Dayane Andrade Silva e Joceane Moreira AS FUNÇÕES SOCIAIS DA MENTIRA NO LIVRO AS MENTIRAS QUE OS HOMENS CONTAM DE LUIS FERNANDO VERISSIMO Brasília- DF, 14 de junho de 2013. RESUMO: O presente artigo retrata a relação da mentira com a sociedade, mostra o quanto ela está enraizada nas relações humanas. Suscitando a reflexão sobre os princípios religiosos, judiciais, morais e éticos que a censuram. Tem como objetivo analisar as funções sociais desempenhadas pela mentira no livro As Mentiras que Os Homens Contam de Luis Fernando Verissimo. Para presenciar a ocorrência desses fatores foi realizada uma pesquisa bibliográfica em que foi conceitualizado a mentira e discutido o gênero crônica, sob a ótica de diversos estudiosos. O resultado leva à conclusão de que a mentira desempenha diversas funções sociais e está tão presente nas relações sociais a ponto de ser considerada normal. Porém, cabe a cada individuo avaliá-la de acordo com os seus princípios e arcar com as consequências advindas por meio desta. RESUMEN: En este artículo se describe la relación de la mentira con la sociedad, muestra la forma en que tiene sus raíces en las relaciones humanas. Presenta una reflexión sobre los principios religiosos, judiciales, éticos y morales que la censuran. Tiene como objetivo analizar las funciones sociales realizadas por la mentira en el libro Las Mentiras que los hombres contan de Luis Fernando Verissimo. Ser testigo de la aparición de estos factores se realizó una búsqueda bibliográfica en la que la mentira fue conceptualizado y discutió la crónica de género desde la perspectiva de diversos estudiosos. El resultado nos lleva a la conclusión de que la mentira desempeña diversas funciones sociales y está tan presente en las relaciones sociales, que se considera normal. Sin embargo, le corresponde a cada individuo a evaluar de acuerdo a sus principios y hacer frente a las consecuencias que se derivan de esta. PALAVRAS-CHAVES: Mentira, Crônica, Luis Fernando Verissimo, As Mentiras que Os Homens Contam e Literatura Contemporânea Brasileira. Apontamentos Iniciais O autor Luis Fernando Verissimo é um dos principais representantes da literatura contemporânea brasileira. Suas obras levam a uma reflexão da realidade, chamando a atenção para a relação de convivência social, como a família, relacionamentos amorosos, para as divisões sociais e políticas, para a realidade da educação. Retrata a situação desses fatores em um dado momento no tempo. Verissimo ficou mais conhecido por conta das suas crônicas. Hoje já são mais de 60 títulos e mais de 5 milhões de exemplares vendidos (CARAS, 2011). Seu talento rendeu-lhe vários prêmios: O Homem das Ideais do Ano, do Jornal do Brasil (1995); Prêmio Formador de Opinião, da Associação Brasileira de Empresas de Relações Públicas (1996); Prêmio Juca Pato – Intelectual do Ano, da União Brasileira de Escritores (1997). Suas obras são marcadas pelo lirismo e senso de bom humor que faz com que suas produções, apesar de tratarem de acontecimentos que já se tornaram clichês na sociedade, não se tornem leituras cansativas. Em sua maioria são crônicas, narrativas curtas, com linguagem coloquial, o que facilita a compreensão por diversas idades e graus de instrução. São leituras que podem ser feitas no percurso para o trabalho, na espera por um atendimento, ou seja, em um intervalo curto de tempo. Em uma linguagem que varia entre o humorístico e o irônico, o que distrai o leitor e o induz à reflexão sobre o ponto de vista expresso pelo autor, as crônicas de Verissimo apesar de levarem o leitor a rir da situação social apresentada, tem em sua essência a intenção de apresentar a visão pessoal de mundo do autor. Dentre os cronistas brasileiros, Verissimo ocupa um espaço de destaque, pois o autor tem como característica a facilidade em dialogar com o seu público sobre polêmicas e tabus sem ser apenas um reprodutor da realidade, mas levando o leitor a assumir uma visão crítica perante determinados assuntos. São problemas que já são constantes e bem conhecidos pela sociedade, mas apresentados desde uma nova perspectiva como é o caso da velha mentirinha, relatadas na obra As Mentiras que os Homens Contam (2000), utilizadas no dia a dia para alcançar objetivos, para se livrar da bronca do chefe, para evitar brigas com a namorada, para não ir a algum evento. Bem conhecidas entre os seres sociáveis, ela é utilizada em diferentes momentos e contextos. Apesar de ser um assunto comum na sociedade, o autor nesta obra consegue expressar as diferentes causas que levam a utilizá-la, o porquê de ser tão recorrente entre os cidadãos. Conseguindo também abordar as consequências, dilemas, limites e até eventuais vantagens da mentira. As Mentiras que Os Homens contam é um conjunto de 40 crônicas publicadas pela editora Objetiva em 2001. A obra apresenta as diferentes funções da mentira, em uma linguagem acessível a diversas faixas etárias. Com muito bom humor, Verissimo consegue levar o leitor a vivenciar as situações expressas, uma vez que são histórias bem próximas da realidade. As crônicas narram diversos contextos em que as pessoas fazem uso da mentira. Tendo como objetivo analisar quais as funções sociais da mentira no livro As mentiras Que Os Homens Contam desenvolvemos uma pesquisa bibliográfica, em que é abordado o conceito de mentira, as características da crônica sob a ótica de diversos autores e apresentamos os elementos marcantes nas narrações do escritor Verissimo. Desse modo, a metodologia utilizada foi desenvolvida em 4 fases: 1º- leitura do livro em questão e escolha de três crônicas para análise (“Brincadeira”, “O