As Caras e as Crônicas do Discurso Dominante Las Caras y las Crónicas del Discurso Dominante Raquel Conceição da Silva Centro de Comunicação e Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie Rua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP [email protected] Resumo. Este trabalho tem como objetivo analisar o discurso das literaturas que retratam episódios da vida das elites, como as publicações contemporâneas sobre célebres e as crônicas quinhentistas. Para tal, faz-se um recorte desse tema, em que se analisa um fragmento da crônica de Amador Rebelo e uma nota da revista Caras. Pretende-se, com esta pesquisa, mostrar como a linguagem veicula a ideologia dominante e assinalar as repercussões das crônicas quinhentistas na atualidade. Palavras-Chave: Análise do Discurso; Linguagem; Ideologia. Resumen. El objetivo de este estudio es analizar el discurso de las literaturas que presentan episodios de la vida de las elites, como las publicaciones contenporáneas acerca de los célebres y las crónicas quinientistas. Para eso, se selecciona una parte del tema en el que se analiza un fragmento de la crónica de Amador Rebelo y una nota de la revista Caras. Lo que se pretende con esta investigación es mostrar cómo el lenguaje demuestra la ideología dominante y apuntar las repercusiones de las crónicas quinientistas en la actualidad. Palabras clave: Análisis del discurso; Lenguaje; Ideología. 1. Considerações iniciais Esta pesquisa tem como objetivo analisar o discurso das literaturas que se destinam a relatar os flagrantes do modus vivendi das elites como as colunas sociais da atualidade e as crônicas quinhentistas. Neste estudo, analisam-se os seguintes registros: uma nota da revista Caras chamada “Glamour para Luiza Brunet” e um fragmento da crônica “Da pessôa de El-Rei Dom Sebastião” de Amador Rebelo. Pretende-se, com esta investigação, identificar o ethos que emerge do material selecionado, para apreender a ideologia dominante de cada época e assim verificar os pontos de aproximação ou divergência entre estas “crônicas” dos distintos grupos sociais. A partir do propósito exposto, podem-se delimitar três sub-objetivos: observar a construção da identidade do indivíduo nessas sociedades; analisar como os discursos sociais se constituem e que efeitos de sentido produzem no texto e, por fim, estudar a relação entre linguagem e ideologia nos registros escolhidos. Para iluminar o exame do corpus, adotar-se-ão os princípios teóricos da análise do discurso utilizados por José Luiz Fiorin e Diana Luz Pessoa de Barros. 2. Fundamentação teórica Para o desenvolvimento deste trabalho, é importante retomar alguns conceitos fundamentais para a realização das análises. Um deles é a relação entre linguagem e ideologia. Ao discorrer sobre ideologia em seu livro Linguagem e ideologia, José Luiz Fiorin apresenta a seguinte definição: “[...] a essas representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele mantém com os outros homens é o que comumente se chama ideologia (1997, p. 28).” Partindo desse entendimento, pode-se dizer que ideologia é uma visão de mundo, a maneira como uma classe social observa a realidade ou o modo como uma classe interpreta a “ordem social”. Mesmo que em uma formação social existam tantas visões de mundo quantas forem as classes sociais, a ideologia predominante será a da classe dominante. Segundo o mesmo estudioso, não existem idéias desvinculadas da linguagem, entendido esse binômio (idéia / linguagem) do ponto de vista conceptual. Linguagem e pensamento não se apresentam de forma pura, são fenômenos distintos, porém indissociáveis, isto é, o pensamento existe porque há uma linguagem que o elabora e pode ou não expressá-lo. Devido a essa “inseparabilidade”, conclui-se que o discurso concretiza as representações ideológicas. As formações ideológicas materializam-se nas formações discursivas (conjunto de temas e figuras). Portanto, as influências sociais presentes na linguagem são encontradas no nível do discurso. Em Teoria semiótica do texto (1999), Diana Luz Pessoa de Barros apresenta princípios relevantes para o estudo do discurso. Primeiramente, entende-se por teoria semiótica a teoria desenvolvida por Algirdas Julien Greimas (1917-1992) e seus seguidores. A semiótica greimasiana ou a semiótica francesa foi a escolhida por Barros, mas existem outras teorias conhecidas como a da Escola de