FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO
FACULDADE DE ECONOMIA
ESTADO, SOCIALISMO E REVOLUÇÃO: DO SONHO
SOCIALISTA À RÚSSIA DOS NOVOS CZARES.
MAYRA COAN LAGO
Monografia de Conclusão de Curso
apresentada à Faculdade de Economia
para obtenção do título de graduação em
Relações Internacionais, sob orientação
do Prof. Antonio Sérgio Bichir.
São Paulo, 2011
LAGO, Mayra C. ESTADO, SOCIALISMO E REVOLUÇÃO: DO SONHO
SOCIALISTA À RÚSSIA DOS NOVOS CZARES. São Paulo, FAAP, 2011, 102p.
(Monografia Apresentada ao Curso de Graduação em Relações Internacionais da
Faculdade de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado)
Palavras-Chave: Socialismo – URSS – Rússia.
AGRADECIMENTOS
Ao excelente professor e orientador, Antonio Sergio Bichir, que durante um ano inteiro
de trabalho esteve à disposição para esclarecimentos e apoio. Agradeço pela
contribuição com material bibliográfico, com suas esclarecedoras orientações e tempo
dedicado.
À professora Helena Margarido Moreira, que também contribuiu com a realização deste
trabalho, com importante material bibliográfico, com o qual pude aprofundar meus
conhecimentos referentes à Rússia atual e enriquecer o capítulo três.
Aos professores da Fundação Armando Alvares Penteado que, de alguma forma,
auxiliaram a minha formação e desenvolvimento pessoal e profissional.
Aos meus pais e à minha irmã que me proporcionaram a oportunidade de estudar em
uma universidade reconhecida por seu ensino de qualidade e tradição. Agradeço
também por sempre apoiarem, incentivarem, acreditarem em mim e também por
mostrarem que, com esforço e dedicação, tudo é possível.
SUMÁRIO
RESUMO
INTRODUÇÃO
1
1 A CONSTRUÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO: A RÚSSIA DE LÊNIN
4
1.1 A Kerenschina
4
1.2 A Construção do Socialismo
14
1.3 O Sistema de um Único Partido
26
2 A DESTRUIÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO: A RÚSSIA DE STALIN
28
2.1 Da Obscuridade ao Triunvirato
28
2.2 A “Revolução Permanente” versus “Socialismo num só País”
40
2.3 A Retomada do “Império”: O Governo de Josef Stalin
45
2.4 A Segunda Grande Guerra e a Queda do “Czar Vermelho”
57
3 A RECONSTRUÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO
63
3.1 O “Desestalinizador”
63
3.2 O Marionete Estagnado
69
3.3 O “Chefe” do KGB
73
3.4 O Favorito de Brejnev
75
3.5 O Último Leninista
78
3.6 O Legado de um Império: A Nova Rússia
89
CONCLUSÃO
93
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
98
RESUMO
Esta monografia busca estabelecer uma relação entre o fim da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS) e os impactos políticos, econômicos e sociais na
Federação Russa. A Revolução de Outubro instaurou na Rússia um governo de caráter
socialista, entretanto, após a morte de Lênin houve uma interrupção do modelo
proposto. Por isso, também será feita uma reflexão a respeito do socialismo marxistaleninista e do “socialismo sacrificial” após a morte de Lênin, por Stalin, Kruschev,
Brejnev, Andropov, Chernenko e Gorbachev.
1
INTRODUÇÃO
O tema deste trabalho é o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS) e seus impactos políticos, econômicos e sociais na Federação Russa. Essa pesquisa se
justifica pela importância do tema para se entender como os fatores político, econômico e
social influenciaram a Rússia. O debate sobre a dissolução da URSS é um assunto estudado
de forma vasta, por diversos autores, no entanto, procurou-se estabelecer uma relação entre o
fim da URSS e a “nova” Rússia e, por esse motivo, é um tema intrigante para todos os
interessados na história da URSS e da Rússia, na revolução socialista e na história políticoeconômica mundial.
Assim, o objetivo deste estudo é demonstrar como a dissolução da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) alterou a “formação” da Rússia, no contexto atual.
Além disso, será abordada a história da URSS desde a Revolução de Outubro, com o intuito
de obter uma reflexão sobre o comunismo proposto nas bases teóricas do marxismo-leninismo
e o que foi aplicado por Stalin e os demais líderes soviéticos.
Em geral, dois acontecimentos marcaram a história do século XX: a Revolução Russa
que possibilitou a implantação do socialismo real a partir da proclamação da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, tornando-o uma alternativa ao capitalismo ultrapassado, e a
derrocada desse socialismo.
Tais acontecimentos estão intimamente ligados. Após a Revolução de Outubro e a
Guerra Civil, Lênin instituiu o sistema do partido único, pois precisava de estabilidade para
governar. O sistema unipartidário favoreceu a corrupção e a ascensão de diversos líderes de
forma antidemocrática que moldaram o socialismo a seu favor, como Stalin (conhecido como
coveiro do socialismo), Kruschev, Brejnev, Andropov, Chernenko e Gorbachev. Acrescentase aos problemas políticos, os problemas econômicos e sociais, isto é, a URSS alcançou o
status de grande potência, mas com altos custos para a população, que nunca teve acesso ao
que lhe foi prometido no início: terra, alimento, paz e liberdade. Como consequência de sete
décadas de socialismo, com a exploração da população, altos gastos com os demais países
socialistas, entre outros fatores, assistiu-se ao enfraquecimento do regime e ao seu inevitável
colapso.
Sabe-se, ainda, que todos os países do bloco soviético sofreram grande impacto com a
dissolução da URSS em 1991. Assim, refletindo-se sobre o “socialismo real” que foi proposto
2
na URSS, sobre o papel dos sete líderes e atuação da grande potência no âmbito doméstico e
global, de que forma a dissolução do sistema soviético alterou o ressurgimento da Federação
Russa?
Como hipótese, destaca-se: o modelo soviético como uma alternativa ao modelo
ultrapassado, o capitalismo, mas não o “real modelo socialista” que foi proposto nas bases do
marxismo-leninismo. O fato é que o sistema soviético desabou e a Rússia ficou como
principal herdeira do antigo regime. O país representava a maior parte do território, da
economia e da população soviética.
Para o estudo sobre a evolução política do regime soviético, esta monografia pode ser
dividida em três grandes capítulos. O primeiro capítulo fará uma tentativa para demonstrar
quais foram as consequências da Primeira Guerra Mundial para a Rússia e como as condições
econômico-sociais motivaram a revolução que derrubou o governo czarista e, mais tarde,
implantou o governo bolchevique nos moldes do comunismo proposto por Lênin. Para o
estudo, serão utilizadas fontes primárias como Lênin e Trotski que defendiam a revolução
proletária na Rússia e mostraram como as contradições capitalistas encontravam-se no país.
Fontes secundárias como Deutscher e Hobsbawm defendem a revolução proletária em países
mais avançados, pois a Rússia não tinha as condições necessárias para realizá-la. Após a
Revolução de Fevereiro, mostra-se a indignação dos líderes da Revolução de Outubro, com
relação ao governo instituído e aos seus membros. Com a Revolução de Outubro, em seguida,
utilizam-se as fontes primárias e secundárias, mas com outro enfoque, demonstrando a
instalação do governo provisório, a Guerra Civil, as condições econômicas necessárias após
tais acontecimentos e, por fim, o debate acerca de um único partido.
O segundo capítulo busca descrever como se deu a ascensão do “czar” vermelho como
sucessor de Lênin e como Stalin moldou o comunismo a seu favor. Também serão abordadas
discussões a respeito do debate acerca da revolução socialista (socialismo em um só país e
revolução permanente), a vitória de Stálin sobre Trotsky, os anos do Terror e as medidas
econômicas que possibilitaram a vitória da URSS na Segunda Guerra Mundial. Para este
estudo, também serão utilizadas as fontes primárias como Lênin e Trotski que, após um
tempo, começaram a alertar o partido sobre os atos de Stalin, e fontes secundárias como
Deutscher e Volkogonov que descrevem como se deu a ascensão do “czar vermelho”. Além
disso, serão utilizadas fontes primárias acerca do debate dos rumos da URSS, marcados pela
dualidade entre Trotski e Stálin. O primeiro liderou a Revolução Permanente, isto é, a
necessidade de outros países se aliarem à URSS, para alcançar o sucesso da revolução
socialista mundial e o segundo liderou a teoria do Socialismo em um só país, em que a URSS
3
conseguiria atingir a revolução proletária mundial sem o auxílio de outros países. Também
são utilizados autores secundários como Deutscher, Hobsbawm, Volkogonov e Judt para a era
do extermínio, posições econômicas, Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria.
O terceiro capítulo tem como objetivo demonstrar o forte domínio do partido da URSS
nos âmbitos político, econômico e social, a ascensão dos líderes soviéticos, o enfraquecimento
do regime e a causa do marxismo-leninismo.
Após aproximadamente setenta anos da Revolução de Outubro, a população e os
próprios líderes soviéticos desiludiram-se com o regime e a ideologia socialista, recordavam
Lênin e seus ideais para ter o apoio da população e permanecer em seus cargos. É nesse
período que o sistema soviético começou a sucumbir, sendo a queda da URSS algo inevitável.
Para o estudo, serão utilizadas principalmente fontes secundárias como Deutscher que trata do
fenômeno da desestalinização, a relação entre Stalin e Kruschev, a queda de Kruschev e o
início da estagnação de Brejnev. Volkogonov comenta sobre todos os chefes soviéticos, mas
traz um enfoque mais pessimista quanto ao papel dos sete chefes: a corrupção, a estagnação
econômica e o enfraquecimento do regime. Judt trata do período da Guerra Fria nos anos em
que Brejnev e Andropov governaram, e sobre suas decisões. Por fim, Gorbachev foi utilizado
como fonte primária para tratar da Perestroika, da Glasnost e dos últimos anos do sistema
soviético. Em contraposição a Gorbachev, utiliza-se de Mandel e Hobsbawm que defendem a
idéia de que este regime não tinha “conserto” e por isso, deveria ser eliminado. Hobsbawm
faz uma reflexão sobre o socialismo idealizado pelo marxismo-leninismo e conclui que o
socialismo praticado na URSS estava em desacordo com o socialismo proposto e, por isso,
teve entraves e foi dissolvido. Tal acontecimento abalou todos os países que faziam parte do
bloco, mas, sem dúvida, a Rússia foi a principal herdeira do império. Por essa razão, a parte
final do terceiro capítulo é composta por autores secundários como Adam, Pomeranz,
Medeiros, entre outros, que tratam dos entraves da Rússia pós-soviética e dos debates internos
a respeito da sua identidade e papel no “novo” mundo.
4
1 A CONSTRUÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO: A RÚSSIA DE LÊNIN
Obrigados a unir-se em torno do Czar para defender a terra natal, mantidos
prisioneiros pelo espaço imenso da planície, os russos ignoraram por longo tempo a
revolta contra a ordem estabelecida. Assim, diferentemente dos povos do Ocidente,
não transformaram seu destino coletivo impondo ao Estado concessões e reformas:
só o Czar decidia. A sociedade russa desejava afirmar-se, mas era incapaz disso e
não conseguia nem mesmo transformar-se. Não lhe restava outra saída senão
contemplar o poder, adorando-o ou odiando-o (FERRO, 1967, p. 14).
Neste capítulo, serão estudados os antecedentes da Insurreição de Outubro, isto é, as
condições econômico-sociais que motivaram a Revolução Russa de 1917, que derrubou o
governo czarista. Também serão pesquisados o primeiro governo soviético, o comunismo que
foi proposto por Lênin, os debates e discussões internas no Partido e o fortalecimento do
mesmo.
1.1
A Kerenschina
A revolução é uma prova de força aberta entre as forças sociais, na luta pelo poder.
O Estado não tem fim em si mesmo. É simplesmente um instrumento de trabalho
nas mãos da força social dominante. Como qualquer instrumento, tem seus
mecanismos motrizes de transmissão e execução. A força motriz é o interesse de
classe, cujo mecanismo consiste na agitação, na imprensa, na propaganda de igreja,
na escola, no partido; a manifestação de rua, o pedido e a revolta. O mecanismo de
transmissão é a organização legislativa dos interesses de casta, dinastia, camada ou
classe, sob o signo da vontade divina (absolutismo) ou nacional (parlamentarismo).
O mecanismo executor finalmente é a administração, com a polícia, os tribunais, os
cárceres e o exército. O Estado não tem fim em si mesmo, mas é a mais perfeita
organização média, desorganização e reorganização das relações sociais. De acordo
com as mãos que se encontram, pode ser a alavanca para uma revolução profunda ou
o instrumento de uma paralização organizada (TROTSKI, 1971, p.171, tradução
nossa).
De acordo com Kennedy (1989), o império czarista, pelo seu tamanho e população,
também estava no clube seleto das “potências mundiais” no século XX. Mesmo nesse clube, a
Rússia nas décadas anteriores a 1914 poderia ser considerada poderosa e fraca: poderosa se se
considerasse a alta produção de aço, o segundo maior produtor de petróleo do mundo,
indústria têxtil crescendo, fábricas enormes empregando milhares de trabalhadores em cidades
grandes; e fraca se fosse considerada a proporção de trabalhadores nas fábricas (apenas
1,75%) com o restante da população da Rússia: a maioria da sociedade era composta de
5
camponeses1; problemas com a redistribuição de terras2; e a maior dívida externa do mundo
decorrente de uma economia imatura3.
De acordo com Laqueur (1994), grande parte da população não tinha acesso às
condições básicas de vida, ocasionando graves problemas sociais: ausência de esgoto, fome,
miséria, exploração do trabalho, terríveis condições de moradia, altos índices de embriaguez e
a mais alta taxa de mortalidade da Europa. Somavam-se a essa situação os altos gastos com o
exército, que eram os maiores da Europa no século XIX e de qualquer outra nação antes da
Primeira Guerra Mundial, elevando ainda mais o descontentamento da população:
Essas condições, a disciplina imposta dentro das fábricas, e a falta de qualquer
melhoria real apreciável nos padrões de vida, provocavam um ressentimento irritado
contra o sistema que, por sua vez, oferecia o terreno ideal para a exploração dos
populistas, dos bolcheviques, dos anarco-sindicalistas, dos radicais – na verdade, de
qualquer um que (apesar da censura) defendesse mudanças drásticas (KENNEDY,
1989, p. 230).
O descontentamento se disseminava por toda a parte, provocando a incidência de
greves, protestos em massa, prisões pela polícia e assassinatos que cresciam em ritmo
alarmante. Essa situação favorecia os revolucionários:
Imobilizados em sua condição, os trabalhadores da cidade ou do campo eram
animados por uma consciência revolucionária mais viva que nos outros países. Na
luta contra o czarismo, dispunham de um exército de reserva não desprezível, os
quarenta milhões de alógenos, distribuídos em torno da grande Rússia. A ausência
dos laços comuns, entretanto, os mantinha divididos, como divididos estavam
operários, camponeses e burgueses (FERRO, 1967, p.16).
Em seu livro Como iludir o povo (1974), Lênin deixara claro que os trabalhadores não
podiam enganar-se com falsas promessas e discursos sobre liberdade e igualdade. Era preciso
reconhecer os verdadeiros aliados e unir-se para atingir o objetivo final: a destruição do
capitalismo. Trotski notou que a recuperação do czarismo acontecia em pouco espaço de
tempo entre as revoluções e apesar de não ter papel ativo nesse período, insistiu tanto quanto
1
Um número considerável de pessoas ganhava a vida na agricultura ou vivia em aldeias e comunidades, o que
representava 80% da população. Mesmo em Moscou, (segunda capital e cidade espiritual do Império) era
mantido um típico ar rural, com suas construções de madeira e maciça presença camponesa (REIS FILHO,
2007).
2
Havia o efeito de posse comunal e o hábito medieval de plantar em faixas de terreno. Para aumentar o espaço,
era necessário ter mais filhos e isso acarretava outro problema, mesmo a produção agrícola aumentando, não era
suficiente considerando a quantidade da população.
3
A Rússia não tinha nenhuma indústria significativa (somente têxteis e de processamento de alimentos),
nenhuma infraestrutura de transportes. Suas tarifas eram as mais altas da Europa para proteger as indústrias que
eram ineficientes e instáveis – e, mesmo assim, o influxo de produtos manufaturados importados crescia a cada
aumento do orçamento de defesa e da construção de estradas de ferro.
6
Lênin na necessidade de o movimento reconstruir sua organização clandestina e que ativistas
se infiltrassem em todas as instituições legais, desde o Duma até os sindicatos, pregando suas
opiniões.
Os problemas com o povo russo e ideais revolucionários sobrecarregavam o exército
que já estava sufocando as ressentidas minorias étnicas: poloneses, finlandeses, lituanos,
georgianos, estonianos, armênios que buscavam preservar as concessões sobre a russificação
obtidas na fase de debilidade do regime, nos anos de 1905-064.
A Primeira Guerra Imperialista mundial assolara a Europa, provocando o fim súbito da
fase áurea do capitalismo liberal, do socialismo reformista e do parlamentarismo, que tinham
surgido juntos no quase meio século de paz. Duas gerações de europeus cresceram com a
perspectiva otimista de que o homem progredira o suficiente para assegurar o domínio sobre a
natureza e conseguiria modificar e aperfeiçoar seu ambiente social através da discussão,
conciliação e voto. Além disso, a guerra era uma relíquia do passado bárbaro ao qual a
humanidade não voltaria, assim como, a acumulação de riqueza que esteve presente na
Europa (como um todo) foi tão impressionante e rápida que parecia garantir a prosperidade
crescente de todas as classes da sociedade, afastando as possibilidades de conflito social
violento. Estas idéias estavam relacionadas ao movimento revolucionário, na Segunda
Internacional5 (DEUTSCHER, 1968).
Lênin queria que a guerra gerasse a revolução e, através do movimento das massas,
difundiria as ideias e opiniões entre os trabalhadores e as forças armadas. Caracterizava-se o
momento ideal para a revolução proletária:
Os falatórios de toda espécie, segundo os quais as condições históricas não estariam
"maduras" para o socialismo, são apenas produto da ignorância ou de um engano
consciente. As premissas objetivas da revolução proletária não estão somente
maduras: elas começam a apodrecer. Sem vitória da revolução socialista no próximo
período histórico, toda a civilização humana está ameaçada de ser conduzida a uma
catástrofe. Tudo depende do proletariado, ou seja, antes de mais nada, de sua
vanguarda revolucionária. A crise histórica da humanidade reduz-se à crise da
direção revolucionária (TROTSKI, 1936, p.1).
4
A Revolução de 1905-06 marcou as divergências entre mencheviques e bolcheviques, tendo repercutido
mundialmente, em razão das greves de massa, do surgimento da forma soviética de organização, do movimento
camponês pela terra, revoltas dos marinheiros e participação das nacionalidades não russas. O fato é que esse
processo questionou princípios, abalou certezas, inovou questões, organizou o Partido Social Democrata e impôs
mudanças, que foram agravadas em 1917. É considerado pelos bolcheviques o “Ensaio Geral” para a Revolução
de 1917 (FERRO, 1967; REIS FILHO, 2007).
5
As palavras de ordem e os símbolos falavam da solidariedade internacional, dos trabalhadores e da
irreconciliável luta de classe, culminando na derrubada do governo burguês. Na prática, os partidos deixaram de
ter muita coisa em comum com essas tradições. A luta de classe irreconciliável daria lugar às negociações
pacíficas e ao reformismo parlamentar (DEUTSCHER, 1968).
7
Ambos concordavam que o medo da derrota nacional não deveria impedir os
socialistas de cumprirem seu dever, na esperança de que os revolucionários alemães fizessem
o mesmo, de modo que, no fim, todos os governos imperialistas seriam dominados pelos
esforços conjuntos dos internacionalistas; a derrota de qualquer país seria apenas um incidente
no avanço da revolução, que deveria propagar-se pelos países.