Sítio do Ferreirinha” e a “Mentira”). A seleção destas foi feita pensando-se no grau de consequência que a mentira trouxe em cada situação apresentada: grave, média, leviana; 2º- leitura e análise de artigos e obras que abordam o conceito de mentira e de crônica, o que auxiliou no esclarecimento desses conceitos; 3º- análise do papel social da mentira nas crônicas selecionadas; 4ºresultados alcançados com o desenvolvimento deste trabalho. Esses objetivos serão explorados no decorrer deste artigo e estruturados em tópicos. O primeiro: “Crônica: gênero literário ou jornalístico” responderá às seguintes questões: o que é a crônica e quais os meios de circulação mais frequentes; o segundo, “Concepções Sociais da Mentira” conceituará a mentira e a sua relevância na sociedade. Todos esses foram exemplificados a partir das diversas crônicas do livro As Mentiras que Os Homens Contam. Por fim, fazemos a análise das crônicas selecionadas e apresentamos as conclusões da pesquisa. Crônica: gênero literário ou jornalístico? Há muito se tenta delimitar as características que fazem de um texto ser classificado como crônica. Especialistas literários procuram identificar quais aspectos são fundamentais para a delimitação de um gênero literário. E definir se a crônica é um gênero jornalístico opinativo ou literário. Ela configura-se no jornalismo brasileiro na categoria de Jornalismo Opinativo, essa conceitualização deve-se ao fato dela expressar uma opinião sobre determinado assunto, de apontar um juízo de valor. E também pelo fato de conter elementos como: “autoria (quem emite a opinião) e angulagem (perspectiva temporal ou espacial que dá sentido à opinião)” (MELO, 1994, p. 64). Por apresenta-se na maioria das vezes vinculada aos textos informativos, como nos jornais, surge muitas dúvidas em relação à classificação da crônica como um gênero literário ou informativo. Ela geralmente utiliza uma linguagem bem próxima da coloquial, tem como assunto os acontecimentos do dia a dia e é vista por muitos como um simples texto informativo que tem o mesmo tempo de vida que os jornais. Além disso, ela é desenvolvida em textos curtos, o que caracteriza as produções informativas que possuem extensões menores em relação aos demais gêneros, uma vez que, seus leitores os leem entre o intervalo de casa para o trabalho, na espera para um atendimento, no café da manhã. Por essas e outras características próprias dos textos jornalísticos é que a crônica muitas vezes é agregada a esse gênero. A crônica “Lar Desfeito” apresenta um tema bem recorrente nos dias atuais, a desestrutura familiar, em que a população já está tão familiarizada com as brigas entre casais e consequentemente separações que ao depara-se com um casal unido e sem perspectivas para separação é visto como diferente, anormal na sociedade atual. Ou seja, a partir dessa concepção o autor suscita a reflexão sobre esta distorcida situação. Na crônica, Verissimo apresenta um ambiente familiar bastante tranquilo e harmônico em relação às demais famílias da mesma comunidade. Até mesmo os filhos acham a convivência dos pais estranha, pois o casal não discute, mas os seus amigos de escola vivem com problemas em casa por conta das brigas de seus pais. A situação era tão distinta em meio a tantos lares desfeitos que os filhos de José e Maria perguntavam: “Vocês nunca brigam?” Eles queriam ser iguais às outras crianças com confusões em casa, com separações dos pais, com problemas familiares. Tanto que reclamavam para José e Maria sobre a relação feliz deles: “Eu não aguento mais esta situação!”, “Essa felicidade de vocês!” Por meio desta crônica, Verissimo alerta o leitor para as recorrentes desestruturas familiares. A situação já ficou tão comum que até mesmo as crianças pensam que o normal é ocorrer separações e brigas familiares e não o contrário. Esta crônica exemplifica a teoria de Melo, emite um juízo de valor e apresenta um tema recorrente em um determinado espaço temporal, que é o atual. Alguns autores que abordam sobre o tema conceituam a crônica como um gênero híbrido. Como é o caso de Moisés: “A crônica oscila, pois, entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia” (MOISÉS, 1978, p. 247). Essa definição estabelece que ela é um texto intermediário entre relato dos fatos jornalísticos e expressão da imaginação do cronista. Porém, além de ser um texto que nasce a partir dos acontecimentos do dia a dia, a crônica traz em sua essência a visão de mundo do autor, a subjetividade de quem a escreve, levando o leitor a refletir sobre esta. Ela não é tomada apenas pela expressão de um juízo de valor, abre possibilidade para várias interpretações e reflexões perante a mensagem expressa, ou seja, confere ao leitor um papel de agente. Com relação à temporalidade dos fatos, a crônica não obrigatoriamente apresenta acontecimentos do tempo presente. Por esses e outros motivos, afirmar que a crônica pertence ao gênero jornalístico e não ao literário para alguns autores é contraditório. É notável que o jornal é o seu meio de circulação mais frequente e que ela carrega em sua estrutura características próprias deste, entretanto também possui elementos próprios e que a torna um texto independente. A crônica “Lar Desfeito” não tem como objetivo apenas expressar um juízo de valor, ela convida o leitor a refletir sobre a situação apresentada. Para Eduardo Portella: O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário. E quando não o é, não é por causa dela, a crônica, mas por culpa dele, o cronista. Aquele que se apega à notícia, que não é capaz de construir uma existência além do cotidiano, este