Tartu e a de Charles Sanders Peirce (1839-1914). Em segundo lugar, a semiótica tem como objeto de estudo o texto. Todo texto pode ser entendido como a união de um plano de expressão e um plano de conteúdo. Este precisa ser veiculado por aquele, ou seja, quando há a manifestação de um plano de conteúdo por um plano de expressão, tem-se o texto. Esse conteúdo pode ser expresso por diferentes formas de expressão, isso quer dizer que o plano de expressão pode ser de distintas naturezas: verbal, gestual, entre outras. Segundo Barros, para interpretar “‘o que o texto diz’ e ‘como o diz’, a semiótica trata, assim, de examinar os procedimentos da organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos enunciativos de produção e de recepção do texto” (1999, p. 8). Ainda se entende que a teoria semiótica busca explicar o sentido de um texto, examinando, em primeiro lugar, seu plano do conteúdo. Para analisar o plano do conteúdo de um texto, para compor o seu sentido, a semiótica concebe um modelo teórico: o percurso gerativo do sentido. Esse percurso é composto por três etapas: a primeira, a mais simples e abstrata, denominada nível fundamental ou das estruturas fundamentais. Nessa fase, surge a significação como uma oposição semântica mínima; nela se observam as categorias fundamentais que são determinadas como positivas ou eufóricas e negativas ou disfóricas. A segunda etapa recebe o nome de nível narrativo ou das estruturas narrativas, em que a narrativa é organizada do ponto de vista de um sujeito. E o último patamar do percurso gerativo é o do discurso ou das estruturas discursivas. Nesse nível, a narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação. Em resumo, o percurso gerativo do sentido vai do simples ao complexo, do abstrato ao concreto. Em cada um dos patamares apresentados acima (fundamental, narrativo e discursivo), existe um componente sintático e um componente semântico. Como as determinações sociais presentes na linguagem são encontradas no nível discurso, trabalha-se apenas com a semântica e a sintaxe da última etapa do percurso. Os processos de estruturação do discurso pertencem à sintaxe discursiva. Por exemplo, o uso ou não da primeira pessoa é um mecanismo da sintaxe. Quando se utiliza a primeira pessoa produz-se um efeito de sentido de subjetividade. Se esse recurso não é usado, tem-se um efeito de sentido de objetividade. A utilização do discurso direto, indireto e indireto livre é outro mecanismo da sintaxe discursiva. Ao usar o discurso direto, por exemplo, produz-se um efeito de sentido de “verdade”, pois o narrador reproduz de forma literal o discurso da “personagem”. Em relação aos procedimentos semânticos do discurso, observam-se dois: a tematização e a figurativização. De acordo com o modo de concretização da estrutura narrativa, têm-se dois tipos de textos: os figurativos e os temáticos. De forma breve, os textos temáticos buscam explicar a realidade, eles têm uma função interpretativa do mundo. Já os textos figurativos constroem um efeito de realidade, pois apresentam o mundo no texto. Um texto figurativo é organizado basicamente com figuras e um texto temático predominantemente com temas. A classificação depende da preponderância de elementos abstratos ou concretos. Nos textos temáticos, a ideologia revela-se com toda nitidez no nível dos temas. Já nos textos figurativos, essa manifestação acontece na relação temas-figuras. Enquanto a sintaxe discursiva tem certa autonomia em relação às formações sociais, a semântica discursiva recebe mais impacto das coerções sociais. Portanto, esta é o campo da determinação inconsciente e aquela da manipulação consciente. 3. Examinando o corpus Para se compreender melhor como a linguagem veicula a ideologia, examinamse, agora, duas “crônicas”: a nota “Glamour para Luiza Brunet” e um fragmento da crônica “Da pessôa de El-Rei Dom Sebastião”. Primeiramente, será analisada uma nota da edição 700, do dia 06 de abril de 2007, da revista Caras. O estudo será feito sob a perspectiva da semiótica francesa (greimasiana). Serão abordados, no entanto, apenas alguns aspectos dos níveis fundamental, narrativo e discursivo da nota escolhida. Na etapa das estruturas fundamentais é necessário definir a oposição ou as oposições semânticas que estão na base da construção do texto. Em “Glamour para Luiza Brunet”, a categoria semântica fundamental é riqueza