A Primeira Guerra Mundial ocasionou perdas irreparáveis em todos os aspectos
(econômicos, políticos e sociais) e a Rússia que já era um barril de pólvora, não demoraria a
explodir, embora poucos enxergassem o que estava claro:
Em 1914, ninguém suspeitava que somente Lenin via claro ao afirmar que a guerra
fora o mais belo presente de Nicolau II à Revolução. Julgava-se ao contrário que a
abertura das hostilidades era o dobre de finados do movimento revolucionário. Pois,
à exceção de alguns bolcheviques, não tinham chefes e tropas corrido para o
inimigo, como todo mundo? Além disso, os revolucionários russos estavam tão
divididos entre si desde o revés de 1905 que ninguém mais acreditava capazes de
atingir seu fim (FERRO, 1967, p.15).
O povo russo estava imobilizado em sua condição, os trabalhadores da cidade e do
campo eram animados pelos ideais revolucionários (mais vivos do que em outros países) que
após 1905-06, e somado ao desdém que recebiam, passou a nutrir tal ódio contra seus
dirigentes que derrubar o czar era um dever tão sagrado quanto a defesa da pátria.
De acordo com Hobsbawm (1994), as revoltas e levantes que surgiram depois da
Primeira Guerra Mundial, refletiam a desilusão da população mundial sobre o sistema
econômico e sobre a dominação de classes que estava subentendida. A parte da população que
se viu excluída deste sistema, em meio à miséria e à pobreza, uniu-se e começou a defender a
mudança do sistema vigente e o fim do capitalismo. Foi nesse período que as ideias socialistas
tomaram força e se propagaram como alternativa a todos os problemas econômicos
enfrentados:
Parece óbvio que o velho mundo estava condenado. A velha sociedade, a velha
economia, os velhos sistemas políticos tinham, como diz o provérbio chinês,
“perdido o mandato do céu”. A humanidade estava à espera de uma alternativa. Essa
alternativa era conhecida em 1914, os partidos socialistas, com o apoio das classes
trabalhadoras em expansão de seus países, e inspirados pela crença na
inevitabilidade da história de sua vitória, representavam essa alternativa na maioria
dos Estados da Europa (HOBSBAWM, 1994, p.62).
A alternativa que pretendia dar ao mundo esse sinal era a revolução socialista, que
tinha as condições ideais para ocorrer na Rússia desde o Ensaio Geral de 1905-06 liderado por
Trotski. No entanto, há algumas considerações de autores como Hobsbawm (1994) e
8
Deutscher (1967) com relação à possibilidade de o país de contraste, como a Rússia,
conseguir passar por uma revolução e principalmente de uma situação capitalista para
socialista. Na realidade, a Rússia não tinha pleno desenvolvimento do processo produtivo6 e
então teria de sofrer por isso, por ser um país subdesenvolvido:
E, no entanto, com exceção dos românticos que viam uma estrada reta levando das
práticas coletivas da comunidade aldeã russa a um futuro socialista, todos tinham
como igualmente certo que uma revolução da Rússia não podia e não seria
socialista. As condições para uma tal transformação simplesmente não estavam
presentes num país camponês que era sinônimo de pobreza, ignorância e atraso [...]
(HOBSBAWM, 1994, p. 64).
Lênin e Trotski acreditavam que a Rússia era um país atrasado, porém, desde o Ensaio
Geral de 1905, declaravam que o país tinha dado um exemplo da atividade espontânea das
massas oprimidas, mostrando pela primeira vez a combinação da greve econômica com a
greve política e, passados esses anos, com a lição da derrota, estariam preparados para o êxito
do movimento.
Sem esperar pelos outros, escreveu Lênin, a revolução deveria começar na Rússia,
para incentivar as outras nações da Europa a seguirem o mesmo caminho da revolução para
combater a desigualdade do desenvolvimento econômico e político, principal característica do
capitalismo (DEUTSCHER, 1967).
Era inevitável que ocorresse a Revolução na Rússia, porque no país se encontrava o
ponto de convergência das contradições do imperialismo que se manifestava mais do que em
outros países pelo seu caráter escandaloso e intolerável, não só porque a Rússia era o principal
ponto de apoio do imperialismo no Ocidente, mas também, na Rússia existia uma força real
capaz de resolver as contradições do imperialismo pela via revolucionária. E, assim, o país se
converteu no berço do leninismo e o chefe dos comunistas russos, Lênin, no seu criador
(STALIN, 1975).
A real intenção era que a Revolução socialista em sua forma pura ocorresse em países
industrialmente avançados, mas como isso não foi possível, Lênin e Trotski acreditavam que a
Rússia seria o primeiro passo para que os outros países (principalmente os industrializados)
6
O que é indispensável para o socialismo, pois não pode ser desenvolvido sob a necessidade e a pobreza.
Enquanto existirem, todas as aspirações do regime serão impotentes porque a escassez gera desigualdade, e onde
não há bastante comida, moradia e roupa para todos; uma minoria acaba por se apoderar de tudo que pode;
enquanto o resto passa fome, veste-se de andrajos e se aglomera em barracos. Com essa situação, o socialismo
torna-se um castelo no ar (DEUTSCHER, 1967).
9
começassem a seguir o mesmo modelo e assim ocorreria a revolução socialista mundial7:
Uma ilustração clara: a grande guerra, produto das contradições do imperialismo
mundial, arrastou em seu torvelinho países que se achavam em diferentes etapas de
desenvolvimento e impôs a todos as mesmas exigências. Resulta, pois, que os
encargos da guerra se tornariam mais insuportáveis, particularmente, para os países
mais atrasados. A Rússia foi o primeiro que se viu obrigado a ceder terreno. Mas,
para sair da guerra, o povo precisava abater as classes dominantes. Assim foi como a
cadeia se quebrou (TROTSKI, 1967, p. 138).
O conjunto dos fatores internos e externos levou a Rússia à Revolução de 1917, que é
considerada por Hobsbawm (1994) a filha da guerra no século XX. A Revolução de
Fevereiro8 começou onde havia parado em 1905, mas seu ponto de partida ficou para trás: 9
Em 2 de março, o Czar abdicou em favor do irmão, o Grão-Duque Miguel, que
renunciou no dia seguinte. O príncipe Lvov assumiu o poder e formou um governo provisório.
Mandou prender os ministros do governo anterior e nomeou o Prof. Miliukov, como Ministro
do Exterior, e o deputado esquerdista Kerensky, como Ministro da Justiça (DEUTSCHER, 1968).
O Governo Provisório iniciou suas atividades em meio ao entusiasmo e expectativa
populares. Além disso, contava com o apoio dos Sovietes de Petersburgo, organização criada
dias antes da abdicação do czar, com a função de impossibilitar o governo de impor qualquer
decisão sem o seu apoio (o governo dependia dos sovietes, embora ambos não tivessem a
consciência do fato). Os cargos de que o governo provisório dispunha eram duvidosos já que
deviam sua existência a antigos integrantes da última Duma, o semiparlamento desacreditado
que já tinha sido dissolvido pelo czar (DEUTSCHER, 1970).
Trotski não concordou com a composição do Governo Provisório do Príncipe Lvov e
com seu pedido de “reconstituição da ordem”. A revolução se iniciava e ninguém poderia
contê-la:
Não era uma vergonha, exclamava ele nas reuniões, que o primeiro Ministro do
Exterior da revolução fosse Miliukov, que chamara a Bandeira Vermelha de trapo
7
Fundamental para que o modelo na Rússia desse certo, ou então, estaria destinado a perecer, de forma que o
país ficaria isolado em um mundo hostil e sem o apoio das grandes potências. Na mente de Lênin e de seus
camaradas, era praticamente uma batalha na “campanha” para alcançar a vitória dos bolcheviques em escala
global, ampla e dificilmente justificável, a não ser como estava (HOBSBAWM, 1994; REIS FILHO, 2007).
8
As datas obedecem ao calendário juliano utilizado na Rússia – há uma diferença de 13 dias em relação ao
calendário gregoriano, introduzido por uma reforma papal no seio do cristianismo e adotado pelo mundo
capitalista. Desse modo, a Insurreição de 24 de Outubro realizou-se em 7 de novembro para os europeus
ocidentais – o governo soviético adaptou, em fevereiro de 1918, o calendário e as diferenças desapareceram
(REIS FILHO, 2007).
9
O ponto de partida seria retomado por Lênin em suas Teses de Abril, dizendo que não era para se aceitar uma
República Parlamentar, era preciso uma República dos Sovietes de deputados operários, trabalhadores agrícolas
e operários; não podiam acreditar ou apoiar promessas falsas, já que o novo governo continha membros do
antigo (continuava sendo um governo capitalista).
10
vermelho, e seu primeiro Ministro de Guerra fosse Guchkov, que servira a Stolipin?
(DEUTSCHER, 1967, p.264).
Além disso, acusara o novo governo da revolução de herdar o czarismo e seu
imperialismo, saudando o aparecimento do Soviete de Petrogrado como governo potencial;
enquanto os mencheviques e os social-revolucionários evocavam o patriotismo dos
camponeses para justificar o apoio que davam à guerra imperialista. Trotski notou que não era
o patriotismo dos camponeses que deveria importar, mas a sua fome de terra e, assim, os
donos de terra, a burguesia e o czarismo estavam forçando os camponeses a desviar-se do
caminho da revolução agrária em razão da guerra e esclareceu que a tarefa do socialismo era
levá-los de volta à revolução agrária (DEUTSCHER, 1967).
De fato, a função dos bolchevistas não era ter relações com defensistas e
semidefensistas, deveriam estabelecer a ditadura proletária. Em fevereiro, a classe operária
tinha quase todo o poder nas mãos, e, sem saber o que fazer com ele, entregou-o à burguesia,
para Lênin:
Até mesmo nossos bolchevistas depositam confiança no governo. Isso só pode ser
explicado pela embriaguez gerada pela revolução. Isso é a morte do socialismo. Vós
camaradas, confiais no governo. Se é essa a vossa atitude, nossos caminhos não
podem ser iguais. Prefiro ficar em minoria (DEUTSCHER, 1970, p.125).
As posições de Lênin e Trotski, em fevereiro de 1917, com relação ao governo
provisório da Rússia pós-revolucionária, eram bem similares. Em suas Teses de Abril
(1978b), Lênin comentou sobre a situação em que se encontrava a Rússia revolucionária em
fevereiro de 1917 e que atitudes deveriam ser tomadas. Dentre elas, destacavam-se: a
necessidade de sair da guerra, porque era fruto das contradições imperialistas que encaravam
a guerra apenas como uma necessidade e não com o fim de conquistas (o objetivo já estava
alcançado); não aceitar uma república parlamentar, seria dar um passo para trás, pois era
fundamental formar a República dos Sovietes de deputados operários, trabalhadores agrícolas
e camponeses; não apoiar o governo provisório ou acreditar em suas promessas falsas;
desmascarar o governo capitalista ao invés de exigir que deixasse de ser imperialista; perceber
que o partido estava em minoria, o que resultava na prevalência dos interesses burgueses; e
criar uma nova internacional. Os desafios deveriam ser superados, porém, dependiam do
combate ao defensismo:
O problema essencial, que salta aos olhos quando lemos o que se escreve sobre a
Rússia e quando vemos o que ocorre aqui, é a vitória do defensismo, a vitória dos
traidores do socialismo, o engodo das massas pela burguesia. É claro que, aqui na
11
Rússia, no movimento socialista, a situação é a mesma que em outros países: o
defensismo, a “defesa da pátria”. A diferença é que não existe em parte alguma uma
liberdade semelhante à que temos aqui, e isto nos torna responsáveis frente a todo
proletariado internacional. O novo governo é imperialista como o anterior; malgrado
sua promessa em proclamar a República, é imperialista até a medula dos ossos.
“Nenhuma concessão, por mínima que seja, ao “defensismo revolucionário”, pode
ser tolerada em nossa atividade com respeito à guerra que, em relação à Rússia,
mesmo sob o governo de Lvov e Cia, continua, incontestavelmente, uma guerra
imperialista de rapina, em virtude do caráter capitalista deste governo” (LÊNIN,
1978b, p. 19).
A Revolução era algo difícil, não podia evitar cometer erros e o erro do presente era
não desmascarar o “defensismo revolucionário” que era uma traição do socialismo:
Não é difícil ser revolucionário quando a revolução já estourou e está em seu
apogeu, quando todos aderem à revolução simplesmente por entusiasmo, modismo e
inclusive, às vezes, por interesse pessoal de fazer carreira. Custa muito ao
proletariado, causa-lhe duras penas, origina-lhe verdadeiros tormentos desfazer-se
depois do triunfo desses revolucionários. É muitíssimo mais difícil – e muitíssimo
mais meritório - saber ser revolucionário quando ainda não existem as condições
para a luta direta, aberta, autenticamente de massas, autenticamente revolucionária,
saber defender os interesses da revolução (através da propaganda, da agitação e da
organização) em instituições não revolucionárias e, muitas vezes, simplesmente
reacionárias, numa situação não revolucionária, entre massas incapazes de
compreender imediatamente a necessidade de um método revolucionário de ação
(LÊNIN, 1978, p.113).
A grande questão do momento era identificar os verdadeiros socialistas e os que se
aproveitavam da situação. Isso seria possível a partir da explicação para as massas sobre o que
realmente era o socialismo e, se fosse necessário, o partido permaneceria em minoria, mas não
perderia sua essência10. O momento vivido na Rússia era a passagem da primeira etapa da
revolução para a segunda etapa:
O que existe de original na atual situação russa é a passagem da primeira etapa da
revolução, que deu o poder à burguesia em função do insuficiente grau de
consciência e organização do proletariado, à sua segunda etapa, que deve dar o
poder ao operariado e às camadas pobres do campesinato. Esta transição caracterizase, de um lado, por um máximo de possibilidades legais (a Rússia é, atualmente, de
todos os países em guerra, o mais livre do mundo); de outro lado, pela irrefletida
confiança das massas no governo dos capitalistas, o pior inimigo da paz e do
socialismo (LÊNIN, 1978b, p. 22).
10
Na quarta tese, Lênin reconhecia que o partido estava em minoria e constituía uma minoria na maioria dos
sovietes em razão do bloco de todos os elementos oportunistas e pequenos burgueses que estavam sob influência
da burguesia, estendendo-a ao proletariado. Enquanto for minoria, deviam aplicar-se a explicar e criticar os erros
cometidos e, ao mesmo tempo, convencer da passagem necessária de todos os trabalhadores para os sovietes,
para que as massas se libertem do erro de sua experiência (LENIN, 1978b).
12
Segundo Lênin (1978b), a tarefa imediata era conduzir as massas à construção do
socialismo, convocar o Congresso do Partido, revisar o programa anterior e criar um novo
nome para o partido:
Pessoalmente, em meu próprio nome, proponho modificar o nome do Partido,
chamá-lo Partido Comunista. O povo compreenderá o nome “comunista”. A maioria
dos social-democratas oficiais desertou, traiu o socialismo [...] Liebknecht é o único
social democrata [...] Vocês têm medo de trair velhas lembranças [...] A palavra
social-democrata é inexata. Não devemos apegar-nos a um velho termo que está
completamente podre. Vocês querem construir um novo partido [...] em sua direção
virão todos oprimidos (LÊNIN, 1978b, p.29).
Em 1917, Trotski fez um discurso no plenário onde ressaltou as insatisfações com
relação ao governo provisório, porém, com um tom mais conciliador, como se dessa forma
conseguisse motivar os antigos camaradas a apoiá-lo. Agora estava disposto a unir-se em
favor de uma nova internacional e deixar o antigo partido, e assim, os caminhos de Trotski e
Lênin que tanto divergiram, encontraram-se. Cada um chegou à conclusão de que o outro
havia chegado muito antes e que se opusera por tanto tempo; entretanto, nenhum deles adotou
conscientemente o ponto de vista do outro, mas concordavam que, para a verdadeira
revolução, precisavam de uma verdadeira coalizão:
A Revolução não perecerá devido a um ministério de coalizão. Mas devemos
lembrar três mandamentos: desconfiar da burguesia, controlar nossos próprios
líderes e confiar em nossa força revolucionária [...] Creio que nessa medida seguinte
deve ser transferido todo o poder para as mãos dos sovietes. Somente um poder
único terá condições de salvar a Rússia (DEUTSCHER, 1968, p. 276).
Lênin era o líder aceito de um grande partido, que se tornara o ponto de convergência
de toda a oposição proletária ao Regime de Fevereiro, e Trotski e seus amigos eram um grupo
brilhante de generais sem exército. Naquele momento, os dois se completavam: Trotski podia
fazer ouvir sua voz da tribuna da Revolução, mas somente um partido maciço e disciplinado
podia transformar suas palavras em atos duradouros.
A aliança entre Lênin e Trotski possibilitou a coalizão do movimento e o incentivo à
participação das massas graças à compreensão de suas necessidades:
Os chamados agitadores de esquerda, disse Trotski, preparam o futuro da revolução
russa. Arrisco-me a dizer que nós, em nosso trabalho, não solapamos a autoridade –
somos um elemento indispensável no preparo do futuro. Camaradas, não espero
convencê-los hoje, pois seria uma esperança demasiado ousada. Hoje, gostaria de
poder mostrar-lhes que, se nos opusermos a vocês, não o faremos por quaisquer
motivos hostis de uma facção egoísta, mas porque junto com vocês estamos
sofrendo todas as dores e agonias da revolução. Vemos soluções diferentes das suas,
13
e estamos firmemente convencidos de que enquanto vocês consolidam o presente da
revolução, nós preparamos o futuro dela para vocês (DEUTSCHER, 1968, p. 286).
A insatisfação da população russa continuava e isso favorecia o partido bolchevique,
assim como a revolução. A Insurreição de Julho foi contida, o partido novamente estava
dividido com relação à tomada de poder11. Mesmo assim, Lênin e Trotski insistiam na
derrubada do novo governo:
Lênin também julgava que os insurgentes deviam convocar um congresso de
sovietes de toda a Rússia e colocar o poder em suas mãos. Recusava-se a deixar que
a insurreição esperasse até a convocação do congresso, porque estava convencido de
que a Executiva menchevique retardaria a reunião até às calendas gregas, e com isso
a insurreição jamais ocorreria, pois seria obstada por uma contra revolução bem
sucedida. Mas também considerava o congresso dos sovietes como uma fonte
constitucional de poder. Trotski, por sua vez, tinha como certo que os bolcheviques,
constituindo a maioria nos sovietes, seriam na realidade o partido governante
(DEUTSCHER, 1968, p. 313).
O país mergulhava na derrota e no caos da guerra imperialista a ponto de o governo
admitir que a capital poderia ser entregue aos inimigos. Diante disso, os bolchevistas
passaram a ser semidefensistas, propondo a defesa de Petersburgo como capital da Revolução,
não do Império – decisão que contou com todo o apoio dos partidos representados no Soviete
e possibilitou o direito de comandar as tropas na capital e nas províncias mais próximas, isto
é, o direito de controlar o exército e seu Estado-Maior. Em setembro, a correlação de forças e
principalmente do domínio de consciência pendia mais para o lado dos bolcheviques e assim
não poderiam perder esse momento (DEUTSCHER, 1970).
Em 10 de outubro de 1917, o Comitê Central adotou a decisão de empreender a
insurreição armada e 15 dias depois o poder estava tomado. A Revolução de Outubro12 estava
declarada e, assim, constituía-se o governo soviético em São Petersburgo, momento em que
os líderes bolcheviques perante o Congresso prometeram dar ao povo paz, terra e liberdade.
De acordo com Trotski (1967), a revolução ocorreu devido à série de premissas
históricas, como: a podridão das velhas classes dominantes (nobreza, monarquia e
burocracia); a debilidade política da burguesia, isto é, sem raiz nas massas populares; o
caráter revolucionário da questão agrária, tal como o problema com as nacionalidades
oprimidas; o peso social do proletariado; o “Ensaio Geral” de 1905-06, onde os sovietes
11
12
Entre a oposição do Comitê Central estavam Zinoviev e Kamenev e Stálin.
Stalin não esteve entre os atores principais no dia do levante.
14
apareceram pela primeira vez como forma de organização; a guerra imperialista que aguçou
todas as contradições; e o partido bolchevique.