se perde no dia-a-dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros, esses transcendem e permanecem. (PORTELLA, 1993, p. 53) A crônica também não tem uma delimitação quanto ao assunto de circulação, ou seja, pode estar relacionada à poeticidade, à opinião sentimental do autor sobre os acontecimentos do dia a dia. Pode haver também uma mistura dessas, dificultando a possibilidade de classificação deste gênero. Desse modo, o jornal é um meio de circulação, no entanto, sua capacidade de multiplicidade de discursos e inovações linguísticas torna-a independente do jornal. Ela aborda uma variedade de temas do cotidiano, sem focalizar simplesmente no fato de narrar e expressar uma opinião, mas de levar o seu leitor a refletir sobre determinada mensagem e criar sua opinião a partir desta. Como apresentado pela crônica em questão, o leitor deve preencher lacunas deixadas pelo autor para entender a visão deste. A esse respeito discorre Luiz Roncari: A crônica antes de tudo tenta se diferenciar, como se fosse uma visitante ilustre num país bruto, inculto e insensível. Por isso (...) ocupa um espaço fixo, ao invés de ficar flutuando perdida, seguindo a vontade do compositor ou diagramador; não trata dos fatos que têm importância por si mesmos, ao contrário, volta-se justamente para aquilo que passaria despercebido se não fosse o cronista (...) usa uma linguagem diferente , fora dos padrões de registro da notícia, apelando para o eu , o gosto e os caprichos pessoais; abaixa ou eleva o registro da linguagem que a circunda, respondendo à rigidez e uniformidade que se dá no jornal ao material linguístico (...).(Apud COELHO, p.157). O cronista não está preso às características de um gênero específico ao criar uma crônica, este não está preocupado em inseri-la no gênero jornalístico ou literário. E sim, em levar o leitor a refletir sobre uma situação específica, fazendo com que este produza sua própria opinião perante aquele. “A crônica impôs-se, ainda que discretamente, pelo espírito de independência. E é encarada pelo cunho do individualismo que sempre a distinguiu, o pressuposto é de que o cronista aja sempre de maneira livre e desembaraçada” (COUTINHO, 1997, p. 122). O tópico a seguir será destinado à reflexão do conceito da mentira e às visões religiosa, jurídica, ética e moral desta. Apoiando-se nos estudos Kant, Schopenhauer, Constant, nos ensinamentos religiosos da bíblia sagrada (doutrina cristã) e no Código Civil Brasileiro. Concepções sociais da mentira: A mentira é frequentemente utilizada no convívio social, para se livrar de uma culpa, para induzir o outro a acreditar ou a fazer algo, para ganhar a partida de um jogo, em campanhas eleitorais entre outros. Esta pode causar levianas, médias ou graves consequências. Mas afinal, o que é a mentira? Quando se pode fazer uso dessa ferramenta? Será que ela é inevitável para o convívio na sociedade? Em resposta ao primeiro questionamento têm-se vários pontos de vista em relação ao conceito da mentira, para o dicionário Aurélio é: 1. Impostura, fraude; peteca, potoca. 2. Engano dos sentidos ou do espírito; erro, ilusão. Para o dicionário Michaelis: 1. Ato de mentir; afirmação contrária à verdade, engano propositado. 2. Hábito de mentir. 3. Engano da alma, engano dos sentidos, falsa persuasão, juízo falso. 4. Erro, ilusão, vaidade. 5. Fábula, ficção. Na bíblia há várias passagens que expressam o repúdio à mentira: "Não darás falso testemunho contra o teu próximo”. (Êxodo 20:16); “O mentiroso não permanecerá na minha presença.” (Salmos 101:7), “O Senhor odeia os lábios mentirosos, mas se deleita com os que falam a verdade”. (Provérbios 12:22), “(...) Portanto, cada um de vocês deve abandonar a mentira e falar a verdade ao seu próximo, pois todos somos membros de um mesmo corpo”. (Efésios 4:25). A bíblia cristã ordena que a verdade seja dita independente de qualquer circunstância, ainda que ela cause danos aparentemente maiores que se fosse dito a mentira. E o que as leis brasileiras relatam sobre a prática da mentira? Carlos Roberto Gonçalves, ao se reportar ao art. 422 do Código Civil, dispõe que: O princípio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega. Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar. (GONÇALVES, 2008) O princípio da boa-fé é de fundamental importância, nas relações sociais, para o bom convívio entre os seus componentes, uma vez que para ter-se uma sociedade em que há respeito entre os cidadãos é necessário haver honestidade com o próximo. Além dos costumes de uma sociedade é preciso existirem leis que regulamentam, nas relações judiciais, o princípio da boa-fé para que a relação harmônica entre as pessoas possam prevalecer. Para que isso ocorra há regulamentações judiciais que afirmam que a falta da verdade em um ambiente judicial ocorrerá em punições. Desse modo, conclui-se que é dever do cidadão nos termos jurídicos dizer a verdade. Mas, será que pode-se levar em consideração esta afirmação também para o dia a dia? Para uma simples mentira entre amigos, por exemplo? A respeito da mentira utilizada em ocasiões informais e sem a ocorrência de grandes consequências jurídicas apelou-se para a concepção filosófica que abrange também uma visão ética e moral da mentira na sociedade. Esse fenômeno será abordada no tópico a seguir. Divergências sobre o direito à mentira Para reforça a explicação dos conceitos abordados este tópico foi desenvolvido com base na pesquisa realizada pela graduanda em filosofia Nara Miranda de Figueiredo, “Sobre um suposto direito de mentir: um paralelo entre Kant, Schopenhauer e Constant”, e alguns conceitos