versus pobreza. Ao ler a notícia, sabe-se que a riqueza é eufórica e a pobreza disfórica. O primeiro termo tem um valor positivo, pois a posse de bens materiais leva ao sucesso, a uma vida luxuosa. Já o segundo tem um valor negativo, pois a falta de recursos financeiros é sinônimo de fracasso. Como será observado no decorrer da análise, pelo fato de ter uma situação econômica “especial”, a personagem central da nota freqüenta vários lugares requintados. Há, portanto, uma euforização do sujeito detentor de bens materiais. O nível narrativo é o da relação entre um sujeito e um objeto. Voltando ao corpus escolhido, nesse plano, observa-se uma personagem em conjunção com a riqueza, mas que busca incessantemente um privilégio disponível a quem tem posses: glamour, luxo, sofisticação, fama, glória. Conclui-se que não basta ter bens, é importante estar em evidência, exibir seu poder. De acordo com José Luiz Fiorin, em sua obra Elementos de análise do discurso (2005), uma narrativa complexa é estruturada em uma seqüência padrão, formada por quatro etapas: a manipulação, a competência, a performance e a sanção. É mister assinalar que, para praticar uma ação, o sujeito precisa querer e/ou dever fazer algo e só alcançará êxito se tiver um conhecimento (um saber) e um poder. Dando continuidade ao estudo, na etapa da manipulação, verifica-se um “querer” e um “dever fazer” do sujeito. A personalidade quer continuar em evidência e deve fazer isso para não cair no esquecimento. Essa busca é incessante e vital para permanecer no concorrido mundo dos famosos. Na fase da competência, percebe-se o “poder fazer” da protagonista da nota, que pode participar de eventos badalados por ser muito rica e o seu “saber fazer”, ela sabe atrair os flashes. Por exemplo, destaca-se o modo como Brunet chegou ao local da apresentação da cantora Diana King, ou seja, em um carro “luxuoso”. No texto em exame, percebe-se a realização da performance, a passagem de um estado para outro, a conjunção com objeto de valor representado pelo termo glamour. Na fase da sanção, ocorre a seguinte constatação: “[...] esta foi uma semana de muito glamour”. Portanto, a sanção foi positiva, pois o sujeito realizou a performance, conseguiu o seu objetivo. De forma sucinta, a sanção é a fase do reconhecimento do sujeito da transformação, quando acontece a averiguação de que a performance foi ou não realizada. O próximo passo é apontar o que é “ideologizado” na linguagem, pelo fato de esta veicular as “idéias” da classe dominante. Como já foi visto no capítulo teórico, a linguagem tem certa autonomia em relação às formações sociais, mas também sofre influências. Por isso, não se deve desvinculá-la da vida social nem ignorar a sua função, ou seja, limitá-la ao nível ideológico. É no nível do discurso não da língua nem da fala, que se manifestam de forma integral as determinações ideológicas. Examinam-se, agora, os recursos discursivos usados no objeto de análise. Na nota selecionada, o acontecimento é narrado em terceira pessoa. Nesse caso, tem-se a impressão de que foi estabelecida uma verdade objetiva. Em virtude da não utilização da primeira pessoa, criou-se um efeito de sentido de objetividade. Se o relato fosse contado em primeira pessoa, ele traria as impressões pessoais do profissional, isto é, estaria vinculado à subjetividade. O emprego da terceira pessoa também produz um distanciamento, indicando que apenas foi transmitido o ocorrido, que as informações foram registradas conforme foram relatadas pelas fontes, que a publicação não é responsável pelo que foi dito. Outros mecanismos pertencentes à sintaxe discursiva são os discursos: direto, indireto e indireto livre. No material analisado, Luiza Brunet apresenta sua opinião de forma direta duas vezes: “O carro é tão luxuoso quanto esta noite” e “Eu e minha filha Yasmin posamos em um cenário carnavalesco e muito chique. Aliás, esta foi uma semana de muito glamour.” Quando as palavras saem da boca da personalidade, em discurso direto, cria-se um efeito de verdade. Se ela disse exatamente isso não importa, pois o objetivo essencial já foi alcançado: dar veracidade aos fatos. Em relação aos procedimentos semânticos do discurso, a nota analisada é predominantemente figurativa, pois remete a elementos concretos do mundo natural: “a bela Luiza Brunet”, “à Sala São Paulo”, “carro luxuoso (Vectra Elite)”, “empresário