Os primeiros meses que se seguiram à conquista do poder político pelo proletariado
deixavam claro que, em razão das diferenças existentes entre a Rússia atrasada e os países
adiantados da Europa Ocidental, a revolução proletária seria pouco semelhante à de 191713.
Lênin (1978) acreditava que o país possuía uma experiência internacional relevante,
experiência que demonstrava que alguns dos aspectos fundamentais da revolução não eram
compostos apenas por aspectos nacionais (russos), mas revestiam-se também de significação
internacional; todos os aspectos fundamentais da Revolução de Outubro tinham importância
internacional quanto à influência que podiam exercer em todos os países:
O significado desta revolução consiste, antes de tudo, em que vamos ter um governo
soviético, nosso próprio órgão de poder, sem qualquer participação da burguesia. As
próprias massas oprimidas criarão o poder. Será destruído pela raiz o velho aparelho
do Estado e criado um novo aparelho de direção: a organização dos sovietes. Iniciase uma nova etapa na história da Rússia, e esta terceira revolução deve conduzir, no
final de contas, à vitória do socialismo (LÊNIN,1974, p. 4).
1.2 A Construção do Socialismo
Toda grande revolução começa com uma explosão fenomenal de energia,
impaciência, ira e esperança populares. Toda grande revolução termina em cansaço,
exaustão e desilusão do povo revolucionário. Na primeira fase, o partido que der
maior expressão ao estado de espírito popular sobrepuja os rivais, conquista a
confiança das massas e sobe ao poder. Até mesmo o partido mais revolucionário não
chega, às vezes, a ser suficientemente revolucionário aos olhos dos setores mais
extremados da população. É impelido pela corrente a vencer todos os obstáculos que
encontra em seu caminho e a desafiar todas as forças conservadoras (DEUTSCHER,
1970, p. 156).
O primeiro governo soviético ou o primeiro conselho dos Comissários do Povo, que
pretendia acabar com os hábitos tradicionais da autoridade, era composto de 11 intelectuais e
quatro trabalhadores, e contava com os principais responsáveis pela realização da Revolução
de Outubro: Lênin como autoridade central do partido e do Governo, Trotski como o
Comissário das Relações Exteriores e Stalin como o presidente do Comissariado das
Nacionalidades. Cabe destacar as transformações (políticas, econômicas e sociais) que o
13
De acordo com a experiência, a respeito de algumas questões essenciais na revolução proletária,
inevitavelmente, todos os países passarão por onde a Rússia passou.
15
governo exigiu da nação e que ocasionariam insatisfação de grande parte da população
(principalmente dos mencheviques) e, em decorrência das transformações, os líderes
deveriam lidar com a sabotagem dos funcionários públicos no governo e no exército, com a
demissão daqueles que não estavam de acordo com os objetivos do governo e em desacordo
com a exclusão de alguns funcionários do antigo governo e do partido menchevique, como
forma de pressionar o governo (DEUTSCHER, 1967):
Sabemos que o velho aparelho do poder estatal nos opôs resistência, que os
funcionários tentaram no início negar-se a exercer funções; esta sabotagem, a mais
grosseira, foi exterminada em algumas semanas pelo poder proletário. Tal poder
demonstrou que aquelas negativas não produziam o menor efeito, e uma vez que
acabamos com tão rude sabotagem, esse mesmo inimigo empreendeu outro caminho
(LÊNIN, 1979, p.161).
Na primeira fase pós-revolucionária, Lênin ressaltou a coesão, a organização, a
disciplina e a unanimidade, como o único meio de salvar o país das calamidades e horrores
por que passou e da guerra imperialista. Também frisou o que escreveu em suas Teses de
Abril a respeito da necessidade de terminar a guerra e, para isso, precisava vencer o capital,
porque era uma guerra imperialista e capitalista; abolir a propriedade latifundiária e entregar a
terra ao campesinato; estabelecer o controle operário sobre a produção e distribuição dos
produtos, assim como o controle do povo sobre os bancos, transformando-os em empresa do
Estado; e os apelos à revolução mundial que seria aceita pelos países ocidentais (seu ponto de
vista), auxiliando a vitória completa e continuando a causa do socialismo:
Agora aprendemos a trabalhar uníssono. Testemunho disso é a revolução que acaba
de ocorrer. Dispomos da força da organização das massas, que tudo vencerá, e
conduzirá o proletariado à revolução mundial. Na Rússia, devemos dedicar-nos
agora a edificar o Estado socialista proletário. Viva a revolução socialista mundial!
(LÊNIN, 1974, p.5).
Lênin e Trotski não consideraram os governantes dos outros países ocidentais que
claramente não estavam a favor de uma Revolução proletária em seus países e,
consequentemente, os líderes revolucionários seriam esmagados pela força do Governo, o que
necessitaria de um esforço maior dos revolucionários russos para consolidar-se no poder e
provar para a população dos países ocidentais que a situação da Rússia pós-revolução era
melhor que a deles.
De acordo com Ferro (1984), a Revolução Russa de 1917, assim como seus aspectos
mais importantes (situação da população, sovietes, proletariado e burgueses) não eram
divulgados pelos jornais no Ocidente:
16
Lendo-se a imprensa patriótica, logo após a queda do tzarismo, pode-se crer que
jamais houve revolução na Rússia. Segundo a Action Française, monarquista, o tzar
certamente abdicara, „mas por sua própria vontade e, precisamente, para salvar o
povo de uma revolução‟ [..]. Já que não havia revolução, não podia haver tampouco
revolucionários. Os despachos das agências falam da existência de soviete de
deputados, mas não de seu papel; os manifestos que ele emite são praticamente
escamoteados. Naturalmente, essa mistificação não podia se eternizar; mas foi
suficientemente bem orquestrada para ser contagiosa (FERRO, 1984, p. 18).
A verdade é que os países ocidentais e principalmente os aliados da guerra tinham
medo da revolução que ocorrera, de perder o poder, como os impactos afetariam seus países e
os “revolucionários internos” 14.
Além dos desafios externos, como “chamar” os países desenvolvidos para a
construção do socialismo em seus países e proclamar a revolução proletária mundial, Lênin
ainda enfrentou problemas internos. A administração do Estado soviético era necessária,
porém, essa tarefa não seria fácil já que o poder soviético tinha dificuldade de mostrar com
clareza as particularidades desta passagem tanto aos dirigentes políticos do povo, quanto aos
elementos conscientes das massas trabalhadoras em geral. A característica particular dessa
organização do Estado consistia no fato de ter uma particularidade: a função predominante
não é desempenhada pela política, mas pela economia e, nesse ponto, precisavam de uma
reorganização econômica (LÊNIN, 1967).
O temor dos países ocidentais somado à insatisfação dos mencheviques que não
estavam mais no poder (foram excluídos de seus cargos) e a situação degradante que o país
vivia formaram a situação ideal para a Guerra Civil na Rússia com a intervenção de alguns
países (Grã-Bretanha, França, Estados Unidos e Japão) por cerca de três anos, o que gerou
extrema dificuldade para o governo de Lênin15:
A República soviética está rodeada de inimigos. Mas vencerá tanto os inimigos
externos como os internos. Entre as massas operárias observa-se já o entusiasmo que
garantirá o triunfo. Na atualidade, o inimigo externo da República Socialista
Soviética da Rússia é o imperialismo anglo-francês e nipo-norte-americano (LÊNIN,
1979, p. 36).
14
Em 1918, foi assinado o tratado de Brest Litovsk, tratado de paz entre a Rússia soviética (negociado por
Trotski) e os países do bloco alemão (Alemanha, Áustria-Hungria, Bulgária e Turquia). As condições de paz
eram extremamente pesadas para a Rússia soviética, pois, de acordo com o tratado, a quase totalidade da região
do Báltico, uma parte da Bielo-Rússia e a Ucrânia ficariam sob o controle da Alemanha e da Áustria-Hungria, a
Polónia. Além disso, pouco depois a Alemanha impôs à Rússia soviética um tratado adicional e um acordo
financeiro, que apresentavam novas exigências abusivas; gerou controvérsias no recém-formado Estado
soviético. Após a revolução de novembro de 1918, na Alemanha, que resultou na queda do regime monárquico,
o Comité Executivo Central declarou anulado o tratado abusivo de Brest-Litovsk (DEUTSCHER, 1970).
15
Os acontecimentos reduziram a força do partido da revolução e o obrigaram a abrir mão de alguma das suas
aspirações, esperanças e ilusões, para salvar a estrutura essencial da revolução.
17
Em meio à primeira fase pós-revolucionária, ocorreu a provocação inevitável da
guerra civil, forçando o partido a continuar seu curso com a maioria da nação, seguindo os
objetivos, desejos e aspirações populares. Os líderes acreditaram que bastava assumir o poder
como um governo do povo, pelo povo e para o povo que a vitória seria garantida. Contudo, a
república soviética tinha que contar com inimigos internos:
Ao se lançarem contra a Rússia pacífica, os tubarões capitalistas anglo-japoneses
confiam ainda em sua aliança com o inimigo interior do Poder Soviético. Sabemos
muito bem quem é esse inimigo interior. São os capitalistas, os latifundiários, os
culaques e seus sequazes, que odeiam o poder dos operários e camponeses
trabalhadores, dos camponeses que não sugam o sangue de seus semelhantes. Uma
onda de sublevações de culaques percorre toda a Rússia. O culaque odeia
furiosamente o Poder Soviético e está disposto a estrangular, degolar centenas e
milhares de operários. Sabemos perfeitamente que se os culaques conseguissem
triunfar, assassinariam sem piedade centenas de milhares de operários, aliar-se-iam
aos latifundiários e aos capitalistas, restabeleceriam os trabalhos forçados para os
operários, aboliriam a jornada de 8 horas e colocariam as fábricas novamente ao
jugo dos capitalistas (LÊNIN, 1979, p. 37).
Rebeliões e explosões contrarrevolucionárias foram provocadas por oficiais brancos e
o país, que já estava arrasado por anos de guerra, seria ainda mais devastado. A República não
tinha fronteiras, tinha fronts:
Uma fronteira de sangue dividiu então pelo meio a Rússia, rasgada pela guerra
interna. Em sua ferocidade implacável, a guerra civil russa refletiu o profundo ódio
de classes que rachou a nação em dois campos hostis [...] O tifo arrasava as linhas de
frente, reféns eram levados para fossas e mortos. A vida não tinha qualquer valor
[...] O maior catalisador da guerra civil foi a intervenção armada estrangeira. Foi o
imperialismo mundial, observou Lênin, o verdadeiro provocador de nossa guerra
civil e o responsável por sua longa duração (VOLKOGONOV, 2004, p. 39).
A Guerra Civil acentuou os problemas já existentes e as transformações ocorridas no
país, nos âmbitos político, econômico e social. Com relação às transformações políticas, cabe
destacar que Lênin identificava alguns aspectos que deveriam ser considerados após a tomada
do poder, entre eles: deveria ser um movimento revolucionário sólido e, para isso, precisaria
de uma organização de dirigentes estáveis que assegurasse sua continuidade; quanto maior o
número de pessoas incorporadas para formar a base do movimento, maior seria a necessidade
de uma organização sólida formada por essas pessoas; a organização deveria ser composta de
homens que se entregassem profissionalmente às atividades revolucionárias; deveria ampliar
os membros para que a classe trabalhadora e as demais classes da sociedade tivessem
participação; deveria ser um partido proletário (pela sua antiga ideologia), democrático,
revolucionário e internacionalista; e, para que essas coisas acontecessem, era necessário
18
instituir a ditadura do proletariado, como já tinha escrito em 190516. A ditadura do
proletariado era uma das principais formas de estabilizar o socialismo no país:
A ditadura do proletariado não é o fim da luta de classes, mas a sua continuação em
novas formas. A ditadura do proletariado é a luta de classes do proletariado que
venceu e tomou nas mãos o poder político contra a burguesia derrotada, mas não
destruída, que não desapareceu e não cessou de oferecer resistência, contra esta
resistência da burguesia. A ditadura do proletariado é uma forma particular de
aliança de classe entre o proletariado, a guarda avançada dos trabalhadores (a
pequena burguesia, os pequenos proprietários, o campesinato, a intelligentsia), uma
aliança contra o capital, uma aliança que visa total destruição do capital, a total
supressão da resistência da burguesia e todos os seus esforços para restaurar uma
aliança visando a criação final e estabilização do socialismo (LÊNIN, 1974, p. 11).
A ditadura do proletariado tornaria possível a vitória sobre o capitalismo, pois
unificaria as forças comunistas dispersas e formaria em cada país um partido comunista único;
era a forma mais decidida e revolucionária da luta de classes do proletariado contra a
burguesia. De acordo com Lênin (1979), a vitória do socialismo dependia de três tarefas do
proletariado: a primeira era derrubar os exploradores e a burguesia, vencê-los de qualquer
forma (já estava completa); a segunda era atrair e conduzir atrás do Partido Comunista, não só
todo o proletariado, mas todas as massas de trabalhadores e de explorados pelo capital; a
terceira era neutralizar as relações de exploração entre a burguesia e o proletariado, contando
com o proletariado nos mais altos cargos do governo, como responsáveis pelo Estado.
Entre os problemas internos do partido, destacava-se o acirramento das divergências
entre Stalin e Trotski17, principalmente com questões relacionadas ao exército, ao
posicionamento das tropas e às questões de nacionalidade. No âmbito nacional, o governo
soviético parecia incapaz de cumprir as promessas anteriores, relacionadas ao suprimento das
necessidades básicas da população (representadas por pão, terra e paz), isto é, derrubaram o
antigo regime, mas não conseguiram suprir tais necessidades (DEUTSCHER, 1968).
16
Quando o czar fosse derrubado, Lênin recomendava a instituição de um governo provisório, que representaria
a ditadura revolucionária e democrática do proletariado e campesinato; isso consistiria em uma etapa necessária
à instituição de uma Rússia atrasada como república socialista. Além disso, o país deveria apoiar-se na Europa
mais adiantada, onde a classe operária já teria tomado o poder.
17
Stalin teve papel de líder político nas fases da Guerra Civil, posição que não foi alcançada na Revolução de
Outubro, e se lembraria daqueles que se opuseram naquele momento, e que pagariam preço alto por isso. Trotski
teve destaque principalmente por ter organizado o Exército Vermelho, porém, com o desenrolar da guerra civil,
perdeu sua posição de destaque; Stalin continuava a considerar Trotski um menchevique, além de não gostar da
sua autoconfiança, da sua eloquência, da sua autoridade, enfim, da sua capacidade de manter-se em evidência
(VOLKOGONOV, 2004).
19
De acordo com Volkogonov (2004), a guerra civil foi rude com seus inimigos, mas foi
também para aqueles que não a desejavam. Com relação às transformações no âmbito
econômico:
Os anos de guerra mundial, Revolução, guerra civil e intervenção provocaram a
ruína total da economia russa e a desintegração de sua estrutura social. Os
bolcheviques tiveram de arrancar de sua economia arruinada os meios da guerra
civil. Em 1919 o Exército Vermelho já consumira todos os estoques de munições e
outros abastecimentos. A indústria sob o controle soviético não podia substituí-los
senão parcialmente. Normalmente, a Rússia meridional fornecia combustível, ferro,
aço e matéria-prima às indústrias da Rússia central e setentrional. Mas o Sul do país,
ocupado primeiro pelos alemães e depois por Denikin, só esteve sob controle
soviético em períodos intermitentes e breves (DEUTSCHER, 1968, p. 521).
Cabe ressaltar o que Lênin (1979) escreveu com relação à transição do modelo
capitalista para o comunista, em que o período não pôde deixar de reunir traços ou
propriedades de ambas as formações da economia social, não pôde deixar de ser um período
de luta entre o capitalismo agonizante e o comunismo nascente, isto é, entre o capitalismo
vencido, porém, não aniquilado e o comunismo nascido, mas muito débil.
Esses apontamentos deixavam claro que, além do problema com essa transição, o país
ainda era assolado por uma guerra civil e colhia os frutos de uma recém-terminada guerra
mundial, logo, os resultados não eram imediatos, ao contrário, eram retardados18.
Privados de combustível e matéria-prima, os centros industriais do país ficaram
paralisados. A situação piorou com a destruição dos transportes (linhas ferroviárias e as
pontes foram destruídas), o que já podia ser considerado como ponto morto, a agricultura
estava arruinada, tornando impossível a sobrevivência no país. Em 1920, a Rússia passou por
fome, mortes e privações maiores que em 1917 (VOLKOGONOV, 2004).
Diante da situação sem controle e com a necessidade de suprir as necessidades da
população da cidade, do campo e do exército, o governo passou a exercer o mais rigoroso
controle sobre os escassos recursos e, assim, implantou uma política que ficou conhecida
como “Comunismo de guerra”19 que tinha ideias baseadas nos escritos marxistas20, que
preconizavam o mais absoluto igualitarismo e deveria ocorrer de forma natural, no qual a
18
Isso não era culpa do comunismo.
“Comunismo de guerra” era o conjunto de medidas que precisavam ser tomadas nos primeiros anos de
transição para o socialismo. Os objetivos do Comunismo de guerra eram sustentar as indústrias de guerra e usar
os escassos recursos para acabar com a fome nas cidades (DEUTSCHER, 1968).
20
O Comunismo de guerra era um travesti trágico da visão marxista da sociedade do futuro e, por isso, não
poderia funcionar por muito tempo. As requisições de alimentos com a proibição do comércio privado, no
momento, ajudaram o governo a controlar as mais graves emergências, porém, no longo prazo, essas políticas
agravaram e aceleraram a redução e a desintegração da economia; camponeses recusavam-se a produzir o
excedente, só produziam para si próprios (DEUTSCHER, 1968).
19
20
produção e a distribuição socialmente planejadas tomariam o lugar da produção para o
mercado e distribuição por meio do dinheiro. O modelo que fora proposto por Marx:
Tal sociedade teria, como pano de fundo, recursos produtivos altamente
desenvolvidos e organizados e uma superabundância de bens e serviços. Deveria
organizar e desenvolver a riqueza social que o capitalismo, em seus melhores
exemplos, produzia desordenadamente e não podia controlar, distribuir e promover.
O comunismo devia abolir a desigualdade econômica de uma vez por todas,
nivelando os padrões de desintegração social, da destruição e da desorganização dos
recursos produtivos, de uma escassez sem paralelos de bens e serviços
(DEUTSCHER, 1968, p. 523).
O que ocorreu foi o inverso. Houve um rígido igualitarismo, pregado e praticado pelo
partido, que consistiu em um decreto ou proibição de qualquer empreendimento privado;
nacionalização de grande parte das fábricas, oficinas e do comércio; salários em mercadorias
para operários e empregados; expropriação de todos os excedentes dos camponeses; abolição
da propriedade privada da terra; trabalho obrigatório para a classe média; e liquidando com a
moeda21. Na realidade, o Governo Soviético tentou abolir a desigualdade, mas o fez pela
redução dos padrões de vida, tornando universal a pobreza e consequentemente a insatisfação
da população que organizaria rebeliões (DEUTSCHER, 1968; REIS FILHO, 2000;
VOLKOGONOV, 2004).
Entre as consequências primárias do conflito, destacavam-se: as cidades despovoadas
da Rússia como forma de os trabalhadores fugirem da fome, a presença do mercado negro
com atividades ilegais e a insatisfação da população como um todo. Estava claro que esse
sistema não poderia funcionar por muito tempo, e, por isso, Trotski tomou uma medida
inevitável para controlar os trabalhadores, com a frase “quem não trabalha, não come”, ou
seja, o governo, depois de mandar centenas de milhares de homens para morrer nos campos
de batalha, estava agora enviando-os para trabalhar nas oficinas e minas, onde era travada a
luta pela sobrevivência22 (DEUTSCHER, 1968).
Finalmente, em 1921, a paz chegou à Rússia soviética. Os últimos tiros silenciaram os
campos de batalha da guerra civil, os exércitos brancos foram dissolvidos e desapareceram, os
exércitos de intervenção não estavam mais no país, foi firmada a paz com a Polônia e as
fronteiras européias da Federação Soviética foram traçadas e consolidadas (DEUTSCHER,
1968).