schopenhauerianos. Para exemplificar as teorias destes foram utilizadas as crônicas de Luiz Fernando Verissimo. Desse modo, será apresentada a mentira numa perspectiva ética, moral, religiosa e jurídica. Segundo Figueiredo, para Kant a mentira não deve ser proferida em hipótese alguma, pois ela restringe o direito à liberdade de escolha do cidadão, ou seja, ao ter-se conhecimento de uma informação não verdadeira este é induzido a agir de acordo com a vontade de quem a proferiu. Sendo assim, a liberdade de escolha é rompida, iniciando o desrespeito à liberdade de ação dos cidadãos. Segundo o estudioso, a mentira não prejudica somente o indivíduo que a ouve, mas a ideia de igualdade, pois há um rompimento do direito universal, ou seja, o indivíduo que mentiu não levou em consideração o direito de saber a verdade do outro e a proferiu para alcançar um objetivo pessoal e não da coletividade. Como expresso na crônica “Tios”, a mentira é utilizada para induzir alguém a agir e a pensar de uma maneira específica. A história se desenvolve por meio da mentira do tio Dedé, que para se engrandecer, tornar-se afamado e respeitado pelos sobrinhos e parentes mais novos, contava-lhes em eventos familiares que ele havia participado da gravação de alguns filmes em épocas remotas. Por curiosidade seus parentes insistiam para ver os filmes. Em um certo dia, todos se organizaram para assistirem a um dos filmes. Todos estavam atentos para ver a cena que Dedé contracenava, porém este não aparecera em nenhuma parte do filme. Para se desculpar com os familiares, Dedé mentiu novamente dizendo-lhes que os produtores do filme haviam cortado a cena em que ele aparecia. Esta mentira embora socialmente pareça leviana, restringe o direito do seu ouvinte, uma vez que, o induz a agir segundo os critérios de quem a proferiu, ou seja, segundo Kant não é respeitado o direito de escolha de ação do cidadão, como ilustrado nesta crônica. Por meio da mentira os familiares de Dedé passaram a acreditar que ele era realmente famoso por conta das participações nos filmes. Conforme relatado no artigo de Figueiredo, Benjamin, entretanto, discorda da tese de Kant, afirmando que a mentira é permitida em algumas situações. Para ele, da mesma maneira que há o direito, há também a obrigação, e onde não existe este, não deve existir aquele. Ou seja, a mentira é destinada a quem tem direito. Para Benjamim, dizer a verdade torna-se um dever somente quando o outro tem direito a esta. Desse modo, a partir do momento que a mentira é proferida com a intenção de evitar danos a alguém, ela é permitida. Pois nenhum cidadão tem direito a uma mentira que é prejudicial ao próximo. A crônica “Blefes” é uma exemplificação para a conceituação do estudioso, pois não há neste contexto a preservação da verdade, ou seja, as pessoas envolvidas não prezam por este princípio. Não respeitando, desse modo, o direito pela verdade. A crônica relata a importância de se ter técnicas de blefes para o jogador de pôquer. O blefe é um grande aliado nesta situação. Aliás, é uma ferramenta necessária e admirável entre os jogadores. Quem consegue induzir o seu adversário a agir a seu favor geralmente leva a melhor, ou seja, ganha o jogo e a admiração dos demais. Fora da realidade do pôquer, o blefe perde sua respeitabilidade e passa a ser uma característica de pessoas fingidas e sem carácter, como é o caso da maioria dos políticos que pensam está em uma partida de pôquer ao discursar suas propostas em uma campanha eleitoral. Nesta crônica tem-se a mentira utilizada em um jogo, o pôquer, o que é aceitável pelos participantes do mesmo, e na realidade da sociedade que é utilizada pelos políticos para induzir os cidadãos a os elegerem, o que é ilegal e corrupto. Em ambas as situações a mentira é realizada com o intuito de conseguir alcançar um objetivo. Como todos os participantes do jogo de pôquer não respeitam o direito a verdade dos demais, então, consequentemente, não há problema em mentir neste contexto. Com relação às afirmações de Benjamin, Kant aponta algumas falhas. A princípio que a verdade não pertence a determinado indivíduo, ela existe por si só independentemente. A verdade é questão lógica e objetiva, não é algo que pode ou não pertencer a determinado indivíduo. A verdade, para Kant, é quando a sentença proferida é adequada ao seu objeto. Desse modo, a mentira seria as suas variantes. Segundo Figueiredo, para Kant, a mentira ocasiona reações que podem ser prejudiciais à pessoa que teve acesso à informação não verdadeira e a todos que diretamente ou indiretamente estão envolvidos com a mentira. Dessa maneira, qualquer ato prejudicial ao outro é de responsabilidade do indivíduo declarante da mentira. Por isso, a verdade deve ser dita mesmo que se apresente prejudicial a alguém. Na crônica “Tios” as consequências que poderiam ser desencadeadas a partir da mentira do tio Dedé seria a desconsideração deste pelos seus parentes, a falta de credibilidade, além da agressão verbal que poderia ser feita ao Dedé. Todos esses fatores, segundo Kant, seriam de responsabilidade da pessoa que mentiu. O estudioso afirma que os deveres foram criados para serem cumpridos, sem que haja exceções para os mesmos. A verdade é um dever que precisa ser exercido independente do contexto envolvido. Para ele, a verdade é a base de todos os outros direitos. Benjamim contesta que há princípios que não são aplicáveis à sociedade, como é o caso da verdade, se essa não é para o bem comum não precisa ser mencionada. Se a sua utilização poderá ocasionar consequências a alguém ela pode ser evitada. Para ele, é necessário enxergar os