado. Quando saí do inferno a minha primeira sensação era de que isso já era bem merecido. Não entrei com fins de penitência mas as condições de trabalho devem ter-me proporcionado um bom crédito para expiar penas futuras. Quando cheguei cá acima a minha figura não era bem uma elegância de salão. Os colegas acabavam de chegar do Sr. Augusto com a missão cumprida. Como só o nosso grupo é que trouxe farnel, assentámos que voltariam depois do almoço, cerca das 15 ou 15h30m. Entretanto, já tínhamos o aviador no exterior, preparado para continuar depois da merenda, que decidimos comer à uma da tarde. O Sr. Pedro não quis aceitar nada mas quando já estávamos a acabar a nossa refeição apareceu com o seu rebanho e nessa altura aceitou uma laranja que guardou num bolso. O “carvoeiro”, um dos seus carneiros, vem coxo. Enquanto o João Martins e eu próprio voltamos à nossa faina de medidas e fotografias, a minha mulher acompanha o Sr. Pedro durante um bocado, recolhendo retalhos da sua vida, que é muito pródigo em contar. Por curiosidade, aqui fica este apontamento por ela recolhido, acerca da genealogia e identidade do rebanho: O Moinante é o carneiro mais velho e tem um filho chamado Carvoeiro. A Bonita é a bisavó de todas e a laranja tem cinco filhos. A Pintasilga chama-se assim porque nasceu quando deixou o Governo uma Primeiro-Ministro com esse nome. A Galdéria é filha da Cabreira, a Boneca é irmã do Moinante, a Baixinha tem o nome da avó e da bisavó, aqui pode-se comer o animal que o nome é perpetuado por herança. A Fugitiva anda sempre a fugir, a Felosa e a Andorinha têm nome de aves, a Redonda é a guia e ainda existem nesta comunidade mais alguns cidadãos à procura de curriculum. Encarnada, Gaiola, Pequenina, Estrela, Cabrita, Fusca, Olha ali, Carriça, Raposa, Poeta e Vaidosa. O Sr. Pedro conversa com o “Moinante” sob o olhar zelozo do seu cão pastor. No mesmo local, outro plano do Sr. Pedro Vitorino e do seu rebanho. O teigão (n.º 2) está montado num suporte em forma de esquadro quadrangular o qual, na parte posterior, abraça um poste vertical que lhe serve de apoio e na parte anterior, do lado da quelha, esta pendurado a uma travessa do teto por uma corrente de quatro argolas elipsoidais e mais alguns arames. Continuando com a maratona da fita-métrica, todos os objectos identificados foram medidos, remetendo-se também esses detalhes para as fichas técnicas. Da literatura da especialidade já sabíamos que são as rodas que mais variam de azenha para azenha e para a roda nos dirigimos dando-lhe o tratamento habitual: medidas e fotografias. O Sr. Augusto, que nesta altura se encontrava do lado de lá do rio, na sua vinha, veio ao nosso encontro. Cumprimentos e apresentações. Ainda não conhecia a minha mulher nem o colega João Martins. Mostrei-lhe as fotografias tiradas na semana anterior. Explicou que a peça que, no aviador, liga o teigão ao funil, é a “ciranda”. Quanto à caixa fotografada, diz que é uma das muitas que se colocam por debaixo do aviador para receber os diversos produtos separados. “Sim, porque isto aqui é divertido em diversas partes, aqui à frente cai o trigo mais grado, aqui cai a impureza mais miúda. Aqui há-de haver uns buracos (que lhe confirmo, parece ver mal para a fotografia) que é por onde cai o casulo, o trigo que não está descasulado. E vai-nos mostrando o sítio onde deveriam estar as seis caixas que, conforme o sítio onde estão, vão recebendo um produto mais ou menos miúdo. A parte redonda, em forma de tronco de cilindro curto, que recebe a correia, é o tambor que, no caso vertente, tem desenhado na sua face externa o signo Saimão. Tem no interior seis bandejas dum lado e seis do outro, havendo uma divisão ao meio. “O que era meu, que era do meu pai, tinha mais, eram mais pequeninas, este pode Ter só seis porque são maiores”. “Aí nessa bandeja o trigo vai rodando, vai naquela concha, e é aí que vai dividir