21
Devido às emissões para cobrir as despesas, as prensas fabricavam dinheiro dia e noite. A moeda se
transformou em papel pintado. Isso fez com que a moeda se desvalorizasse tanto que os salários tinham que ser
pagos em mercadorias (que constituía uma magra ração de alimento).
22
Foi criado o exército do trabalho, não pela militarização da mão-de-obra civil, mas pela transformação de um
exército regular em uma força de trabalho.
21
Também houve vitórias nesses anos de luta contra os inimigos internos e externos. Em
março de 1919, em Moscou, foi fundada a III Internacional Comunista23 com o objetivo de
prosseguir e finalizar a grande obra empreendida pela II Internacional dos Trabalhadores. A
III Internacional Comunista foi constituída no final do massacre imperialista 1914-1918,
período em que a burguesia dos diversos países sacrificou milhões de vida e, por isso, teve
como objetivo principal a luta armada para a liquidação da burguesia internacional e criação
da República Internacional dos Sovietes, primeira etapa da supressão total de qualquer regime
governamental, com as seguintes considerações: a ditadura proletária como único meio
disponível para arrancar o que o capitalismo impunha; fraternização entre todos os homens de
raça branca, amarela, negra, com os trabalhadores de toda a terra; convidava os proletários de
todo o mundo para seguirem o mesmo caminho; comprometia-se a apoiar, com todos os
meios a seu alcance, toda república socialista que fosse criada em qualquer lugar; e todos os
partidos e organizações que se filiassem à Internacional Comunista teriam o nome de Partido
Comunista e o nome do seu país.
Após três longos anos de guerra civil (1917-1920), o partido da revolução foi o
vencedor com enorme orgulho e autoconfiança, mas com a total exaustão do povo. Isso
acentuou o enfraquecimento interno e mostrou o real isolamento com o mundo exterior. O
país, que já estava devastado pela guerra imperialista mundial, depois da guerra civil e
intervenção estrangeira, afundou em uma miséria ainda maior:
Cerca de 3 milhões de soldados pereceram em combate ou em consequência de
ferimentos ou doenças. Cerca de 13 milhões de civis morreram de forma prematura,
principalmente devido à fome de 1921-2 e a uma série de epidemia que atingiu a
Rússia (particularmente a gripe espanhola que assolou a Europa) (LEWIN, 2007, p.
362).
Com relação à fome e ao frio, Lênin (1979) ressaltou que isso não era culpa do
comunismo e mostrou que em todos os países estava havendo fome e frio e, em pouco tempo,
todos estariam convencidos de que a situação da Rússia não era consequência do comunismo,
mas dos quatro anos de guerra internacional – que deu origem a todos os horrores, inclusive
fome e frio. Era preciso ter confiança, os operários precisavam trabalhar para si e não para
sustentar um novo combate.
De acordo com Lênin (1978), os bolcheviques se mantiveram no poder por esses
primeiros anos, graças à disciplina rigorosa e férrea do partido, ao total e incondicional apoio
da massa da classe operária e ao centralismo do poder. A Rússia tornou sua a única teoria
23
Também conhecida como Comintern.
22
revolucionária justa: o marxismo, mesmo que tenha sido implantado em pleno período de
guerras:
Camaradas: Há dois anos, quando a guerra imperialista ainda estava em seu apogeu,
a insurreição do proletariado russo e a conquista do poder político por ele pareciam a
todos os partidários da burguesia na Rússia, pareciam às massas populares e talvez à
maioria dos operários dos outros países uma tentativa audaz, mas sem perspectivas.
Parecia então que o imperialismo mundial era uma força tão enorme e invencível
que, se os operários de um país atrasado tentassem levantar-se contra ele,
precederiam como insensatos. Mas agora, olhando para os dois anos transcorridos,
vemos que até nossos adversários começam a reconhecer cada vez mais as razões
em que nos apoiamos. Vemos que o imperialismo, que parecia um colosso
inabalável, mostrou-se, aos olhos de todo o mundo, como um colosso de pés de
barro. Estes dois anos de experiência e de luta marcam com evidência cada vez
maior a vitória não só do proletariado russo, mas do proletariado internacional
(LÊNIN, 1979, p.159).
À primeira vista, não era necessário temer as forças do imperialismo internacional que
armaram os inimigos internos do governo soviético e que se mostraram grandiosas e
invencíveis, porque eram frágeis. No momento era importante extrair os ensinamentos gerais
desses dois anos heróicos de trabalho, assim como nos anos de 1905, que serviram como base
para a vitória atual (LÊNIN, 1979).
Nesses dois anos de governo soviético, os seguintes fatores tiveram destaque: a
edificação do poder operário em que só a participação dos operários na direção geral do
Estado permitiu que o governo soviético permanecesse no poder, mesmo diante de tantas
dificuldades, e que, só seguindo esse caminho, conseguiriam a vitória completa;
estabeleceram relações justas com os camponeses, já que foram essas relações que permitiram
alcançar a vitória inicial; em cada setor (militar, político e econômico) do Estado foi preciso
conquistar as posições que antes eram ocupadas por aqueles que estavam à frente das massas
operárias e trabalhadoras, trabalho que ainda não terminou:
Para nós tem particular importância compreender a evolução operada durante este
período, porque em todos os países esta evolução segue caminho idêntico. As
massas operárias e trabalhadoras não dão seus primeiros passos com seus
verdadeiros dirigentes; agora é o próprio proletariado que toma em suas mãos a
direção do Estado, o poder político; à frente do proletariado vemos em todo lugar
chefes que acabam com os velhos preconceitos da democracia pequeno-burguesa,
velhos preconceitos de que são expressão em nosso país os mencheviques e
esserristas – sabemos que, ao organizar nosso trabalho, tivemos depois que
transformar cada ramo da administração de modo que os verdadeiros representantes,
os operários revolucionários, a autêntica vanguarda do proletariado, tomassem em
suas mãos a edificação do Poder (LÊNIN, 1979,p.161).
O desafio “recém-superado” trouxe consequências graves no âmbito social, que
contou com uma terrível redução de forças: a população tinha caído de 171 milhões em 1914,
23
para 132 milhões em 1921; em 1920, a indústria tinha sido reduzida a 13% da produção,
comparada com 1913; a produção bruta da agricultura era menos da metade do período
anterior à guerra; o comércio exterior tinha desaparecido totalmente; e a renda nacional da
população tinha caído em mais de 60% (KENNEDY, 1989):
A estrutura social da Rússia não fora apenas derrubada, fora esmagada e destruída.
As classes sociais que lutaram uma contra a outra, de forma tão implacável e furiosa,
estavam todas, com a exceção parcial do campesinato, esgotadas e prostradas, ou
então pulverizadas. A nobreza latifundiária perecera nas suas mansões incendiadas e
nos campos de batalha da guerra civil; os sobreviventes fugiram para o exterior com
o resto dos Exércitos Brancos que se dispersaram ao vento. Da burguesia que jamais
fora muito numerosa ou politicamente confiante, muitos também haviam perecido e
emigrado. Os que salvaram a pele, ficaram na Rússia e procuraram ajustar-se ao
novo regime, eram apenas os restos da sua classe. A velha intelectualidade e, em
proporções menores, a burocracia, partilharam o destino da burguesia: alguns
comeram o pão dos emigrados no Ocidente; outros serviram aos novos senhores da
Rússia, como especialistas (DEUTSCHER, 1968, p. 16).
O que impossibilitava o desenvolvimento da Rússia Soviética no âmbito social era o
abismo histórico entre a maioria da população (ainda rural) e a elite, o que tornava impossível
a coesão entre as diversas camadas sociais. Com relação aos indicadores demográficos, a
redução de forças não foi apenas do exército, mas também dos proprietários de terras e dos
empresários que morreram durante a Guerra Civil ou emigraram, o que sustentava ainda mais
o atraso de cinquenta anos do ponto de vista cultural, econômico e social. Partia-se de um
tremendo desastre e o regime precisava do influxo de pessoas do povo para os níveis médios e
inferiores da burocracia e das profissões técnicas. Oferecer essa oportunidade significava uma
fonte constante de força e apoio popular, imprescindíveis naquele momento e sustentariam a
posição do regime nos anos subsequentes (LEWIN, 2007).
Atravessando problemas
em
todos
os
âmbitos, Lênin
e Trotski tiveram papel
fundamental nesse momento, para a permanência dos bolcheviques no poder24. No âmbito
econômico, a situação continuava precária, visto que o Comunismo de guerra já estava
ultrapassado. Trotski sentiu a necessidade de reestabelecer uma margem de liberdade
econômica para os camponeses e, assim, em termos claros e precisos, descreveu a reforma
que era a única capaz de solucionar o impasse em que se encontrava o país:
As requisições de colheitas deviam ser suspensas. O camponês devia ser estimulado
a cultivar e vender excedentes e ter lucro com eles. O governo e o partido não
24
As esperanças populares despertadas pela Revolução estavam frustradas (só o partido estava animado). As
pessoas ouviam com simpatia os anarquistas agitados que denunciavam o regime bolchevique; o governo
soviético não podia permitir eleições livres, pois certamente seria afastado do poder e, assim, a Revolução
chegara a uma encruzilhada (quando o povo não acreditasse mais, acreditaria pela força) (DEUTSCHER, 1968).
24
tinham consciência da magnitude do desastre, porque a última coleta forçada
produzira mais alimentos do que a anterior. Isso se devia à retirada dos guardas
brancos, após a qual as requisições abrangeram uma área muito maior do que antes.
Em geral, porém, as reservas de alimentos correm o risco de se esgotarem, e contra
isso nenhum aperfeiçoamento do mecanismo de requisição pode ter qualquer
utilidade. Tal caminho levava à maior desintegração e redução da força de trabalho
e, por fim, à degradação econômica e política (DEUTSCHER, 1968, p. 530).
Tal proposta não foi aceita pelo Comitê Central e por Lênin, pois não estavam
dispostos a suspender as requisições, além de a reforma parecer um salto no escuro. Lênin e o
Comitê Central ainda não tinham perdido as esperanças no Comunismo de guerra;
acreditavam que, se o sistema tinha sido útil no período de guerra, seria ainda mais no período
de paz. Entretanto, não foi isso que ocorreu (DEUTSCHER, 1968):
O resultado foi, na realidade, o colapso total da economia. Espremido contra a
parede pelo desastre que se auto-impôs, Lênin foi compelido a introduzir a NEP,
uma meia-volta apresentada a gerações sucessivas de estudantes da história soviética
como exemplo brilhante da dialética revolucionária em ação (VOLKOGONOV,
2008, p. 73).
A Nova Política Econômica (NEP), sugerida por Lênin em 1921, para superar a crise
gerada pelo “Comunismo de guerra”, tinha como base as propostas de Trotski25 que foram
rejeitadas anteriormente. A NEP estabeleceu uma economia mista:
A grande indústria e os transportes continuaram propriedade do Estado. A empresa
privada teve permissão de explorar a pequena e a media indústria e o comércio.
Companhias estrangeiras foram convidadas a reiniciar atividades na Rússia,
inclusive no setor da grande indústria. Suspendeu-se a requisição de alimentos das
áreas rurais e adotou-se, em substituição, a cobrança de impostos agrícolas comuns,
que a princípio foram pagos em espécie e, mais tarde, em dinheiro. Em seguida,
estabilizou-se o rublo. O objetivo principal dessas amplas reformas foi o
reequipamento da indústria, partindo quase da estaca zero, a renovação do
intercâmbio de produtos manufaturados por alimentos e matérias-primas, em suma,
o restabelecimento de uma economia viável, auxiliada pelo capital-particular
(DEUTSCHER, 1970, p. 198).
Nesse plano, os “setores” socialista e privado deveriam competir um com outro em
uma base comercial. O objetivo principal era o fortalecimento da indústria como forma de o
socialismo provar seu valor numa competição econômica já que não tinha o apoio dos países
mais avançados. Diante da situação do país, Lênin deveria enfrentar um Ocidente que
25
Essa estratégia foi saudada como um golpe de gênio, ato corajoso e de estadismo. Trotski abandonou suas
políticas que tinham sido rejeitadas pelo Comitê Central e pelo líder, e seguiu implementando a segunda fase do
Comunismo de guerra, que tinha, como único remédio, a férrea disciplina do trabalho; esta foi sua lógica clara,
coerente e rápida que o derrotou, pois no momento em que tentava reerguer o Comunismo de guerra, o partido
bolchevique voltou-se para a NEP (DEUTSCHER, 1968).
25
começava a recuperar sua força e uma Rússia mais atrasada do que antes. Outro grande
desafio era mostrar para o Ocidente e para a nação russa que seus lemas revolucionários e a
criação do Comintern26 eram capazes de recuperar um país que estava “falido”.
A NEP resultou em certa prosperidade para o país durante algum tempo, com retorno
limitado à economia de mercado, abandono das nacionalizações das empresas e concessões
aos camponeses. A princípio foi bem sucedida na restauração de níveis mínimos de
viabilidade física e política, entretanto, insuficiente para os desafios internos e especialmente
externos27 (DEUTSCHER, 1970).
A NEP também estabeleceu o monopólio político (reforçou a ditadura política)28 por
ter liberalizado a política econômica. Por isso, Lênin propôs que o Congresso proibisse os
grupos ou facções organizadas dentro do partido e, como forma de não desagradar totalmente
os líderes desses grupos, pediu que fossem eleitos na formação do novo Comitê Central;
insistiu que a oposição deveria ficar difusa e que os discordantes não deveriam ser
estruturados nos mesmos comitês do partido (DEUTSCHER, 1968).
Esse modo de operar o partido fez com que a maioria dos líderes perdesse contato com
o espírito de seus partidários, e, dessa forma, o partido estava se transformando em uma
máquina burocrática. Ao trilhar esse caminho, o bolchevismo estava perdendo sua velha
identidade, com o objetivo de salvar a revolução. O partido deixou de ser uma associação
livre de revolucionários independentes para se submeter à máquina partidária que estava cada
vez mais poderosa (DEUTSCHER, 1970).
26
É o termo que designa a Terceira Internacional ou a Internacional Comunista (1919), organização que foi
fundada por Lênin e pelo PCUS da Rússia soviética, reunindo os partidos comunistas de outros países e tendo
como objetivo principal, a luta pela superação do capitalismo.
27
De fato, o que se esperava era que a revolução socialista tivesse vencido simultaneamente nos países
avançados (na Europa principalmente), porque assim seria mais fácil engajar os melhores especialistas
provenientes das fileiras dos dirigentes do velho capitalismo no processo da nova organização de produção e do
próprio modelo socialista real. Assim, a Rússia “falida” conseguiria apoio econômico e da massa dos demais
países desenvolvidos, conseguindo atingir a revolução mundial.
28
Lênin e Trotski concordavam que era de se esperar que, com a liberdade econômica, buscariam criar seus
próprios meios de expressão política ou tentariam usar organizações antibolcheviques existentes, e isso não
permitiriam (DEUTSCHER, 1968).
26
1.3 O Sistema de um Único Partido
“O ultracentralismo defendido por Lênin aparece-nos como impregnado não mais
de um espírito positivo e criador, mas sim do espírito do vigilante noturno
(LUXEMBURGO, 1981, p.9).”
A questão do centralismo democrático, proposto por Lênin, surtiu grande debate com
Rosa Luxemburgo29. De acordo com Rosa, a teoria do partido leninista era inseparável do
programa, pois para os bolcheviques, o programa era o partido; a derrubada do capitalismo
deveria resultar em profissionais educados para fins revolucionários, os quais estariam
designados de forma reconhecida e centralizada, isto é, os membros da organização se
transformariam em órgãos básicos e executores das ordens de uma vontade antecipada e
fixada, reconhecida por um Comitê Central (LUXEMBURGO, 1981).
Era um absurdo ter um centro onipotente no partido russo, com direito ilimitado de
controle e de decisão, e restringir o movimento ao invés de desenvolvê-lo e consequentemente
dividi-lo ao invés de unificá-lo. O centralismo democrático foi a base do partido bolchevique
e auxiliou na organização da Revolução de Outubro e na estabilidade do poder.
O momento em que foi instituído o sistema de partido único era indiscutível e
necessário, pois após a Revolução de Outubro e Guerra civil30, precisavam de estabilidade
política para governar e organizar o país.
O objetivo não é criticar a forma como Lênin organizou o sistema partidário na
Rússia, transformando-o em unipartidário com ressalvas e temporário, prezando pela
disciplina, mas mostrar que, depois da morte de Lênin, o partido estava nas mãos de Stálin e o
sistema unipartidário favoreceu o monopólio do poder e sua tirania:
[...] e o monopólio do partido único se tornou, de fato, o monopólio de uma simples
facção, a facção stalinista. Na segunda década da revolução, o monopólio totalitário
tomou forma. Finalmente, a norma da facção única transformou-se em norma
pessoal de seu chefe. O fato de Stálin só ter podido estabelecer sua autocracia sobre
os cadáveres da maioria dos líderes originais da revolução e seus seguidores, e que
tivesse de passar por cima dos cadáveres até mesmo de bons stalinistas, dá bem a
29
Rosa Luxemburgo (1871-1919) foi representante do pensamento e da ação socialdemocrata na Europa. Ela
tentou impedir a Primeira Guerra Mundial e teve esperança com a Revolução Russa. Porém, como
revolucionária e democrata, permaneceu numa posição crítica, combatendo a política que considerava ditatorial
dos bolcheviques.
30
A elite era o governo e tinha como posse uma fortaleza que tinha acabado de ser “destruída” e precariamente
salva, que precisava ser defendida e reconstruída das ruínas. Para isso, deveria ser dirigida nas bases de uma
nova ordem social. As fortalezas que são sitiadas raramente são governadas por regimes democráticos, pois os
vencedores de uma guerra civil dificilmente concedem liberdade de expressão e de organização aos vencidos,
especialmente quando estes têm o apoio de estrangeiros (DEUTSCHER, 1968).
27
medida da profundidade e da força da resistência que ele teve de quebrar
(DEUTSCHER, 1968b, p. 22).
Os problemas com a máquina burocrática não estavam nem perto de uma solução, pois
dentro da ditadura do proletariado, Stalin estava acumulando cada vez mais poder.
Este acontecimento passou despercebido e menosprezado pelo partido e pelos
membros mais antigos e traria graves consequências em todos os aspectos (político,
econômico e social):
O fim da Guerra Civil veio encontrar Stalin, como político, ainda na obscuridade. Os
elementos do Partido naturalmente o conheciam, mas não o encaravam como um
dos dirigentes importantes. Para a base, tratava-se de um dos membros menos
notáveis do Comitê Central, não obstante pertencer ao todo poderoso Politburo. O
país, em conjunto, mal ouvira falar de seu nome. O mundo não soviético nem
mesmo suspeitava sua existência (TROTSKI, 1947, p.441).
Próximo de sua morte, Lênin alertou o partido sobre o “Grande Tirano”, entretanto,
tarde demais, pois Stalin tinha um plano para as críticas que recebeu. Dessa forma, sob o
governo do tirano, o povo perceberia que o socialismo stalinista não requeria apenas a
propriedade estatal e planificação, rápida industrialização, coletivização e educação popular,
mas também algo que ficou conhecido como “culto à personalidade”, que consistiu no
privilégio e igualdade para poucos, na onipotência da polícia e na “era do terror”.
28
2 A DESTRUIÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO: A RÚSSIA DE STALIN
O objetivo deste capítulo é demonstrar como se deu a ascensão do “czar” vermelho
como sucessor de Lênin e a derrota de Trotski, que, no início da década de 1920, era mais
popular e mais próximo a Lênin do que Stalin. Também serão abordadas as discussões a
respeito da teoria do socialismo em um só país e da revolução permanente, a vitória de Stalin
sobre Trotski (sua expulsão da URSS), os anos do Terror e as medidas econômicas que
possibilitaram a vitória da URSS na Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria.
Stalin moldou a ideologia do socialismo a seu favor, destruiu tudo o que foi
preconizado por Lênin e alterou os rumos do socialismo na URSS, sendo conhecido como o
coveiro do socialismo.