princípios intermediários de um dever. No caso do princípio “não se deve mentir” quando aplicado à sociedade é preciso reconhecer as lacunas intermediárias, no caso da mentira, pode ser utilizada quando ela não é prejudicial a alguém. No caso do jogo de pôquer, relatado pela crônica “Blefe”, não há entre os componentes o respeito pelo o direito à verdade. Neste caso, Benjamin afirma que a mentira pode ser utilizada. Mas, Kant afirma que o princípio da verdade deve prevalecer independente de quais danos causará, pois no caso dos princípios intermediários, mencionados por Benjamin, não seria possível saber quando utilizar as exceções, ou seja, quando falar a verdade ou quando mentir. Agindo assim, os danos decorrentes da verdade não serão de responsabilidade de ninguém, não ocorrerá por conta de uma mentira, e sim pelo acaso. Outro estudioso que tratou de analisar o poder da mentira na sociedade foi Schopenhauer, para abordar a concepção dele em relação à mentira é necessário esclarecer o conceito de direito, que é tido como a liberdade de um indivíduo em agir de tal maneira, ou seja, a opção de escolha de suas ações, limitado a partir do momento que começa o direito do outro. A mentira, por sua vez, é caracterizada como a manifestação da vontade de alguém sobre a ação de outro, ou seja, ao anunciar uma sentença não verdadeira o anunciador induz o seu ouvinte a agir de acordo com a sua vontade. Desse modo, ele estende o domínio de sua vontade sobre o modo de agir alheio. Assim, este é levado a agir de tal maneira e não teve a liberdade de escolher por essa ação. Para Schopenhauer, a mentira na maioria das vezes é utilizada de forma injusta, como mencionado acima, a injustiça é realizada quando esta é proferida para induzir alguém a agir de tal modo. Restringindo o direito de escolha do outro. Porém, o estudioso declara que é possível mentir de forma justa. Ela é permitida quando se tem como intuito defender a vida, defender-se de violências, e desde que seja para ocultar informações da vida pessoal. Segundo o estudioso, pode-se mentir em qualquer situação em que a verdade vai deixar exposta uma informação da vida pessoal do outro. E quando este não quiser responder a uma pergunta que seja suspeita. Dizer a um autor que leu o seu livro, que a trama agradou-lhe é socialmente correto. É um modo de demonstrar uma boa educação e ser agradável a alguém. Principalmente quando se trata de recém-autores, dá-se um empurrãozinho à sua vocação com alguns elogios embora, não tenha lido as suas obras. Além disso, demonstra-se conhecedor de diversos autores. É o que ocorre na crônica “O Sebo”, em que o personagem principal trabalha em um sebo. Em certo dia ele recebe a visita de um autor que não era muito conhecido, era iniciante nesta área. Ao ser questionado por esse sobre a leitura do seu livro, ele menti dizendo-lhe que já havia lido o seu livro, para não frustrar o autor e mostra-se conhecedor da obra em questão. Conforme Schopenhauer, a mentira poderia ser concretizada neste contexto, pois ela não causa aparentemente nenhum mal ao outro, além do autor da mentira ter o direito de ocultar detalhes da sua vida pessoal neste caso a ignorância, a falta de conhecimento de um determino livro. De acordo com a análise realizada por Figueiredo pode-se concluir que em toda e qualquer sociedade há normas que regem o princípio da boa convivência entre os seus membros, estes são religiosos, jurídicos, morais e éticos, mas cabe a cada ser, desde que não prejudique e não viole o direito do próximo, decidir se deve ou não mentir. Cada indivíduo ao optar pelo uso da mentira deve conhecer e assumir as consequências que ela pode ocasionar. Com base nos conceitos desenvolvidos e esclarecidos neste tópico foram realizadas as análises das crônicas selecionadas. Para melhor compreensão do leitor a cada crônica é apresentado o enredo principal da história e a análise segundo o foco principal da narração, isto é, conforme o grau de consequência da mentira apresentada. Levando em consideração a visão (religiosa, jurídica, ética ou moral) que mais se destacou na crônica. Procurando Uma Saída. A crônica “A Mentira” é desenvolvida em torno de uma tentativa de não ir a um compromisso. O enredo retrata a história de um cidadão, João, que ao chegar em casa cansado das tarefas do dia é lembrado por sua esposa da programação marcada com os amigos, eles haviam combinado de jantarem na casa de Pedro e Luíza naquela noite. Entretanto, João pede a Maria, sua esposa, para inventar uma desculpa para não saírem de casa, pois estava exausto: Encarregou Maria de telefonar para Luíza e dar uma desculpa qualquer. Que marcassem o jantar para a noite seguinte. Maria telefonou para Luíza e disse que João chegara em casa muito abatido, até com um pouco de febre, e que ela achava melhor não tirá-lo de casa àquela noite. Luíza disse que era uma pena, que tinha preparado um Blanquette de Veau que era uma beleza, mas que tudo bem. Importante é a saúde e é bom não facilitar. (VERISSIMO, 2000, p.65) Neste primeiro momento a mentira (de que João não estava bem) proporcionou-lhe a oportunidade de fazer o que queria, não ir ao compromisso assumido, sem que para isso desapontasse os seus amigos, o que ocorreria se dito a verdade. Dessa maneira, não iriam magoá-los e manter-lhes-iam no ciclo social, uma vez que o cansaço, socialmente, não apresenta-se como uma desculpa expressiva para não ir um jantar entre amigos. O autor aproxima de um modo bastante notável a vida prosaica de seus personagens da realidade social, até mesmo os nomes dos personagens são bastante comuns. Apresenta também