Armando Fernandez”, “praia”, “fotógrafo de moda peruano”, entre outros. Em um texto figurativo, a ideologia manifesta-se na relação temas-figuras, por isso é importante observar o nível figurativo com atenção, para se alcançar o temático. É necessário apontar os temas subjacentes a essas figuras para se ter as “idéias” preponderantes no registro. Por meio do conjunto de figuras da nota, depreendem-se os seguintes temas: beleza, luxo, riqueza, sucesso. Agora se faz uma análise mais detalhada do conteúdo da nota. O material utilizado para análise apresenta o seguinte título: “Glamour para Luiza Brunet”. Essa chamada já revela um dos temas da notícia: luxo, requinte, sofisticação, pois o vocábulo glamour pode ser associado a essas palavras. No subtítulo da nota, encontram-se elementos que afirmam a interpretação anterior “Carro digno da classe da musa”. Por meio do adjetivo “digno” tem-se a seguinte conclusão: Brunet chegou ao evento com um automóvel adequado para a ocasião e apropriado a uma pessoa do seu nível social, já que pertence a uma “linhagem refinada”. Ao analisar o termo “classe”, ou a expressão “digno da classe”, retoma-se a idéia apresentada no parágrafo anterior, isto é, a respectiva senhora chegou à Sala São Paulo com um veículo digno de um membro de sua estirpe. Também se pode atribuir outro sentido à palavra em destaque: a idéia de elegância. A dama segue todos os preceitos estabelecidos por um grupo que define os requisitos necessários para ser chique ou elegante. Por último, ressalta-se o substantivo feminino “musa”, usado para se referir à empresária (dona da marca Luiza Brunet). Fazse a seguinte análise: além de ser admirada pelos integrantes do seu grupo social, ela inspira as pessoas de todos os meios, ou por sua beleza, ou por sua conduta, ou por outros atributos. Examina-se, agora, o corpo do texto. Logo no primeiro parágrafo: “Vinda do Rio só para aplaudir Diana King (36), a bela Luiza Brunet (44) adorou o modo como chegou à Sala São Paulo”, torna-se evidente a importância dada ao evento, pois Brunet veio do Rio de Janeiro somente para assistir à apresentação da cantora jamaicana Diana King. O uso do advérbio “só” sugere essa interpretação, pois indica exclusividade da ação: “Vinda do Rio só (apenas para isso...)”. Percebe-se aqui o valor dado ao evento pela ilustre dama. Ainda é importante mencionar o termo “bela”, utilizado ao citar a exmodelo. Nestas publicações sobre célebres, é normal exaltar a beleza das famosas, pois além de ser rica e elegante, é necessário ter atributos físicos. Portanto, outro requisito fundamental para ser uma celebridade é ter formas estéticas ideais, mesmo que, em alguns casos, essa beleza seja adquirida. Outro termo recorrente nas colunas sociais é o verbo “adorar”, usado para enfatizar o sentimento, o grau de felicidade das personalidades. Em segundo lugar, assinala-se este trecho: “O carro é tão luxuoso quanto esta noite, disse a musa, referindo-se ao Vectra Elite, da GM, usado por ela e pelo marido, o empresário Armando Fernandez (56)”. Aqui se torna evidente o vocabulário de exaltação “O carro é tão luxuoso”. Como o adjetivo “luxuoso” não foi suficiente para definir o automóvel, houve a necessidade do emprego do advérbio de intensidade em razão da dificuldade de se determinar a grandiosidade dos elementos desse “mundo maravilhoso”. Aliás, a noite também é luxuosa, definição usada pela própria Brunet. Em seguida, tem-se o seguinte fragmento: “Ainda mais linda, Luiza contou que caminhadas na praia têm reforçado o seu bronzeado, sucesso na sessão armada um dia antes no Rio pelo top fotógrafo de moda peruano Mario Testino (52) para clicar ela e outros vips”. Mais uma vez, euforiza-se a beleza de Luiza Brunet. Para isso, usam-se dois termos: um advérbio de intensidade e um adjetivo: “Ainda mais linda”. O advérbio “ainda” também reforça a idéia que emerge dessa expressão: mesmo com o passar do tempo a ex-modelo continua bela, pois o tempo deixa-a mais bonita. Outra informação apresentada na passagem assinalada é sobre a disposição da personalidade para manter o visual “... caminhadas na praia têm reforçado o seu bronzeado” e em razão dessa aparência impecável, Brunet fez muito “sucesso” na sessão de fotos de que participou. Por fim, apresenta-se o último fragmento do registro: “Eu e minha filha Yasmin posamos em um cenário carnavalesco e muito chique. Aliás, esta