2.1 Da Obscuridade ao Triunvirato
Outros dois anos se passaram, e Trotski apenas superado por Lênin em preeminência
como condutor da Revolução de Outubro e, do Governo Soviético, se viu relegado
pela máquina de Stalin a uma precária posição política. Stálin não se converteu
apenas num membro do triunvirato que dirigiu o Partido no lugar de Lênin enfermo.
Foi o triúnviro mais poderoso, e subsequentemente o único sucessor de Lênin.
Todavia, com o passar dos anos, adquiriu uma força com a qual Lênin jamais
sonhara – de fato, uma autoridade mais absoluta que a de qualquer czar na longa
história do despotismo russo (TROTSKI, 1947, p. 441).
A tradição do partido era uma sutil combinação de elementos diversos: autoconfiança
moral, superioridade, senso de missão revolucionária, disciplina interna e plena convicção de
que a autoridade era indispensável à revolução proletária: qualidades que formavam os
elementos autoritários do partido bolchevique. Esses elementos não eram revelados, pois
precisavam dedicar-se aos trabalhadores, ter o apoio dos mesmos para que houvesse a
convicção de que o fim da Revolução de Outubro iria garantir as condições básicas de vida
para os explorados e os oprimidos, e que, após esse momento, eles seriam os verdadeiros
senhores do novo Estado (DEUTSCHER, 1968).
A questão é que, depois dos acontecimentos (Primeira Guerra Mundial, Revolução de
1917 e Guerra civil), o partido bolchevique perdeu o apoio de grande parte dos trabalhadores.
Os bolcheviques fingiam assumir os ideais dos trabalhadores, mas, nos seus discursos, os
objetivos eram os do partido:
29
Quando um bolchevique do membro do Politburo, até o mais humilde homem de
uma célula, repetia que o proletariado insiste, ou exige, ou jamais concordaria com
isto ou aquilo, queria dizer que seu Partido, ou seus líderes, insistiam, exigiam e
jamais concordariam. Sem essa mistificação semiconsciente, a mente bolchevique
não podia funcionar. O partido não podia admitir, nem mesmo para si, que já não
tinha base na democracia proletária. É certo que em momentos de cruel lucidez, os
próprios líderes bolcheviques falavam francamente da situação. Mas esperavam que
o tempo, a recuperação econômica e a reconstituição da classe trabalhadora
resolvessem a questão (DEUTSCHER, 1968b, p. 25).
A Revolução de Outubro e a Guerra civil fizeram com que o partido tivesse um
aumento de 250.000 membros em 1919 para 700.000 membros em 1922. O interesse já não
era mais revolucionário, a questão era correr para o lado vencedor. Além disso, era
interessante para o Partido a cooptação de novos membros que aceitassem a disciplina para
preencherem cargos nos postos do governo, na indústria, nos sindicatos, entre outros; e nesse
momento, era difícil distinguir os bolchevistas “reais”, isto é, os que entravam pela ideologia
(compreendiam os objetivos, aspirações e estavam prontos para lutar por eles), daqueles que
entravam buscando empregos ou queriam entrar para a vida política, mas não tinham opção de
partido31; em meio a essa massa, poucos eram os verdadeiros bolcheviques (DEUTSCHER,
1968).
Diante dessa situação, os bolcheviques sentiram que estavam sendo esmagados por
esses elementos “estranhos” e, assim, tinham de separar o joio do trigo. Em Más vale poco
pero bueno, Lênin criticou o funcionamento do aparelho estatal e destacou o pouco tempo32
que os membros do partido tiveram para se preocupar com as deficiências do Estado.
Também deveriam cuidar da formação de material humano realmente moderno, que não
estivesse atrasado em relação aos melhores modelos da Europa ocidental. O problema com o
aparelho estatal deveria ser resolvido sem pressa, para que não se cometessem os mesmos
erros do passado:
Nosso aparelho estatal se encontra em um estado tão lamentável, para não dizer
detestável, que em primeiro lugar devemos pensar profundamente na maneira de
lutar contra suas deficiências, lembrando que as raízes destas encontram-se no
passado; o qual, apesar de ter sido subvertido, não desapareceu por completo, não
passou à situação de uma cultura velha e superada. Levantei assim esta questão
porque neste plano deve ser considerado como atingido só aquilo que faz parte da
cultura, da vida diária e dos costumes (LÊNIN, 1971, p. 87, tradução nossa).
31
Na época, Zinoviev escreveu que muitos dos membros do partido bolchevique eram mencheviques
inconscientes, social-revolucionários inconscientes, que se consideravam sinceramente bons bolcheviques
(DEUTSCHER, 1968).
32
Os primeiros cinco anos causaram bastante desconfiança e ceticismo. Os membros do partido eram
influenciados involuntariamente por aqueles que falavam sem saber da cultura proletária. Com relação à cultura,
o mais prejudicial era a pressa de querer abarcar tudo de uma vez.
30
De acordo com Lênin (1971), não foi pensado a fundo o que havia de bom na
organização social, nem compreendido, nem confirmado ou consolidado pela experiência; o
que não poderia ter ocorrido de outro modo em uma época revolucionária, que em cinco anos
levou a Rússia czarista a um regime soviético.
Era preciso reconhecer os erros em tempo, para corrigir os passos e não deixar a pressa
em primeiro lugar; um dos erros destacados por Lênin (1971) era acreditar na existência de
um número considerável de elementos para a organização de um aparelho 33 realmente novo,
que realmente merecesse o nome de socialista, soviético. Isso não era possível, porque, na
Rússia, o aparelho e os elementos que a formavam eram pequenos. Diante desta situação,
Lênin ressaltou a necessidade de mudança e o estabelecimento do princípio: mais vale pouco
em quantidade, mas bom em qualidade; um princípio difícil de se manter e aplicar na
realidade do momento, mas deveria ser feito e por essa razão, Lênin (1971) recomendou a
melhor forma de filtrar os novos membros do governo (condições que também favoreceram a
ascensão dos outros secretários-gerais):
Primeiro: ser recomendado por vários comunistas. Segundo: passar por um exame
que comprove seus conhecimentos sobre nosso aparelho estatal. Terceiro: submeter
a prova a respeito dos fundamentos em que se baseiam o aparelho estatal, os
problemas essenciais da ciência administrativa, os trabalhadores de escritório e etc.
Quarto: trabalhar em estreito contato com os membros do Comitê Central de
Controle e seu secretariado, de maneira tal que possamos responder pelo
funcionamento de todo o aparelho em conjunto (LÊNIN, 1971, p. 89, tradução
nossa).
O influxo dos elementos sem as condições estabelecidas ameaçava a tradição e o
caráter do partido. Por isso, os membros do partido e do aparato do Estado resolveram
defender o partido contra a infiltração, decidindo retirar alguns membros do Partido através de
tribunais do partido, que examinavam a moral e as fichas de todos os membros, elevados ou
modestos. Assim, qualquer pessoa presente poderia testemunhar a favor ou contra o membro
que estava sendo investigado; os que foram afastados do partido não sofreram punição,
apenas a perda da condição de membro do partido dominante. Em pouco tempo, 200.000
membros estavam afastados do partido (DEUTSCHER, 1968).
33
Dois elementos são necessários para criar o aparelho: os operários entusiasmados com a luta em prol do
socialismo e que não estão suficientemente instruídos, não sabem como melhorar o aparelho, pois ainda não
alcançaram o desenvolvimento e a cultura indispensável para isto; e alguns conhecimentos, como educação e
instrução que estão escassos e que os bolcheviques poderiam compensar esta ausência de conhecimento com
dedicação e precipitação (LÊNIN,1979).
31
Com a formação do partido debilitada e a partir de novas ameaças internas, Lênin
decidiu proibir facções, grupos ou partidos opositores, tornando a Rússia um sistema
unipartidário, reconhecendo que o partido existente não poderia continuar sendo um partido
no sentido habitual; de centralismo democrático, passou a ser utilizado apenas o centralismo,
pois os membros não podiam mais discutir em público e nem discordar das opiniões
abertamente, mantiveram a disciplina, mas não a liberdade democrática (DEUTSCHER,
1968b; VOLKOGONOV, 2004):
Mas a crise partidária de 1920-21 era o fruto do fracionismo, do florescimento das
frações e grupos, e esta crise forçou Lênin a propor medidas reunidas a partir da sua
concepção da democracia partidária; a dissolução das facções que se tinham
formado sobre a base de uma ou outra plataforma (a saber, oposição dos
trabalhadores, centralismo democrático e etc), sob pena de imediata e incondicional
expulsão do partido (ARICÓ, 1974, p. 151, tradução nossa).
Por sugestão de Lênin, foi estabelecida uma hierarquia dentro do partido, baseada no
mérito e tempo de serviço, assim, determinados cargos importantes só poderiam ser ocupados
por pessoas que haviam ingressado na organização pelo menos no início da Guerra Civil.
Outros postos que envolviam responsabilidade maior seriam ocupados por pessoas que
haviam participado da revolução, e as mais altas posições ficavam reservadas aos veteranos,
na luta contra o czarismo. Cabe destacar as características da velha-guarda bolchevique:
A velha guarda era um conjunto formidável de homens unidos pela lembrança de
lutas heróicas travadas em comum, por uma confiança inquebrantável no socialismo
e pela convicção de que, entre a dissolução e a apatia universais, as oportunidades
do socialismo dependiam deles e quase que exclusivamente deles. Agiam com
autoridade, mas freqüentemente também com arrogância (DEUTSCHER, 1968b, p.
32).
A velha-guarda dirigia os órgãos principais do governo e era fundamental na
preservação dos interesses do partido e consequentemente do aparato estatal; ajudando a
fortalecer a organização social.
Era preciso uma organização social forte, fundamentada nos princípios do socialismo
soviético, para impedir que as potências capitalistas ocidentais cumprissem seu objetivo de
arruinar a Rússia soviética o máximo possível. Iniciaram a estratégia na Guerra civil, fazendo
tudo que era possível e não conseguindo derrubar o governo, decidiram dificultar ao máximo
o desenvolvimento da Rússia em direção ao socialismo, obtendo êxito parcial na sua tarefa.
No momento era preciso adotar uma tática para que os membros do Partido Comunista da
32
Rússia
e
do
Poder
Soviético
da
Rússia
pudessem
impedir
que
os
Estados
contrarrevolucionários da Europa os esmagassem.
O Décimo Primeiro Congresso do Partido elegeu um novo e ampliado Comitê Central
e modificou seus estatutos. Por causa da instabilidade nas principais organizações do partido
ou mau funcionamento do Comitê Central por razões burocráticas, foi criado o cargo de
secretário-geral, com o intuito de coordenar o trabalho dos inúmeros departamentos que
cresciam e se sobrepunham uns aos outros:
O Secretariado preparava os documentos para as sessões do Politburo, transmitia
suas decisões para os encarregados pela execução e cumpria ordens de seus
membros. Apesar de não se envolver diretamente com as questões relacionadas com
economia, defesa, administração do estado ou educação, desempenhava parte
importante na administração geral do aparato do partido. Uma vez que os órgãos
principais eram dirigidos por bolcheviques importantes, que não davam muita
atenção aos detalhes técnicos, ficou resolvido que um dos membros do Politburo
seria responsável por todo o trabalho do secretariado, com o cargo de secretário
geral (VOLKOGONOV, 2004, p.69).
O Politburo34 foi o verdadeiro governo do país e representava o cérebro e o espírito do
partido bolchevique, composto pelos seguintes membros: Lênin que era o líder do partido e
do governo; Trotski que foi o responsável pela direção da guerra civil; Kamenev que era o
substituto de Lênin em várias atividades; Bukárin que se encarregava da imprensa e
propaganda, Stalin que cuidava da administração cotidiana do partido; e posteriormente,
Zinoviev e Tomski. Em tese, o Secretário-Geral era subordinado ao ilustre Politburo, contudo,
o órgão passou a depender tanto do Secretário, que sem este o Politburo parecia um órgão
suspenso no vácuo. Em qualquer máquina governamental havia organizações semelhantes,
porém, raramente adquiriam autoridade independente, impedindo que ultrapassem os limites
fixados. Tal falha foi consequência do excesso de centralização do poder na liderança
bolchevista somado à falta de controle eficaz e à ambição do Secretário-Geral
(DEUTSCHER, 1970).
Para tornar-se secretário-geral, Stálin precisou do apoio de Kamenev e Zinoviev para a
proposta de sua candidatura com base em seu histórico no partido que dava provas suficientes
de sua contribuição para a reestruturação da sociedade, experiência em suas atribuições na
administração política e no Estado e sua inclinação pelo trabalho da organização,
34
Trata-se de um Comitê Executivo que reunia os partidos políticos comunistas. Durante o período soviético, o
Politburo do PCUS se transformou na maior associação política do país.
33
reconhecidas pelos velhos bolcheviques35. Em 1922 estava eleito o novo Secretário-Geral do
comitê central do partido que teria funções mais burocráticas do que políticas e coordenaria e
organizaria o aparato do partido; grande parte dos líderes do partido continuava a considerar o
cargo rotineiro, o que implicava pouco para pensadores como eles e não encaravam o
Secretário-Geral como ameaça:
Stálin ascendeu ao posto de secretário geral a 2 de abril de 1922. Dois meses mais
tarde, Lênin caiu seriamente enfermo. Por esse tempo, através de uma combinação
de circunstâncias fortuitas, e com a sua própria convivência, Stálin já conquistara
uma posição potencialmente estratégica. Se Lênin sarasse rapidamente, haveria
possibilidade de Stálin recuar para a obscuridade – possibilidade, não certeza
absoluta. Mas a moléstia de Lênin piorou cada vez mais (TROTSKI, 1947, p. 457).
Nesse momento e função, Stalin continuava pouco conhecido pelo partido e pelo país,
portanto, não representava ameaça. Ficaria conhecido a partir de sua atuação no cargo de
Secretário-Geral; mesmo com essa função, a questão da chefia do partido e do estado não era
contestada, somente um líder absoluto, Lênin.
O líder do aparato estatal e do partido raramente se queixava de seus problemas de
saúde e, enquanto esteve em forma, jamais se discutiram nomes de possíveis sucessores,
Lênin era o cérebro do partido.
Menos de dois meses depois da nomeação de Stalin para o cargo de Secretário-Geral,
o controle do governo escorregou das mãos de Lênin, pois, em fins de maio de 1922, sua
saúde ficou extremamente debilitada, o que o impossibilitou de controlar o governo, já que
fora afastado e voltaria somente cinco meses depois. É fato que o impacto causado pela
doença do líder sobre a liderança do partido e do governo, não poderia ter sido maior; com a
doença de Lênin, seus “discípulos e satélites”36 começaram a procurar rumos próprios e
independentes e, a partir desse momento, o partido percebeu o impacto negativo da
dependência e influência de Lênin e de suas ideias (DEUTSCHER, 1970).
Aproveitando o distanciamento de Lênin, Stalin adquiriu firmeza e autoconfiança cada
vez maiores. Sua conduta era ditada pelas tendências, necessidades e pressões da máquina
política que controlava e, desse modo, suas ações ficaram reduzidas a garantir o domínio da
máquina com o emprego dos meios mais convenientes e possíveis, sendo que nessas situações
o meio mais conveniente e mais disponível era quase sempre a repressão. Seus abusos
envolviam as questões referentes à quase metade da população da República Socialista
35
Zinoviev, Kamenev, Lênin e até Trotski foram figuras-chave para o desenvolvimento de Stálin e os cargos
que ocupou. Cargos que ocupou após a guerra civil: Comissário das Nacionalidades, Comissário da Inspetoria
dos Operários e Camponeses e membro do Politburo.
36
Entende-se por discípulos e satélites os mais próximos do líder.
34
Federativa Soviética Russa37; a periferia asiática e semiasiática tornou-se seu primeiro
domínio incontestável e foi responsável por grandes divergências e atritos com Lênin.
Quando retornou a suas atividades, Lênin não encontrou situação semelhante à
anterior:
De volta ao trabalho, sentiu uma mudança imprecisa mas inegável no ambiente que
o cercava. Os defeitos da máquina administrativa tinham piorado durante sua
ausência. Tornara-se mais difícil obter respostas rápidas e diretas às suas
indagações. As pessoas se queixavam de grosserias em certas repartições, de
entraves burocráticos em outras e de abusos do poder em outras mais. As ordens e
instruções que ele mesmo dava encalhavam frequentemente em lugares
desconhecidos, sem que jamais chegassem a seu destino. Tinha a sensação de que
acontecimentos obscuros ocorriam às escondidas. Antes mesmo de sua doença,
comunicara ao partido essa misteriosa sensação de que toda a máquina
governamental movia-se em direção diferente da que ele traçara como comandante.
Essa sensação tornava-se agora ainda mais forte. Ao tentar localizar a origem da
modificação, deparou logo com os escritórios da Secretaria Geral (DEUTSCHER,
1970, p. 221).
Quando descobriu o comportamento de Stalin (os conflitos internos no partido, suas
decisões infelizes e principalmente com relação à questão da Geórgia38), Lênin percebeu que
Stalin não era bom para o cargo de Secretário-Geral e deveria ir para outra função. O
comportamento de Stalin também surtiu críticas de Trotski, e quando foi cobrado, o
Secretário-Geral soube justificar todos os atos de repressão contra os bolcheviques
descontentes no Décimo e Décimo Primeiro Congressos, por iniciativa de Lênin e Trotski e
disse que tudo o que fez foi consequência inevitável das decisões anteriores tomadas por
comum consentimento (VOLKOGONOV, 2004).
Apesar dos atritos entre Stalin, Trotski e Lênin, era preciso resolver o problema das
nacionalidades das repúblicas independentes (mais de cem nacionalidades diferentes). Lênin e
Stálin não tinham o mesmo ponto de vista: Lênin acreditava que a unificação das repúblicas
independentes (inclusive a Rússia) devia ser de forma voluntária, não poderia acabar com a
independência dessas repúblicas, deveria ter a preservação dos direitos totalmente iguais para
37
De uma população de 140 milhões de habitantes, 65 milhões de habitantes não tinham nacionalidade russa. E
representavam todos os níveis da população.
38
Embora o resto do Cáucaso tivesse passado aos poucos para o controle soviético, até 1921, a Geórgia tinha um
governo menchevista. Moscou aceitou de certa maneira, pois acreditavam que a Geórgia sob o controle dos
menchevistas não duraria muito tempo, já que o Cáucaso estava sovietizado e o país dependia da região para
abastecer-se de pão e combustível. A paciência de Stálin se esgotou e, em fevereiro de 1921, resolveu mandar o
Exército Vermelho invadir a Geórgia e outras atividades que forçaram a fuga e extinção do governo menchevista
e, no outono do mesmo ano, Stálin defenderia a ideia de uma Federação Caucasiana de Repúblicas Soviéticas,
ideia que não despertou o entusiasmo dos georgianos que não queriam renunciar à sua soberania em troca de
organização regional. A invasão já tinha ferido o sentimento que foi alimentado pela prepotência do
Comissariado das Nacionalidades de Moscou e com as atividades dos agentes da polícia política. Lênin não ficou
sabendo por Stálin e julgou-as quase imperialistas (DEUTSCHER,1970).
35
todas para haver o progresso autêntico do socialismo e, assim, formariam a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Stalin acreditava que essa unificação deveria ocorrer por meio da ideia de
autonomização, que consistia na ideia de unificação das repúblicas nacionais por meio da
adesão à Federação Russa, isto é, à criação da República Federativa Socialista Soviética
Russa, na qual as outras entidades teriam direito à autonomia. Lênin qualificou a proposta de
Stalin como afastamento do internacionalismo proletário, cujo objetivo era unir um bloco de
países com os mesmos ideais e Stalin, com sua ideia de autonomização e suas ações na
Geórgia e em outros lugares, queria exercer seu domínio sobre as outras repúblicas (LEWIN,
2007; VOLKOGONOV, 2004).