discurso indireto livre, em que não se consegue definir com precisão se a fala é do personagem ou do narrador como em: “Importante é a saúde e é bom não facilitar”. João e Maria pensavam que estariam livres do incômodo dos seus amigos, porém estes, com o intuito de verificarem a veracidade de João e prestar-lhe algum auxílio, foram, sem que os mesmos esperassem, visitá-los. Ali pelas nove horas bateram na porta. Do quarto, João, que ainda não dormira, deu um gemido. Maria que já estava de camisola, entrou no quarto para pegar seu robe de chambre. João sugeriu que ela não abrisse a porta. Naquela hora só podia ser chato. Ele teria que sair da cama. Que deixasse bater. Maria concordou. Não abriu a porta. (VERISSIMO, 200, p. 65 - 66) Em seguida, preocupados com a falsa ausência de seus amigos, Luíza os liga: “Nós estivemos aí há pouco, batemos, batemos, batemos e ninguém atendeu”. Ela queria oferecer ajuda ao Pedro. Para justificar a falta deles a mentira foi intensificada. –“Nem te contocontou Maria, pensando rapidamente.- O João deu uma piorada. Tentei chamar um médico e não consegui. Tivemos que ir a um hospital.” Na tentativa de preservar a amizade e não perder a confiança dos amigos, uma simples mentira que parecia ser a saída de um problema vai se intensificando e sendo cada vez mais difícil de ser mantida. A cada mentira a situação vai ficando mais grave, intensificando o efeito de humor do texto. Como eles iriam se safar dessa situação? Afinal, agora Luíza e Pedro queriam visitar João no hospital. Porém este não podia recebê-los, pois não estava em nenhum hospital. Como iam explicar a melhora repentina de João? Então foram se esconder no escritório de João e deixaram um bilhete com o telefone do local para os amigos, pois tinham que fugir o máximo possível destes, que os telefonara com insistência para saber sobre João. Alô Luíza? Pois é. Estamos aqui. Ninguém sabe o que é. Está com pintas vermelhas por todo o corpo e as unhas estão ficando azuis. O quê? Não Luíza, vocês não precisam vir para cá. -É contagioso. Nem eu posso chegar perto dele. Aliás, eles vão evacuar toda a clínica e colocar barreiras em todas as ruas aqui perto. (VERISSIMO, 2000, p. 68) Esta crônica é engraçadíssima e convida o leitor a refletir sobre a capacidade que a mentira tem de crescer, ou seja, de passar de uma mentira leve para uma que pode causar graves consequências, como expresso até a perda de uma amizade. Aliás, neste contexto não dizer a verdade foi pior que mentir, pois João - que não queria jantar fora - além de ter que sair de casa, não dormiu em casa, e sim em seu escritório, isso para não desapontar seus amigos. Verissimo consegue, por meio de um texto curto, apenas duas laudas, expressar a mentira como uma alternativa para se desculpar de um erro, ou seja, Pedro não foi ao encontro de seus amigos não porque não quis, mas porque não pôde. Expressar o drama vivenciado pelos personagens para não perderem uma amizade. Em uma linguagem acessível a diversos públicos e um assunto bastante familiar, no caso uma desculpa para não ir a um compromisso, o autor consegue levar o leitor a refletir sobre a questão social apresentada na crônica. A história transcorre no tempo de uma noite, na casa e no escritório dos personagens. É constituída em sua maioria por diálogos entre personagens. Para Schopenhauer, a mentira poderia se concretizar neste caso porque o seu autor a utilizou para não revelar assuntos sobre a sua vida pessoal, a falta de vontade de ir ao evento combinado. Segundo o estudioso, em alguns casos a mentira pode ser um recurso social e este é um deles. E também é dito a mentira com o intuito de preservar a integridade moral, ou seja, Pedro e Maria mentem para não perderem um vínculo social, para não descobrirem que não iam ao jantar porque Pedro estava cansado. A este questionamento pode-se analisar desde uma perspectiva religiosa que enfatiza que em hipótese alguma se pode mentir. Esta é vista como um pecado que pode afastar o criado do seu criador. Como expresso no Salmo 101:7: “Quem pratica a fraude não habitará no meu santuário; o mentiroso não permanecerá na minha presença.” Para o cristianismo a verdade deve ser dita independente de qualquer circunstância, ainda que ela possa causar graves consequências. O que é enfatizado em: “O Senhor odeia os lábios mentirosos, mas se deleita com os que falam a verdade” (Provérbios 12:22). Desse modo, pode-se concluir que a mentira é vista como um erro cometido pelo ser humano e detestável por Deus. Ligação Perigosa A crônica “Brincadeira” leva o leitor a refletir sobre a capacidade que a mentira tem de induzir o outro a agir de determinada forma. A história é desenvolvida em torno de uma brincadeira. Para controlar o outro e ser temido, o protagonista liga para os seus conhecidos e afirma saber os segredos deles, apesar de não saber de nada. Essa era uma maneira de ganhar a confiança e o ter o controle sobre as pessoas. Começou como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:- Eu sei de tudo. Depois de um silêncio, o outro disse: - Como é que você soube? - Não interessa. Sei de tudo. - Me faz um favor. Não espalha. - Vou pensar. - Por amor de Deus. - Está bem. Mas olhe lá, hein? Descobriu que tinha poder sobre as pessoas. (VERISSIMO, 2000, p. 99) A brincadeira foi ficando cada vez mais frequente e intensa, com essa estratégia mantinha o controle sobre as pessoas. Todos o temiam, pois pensavam que poderiam ter seus segredos revelados. Todos o consideravam como um homem que sabia de todo mundo, mas não falava de ninguém. Com o tempo, ganhou reputação. Era de confiança. Um dia, foi procurado por um amigo com uma oferta de emprego. O salário era enorme.