foi uma semana de muito glamour”. Finaliza-se a nota com as palavras da própria Brunet que, na declaração, fala sobre os acontecimentos da semana e exprime o seu entusiasmo. Atenta-se para a linguagem utilizada pela ex-modelo “cenário carnavalesco e muito chique” e “foi uma semana de muito glamour”, parecida com a da publicação. Entendese como “cenário carnavalesco”, um local colorido, um espaço alegre e exótico, pois a celebridade afirma que era “muito chique”. Esse “cenário carnavalesco” também pode ser associado ao cenário dos carnavais de salão, dos clubes de elite, em que a alegria e o colorido associam-se ao esplendor das fantasias. Parece que a concepção de Brunet sobre o termo mencionado é muito distante das categorias carnavalescas vividas pelo povo nas ruas. Em suma, desde o título da nota até a última linha do registro, apreende-se uma ideologia latente, isto é, a ideologia da classe dominante, aqui ideologia entendida como visão de mundo. No texto, por exemplo, a idéia de “classe” é retomada algumas vezes, tanto no sentido de pertencer a uma linhagem refinada, como no sentido de elegância. Quando usado com acepção de “ascendência”, observa-se o intuito de classificar, rotular. Dependendo do grupo social do indivíduo, ele é mais ou menos importante. Se utilizado para se referir à elegância, a intenção é de definir perfis, ou seja, a classe dominadora também dita as regras comportamentais. Outra informação inserida no registro analisado refere-se ao conceito de beleza, ou melhor, a importância de ser belo (bela). Os padrões estéticos são basicamente dois: ou o protótipo das passarelas de moda ou a silhueta “das curvas”, tão apreciadas pelo público masculino, característica típica da mulher brasileira. Não basta ser milionária e polida, é necessário ter formas estéticas ideais. Por último, é necessário mencionar que a classe dominante divulga suas idéias particulares a todos os membros da sociedade como se fossem idéias universais, pertencentes a todos os grupos sociais, quando a ideologia é de uma única classe, e que vários leitores da revista Caras não são membros da classe dominante, apenas sonham com o estilo de vida das personalidades exibidas no veículo de comunicação, pois muitos acreditam que o modelo de vida exposto na publicação é o ideal. Agora se analisa um fragmento da crônica “Da pessôa de El-Rei Dom Sebastião”. Em primeiro lugar, faz-se uma análise do percurso gerativo do sentido do texto para a identificação de alguns aspectos dos níveis pertencentes ao processo citado. Depois, examina-se o corpo do texto. Ao observar o nível fundamental, percebe-se a seguinte oposição semântica: perfeição versus imperfeição. Ao ler o relato do padre, nota-se o esforço do rei Dom Sebastião para fazer tudo muito bem: “[...] porque além de ser déstro nas armas, éra múito mais na desenvoltura dos membros em tornear, jogar a péla, lutar, saltar, e pôsto que, nos exercícios de pé, tivésse múita destrêsa, nos de caválo não houve em seu tempo outro que o igualásse...”. Portanto, na crônica, a perfeição é eufórica e a imperfeição disfórica. No nível das estruturas narrativas, verifica-se um sujeito em busca da superação, ou melhor, em busca da perfeição, pois ele deseja desenvolver todas as suas atividades de forma exemplar. Esse patamar apresenta quatro fases relevantes para uma transformação narrativa: a manipulação, a competência, a performance e a sanção. Na etapa da manipulação, tem-se a motivação do sujeito. Dom Sebastião queria e devia fazer todas as suas funções de maneira exemplar, pois era o rei de Portugal e servia de inspiração para o povo. A população deveria admirá-lo por seus pequenos e grandes feitos. Por isso, ele não executava os seus deveres de qualquer modo, pelo contrário fazia todas as suas obrigações com muito afinco, efetuava o simples e o complexo de forma nobre. Na fase da competência, percebe-se o “poder fazer” e o “saber fazer” do sujeito, como se observa neste trecho: “porque além dêle ser, em estrêmo, grão cavalgadôr e domadôr de feróses caválos, foi estremado monteadôr de pórcos, jogadôr de canas, torneios, justadôr, toureiro, nos quais exercícios éra tão fragueiro e sofredôr de todos os trabalhos corporais que nem a violência dos tempos de verão, nem invérno o pudérão vencer, nem as delícias dobrar, a ter ou desejar algúm repouso...”