No final, a ideia de autonomização de Stalin foi rejeitada, e a política de Lênin sobre
as relações da nacionalidade foi aceita. Em 30 de dezembro de 1922, foi proclamada a União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), com o texto de Lênin:
Todas as repúblicas (inclusive a Rússia) estavam se unindo para formar a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, mas mantinham o direito de abandoná-la. Este
mais alto órgão do Estado seria o “Comitê Executivo da União”, em que todas as
repúblicas estariam representadas, na proporção de suas populações. Esse comitê se
chamaria Conselho de Comissários da União (LEWIN, 2007, p.74).
O Relatório e a Declaração sobre a Formação da URSS39 consistiam na ideia do
internacionalismo proletário, o compromisso de todas as nacionalidades com a amizade,
solidariedade de classe e dedicação aos ideais revolucionários. Mesmo que Stálin tivesse
aceitado a modificação constitucional, Lênin desconfiava que, a partir desta aprovação, ele
acabaria com a autonomia das repúblicas não russas e restabeleceria a Rússia única e
indivisível; tendo um governo centralizado, disfarçaria a opressão às pequenas
nacionalidades. Lênin percebeu nos seus últimos meses de vida que suas preocupações com
Stálin40 estavam apenas começando e que por isso deveria tomar urgentemente uma atitude
(DEUTSCHER, 1968b; VOLKOGONOV, 2004).
39
Abrangeria quatro entidades regionais: Rússia, Transcaucásia, Ucrânia e Bielo-Rússia (foi em função disso
que Stálin forçou os georgianos a se unirem à Transcaucásia).
40
No dia da proclamação da URSS, Lênin começou a ditar uma série de notas sobre a política a ser adotada para
as pequenas nações. Disse que se sentia culpado diante dos trabalhadores da Rússia, por ter sido impedido pela
enfermidade, por não ter intervindo de forma mais rigorosa e drástica nessa questão; os direitos dos georgianos,
ucranianos e dos outros eram mais importantes do que a necessidade da centralização administrativa, além de o
respeito e o caráter voluntário da URSS significarem o progresso autêntico na direção do socialismo
(DEUTSCHER, 1968b).
36
Os primeiros sinais de desgaste da doença de Lênin começaram a surgir no final de
1921, entretanto, apenas em 1922, isso passou a ser a principal preocupação do Politburo41 e
dos camaradas mais próximos do líder:
A questão, portanto, não era exatamente a de quem substituiria Lênin, mas sim de
como se disporiam as suas forças sem ele, e que espécie de maioria se formaria para
proporcionar uma liderança estável. A estabilidade da liderança baseara-se, até
agora, pelo menos em parte, na autoridade incontestada de Lênin ou em sua
capacidade de persuasão e habilidade tática que, em geral, pelo menos em parte, na
autoridade incontestada de Lênin ou em sua capacidade de persuasão e habilidade
tática que, em geral, lhe permitiam conseguir a maioria dos votos para as propostas
que ia apresentando à medida que surgiam os problemas (DEUTSCHER, 1968b, p.
88).
Os homens do partido acreditavam que, pela popularidade e por ser visto como
segundo líder do partido, Trotski seria o próximo líder. Stálin não era cogitado como futuro
líder, mas criou uma facção especial no Politburo com a finalidade única de impedir que
Trotski tivesse a maioria que lhe permitisse ocupar o lugar de Lênin. Desse modo foi criado o
triunvirato: Stalin, Zinoviev e Kamenev42 (VOLKOGONOV, 2004).
Em El diário de las secretarias de Lenin, havia uma série de ideias e sugestões que
foram ditadas pelo líder, essenciais para se compreender até que ponto Lênin sabia dos
perigos que ameaçavam o jovem Estado soviético e o partido e principalmente sua opinião a
respeito dos grandes nomes do partido: “Trotski e Stalin”. A carta foi enviada ao Congresso,
em seguida a Stalin, e, por decisão de Stalin e apoio de Kamenev e Zinoviev, esta não foi
completamente divulgada no momento, assim como algumas de suas reivindicações também
não foram atendidas. Sua carta e suas reivindicações só foram divulgadas 30 anos depois.
As medidas principais que Lênin destacou para o regime político: propôs a retirada
imediata do Secretário-Geral em razão dos indícios de autoritarismo e poder ilimitado
alcançado pelo cargo, nomeando outro homem como Secretário-Geral, que fosse mais
paciente, leal, cortês e atencioso para com os camaradas; o aumento de sangue novo no
partido e na liderança do Estado como forma de elevar a autoridade do Comitê Central e
melhorar o fundo do aparato, além de impedir os pequenos conflitos nos setores do Comitê;
para essa estabilidade, era preciso prestar atenção ao perigo de uma divisão do partido,
provocada por Trotski e Stalin:
41
A princípio, essa preocupação do Politburo não deveria existir. Com ou sem a presença do líder, o órgão como
um todo deveria dirigir o Partido e sua vontade correspondia à da maioria (DEUTSCHER, 1968).
42
Suas ambições políticas reais até então, não tinham sido reveladas. Mostrava ser fiel à grande ideia.
37
Penso que, neste sentido, o ponto essencial do problema da estabilidade são os
membros do Comitê Central, Stálin e Trotsky. As relações entre eles constituem, na
minha opinião, o principal perigo de divisão do partido que poderia ser evitado e
para o qual, entre outras coisas, serviria, creio eu, o aumento dos membros do
Comitê Central, elevando de 50 a 100 pessoas (LÊNIN, 1974, p. 132, tradução
nossa).
O antagonismo entre os dois não era novidade para Lênin, mas acreditava que era
apenas um choque de personalidades, não envolvia conflito de interesse de classe ou de
princípio. Sua opinião a respeito de Stalin e Trotski era bem crítica, não os designando para
ocupar o seu lugar:
O camarada Stálin, convertido em secretário-geral, tem concentrado um poder
ilimitado em suas mãos, e não estou seguro de que sempre será utilizado com
prudência suficiente. Por outro lado, o camarada Trotsky, como já demonstrou sua
luta contra o Comitê Central no problema do Comissariado do Povo pelas vias da
comunicação, não se destaca apenas por suas capacidades eminentes. Pessoalmente,
talvez seja o homem mais capaz de atuar no C.C., mas também é presunçoso em
excesso e é apaixonado pelos aspectos puramente administrativos do trabalho. Estas
duas características de ambos os líderes eminentes do Comitê Central atual
poderiam levar acidentalmente a uma divisão do partido: e, se nosso partido não
tomar as medidas necessárias para opor-se a isso, a divisão poderia vir de forma
inesperada (LENIN, 1974, p. 138, tradução nossa).
Lênin avaliou os dois líderes mais conhecidos do partido e deixou claro que nenhum
deles estava preparado para dirigi-lo. Na realidade, deixou implícito que a velha guarda estava
apta a exercer a liderança coletiva do partido, criando ressalvas para que o poder não fosse
exercido por um só homem e, acima de tudo, o sistema democrático deveria apoiar aquele que
melhor servisse ao país, mas foi com a ajuda da velha guarda que Stalin criou seu próprio
sistema burocrático.
Trotski tinha potencial para ser o futuro líder do partido, mas a velha guarda
bolchevique não o considerava como um deles; não apenas pelas lembranças do seu passado
menchevique, mas também por sua forte personalidade que parecia acreditar que estava acima
dos leninistas, pela simples força da mente e vontade e, dessa forma, sentiam-se inferiores:
Assim, quase tudo nele, sua mente fértil, sua ousadia retórica, sua originalidade
literária, sua capacidade administrativa, seus métodos rigorosos de trabalho, as
exigências que fazia aos companheiros e seus subordinados, seu alheamento, a
ausência de trivialidade nele e até mesmo sua incapacidade de conversas miúdas –
tudo isso provocava nos membros da velha guarda um sentimento de inferioridade
(DEUTSCHER, 1968b, p.45).
Lênin se preocupou com Trotski em razão de sua adesão tardia aos bolcheviques, além
de seu extremismo de esquerda e autoconfiança excessiva que o colocou diversas vezes em
38
confronto com o Comitê Central. Segundo Volkogonov (2004), Trotski acreditava realmente
que, se o desejo de Lênin de demitir o Secretário-Geral se realizasse, se tornaria líder do
partido; o que não aconteceu porque o “testamento”43 não foi divulgado.
Desde o final da guerra civil, a sociedade russa, sem saber, já se encontrava sob o
domínio de Stalin e, mesmo sendo menos popular que Trotski, recebeu votos da velha guarda
a qual o nomeou para todos os cargos que ocupou. A partir das questões relacionadas à união
das repúblicas independentes, Lênin lançou duras críticas ao Secretário-Geral que eram
conhecidas por Stalin, porém, não durariam muito tempo, pois, em 9 de março, Lênin sofreu o
terceiro ataque de sua doença, e não conseguiu restabelecer-se:
Stalin não estava inteiramente a par das providências de Lênin, mas pressentia o
perigo. Conhecia seu temível adversário bastante bem para perceber que toda a sua
carreira estava ameaçada. Assim, não deverá ter sido só com tristeza que recebeu a
notícia da recaída de Lênin. O fato de Lênin não poder mais denunciá-lo perante o
Congresso, aliviou-o antecipadamente da maior parte de seu embaraço. Ainda tinha
motivos para esperar uma investida de Trotski, que podia ser um crítico perigoso,
mas que podia igualmente revelar-se um lutador de músculos postiços. Tratou então
de imobilizar Trotski (DEUTSCHER, 1970, p. 226).
A estratégia consistia em quem dirigiria o Congresso no lugar de Lênin. Formou-se
dentro do Politburo o triunvirato que era composto por Stalin, Zinoviev e Kamenev. Esta
união representava poderosa combinação e praticamente controlava o partido e
consequentemente, o governo; a união teve como objetivo comum impedir que Trotski
assumisse a liderança do partido.
Cedo ou tarde todos sabiam que a hora de Lênin chegaria:
Em 21 de janeiro de 1924, Lênin morreu. Apesar de todas as tristezas e desilusões
dos últimos anos, o povo lamentou sua morte como a de raros líderes da história. Na
mente popular seu nome ainda simbolizava a grande promessa da Revolução, a
sociedade de homens iguais e livres. As multidões enlutadas volviam os olhos
inquietos para os discípulos de Lênin: qual deles iria substituí-lo na direção do país?
Apesar das recentes altercações e excomunhões, o pensamento de muitos voltava-se
para Trotski. Mas ele não seria visto ao lado da essa de Lênin, junto à qual o povo
desfilou numa última homenagem ao líder morto, exposto em câmara ardente, nem
nas numerosas cerimônias que se seguiram (DEUTSCHER, 1970, p. 240).
A cerimônia solene estava em total contradição com o modo e estilo de Lênin. Na
realidade, tal cerimônia foi planejada com a intenção de impressionar a imaginação do povo,
para que se entregasse à exaltação do novo culto leninista. Foi essa a intenção de embalsamar
o corpo de Lênin, de depositá-lo no Mausoléu da Praça Vermelha e do discurso de Stalin:
43
Receoso de uma morte súbita ou que a paralisia total o atingisse, Lênin apressou-se a escrever suas ideias e
sugestões a respeito das questões internas do partido, do governo e de Stálin; com exceção dos secretários e da
mulher de Lênin, Krupskaia, ninguém sabia do testamento.
39
[...] nos esquivaremos de incontáveis golpes [...] não pouparemos nossas vidas [...]
na construção do reinado do trabalho na terra, não no céu. Em nome do partido,
Stalin jurou honrar o título de membro do partido, proteger sua unidade, reforçar a
ditadura do proletariado, fortalecer a união de operários e camponeses e das
repúblicas irmanadas, e permanecer fiel ao internacionalismo (VOLKOGONOV,
2004, p. 91).
Devido aos últimos acontecimentos entre Lênin e Stalin, seu juramento pôde parecer
uma manifestação de hipocrisia. Entretanto, Stálin realmente se considerava discípulo de
Lênin, pois há vinte anos aderiu ao bolchevismo e participou de praticamente todos os
grandes acontecimentos do partido, seguindo ordens diretas do líder; considerava seu
desentendimento com o líder um mal entendido, que, se não fosse a morte de Lênin, teria sido
solucionado44.
De acordo com Trotski (1947), o motivo pelo qual não compareceu às cerimônias
fúnebres foi a falta de informação, pois estava no Cáucaso, tentando se libertar de uma
infecção. Sua ausência causou aborrecimentos a muitos amigos, mas Trotski se justificou
com essa versão:
Stalin se orientava em suas arriscadas manobras por motivos mais tangíveis. Ele
teria receado que eu conjugasse a morte de Lênin à conversa do último ano acerca
do veneno, que interrogasse os médicos a respeito, e exigisse uma autópsia especial.
Era, por conseguinte, muito mais seguro conservar-me à distância até que o corpo
fosse embalsamado, as vísceras cremadas e um exame post mortem, inspirado por
tais suspeitas, já não fosse praticado (TROTSKI, 1947, p.497).
Há quem diga que Trotski não alcançou o poder, pois não esteve presente no funeral
de Lênin, mas nem ele acreditou nisso. O testamento de Lênin era o único texto do mestre,
que podia ter abalado a vitória de Stalin, entretanto, permaneceu desconhecido pelo partido.
Após quatro meses da morte de Lênin, o testamento foi lido no Comitê Central que
tinha como principal informação as considerações que excluiriam Stálin do cargo de
Secretário-Geral. De acordo com o culto leninista, não havia possibilidade de desconsiderar o
testamento de Lênin. Zinoviev salvou Stalin no momento mais decisivo da sua vida e de toda
a URSS:
„Camaradas‟, disse Zinoviev aos presentes,‟ todas as palavras de Ilich [Lênin] são
leis para nós. [...] Juramos cumprir tudo o que o agonizante Ilich nos ordenou.
Sabeis muito bem que cumpriremos esse juramento‟. „Mas temos a alegria de
afirmar que, num determinado ponto os temores de Lênin são infundados. Refiro-me
à questão relacionada com o Secretário Geral. Todos vós testemunhastes nossa
44
Não demoraria a começar explicar o leninismo, de acordo com sua interpretação e como forma de incitar as
massas e chegar ao poder. E, a cada frase sua, usaria alguma de Lênin para fortalecer o que estava falando
(DEUTSCHER, 1970).
40
cooperação harmoniosa nestes últimos meses; e, assim como eu, tereis a satisfação
de dizer que os temores de Lênin são infundados‟ (DEUTSCHER, 1970, p. 244).
Kamenev pediu que Stalin permanecesse no cargo e, se isso ocorresse, era
aconselhável não divulgar o testamento de Lênin ao Congresso. Diante da situação, Krupskaia
protestou em vão contra a não divulgação do testamento de seu marido.
Enquanto Trotski, orgulhoso demais para intervir nesta situação que também afetava
sua posição, manteve-se calado, expressando seu desprezo com caretas.
A proposta de Zinoviev contra a publicação do testamento e em defesa de sua
divulgação confidencial a alguns membros selecionados foi aprovada e, naquele momento,
Stálin retomou sua posição com firmeza até a morte.
A campanha de calúnias utilizada pelo triunvirato dentro do partido deu certo, falavase que Trotski era o Bonaparte da Revolução russa. O triunvirato venceu graças à
“obscuridade” de Stalin e o apoio maciço de Zinoviev e Kamenev que estavam certos de que,
comparado a Trotski, Stálin não representava perigo, erro fatal que seria comprovado pouco
tempo depois.
2.2 A “Revolução Permanente” versus “Socialismo num só País”
O partido [disse Trotski], em última análise, está sempre com a razão, porque o
partido é o único instrumento histórico de que dispõe o proletariado para a solução
de seus problemas fundamentais. Já disse que não há nada mais fácil do que admitir
um erro perante o próprio partido, nada mais fácil do que dizer: todas as minhas
críticas, minhas declarações, minhas advertências, meus protestos, tudo não passou
de um simples erro. Camaradas, eu, porém, não posso dizer isso, porque não penso
assim. Sei que não se deve estar certo contra o partido. Só se pode estar certo com o
partido e através do partido, pois a história não abriu outro caminho para a
realização do que está certo. Os ingleses costumam dizer: Certo ou errado, é meu
país. Com justificação histórica muito maior podemos dizer: certo ou errado, em
determinadas questões isoladas, é o meu partido (DEUTSCHER, 1970, p. 250).
A consolidação do poder de Stalin foi possível, em grande parte, devido às favoráveis
circunstâncias do momento: a morte de Lênin e a não divulgação do “testamento” resultaram
na permanência do Secretário-Geral no poder. A não utilização dos últimos escritos de Lênin,
assim como o apoio de alguns membros da “velha guarda” do partido facilitaram a derrubada
de Trotski, a sustentação do governo ditatorial e a livre interpretação da teoria leninista como
principal objetivo do novo líder.
41
Foi após a morte de Lênin, em 1924, que o debate entre Stalin e Trotski a respeito dos
rumos do socialismo tomou força. Stalin defendia a ideia do “socialismo num só país”, que
propunha o oposto da “revolução permanente” de Trotski. Os dois representavam a disputa da
visão do mundo pequeno-burguesa e da internacionalização da revolução.
Segundo Stálin (1975), o “socialismo num só país” mostrava que a Rússia deveria
passar, em primeiro lugar, por uma revolução burguesa para desenvolver-se social e
industrialmente e, assim, o proletariado assumiria o poder. A Rússia era um país semifeudal e
atrasado, mas poderia conquistar a vitória socialista:
Antes julgava-se impossível a vitória da revolução num só país, supondo-se que,
para alcançar a vitória sobre a burguesia, era necessária a ação conjunta dos
operários de todos os países adiantados, ou pelo menos, da maioria deles. Agora,
este ponto de vista já não corresponde à realidade. Agora há que partir da
possibilidade deste triunfo, pois o desenvolvimento desigual e por saltos dos
diferentes países capitalistas no imperialismo, o desenvolvimento, no seio do
imperialismo, de contradições catastróficas que levam a guerras inevitáveis, o
incremento do movimento revolucionário em todos os países do mundo; tudo isto
não só conduz à possibilidade, mas também à necessidade do triunfo do proletariado
num ou noutro país (STALIN, 1975, p. 215-216).
Essa ideia combatia a teoria dos críticos leninistas que consideravam utopia a tomada
do poder pelo proletariado num só país ou a sobrevivência da revolução proletária, sem ser
acompanhada, ao mesmo tempo, pela revolução vitoriosa noutros países. E, assim, Stálin em
seus escritos criticou as posições de Trotski45 e dos “trotskistas”: quem não acreditasse nos
êxitos da edificação do socialismo num só país, beneficiava indiretamente aos socialdemocratas, enfraquecia a amplidão do movimento internacional e consequentemente o
internacionalismo, provocando a deturpação do leninismo (STALIN, 1975).
A teoria do socialismo num só país de Stálin foi decisiva para a estratégia de derrubar
Trotski, afirmando que a teoria da “revolução permanente” era o oposto do leninismo, logo,
uma variante do menchevismo: “A revolução permanente de Trotski é a negação da teoria
leninista da revolução proletária, e vice-versa: a teoria leninista da revolução proletária é a
negação da teoria da revolução permanente” (STALIN,1975, p.123).
De acordo com Procacci (1975), a teoria do “socialismo num só país” continha
incertezas e obscuridades. Inicialmente a ideia foi divulgada por Stálin, entretanto, por ser
45
Trotski não considerou os camponeses como força revolucionária e, assim, lançou a “revolução permanente”
em 1905. Com a palavra de ordem “sem czar, por um governo operário”; ideia oposta à de Lênin quando se
tratava da aliança entre o proletariado e os camponeses, como base da ditadura do proletariado (STALIN, 1975).
42
considerado “autoridade como teórico”, Bukárin46 foi quem mais propagou a ideia entre os
militantes do partido.
Trotski representava o lado oposto das ideias de Stálin, acreditava em uma luta
revolucionária em massa e imediata. De acordo com Procacci (1975), no momento em que a
Internacional Comunista afirmava que o comunismo estava passando por relativa
estabilização, Trotski proclamava a necessidade de uma recuperação revolucionária, de um
regresso às origens, explicitado nas Teses de Abril e Insurreição de Outubro, como forma de
reencontrar a audácia, coragem e a confiança nos recursos inesgotáveis do proletariado
revolucionário russo e europeu47.