- Por que eu? - quis saber. - A posição é de muita responsabilidade - disse o amigo. Recomendei você. - Por quê? - Pela sua discrição. Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a boca para falar de ninguém. Além de bem informado era gentleman. (VERISSIMO, 2000, p.101) A crônica traz em sua essência uma mentira que no primeiro momento não parece causar grandes consequências, porém ela é reforçada, sendo capaz de atingir um número grande de pessoas. Vários cidadãos passam a sofrer as consequências de uma mentira que nesse contexto fora utilizada para manter poder sobre o outro, para controlar alguém. As pessoas passam a estar subordinados ao outro por conta disso. Ou seja, tem-se uma mentira que é prejudicial ao próximo. Até mesmo quem proferiu a mentira sofre as suas consequências, pois por fim descobrem a estratégia utilizada por ele para chantagear as pessoas e o matam. Apesar de trazer um final triste, a crônica é muito engraçada. Verissimo consegue com uma linguagem simples e textos curtos levar o leitor a se inserir no contexto do enredo. O humor da crônica está no fato de toda a história se desenrolar com uma simples brincadeira e ter consequências dramáticas, como uma morte e o controle sobre os outros. O texto é constituído quase que em sua totalidade por diálogos entre os personagens, aproximando o leitor da realidade destes. Os personagens não são nomeados, transmitindo a ideia de que é uma pessoa conhecida pelo leitor, levando a acreditar que a essência da historia já é bem familiar e que provavelmente já aconteceu com alguém conhecido por ele. O interessante também desta crônica é o fato de levar a refletir sobre o controle sobre o próximo por meio da mentira, isto é, ao toma-se conhecimento de uma não verdade este age de acordo com a vontade de quem a proferiu, não tendo o direito de escolha. Cabendo ao leitor refletir sobre o direito de mentir. Será que é permitido a um cidadão interferir e prejudicar o outro através da mentira? Levando em consideração as declarações judiciais em relação à mentira, pode-se afirmar que ela pode ser ou não condenável o que vai depender do contexto em que a mentira está inserida. Visto que a mentira expressa no primeiro momento é concretizada por meio de uma ação que hoje é considerada como crime, o trote, e que pode ocasionar em punições. O trote é caracterizado como a perturbação física e moral ou jurídica de alguém conhecedor ou não do responsável pelo trote e é geralmente realizado por meio de aparelhos telefônicos. Segundo o Art.266 do Código Penal: “Interromper ou perturbar o serviço (…) telefônico” é crime e o infrator poderá incorrer em pena de detenção de um a seis meses ou multa. A respeito das considerações de Kant pode-se afirmar que a mentira nesta situação foi utilizada de maneira injusta, uma vez que ela serviu para induzir alguém a agir tal modo. Sem levar em consideração o direito do próximo de escolher as suas ações. Podendo ser considerado extorsão com o outro, como expresso no decorrer da crônica. O estudioso acrescenta ainda que todas as consequências desencadeadas a partir dela são de responsabilidade do seu autor. A Dieta A crônica “O Sítio do Ferreirinha” personifica o indivíduo que já iniciara várias dietas, mas em nenhuma seguira até o final, ou por falta de incentivo ou porque não suportava ficar sem comer seus doces preferidos. Desta vez, o regime iniciara logo após uma consulta com o nutricionista. Ele seguia a risca todas as recomendações que o médico lhe havia proposto. Sua esposa estava estranhando toda aquela situação, pois ele já havia iniciado várias dietas, mas nenhuma delas chegará até o fim. Esta era diferente, além dos resultados alcançados, o marido estava bem entusiasmado. Por mais que sua esposa insistisse em dize-lhe que já estava com quilos proporcionais para a sua estatura, ele afirmava que precisava emagrecer mais. A esposa impressionada com o milagre que o doutor fizera, resolveu procurá-lo e pergunta-lhe o que havia feito com o seu marido. Contou que, durante a primeira consulta com o novo cliente, perguntava, como quem não quer nada, se o cliente conhecia o Ferreirinha. Não? Pois o Ferreirinha tinha um sítio. E todos os fins de semana o Ferreirinha reunia no seu sítio um grupo de amigos e algumas mulheres. O Ferreirinha conhecia muitas mulheres. Modelos. Misses. Grandes mulheres. E outras. E todo fim de semana tinha o que o Ferreirinha chamava de “A corrida do ouro”. As mulheres saíam correndo pelos campos e os homens saíam correndo atrás. Quem pegasse uma ficava com ela para passar a noite. Os mais rápidos pegavam as mais bonitas. Os mais gordos e fora de forma não pegavam nenhuma. O cliente gostaria de entrar no grupo de amigos do Ferreirinha? Nada mais fácil. O médico apresentava. Mas antes ele precisava perder peso. (VERISSIMO, 2000, p. 80) Após contar-lhes esta história, o doutor afirmava que quando os pacientes já se sentissem preparados, ou seja, com o corpo em forma, ele o apresentaria a Ferreirinha. Porém, o médico confessou-lhe que nem o Ferreirinha nem o seu Sítio existiam. Que esta era uma estratégia para que os seus pacientes cumprissem a dieta recomendada por ele. A mulher então lhe perguntou o que ele fazia quando os pacientes já se sentissem preparados. O doutor falou para ela que ainda não houve nenhum paciente que se sentiu preparado o suficiente para entrar na brincadeira de Ferreirinha, pois eles obviamente desejavam pegar as mulheres mais bonitas e para isso precisavam superar vários outros concorrentes. Então apesar de estarem magros pediam ao médico para esperar mais um pouco. -É uma coisa engraçada...