. Dom Sebastião podia fazer bem seus compromissos porque tinha todos os recursos necessários para isso, além disso apresentava um bom porte físico para o desenvolvimento de qualquer trabalho que exigisse força: “Éra El-Rei hómem de bôa estatura de côrpo, não em demasía, de fórtes membros, enxúto e bem dispôsto...” Ainda sabia fazer os seus ofícios, já que se dedicava intensamente aos seus objetivos, rejeitando alguns privilégios, como o repouso, para alcançar os seus desígnios: “éra tão fragueiro e sofredôr de todos os trabalhos corporais que nem a violência dos tempos de verão, nem invérno o pudérão vencer, nem as delícias dobrar, a ter ou desejar algúm repouso...” Conclui-se que ele realizou a performance, conseguiu alcançar o objeto de valor, pois tinha todas as competências necessárias para tal. Portanto, é sabido, na última etapa, que a sanção foi positiva: “No andar a pé e a caválo tinha tanto ar e majestade que bem representáva a dignidade real que tinha o esfôrço de ânimo para grandes feitos...” Em resumo, Dom Sebastião era um homem digno da sua posição. Agora se avaliam alguns elementos das estruturas discursivas. Em primeiro lugar, sabe-se que o autor da crônica optou pela narrativa em terceira pessoa: “[...] Foi El-Rei muito exercitado...”. Ao utilizar esse procedimento, criou-se um efeito de sentido de objetividade. Como já foi dito, o autor do texto foi professor do rei, conviveu com o protagonista da crônica, mas ao optar pela narrativa em terceira pessoa, pretende demonstrar ser imparcial em seu relato, ou seja, registrando apenas as vivências e posturas de Dom Sebastião. Em relação aos temas, nessa crônica tem-se a preponderância de figuras, como “El-Rei Dom Sebastião”, “déstro nas armas”, “domadôr de feróses caválos”, “monteadôr de pórcos”, “bôa estatura de côrpo”, “mancêbos Fidalgos”, entre outras. Por meio do conjunto de figuras presentes no texto, podem-se apontar os seguintes temas: riqueza, sucesso, coragem, beleza. Em síntese, essa crônica relata a história de um homem bem-sucedido do século XVI. Em várias passagens, percebe-se a presença dessa idéia no registro. Em relação ao corpo do texto, logo no primeiro fragmento, observa-se o tema em questão: “[...] Foi El-Rei muito exercitado nas fôrças corporais e fês vantágem a todos os mancêbos Fidalgos do seu tempo em todos os exercícios...”. Através desse trecho, compreende-se que Dom Sebastião exibia uma boa forma e desempenhava bem todas atividades físicas. Não só executava os exercícios de forma exemplar, como era melhor do que qualquer indivíduo da sua época. Ele superava os demais, isto é, até nas habilidades físicas ele está em junção com a excelência, com sua posição privilegiada. Outra informação inserida nessa passagem é sobre o grupo social do protagonista do texto. Por meio da expressão “mancêbos Fidalgos”, sabe-se que o rei “competia” com pessoas da classe dominante, que tinham recursos financeiros para fazer exercícios físicos, entre outras atividades. O seu universo era distinto da maioria da população, justamente por ser um homem do cenário político. Outra informação presente no texto em exame é sobre a aparência física de Dom Sebastião: “Éra El-Rei hómem de bôa estatura de côrpo, não em demasía, de fórtes membros, enxúto e bem dispôsto, sem defeito algúm. Éra alvo das carnes e os cabêlos da cabêça e os que lhe começávam a pungir (sic) da barba, louros.” Por meio dessa passagem sabe-se que o rei apresentava um bom condicionamento físico. Além do mais, pela descrição, acredita-se que era um homem belo, ou melhor, atendia ao padrão estético almejado em seu tempo e, mesmo exibindo um aparente “defeito”, esse desvio contribuia para a harmonia do conjunto, isto é, não afetava o tipo de beleza exibida pela realeza, como se observa neste trecho: “Tinha o rôsto grave e sevéro, com o beiço debaixo um pouco derrubado, cuja composição lhe dáva múita graça e formosúra.” No último parágrafo da crônica, tem-se a constatação que Dom Sebastião apresentava os requisitos necessários para ser uma figura exemplar. Desde os seus pequenos atos até os mais grandiosos mostravam sua inclinação para o ofício, ou seja, era um homem capaz de governar uma nação. Em suma, era um homem perfeito para tal cargo, pois fazia “tudo” de modo impecável. Por fim, discorre-se sobre a linguagem usada para se referir ao rei, os termos utilizados para compor o seu perfil. No texto, é recorrente o uso de expressões