Na introdução do livro A Revolução Permanente (2007), Trotski destacou a
incapacidade dos epígonos48 de fazer um prognóstico histórico, pois avaliaram e analisaram o
contexto de 1905, como se fosse o de 192449. De acordo com Trotski (2007), a “revolução
permanente” implicava o caráter internacional da revolução socialista, que era resultado do
estado da economia e da estrutura social da humanidade. Não se podia separar o
internacionalismo da revolução proletária (como fizeram os epígonos), pois este era o reflexo
político e teórico do desenvolvimento mundial das forças produtivas e do ímpeto mundial da
luta de classes. Assim, a revolução socialista começou no âmbito nacional e se estabeleceu
como um regime transitório, não podendo permanecer apenas dentro do país, pois no caso de
uma ditadura proletária isolada, as contradições internas e externas aumentavam, assim como
abalavam os êxitos:
Se o Estado proletário continuar isolado, ele, ao cabo, sucumbirá vítima dessas
contradições. Sua salvação reside unicamente na vitória do proletariado nos países
avançados. Desse ponto de vista, a revolução nacional não constitui um fim em si,
apenas representa um elo da cadeia internacional. A revolução internacional, a
despeito de seus recuos e refluxos provisórios, representa um processo permanente
(TROTSKI, 2007, p. 65).
A campanha contra Trotski foi dirigida pela oposição aos três aspectos da “revolução
46
Bukárin era um dos principais membros do Politburo. Em um primeiro momento, não acreditava que poucos
trabalhadores e camponeses alcançariam o sucesso do socialismo; acreditava que o auxílio dos países europeus
resolveria problemas como o atraso econômico russo. Mas quando notou que a Rússia estava “sozinha”, isto é,
não receberia o apoio dos outros países europeus, uniu-se a Stálin na teoria do “socialismo num só país”.
47
Por esse motivo havia sido criada a Internacional Comunista, com estrutura em diversos países e com o
objetivo de ampliar e organizar o movimento revolucionário mundial.
48
Epígono significa seguidor, discípulo de um grande mestre em determinado assunto (nas letras, nas ciências,
nas artes) ou representante da geração seguinte. Era assim que Trotski classificava os burocratas estalinistas que
dominavam o governo soviético, após a morte de Lênin.
49
Em 1924, era muito mais fácil perceber as lacunas que não estavam evidentes em 1905.
43
permanente”50, o que era natural, pois eram partes indissolúveis e formavam o todo. Trotski
(2007) também ressaltou que os epígonos separavam facilmente a ditadura democrática da
ditadura socialista, tal como a revolução nacional da revolução internacional; representando
para eles a conquista nos quadros nacionais, na essência, não como ato inicial, mas ato final
da revolução.
De acordo com Volkogonov (2004), Trotski acreditava que o “socialismo num só
país” era impensável, pois manter a revolução proletária dentro dos limites nacionais
significaria um regime temporário, ainda que prolongado:
Para a questão de como construir o socialismo, Trotski, efetivamente deu a resposta,
“pela espera da revolução mundial, impulsionando-a”. Trotski acreditava que
Revoluções de Outubro espocariam no mundo, uma atrás a outras, e que o Exército
Vermelho teria que ajudar outros países para a grande sublevação
(VOLKOGONOV, 2004, p.104).
As ideias apresentadas por Trotski em 1905 e posteriormente em 1924 a respeito do
significado da revolução proletária e sua associação com a revolução internacional podiam ser
fundamentadas nos Princípios do Comunismo (1847), escrito por Engels; destacando que,
após a revolução industrial e consequentemente com o poder alcançado pela burguesia, todos
os povos civilizados estariam interligados:
Poderá esta revolução realizar-se apenas num único país? Não. A grande indústria,
pelo fato de ter criado o mercado mundial, levou todos os povos da terra- e,
nomeadamente, os civilizados – a uma tal ligação uns com os outros que cada povo
está dependente daquilo que acontece com o outro. Além disso, em todos os países
civilizados ela igualou de tal maneira o desenvolvimento social, que em todos os
países a burguesia e o proletariado se tornaram as duas classes decisivas da
sociedade e a luta entre elas, a luta principal dos nossos dias. A revolução comunista
não será, portanto, uma revolução simplesmente nacional; será uma revolução que
se realizará simultaneamente em todos os países civilizados, isto é, pelo menos em
Inglaterra, América, França e Alemanha... Ela é uma revolução universal e terá,
portanto, também um âmbito universal 51.
50
A teoria da revolução permanente demonstrava que o cumprimento das tarefas democráticas, proposto pelos
países burgueses atrasados, conduziria diretamente à ditadura do proletariado; nisso consiste a ideia fundamental
da teoria. O segundo aspecto dizia respeito à revolução permanente: proclamar para os países atrasados, que,
para chegar à democracia, passariam pela ditadura do proletariado e, por isso, a democracia não era considerada
como um fim em si, mas como o prólogo imediato da revolução socialista. E o terceiro aspecto implicava o
caráter internacional da revolução socialista, resultado do estado da economia e da estrutura social da
humanidade (TROTSKI, 2007).
51
ENGELS, F. Princípios Básicos do Comunismo [on line]. Disponível em: <www.marxists.org.> Acesso em:
20 jul. 2011.
44
Para Bukárin (1975), a teoria de Marx e Engels a respeito da “revolução permanente”
era uma teoria válida, entretanto, era preciso considerar o contexto em que se encontrava a
revolução e suas etapas:
No decurso da revolução, muda continuamente a correlação entre as classes em luta,
de que a revolução passa, continuamente, no seu desenvolvimento, de uma fase para
a seguinte. A revolução passa da fase feudal para a da burguesia liberal; depois
desta, passa para a pequena burguesia e, posteriormente, desta fase para a da
revolução proletária (BUKÁRIN, 1975, p. 168).
Portanto, para Bukárin (1975), as ideias de Trotski não tinham sentido quando
colocadas em prática, no contexto soviético. Stalin (1975) defendia que os “permanentistas”
estavam equivocados quando diminuíam a importância do campesinato52, pois estes
priorizavam as estratégias que deveriam ser defendidas pelo partido e eram essenciais para a
ruptura do regime econômico. O “socialismo num só país” era possível mesmo com o atraso
econômico da Rússia, pois cada país tem seu tempo no desenvolvimento e suas contradições;
aspectos que, de acordo com Stálin (1975), não eram considerados por Trotski.
De acordo com Deutscher (1968b), o “socialismo num só país” favoreceu a vitória de
Stálin como líder do Partido e do Estado, pois a URSS estava em um momento que precisava
acreditar em sua auto-suficiência socialista. Enquanto a “revolução permanente” previa a
necessidade da revolução mundial para a manutenção do Estado soviético, além de lutas e
revoluções constantes:
A compreensão popular da Revolução Permanente sugeria uma perspectiva de
levantes contínuos e lutas intermináveis e a impossibilidade, para a Revolução
Russa, de consolidar-se e atingir certa margem de estabilização. Ao denunciar a
Revolução Permanente, os triúnviros apelaram para o desejo popular de paz e
estabilidade. Na verdade, a teoria de Trotski pretendia que a sorte da Rússia
bolchevique dependia, em última instância, da difusão da Revolução no exterior [...]
Os bolcheviques sentiam-se mais isolados do que nunca. Encontraram uma defesa
psicológica em seu sentimento complacente de auto-suficiência revolucionária da
Rússia. A teoria de Trotski ofendia e ridicularizava tal sentimento (DEUTSCHER,
1968b, p.171).
Stálin aproveitou o sentimento dos bolcheviques para conquistá-los com suas
promessas de paz e estabilidade, proclamando a autossuficiência soviética; os que não
52
Para Preobrajensky, só a superindustrialização, à custa do setor agrícola, poderia promover um Estado com
base industrial e a possibilidade do socialismo; papel que o campesinato representava para Stálin
(VOLKOGONOV, 2004).
45
conquistou, afastou do partido53. Dessa forma, afastou do partido Trotski e todos os que
compartilhavam suas ideias, e assim, tornou-se vitorioso.
2.3 A Retomada do “Império”: O Governo de Josef Stalin
[Bukárin] A época de transição para o socialismo coube ao gênio de Lênin, e ele
personificou aqueles tempos tumultuosos com seus movimentos fortes. [...] Porém,
cada época produz as pessoas de que necessita, e outros passos da história puseram
Stalin no seu lugar, cujo centro de gravidade do pensamento e da ação constitui a
nova fase da história, quando o socialismo foi conquistado para sempre sob sua
liderança. Todas as funções ativas foram simbolizadas nas conquistas vitoriosas no
grande e stalinista Plano dos Cinco Anos, e a teoria se alia à prática em gigantesca
escala social (VOLKOGONOV, 2008, p. 87).
Quando alcançou efetivamente o poder, em 1925, Stalin54 se deparou com um país que
não se tinha recuperado completamente das consequências da Primeira Guerra Mundial e da
Guerra civil (1918-1921) e, além disso, o sistema internacional tinha alcançado certa
estabilidade:
Stálin e Bukárin comunicaram ao partido que o período de tensão revolucionária na
Europa chegara ao fim e que o capitalismo estrangeiro alcançara um grau de
estabilidade que certamente deixaria isolada a Rússia Soviética por muito tempo
ainda [...] Stálin acentuou as circunstâncias que poderiam destruir a “estabilização”;
mas o teor geral de suas palavras conduzia também à conclusão de que qualquer
crise revolucionária no exterior pertencia agora a um futuro mais ou menos remoto
(DEUTSCHER, 1970, 273).
Os primeiros meses do governo de Stalin marcaram a dissolução do triunvirato e o
início de suas contribuições teóricas que arrancaram a essência humanística do socialismo,
substituindo-a pelo “socialismo sacrificial”:
O stalinismo foi um misto de burocracia e socialismo de quartel adornado com
terminologia dogmática [...]. O socialismo autêntico ocorre quando o homem é o
centro das atenções, e onde a democracia, o humanismo e a justiça social são
propriedades intrínsecas. Uma abordagem dessas não tem lugar para a violência,
para o distanciamento do povo do poder, para líderes semideuses (LEWIN, 2007,
p.121).
53
A crença no “socialismo num único país” tornou-se prova suprema de lealdade ao partido e ao Estado. Nos dez
ou 15 anos que se seguiram, todos os que não passavam nesta prova eram condenados e castigados
(DEUTSCHER, 1970).
54
Tinha à sua disposição o tesouro da Internacional, do qual o partido russo era o maior contribuinte e os
partidos europeus eram os maiores dependentes (LEWIN, 2007).
46
Tornara-se o líder supremo do partido e do Estado, entretanto, só podia afirmar sua
liderança de maneira constitucional, como porta-voz da maioria do Politburo55. Como
declarou o fim do triunvirato, Stálin dependia do apoio de três membros: Bukárin, Rikov e
Tomski. De acordo com Deutscher (1970), o novo arranjo coincidiu com a formação de uma
ala direita no partido e no Politburo, representada por: Bukárin, Rikov e Tomski contra
Zinoviev e Kamenev (ala esquerda)56.
A Nova Política Econômica dos anos 20, embora bem sucedida na restauração dos
níveis mínimos de viabilidade econômica e política, foi insuficiente em relação ao que era
necessário para enfrentar os desafios internos e externos da Rússia:
A Nova Política Econômica deu aos camponeses a oportunidade de negociarem sua
produção, depois do pagamento de uma taxa fixa em espécie [...] Embora
melhorasse muito a produção de grãos durante o período de reconstrução, foi
principalmente o abastecimento de cereais para consumo interno que aumentou, ao
passo que a utilização desses grãos para o comércio estatal se atrasou, e a produção
total tinha ainda um longo caminho para alcançar os níveis antes da guerra. Os
baixos preços pagos aos camponeses e a escassez de bens manufaturados para venda
nas vilas perpetuavam essa situação [...] A NEP proporcionava segurança para os
camponeses pobres e de situação mediana, e naturalmente, também fortalecia a
posição dos kulaks (VOLKOGONOV, 2004, p.161).
Devido ao rebaixamento da taxa em espécie, o excedente agrícola ficou nas mãos dos
camponeses remediados e bem sucedidos, sendo que o poder de compra dos camponeses
cresceu proporcionalmente. No entanto, havia escassez de bens no país todo e, portanto, os
camponeses não estavam dispostos a vender os grãos, já que não tinham diversidade de bens:
O descontentamento cresceu e tornou-se motivo de inquietação. As esperanças na
criação de subsídios não se concretizaram, empréstimos dos estados capitalistas não
se materializaram, e o comércio de exportação nem chegou a 50% do nível anterior à
guerra. Um milhão e meio de desempregados enchiam as divisões de oferta de
ocupações. Um em cada dois adultos do sexo masculino não sabia ler ou escrever.
Não havia como comprar máquinas e ferramentas. Na realidade, nenhuma
construção do vulto em curso. Mesmo assim, os jornais estampavam que o país vivia
as vésperas de mudanças enormes. Parecia que o jovem estado não tinha escolha:
para sobreviver num mundo complexo e perigoso tinha que correr
(VOLKOGONOV, 2004, p.113).
55
A vontade do Politburo expressava-se constitucionalmente através do voto majoritário, em 1925, este era
composto: Stalin, Zinoviev, Kamenev, Trotski, Bukárin, Rikov e Tomski. Com o fim do triunvirato, Stalin
dependia de três membros: Bukárin, Rikov e Tomski.
56
Stalin não pertencia a nenhuma dessas alas. Razões táticas levaram-no a unir-se aos porta-vozes da direita, de
cujo voto dependia no Politburo. Além disso, Bukárin, Rikov e Tomski aceitaram o socialismo num único país;
Bukárin podia ser considerado coautor da doutrina, pois forneceu-lhe instrumentos teóricos e polimento
intelectual (DEUTSCHER, 1970).
47
A questão primordial no âmbito econômico era a interpretação prática da política da
57
NEP . Era preciso definir o ritmo da industrialização da Rússia e a atitude do governo com
relação à agricultura privada, sendo que a industrialização (até fins de 1928, foi deixada de
lado) e as fazendas particulares precisavam de capital.
Ao mesmo tempo, os camponeses58 exigiam a extensão das concessões determinadas pela
NEP (restrições de impostos que pesavam sobre a agricultura, restrições referentes ao aluguel
de mão-de-obra e ao arrendamento de terras a longo prazo).
O debate sobre os rumos da NEP foi um dos momentos mais importantes para o
enfraquecimento de Trotski na disputa pela sucessão de Lênin. Seu discurso no Congresso, ao
contrário de todos os outros, foi direto e impiedoso, falou apenas de política econômica; para
ele, política e planificação econômica eram assuntos primordiais:
Fez ao Partido um apelo para que controlasse o destino econômico do país e atacasse
a grande e difícil tarefa da acumulação primitiva socialista. Analisou a experiência
de dois anos da Nova Política Econômica e redefiniu-lhe os princípios. O duplo
propósito da N.P.E era, argumentou ele, desenvolver os recursos econômicos da
Rússia e dirigir tal desenvolvimento pelos canais socialistas. O aumento da produção
industrial ainda era lento, estando atrasado em relação à recuperação da agricultura
privada (DEUTSCHER, 1968b, p. 112).
Após ter alcançado o poder, Stalin optou por defender os mujiques e atacar os kulaks59,
tendo como consequência a redução do imposto agrícola e a remoção das restrições
relacionadas ao arrendamento de terras, ao contrato de lavradores e à acumulação de capital.
A posição adotada por Stalin foi duramente criticada pela ala esquerda que não concordava
com o trabalho forçado dos camponeses nas fazendas coletivas (na realidade seriam as amplas
fazendas dos kulaks), defendendo que a transição da agricultura particular para a coletiva
deveria ser processada gradativamente, com o próprio consentimento dos camponeses.
57
Com a NEP, a economia do país era mista, a indústria de propriedade do Estado formava o setor socialista. No
comércio e na pequena indústria, prevalecia a empresa privada e a propriedade particular dominava a agricultura.
58
Os camponeses dividiam-se em três grupos: fazendeiros “poderosos” ou ricos que contratavam mão-de-obra e
eram conhecidos como kulaks; os camponeses pobres que possuíam pequenas propriedades, mas também se
alugavam como trabalhadores e eram conhecidos como byednyaks; e o camponês médio que era o pequeno
proprietário independente, que, nem empregava trabalhadores, nem alugava sua força de trabalho a outros, era
conhecido como serednyak; os camponeses pobres e médios também eram conhecidos como mujiques
(DEUTSCHER, 1970).
59
A ala direita (Bukárin, Rikov e Tomski) queria que o governo estimulasse o desenvolvimento das fazendas
prósperas, que eram capazes de abastecer as cidades, sendo assim, os camponeses médios e pobres produziriam
para o seu próprio sustento (Bukárin propôs que os camponeses “enriquecessem”). Também acreditava que os
fazendeiros prósperos não constituíam ameaça ao socialismo, de modo que o governo dominava a indústria, o
transporte, os bancos e os “postos de comando” da economia nacional. A oposição era representada por Zinoviev
e Kamenev, que denunciavam a política pró-mujique e defendiam que, quanto mais fortes se tornassem os
kulaks, mais especulariam com a produção agrícola, elevando os preços para a população urbana, além de
exigirem novas concessões do governo (DEUTSCHER, 1970).
48
O XIV Congresso aprovou a resolução assegurando que, “no geral, a vitória do
socialismo (não no sentido de sua vitória final) é definitivamente possível em um só país”,
retirou Trotski do cargo de Comissariado de Guerra (continuava como chefe das Forças
Armadas), concordou com os novos rumos da NEP (destacando a importância da
industrialização) e serviu como “mesa de debate” para a nova oposição que surgira. Após as
divergências e “ataques” públicos entre os antigos triúnviros e Stalin, no XIV Congresso, o
novo líder derrotou Zinoviev e Kamenev; que protestaram contra o domínio do SecretárioGeral e tentaram tardiamente informar ao partido a respeito do testamento de Lênin:
[...] discurso da ala esquerda] Somos contra a criação de uma teoria de “liderança”,
somos contra a confecção de um “chefe”. Somos contra um secretariado, que, na
prática, reúne a política e a organização, postando-se acima do órgão político.
Somos a favor de um Politburo organizado internamente de forma tal que, enquanto
congrega os políticos do partido, seja genuíno detentor, órgão superior que é, de
poder total; e somos a favor de um secretariado subordinado ao Politburo e executor
das instruções deste. Pessoalmente, digo que nosso Secretário-Geral não é a pessoa
para unir em torno de si a equipe do antigo QG bolchevique. Precisamente por ter
dito isso, em pessoa e inúmeras vezes, ao camarada Stálin, e por ter repetido
incontáveis vezes ao grupo de companheiros leninistas, é que reitero meu ponto de
vista neste congresso: cheguei à conclusão de que o camarada Stálin não pode
desempenhar o papel unificador da equipe bolchevique. Comecei esta parte de meu
discurso com as seguintes palavras: „somos contra a teoria de liderança de um só
homem, somos contra a criação de um chefe!‟ (VOLKOGONOV, 2004, p .61).
O discurso de Kamenev não surtiu resultados contra Stalin, que se firmava cada vez
mais como “líder supremo” do Estado soviético a partir de sua “defesa do leninismo”,
“liderança coletiva” e a promessa de tornarem públicas as demandas urgentes de Lênin:
restauração da economia nacional, desenvolvimento de cooperativas, reativação do comércio
e alfabetização. Após a derrota da ala esquerda, foi formada uma nova aliança entre Zinoviev,
Kamenev e Trotski; aliança que estava enfraquecida devido às inimizades e conflitos
anteriores entre os membros.
Em 1926, Stalin iniciou a eliminação de seus opositores do Politburo e posteriormente,
do partido e do “mundo”:
Em fins de outubro de 1926 ele expulsou Trotski do Politburo. Entre os membros
desse órgão não se encontrava mais nenhum representante da oposição. Depôs
Zinoviev da presidência da Internacional Comunista e denunciou perante o
Executivo da Internacional, que confirmou a deposição. Uma conferência russa do
partido endossou as modificações no Politburo e atendeu aos pedidos de readmissão
ao partido [...]. Ficou, assim, estabelecido um padrão para futuras expulsões,
retratações e readmissões (DEUTSCHER, 1970, p. 278-279).