- disse o médico. – A senhora sabe que até hoje, nenhum dos meus clientes pediu para ser apresentado ao Ferreirinha? Eu digo: “Acho que você já está pronto para o sítio” ou “Amanhã vou te apresentá-lo ao Ferreirinha”. Mas nenhum se acha em condições. Sempre querem treinar mais um pouco. -Que raça- disse a mulher. E o médico, mesmo sendo do gênero, teve que concordar: -Que raça. (VERISSIMO, 2000, p.81) A crônica ocupa menos de duas páginas, porém consegue expressa fielmente o dilema vivenciado pelos personagens. Com um toque de bom humor e ironia, Verissimo, apesar de retratar um assunto comum, a dieta, consegue levar o leitor a dá risadas da história. O autor quebra a imagem de seriedade do profissional da saúde e acrescenta no ambiente de trabalho um clima de brincadeira. A dieta é apresentada como uma espécie de jogo consigo mesmo, pois tem-se que aprender a controlar os instintos, trabalhar o psicológico e não deixar-se cair em tentação. Cabendo ao leitor refletir sobre esta e também sobre a postura dos profissionais da saúde em relação à dieta. A mentira foi utilizada neste contexto para controlar o outro, para induzir a alguém a agir de acordo com os seus mandamentos. Desse modo, o nutricionista controlava os seus pacientes. Porém, a mentira causava um feito positivo sobre o seus ouvintes. Não os prejudicava. Dentre as três crônicas analisadas esta é a que apresenta uma maior participação do narrador. A partir dessa perspectiva, esta mentira poderia ser proferida segundo Benjamin, pois ela não causa danos negativos às pessoas envolvidas, não é uma mentira injusta, visto que os pacientes já procuram o médico com o objetivo de emagrecer, este apenas ajudou-lhes a acelerar o processo e a motivá-los por meio da mentira. Juridicamente, neste contexto, tem-se a falta de ética do profissional, o médico, que é caracterizado pela mentira, que poderia ocasionar punições, uma vez que no ambiente de trabalho deve-se zelar pela verdade ainda que esta não prejudique ao paciente. Considerações Finais Esta pesquisa se propôs, como objetivo geral, a analisar as funções sociais da mentira nas crônicas “A Mentira”, “Brincadeira” e “O Sítio do Ferreirinha” de Luis Fernando Verissimo, contidas no livro As Mentiras Que Os Homens Contam. Conclui-se que a mentira exerce variadas funções no meio social e é utilizada por diversas razões, com o intuito de omitir, evitar ou induzir a algo. Cabendo a cada indivíduo avaliar as consequências (jurídicas, religiosas, éticas e morais) que ela pode ocasionar. Abordando contextos em que frequentemente a mentira é utilizada, Verissimo consegue expressar situações da vida real por meio dos seus personagens. As crônicas proporcionam ao leitor a reflexão sobre as situações apresentadas, não tendo como objetivo simplesmente abordar uma tema atual, mas demostrar a visão geral da população, como determinada questão é vista e se é ou não aceitável no meio social. Além disso, leva o leitor a assumir uma posição crítica em relação ao ponto de vista apresentado. É possível observar o quanto a mentira está enraizada nas relações sociais. E as situações apresentadas induz o leitor a se perguntar o porquê desta realidade e por que em determinadas situações dá-se preferencia à mentira ao invés da verdade. Sendo um texto que aborda geralmente assuntos do dia a dia, a crônica pode vir vinculada a vários meios de comunicação: jornal, meios virtuais e organizadas em obras literárias, como é o caso do conjunto de crônicas da obra As Mentiras Que Os Homens Contam. Ela possui características próprias que a torna autônoma, porém cada autor apresenta da sua maneira uma temática. De acordo com a análise desenvolvida, foi possível constatar que as crônicas de Verissimo possuem características que refletem o seu estilo textual. O autor consegue retratar a realidade da vida em sociedade. Ele aborda assuntos populares e uma característica de bastante destaque do autor é que ele ou nomeia seus personagens com nomes comuns ou não os nomeia, o que transmite a ideia de que o personagem pode ser um conhecido do leitor. As Mentiras Que Os Homens Contam leva o leitor a refletir sobre: com que frequência você mente? É humanamente possível viver sem a mentira? Por que ela está tão presente na sociedade? Todas essas questões são propostas por meio dos enredos apresentados em forma de crônica. Com lirismo e bom humor, Verissimo encanta os seus fãs. E apesar de abordar assuntos que já se tornaram clichês na vida social, a forma de apresentar o tema faz da leitura uma diversão. O desenvolvimento desta pesquisa foi importante para a definição dos fatores sociais que censuram a mentira e entende-se que apesar disso ela está enraizada nas relações sociais, a ponto de as mentirinhas do dia a dia, como uma desculpa para não ir a um compromisso ser considerada normal. Sendo possível também compreender os valores literários que fazem de Verissimo um autor contemporâneo e que apresenta ao ramo literário inovações. Referências Bibliográficas: AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira, Dicionário Aurélio. 5 ª edição, 2010. BRASILEIRO, Código Penal. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Consultado em 12/05/2013. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueredo. São Paulo: Ave Maria, 2011. Edição Pastoral Catequética. CARAS, Revista Online. In: http://www.caras.uol.com.br/pefil/luis-fernando-verissimo. Consultado em 20/03/2013. COELHO, Marcelo. Notícias sobre a crônica. 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