que indicam a superioridade de Dom Sebastião como se pode ver nas seguintes passagens “fês vantágem a todos os mancêbos Fidalgos do seu tempo” e “nos exercícios de pé, tivésse múita destrêsa, nos de caválo não houve em seu tempo outro que o igualásse”. Os elementos lingüísticos “vantágem” e iguálasse” deixam latente a idéia de supremacia. Também ao longo da narrativa, vários vocábulos são utilizados para evidenciar a sua performance em diversas atividades físicas “estremado monteadôr de pórcos” e “grão cavalgadôr”, entre outros exemplos. Ele não era um simples “monteadôr”, era “estremado”. Outros elementos poderiam ser citados, mas os termos assinalados já ilustram a freqüente euforização da personalidade por meio da linguagem. Nesta crônica, torna-se evidente a seguinte ideologia: um homem “perfeito” precisa ser rico, corajoso, belo, poderoso (no sentido de conseguir todos os alvos estabelecidos por ele), isto é, precisa ter no mínimo esses atributos para ser considerado uma figura de sucesso. O protagonista do relato de Amador Rebelo possuia os requisitos mencionados acima, ou seja, era perfeito para a função destinada a ele: ser rei de Portugal. Pela construção da figura do rei Dom Sebastião, percebe-se que ele era o homem ideal para ocupar um cargo de tanta responsabilidade. Além disso, é sabido que o rei ocupava essa posição não apenas por privilégio, sobretudo porque ele fazia por merecer. Parece que ao desempenhar todas atividades de forma exemplar, ao reunir todas as características citadas, a manipulação instaura-se de tal sorte que o leitor é levado a acreditar que Dom Sebastião era o homem mais adequado para governar a nação portuguesa. Em síntese, a ideologia dominante nesse registro é a de que o nível das excelências só é alcançado por alguém que se notabiliza em todas as práticas e singulariza-se por atributos pessoais superiores. Cria-se em torno da celebridade descrita uma aura de perfeição, de mito da realeza. 4. Considerações finais Do exposto conclui-se que as literaturas destinadas à elite acabam por divulgar a visão de mundo da classe dominante. Como foi visto, para o grupo dominador um homem bem-sucedido precisa reunir basicamente três requisitos: riqueza, sucesso e beleza. A partir do estudo realizado, pode-se inferir que a riqueza leva ao sucesso ou o dinheiro conduz à fama. Cabe lembrar aqui que essa concepção torna-se evidente no decorrer da análise. Agora, para que o indivíduo seja completamente poderoso, ele precisa acompanhar o padrão estético vigente. Como é sabido, muitas vezes, essa beleza pode ser adquirida por meio de recursos financeiros, mas aqui se assinala a valorização daquele que possui a concepção estética estabelecida pelo seu grupo social. Tanto na crônica sobre Dom Sebastião como na nota da revista Caras fica evidente a “euforização” da beleza pela descrição das características físicas da personagem central ou pela recorrência de termos que exaltam o perfil estético da celebridade. Outro aspecto peculiar dos relatos sobre célebres é a construção da identidade das personalidades. Normalmente, essas figuras eminentes são dotadas de um grau “elevado de excelência”, desempenham todas as atividades de forma exemplar, alcançam êxito em todos os seus projetos (pessoais ou profissionais), explicitando a idéia de que são indivíduos propensos à glória. Mesmo que porventura passem por algum tipo de adversidade, esses seres quase perfeitos enfrentam o problema com tranqüilidade e lucidez, pois todos têm consciência da sua capacidade. Verificou-se, aqui, que os episódios de sucesso são mais valorizados; registra-se com mais freqüência a vida cheia de glória e de prazeres dos famosos. Em síntese, esta pesquisa buscou apresentar a relação entre linguagem e ideologia, apresentar como a linguagem veicula a ideologia dominante, além de mostrar como é antiga a prática de registrar aspectos da vida dos famosos. 5. Referências bibliográficas BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3.ed. São Paulo: Humanitas, 2002. _________________________. 1999. Teoria semiótica do texto. 4.ed. São Paulo: Ática, CHAUÍ, Marilena de. O que é ideologia. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 2001. COIMBRA, Oswaldo. O texto da reportagem impressa: um curso sobre sua estrutura. 1. ed. São Paulo: Ática, 1993. DISCINI, Norma. 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