ao depois para o trigo sair o mais grado e o mais miúdo”. Explicou então que a guarda metálica existente na primeira bandeja da entrada e na primeira do meio “servem para o trigo não voltar para trás e esse do meio vai ao canal do casulo, onde tem esses buracos”. Voltando a falar em generalidades, o Sr. Augusto chama cadêlo ao que o Sr. Pedro chama batente, continuando depois a explicar: “O cambeiro tem um buraco assim de cada lado e ainda tem uma peça em pano que é o “panal”, que é para a farinha cair entre a mó e esse pano – qualquer mulher lhe faz uma bainhazinha. Onde cai a farinha chama-se o “enfarinhador”. O suporte do cambeiro é o “pial”. Quando lhe pergunto então para que serve o cambeiro (deve pensar que sou mesmo estúpido, a fazer perguntas destas) responde com alguma displicência que “é para a farinha não se espalhar; a farinha, conforme vai saindo de debaixo da mó encosta ao cambeiro mas ganha pressão e a mó a moer vai deitá-la para o enfarinhador. Disse então ao Sr. Augusto que tinha ouvido dizer que os mecanismos de lá de dentro, entrosga, carretos, teigões, piais eram todos mais ou menos iguais dumas para as outras. Concorda que isso varia pouco e que a diferença principal é nas rodas. “Quanto maior for a roda, se tiver espaço para ela, mais velocidade ganha, mais balanço, menos água é preciso para ela trabalhar. A roda, sendo pequena, já precisa muita água para lhe dar balanço.” O colega João Martins intervém: “o que se ganha em força, perde-se em caminho percorrido e vice-versa”. A conversa é depois orientada pelo Martins para a idade das azenhas: “O meu avô já morreu com 85 anos e já morreu há 28 anos. Foi o meu bisavô que comprou, cento e tal anos!” O colega Martins estabelece algumas conjecturas para datar a compra, talvez aí para depois das guerras liberais. Ainda com a presença e ajuda do Sr. Augusto e com o apoio de uma ampliação de uma das páginas do livro “Sistemas de Moagem”, passei a inscrever nos locais próprios os nomes em uso na região para cada peça desenhada. Seguiram-se as medidas da roda, eixo, aguilhão, cano e bica, que se remetem para a ficha técnica. Subimos depois para junto da comporta e da levada que não escaparam à nossa fúria de inveterados medidores de serviço. O açude, que já sabemos desde o primeiro dia que foi destruído pela grande cheia de 67, deveria ficar sensivelmente a cem metros. Segui a levada até chegar ao fim e não verifiquei nem sinal de açude. Ou seria mais acima ou não existem vestígios. AFV - Moinho n.º 2. A ponte vista quase de topo. AFV - Moinho n.º 2. Extremidade interior do mastro, fortemente cintado por arvielas de ferro, sendo visível o aguilhão apoiado no bácoro. É à direita que se encontra uma espécie de beliche referenciado no Diário. Após esta última congeminação, voltámos ao carro, onde a minha mulher já se encontrava e pusemo-nos a caminho de Lisboa. Ainda no Caminho do Boição cruzámo-nos com o outro carro, em que os colegas regressavam de Ade-Mourão. Já em Lisboa, no Areeiro, o colega J. Martins despediu-se e apeou-se para apanhar o Metro, destino Cais de Sodré. Cheguei a casa completamente esbragalado e sujo. Há roupa, calças e camisa, de que as nódoas muito dificilmente sairão, o lodo, a lama, o bolor estão mesmo entranhados, até parecem incorporados durante o fabrico. Mas foi um dia de trabalho em cheio. Pode dizer-se com todo o rigor que fizemos um levantamento completo da Azenha do Manuel Ferro Velho, a que não faltam naturalmente as medidas dos vários compartimentos, que também foram religiosamente apontadas. Mas ficaremos por uma mera descrição dos artefactos estudados? Que tratamento poderemos dar a todos os elementos recolhidos durante o tão escasso período de tempo de que dispomos? Bem, e ainda nos falta ver uma azenha a trabalhar. Por enquanto tudo isto parece uma espécie de arqueologia industrial. AFV – Pormenor do teigão do moinho n.º 1