49
O Politburo eleito depois do congresso era composto de maneira a garantir-lhe o
predomínio. Consistia em nove membros: Stálin, Molotov, Kuibischev, Rudzutak, Bukárin,
Rikov, Tomski, Voroshilov e Kalinin; sendo que Stálin tinha quatro votos garantidos (o dele,
Molotov, Kuibischev e Rudzutak). À sua maneira, o czar vermelho usava e descartava seus
antigos aliados; foi o que ocorreu com os que o auxiliaram a alcançar o poder (Zinoviev e
Kamenev) e com os que auxiliaram a manter-se no poder nos primeiros anos (Bukárin, Rikov
e Tomski):
Nos primórdios da controvérsia, em julho de 1928, Bukárin pediu apoio a Kamenev,
exatamente como Kamenev e Zinoviev tinham pedido a Trotsky. Nos dois casos, as
„revelações‟ feitas pelos antigos colegas de Stálin foram idênticas, repetindo-se no
mesmo clima de pânico misturado a uma vaga esperança. Zinoviev e Kamenev
tinham falado do perigo que ameaçava sua vida e a de Trotsky. “Ele nos
estrangulará”, sussurrou Bukárin aterrorizado para Kamenev. “É um intrigante sem
princípios que subordina tudo à sua sede de poder. É capaz de modificar suas teorias
a qualquer momento só para se livrar de uma determinada pessoa”. „Consideramos a
linha seguida por Stálin fatal para a Revolução. Essa linha está nos conduzindo ao
abismo. Nossos desacordos com Stálin são muitíssimos mais sérios do que nossos
desentendimentos com você‟ (DEUTSCHER, 1970, p. 283).
Mesmo tendo derrotado Trotski60 dentro do partido, Stalin sabia que continuava sendo
seu principal adversário e, por isso, em 1929 propôs ao Politburo a expulsão de Trotski da
Rússia. Após ter finalmente afastado seu principal opositor da Rússia, passou a dispersar os
líderes da ala direita61:
Do comitê político do tempo de Lenin ninguém mais resta que Stalin: dois dos seus
membros, Zinoviev e Kamenev, que durante os longos anos da emigração foram os
mais íntimos colaboradores de Lenin, cumprem, no momento em que escrevo, uma
pena de dez anos de reclusão por um crime que não cometeram; três outros, Rikov,
Bukárin e Tomski foram completamente afastados do poder, embora se tenha
recompensado a sua resignação concedendo-lhes funções de segundo plano; por fim,
o autor destas linhas foi banido. A viúva de Lenin, Krupskaia, é mantida sob
suspeita, nunca tendo sabido, por mais esforços que tenha feito neste sentido,
adaptar-se ao Termidor. Os atuais membros do comitê político ocuparam, na história
do Partido bolchevique, lugares secundários [...]. A regra segundo a qual o comitê
político tem sempre razão, e que ninguém poderá ter razão, seja em que caso for,
contra ele, é aplicada ainda com mais vigor (TROTSKY, 2007, p.128).
60
Ele e sua família entraram para as fileiras dos inimigos irreconciliáveis do socialismo stalinista a partir da
preservação da reputação de Trotski como revolucionário e o “escolhido” por Lênin como seu sucessor;
continuou publicando coleções de suas obras, com o objetivo de atingir Stálin, seu estado ditatorial, colocando
seu governo como a “caricatura do socialismo”.
61
Rikov foi deposto do cargo de primeiro ministro do Governo Soviético, Tomski foi removido da liderança dos
sindicatos (acusado de fazer uso da sua influência para rebelar os sindicatos contra a industrialização) e Bukárin
foi demitido da liderança da Internacional Comunista (tinha substituído Zinoviev) e do Politburo
(DEUTSCHER, 1970).
50
A ascendência do czar vermelho estava completa. Sua luta pelo poder chegara ao fim,
com todos os seus adversários eliminados; nenhum membro do Politburo tentaria desafiar sua
autoridade. Mesmo com a vitória política, Stalin se deparava com a derrota econômica e, em
1928, como tinha sido previsto por Zinoviev e Kamenev, houve um novo surto de fome pelo
país, o que resultou em ataques de Stálin aos kulaks, afirmando que, ao privar o governo de
cereais, “destruíam a política econômica soviética”62, forçando o Politburo a adotar “medidas
de emergência”63; além das propostas de Stalin relacionadas ao ataque aos camponeses ricos,
a imediata coletivização da agricultura e aceleração da industrialização:
Por natureza, Stálin era pessoa muito cautelosa; no entanto, lançou-se na
coletivização total de milhões de propriedades camponesas, sabendo que aquela
massa de gente semi-alfabetizada não estava preparada para ela [...]. O camponês
deveria ser afastado dos meios de produção e distribuição de alimentos. Com efeito,
Stálin dispôs-se a trocar o status social do camponês produtor livre para trabalhador
sem direitos [...]. O método do comando na economia substituiu as leis econômicas
e, gradualmente, provocou a morte da NEP, juntamente com o desaparecimento do
interesse material do camponês, de seu espírito empreendedor e de seu compromisso
com o trabalho (VOLKOGONOV, 2004, p. 164).
O primeiro Plano Quinquenal previa que quase a totalidade (85%) das propriedades
dos camponeses fosse transformada em cooperativas no prazo de cinco anos, sendo que até
20% seria de fazendas coletivas. Para a coletivização forçada, o regime precisou equipar-se
com um vasto aparato coercitivo que resultou em milhões de mortes nos anos 30:
Alguns meses mais tarde, estava em pleno andamento a coletivização „geral‟; e a
agricultura individual estava condenada. Antes que o ano terminasse, Stálin
declarou: “Conseguimos afastar o grosso do campesinato em numerosas regiões da
velha trilha do desenvolvimento capitalista”. O Politburo esperava que as fazendas
estatais e coletivas fornecessem às cidades metade de todos os víveres. Nos últimos
dias do ano as ordens de Stálin para que fosse efetuada uma completa „ofensiva
contra os kulaks‟ ressoaram ameaçadoras pelo Kremlin afora. „Precisamos esmagar
os kulaks, eliminá-los como classe. [...]. A menos que nos dediquemos a esses
objetivos, qualquer ofensiva será mera arenga, altercação, palavrório oco [...].
Precisamos atacar os kulaks com uma força tal que impeça definitivamente o seu
ressurgimento‟ (DEUTSCHER, 1970, p.288).
A palavra “deskulakização”64 passou a fazer parte do vocabulário e cobriu o
tratamento dispensado a mais de um milhão de propriedades camponesas, nem a todos kulaks.
62
Os kulaks e os camponeses médios seguravam seus estoques à espera de que os preços subissem e houvesse
mais bens no mercado.
63
Nas palavras de Stalin, caracterizavam-se por arbitrariedade administrativa, violação da lei revolucionária,
ataques às casas dos camponeses e buscas ilegais (DEUTSCHER, 1970, p. 282).
64
O partido justificava sua “ditadura” pela pureza de seus ensinamentos, sua fé. Suas escrituras eram os
ensinamentos do marxismo-leninismo, considerados verdades “científicas” (MONTEFIORE, 2006).
51
Stalin precisou culpar pelos problemas econômicos da URSS; esquecendo-se de que os
verdadeiros problemas econômicos estavam na administração ineficiente do Estado:
Por deliberação de um Politburo chefiado por Molotov e sob pressão de Stálin, o
comitê central, em janeiro de 1930, aprovou uma resolução “Sobre medidas para
liquidação das fazendas kulaks em áreas de coletivização total”. Essa diretriz do
partido provocou tensão no campo por fechar as fazendas coletivas aos kulaks, cuja
situação tornou-se desesperadora. Foram também usadas contra eles as medidas
mais impiedosas, inclusive o confisco total de suas posses e a deportação das
famílias, para regiões distantes. Como reação, os ataques kulaks ao regime soviético
aumentaram, por vezes se estendendo por amplas áreas. As ações contra o setor mais
bem sucedido dos camponeses resultaram numa onda de protestos, banditismo e
sublevações armadas contra as autoridades (VOLKOGONOV, 2004, p. 169).
A era do terror imposta por Stalin teve como base de sustentação a coletivização
forçada e, mesmo indiretamente, teve o apoio do partido e de seus membros. A coletivização
forçada dos kulaks favoreceu a fuga dos cidadãos soviéticos para o exterior; Stalin repreendeu
fortemente tal acontecimento:
Stálin propôs: Os indivíduos que se recusarem a retornar à URSS se colocarão fora
da lei. Por se fora da lei implica: a) o confisco de todas as posses da pessoa
condenada; b) a execução da pessoa condenada vinte e quatro horas depois da
confirmação de sua identidade. Esta lei tem força retroativa (VOLKOGONOV,
2008, p. 89)
Esta nova lei foi utilizada para a execução de assassinatos secretos no exterior, de
quem quer que fosse considerado inimigo do regime. Foi o primeiro terror em massa imposto
por Stalin em seu próprio país. Essa coletivização mal planejada da agricultura65 custou nove
milhões e quinhentas mil vidas; mais de um terço delas haviam sido fuziladas ou torturadas,
pereceram em longas e penosas marchas para o exílio ou morreram nas terras geladas da
Sibéria, e o restante morreu de inanição. Este era o preço do progresso (VOLKOGONOV,
2008).
Além da coletivização forçada66, Stalin tinha planos para acelerar a industrialização e
perseguia os opositores. Conservando sua opinião, iniciou a “revolução industrial” sem saber
os efeitos desastrosos que esta poderia causar:
[...] eles iriam construir o socialismo imediatamente e abolir o capitalismo. Seu
programa industrial, o Plano Quinquenal, faria da Rússia uma grande potência que
65
A Rússia rural transformou-se em um “pandemônio”. A maioria dos camponeses enfrentou o governo em uma
oposição desesperada; a coletivização degenerou numa operação militar, numa cruel guerra civil.
66
A “revolução agrária” de Stalin condenou a agricultura soviética a décadas de estagnação.
52
nunca mais seria humilhada pelo Ocidente, sua guerra no campo exterminaria para
sempre o inimigo interno, os kulaks, e retornaria aos valores de 1917. Foi Lênin que
disse: „Terror de massa impiedoso contra os kulaks [...]. Morte a eles!‟. Milhares de
jovens compartilhavam desse idealismo. O Plano exigia um aumento de 110% da
produtividade que Stálin. Kuibichev e Sergo insistiam que era possível porque tudo
era possível. „Diminuir o ritmo significa ficar para trás‟, explicou Stálin em 1931. „E
os retardatários são derrotados! Mas não queremos ser derrotados [...]. A história da
velha Rússia consistia [...] em ser derrotada [...] devido a seu atraso‟
(MONTEFIORE, 2006, p. 69).
No final do primeiro Plano Quinquenal, seis décimos de todas as propriedades
estavam coletivizadas67 e o processo de industrialização estava encaminhado (seria concluído
apenas no segundo Plano Quinquenal”68); seu objetivo estava praticamente cumprido. Foi no
final da década de 30 que a “segunda revolução industrial” começou a apresentar resultados
na Rússia; a capacidade industrial da Rússia era quase a mesma da Alemanha (mas inferior
em eficiência e capacidade de organização, assim como os padrões de vida do povo).
No âmbito político, em 1935, Stalin providenciou uma nova constituição que seria a
“mais democrática do mundo”, para substituir a adotada em 1924. A carta refletia a nova base
industrial do Estado, a destruição dos kulaks, a vitória do sistema de fazendas coletivas e a
liquidação completa da propriedade privada. Tendo eliminado os elementos “antagônicos” da
sociedade, propunha um sistema eleitoral “democrático”, com base no voto universal, direto e
secreto, substituindo o sistema baseado em classes da antiga constituição:
A promessa de oferecer aos cidadãos soviéticos a liberdade de votar „nos que eles
quiserem votar‟ é mais uma metáfora estética que uma fórmula política. Os cidadãos
soviéticos não terão o direito de escolher os seus „representantes‟ senão entre os
candidatos que lhes serão designados, sob a égide do Partido, os chefes centrais e
locais. O partido bolchevique exerceu sem dúvida um monopólio político no
primeiro período da era soviética. Mas identificar estes dois fenômenos, seria tomar
a aparência pela realidade. A interdição dos Partidos de oposição foi uma medida
provisória, ditada pelas necessidades da guerra civil, do bloqueio, da intervenção
estrangeira e da fome. E o Partido governante que era nesse momento a organização
autêntica da vanguarda proletária, tinha uma vida bastante rica [...]. Agora que o
socialismo venceu “definitiva e irrevogavelmente” a formação de facções no partido
é punida com internação no campo de concentração, senão com uma bala na nuca
(TROTSKI, 2007b, p. 255-256).
Stalin era candidato em um sistema eleitoral que só era democrático e representativo
no nome, pois não havia opositores e todos tinham que ser aprovados pelo Partido. O czar
67
Com as “reformas stalinistas” surgiram os kolkhozes (membros do kolhkoz, que deveria ser uma espécie de
cooperativa) que deveriam partilhar dos lucros da fazenda, tendo o direito de possuir uma pequena extensão de
terras, aves e poucas cabeças de gado; com o passar do tempo, verificou-se uma diferenciação social, existindo
kolkhozes ricos e pobres (DEUTSCHER, 1970).
68
Os Planos Quinquenais de Stálin possibilitaram a Rússia a produzir canhões, tanques e aviões em grande
quantidade, mas o mérito principal foi ter habilitado o país a modernizar-se, a transformar a sociedade
(DEUTSCHER, 1970).
53
vermelho sabia que todos os candidatos já tinham sido designados para seus cargos e ele
mesmo havia assinado a lista dos “servidores do povo”. Entretanto, foi necessário um
espetáculo político para demonstrar como as eleições de 1937 foram “democráticas e livres”,
para Stalin:
Jamais houve antes no mundo eleições tão genuinamente livres e tão genuinamente
democráticas, jamais! [...] Eleitores, o povo espera que seus deputados sejam
ativistas tão claros e tão precisos quanto Lênin [aplausos], que não tenham medo no
combate e sejam impiedosos com os inimigos do povo, como Lênin foi [aplausos],
tão imunes a qualquer espécie de pânico como Lênin [aplausos], tão sábios e
ponderados na decisão de questões difíceis, que exijam visão ampla e percepção
multifacetada dos prós e dos contras como Lênin [aplausos], que sejam corretos e
honestos como Lênin [aplausos] e que amem o povo como Lênin amou [aplausos]
(VOLKOGONOV, 2008, p. 80).
Sem as mentiras e a força, o regime soviético não poderia existir. As eleições sem
seleção de candidatos e, como pano de fundo, o derramamento de sangue, criavam um clima
de permanente medo em que os votos de aproximadamente 100% constituíam o resultado
“natural” das eleições. Stálin configurou um sistema com base em uma ideologia infalível e
fundamental, em um partido que contava com legiões de burocratas, com um chefe único e
infalível que era um “deus” terreno, em uma grande máquina militar e vigilância política total
exercitada pelos “órgãos punitivos”; neste sistema, os indivíduos se caracterizavam como
pequenas engrenagens da máquina que executava a vontade do ditador:
É fácil constatar até que ponto Stalin se afastou do que até então se considerava a
corrente central do pensamento socialista e marxista. O que seu socialismo tinha em
comum com a nova sociedade, como fora imaginado pelos socialistas de quase todos
os tipos, era a propriedade pública dos meios de produção e planejamento. Diferia
na degradação a que submetera certos setores da comunidade, assim como no
recrudescimento das desigualdades sociais flagrantes em meio à pobreza que a
Revolução herdara do passado. Mas a diferença básica entre o stalinismo e a
concepção socialista tradicional residia nas respectivas atitudes para com o papel da
força na transformação da sociedade [...]. A concepção que Stálin tinha do papel da
força política, tal como a vemos refletida mais em seus feitos que em suas palavras,
patenteia a atmosfera do totalitarismo do século XX. Stálin podia ter parafraseado o
velho aforismo marxista: a força já não é a parteira – a força é a mãe da nova
sociedade (DEUTSCHER, 1970, p. 310).
Além das “conquistas” econômicas e políticas, a década de 30 marcou o lado mais
obscuro do governo Stálin, conhecido como “Terror”. Período em que ocorreu uma série de
julgamentos e expurgos em que ele destruiu quase toda velha guarda bolchevique e todos
aqueles que estavam contra o regime. Deutscher (1970) encontrou semelhanças entre Stalin e
Robespierre:
54
Esse período tem sido frequentemente comparado com a fase derradeira da
revolução jacobina – o regime da guilhotina – na França [...]. No “reino do terror” de
Stálin, como no de Robespierre, houve a mesma característica macabra, as mesmas
cores negras de crueldade irracional, o mesmo horror mitológico que a visão de uma
revolução devorando os próprios filhos não deixa de provocar [...]. Já vimos Stálin
transformar-se no líder da facção centrista do bolchevismo. Vimo-lo, apoiado a
princípio pela direita bolchevista, derrotar a esquerda e voltar-se depois contra a
direita. Vimo-lo, finalmente, como líder triunfante de sua facção, apossar-se sozinho
do poder (DEUTSCHER, 1970, p. 311-312).
O assassinato de Kirov, em 1934, foi o marco inicial para a série de expurgos que
ocorreria; o povo acreditou que ex-revolucionários estavam envolvidos com atividades
terroristas subversivas. Os primeiros suspeitos da morte de Kirov foram Zinoviev e Kamenev,
submetidos a um julgamento secreto e persuadidos a “confessar” o crime; os prisioneiros
recusaram-se a fazer tal confissão, entretanto, Zinoviev “confessou” em público que os
terroristas deveriam estar inspirados na velha propaganda da oposição69.
Stalin estava disposto a atacar seus verdadeiros oponentes e evitar a proliferação70,
pois sabia que a velha geração revolucionária, apesar de exausta e humilhada, não se
converteria de bom grado ao “milagre”, mistério e autoridade e sempre o consideraria um
falsificador dos primeiros princípios e um usurpador. Todos os velhos bolchevistas foram
acusados de tentar assassinar Stalin, restaurar o capitalismo, destruir o poder militar e
econômico do país, envenenar ou matar de qualquer outro modo multidões de operários
russos e de colaborar, nos primeiros dias da Revolução, com os serviços de espionagem da
Grã Bretanha, França, Japão e Alemanha:
Dessa série interminável de julgamentos públicos e secretos, quatro foram de maior
importância: “o julgamento dos dezesseis” (Zinoviev, Kamenev, Smirnov,
Mrachkovski e outros) em agosto de 1936; “o julgamento dos dezessete” (Piatakov,
Radek, Sokolnikov, Muralov, Serebriakov e outros) em janeiro de 1937; “o
julgamento dos vinte e um” (Rikov, Bukárin, Krestinski, Rakovski, Yagoda e
outros) em março de 1938. Entre os colocados no banco dos réus nesses
julgamentos, achavam-se todos os membros do Politburo de Lênin, com exceção de
Stalin e de Trotski. Este, embora ausente, era o principal acusado (DEUTSCHER,
1970, p. 335).
Depois de destruir o primeiro grupo de possíveis líderes do governo, Stalin eliminou o
segundo, o terceiro, o quarto e assim por diante. Acusou todos que tinham relações com os
velhos bolcheviques, pois precisava garantir a eliminação dos adeptos vingadores das vítimas,
69
Zinoviev foi condenado a dez anos de trabalhos forçados e Kamenev, a cinco. Stalin não tinha intenção de
manter os dois velhos bolchevistas na prisão, pois acabariam transformados em mártires e se restabeleceriam; o
desejo do líder era fazê-los confessar o crime.
70
Dissolveu a Sociedade dos Velhos Bolchevistas, a Sociedade dos Antigos Presos Políticos e a Academia
Comunista, instituições nas quais o espírito do bolchevismo encontrava seu refúgio.
55
além de serem julgados em segredo; muitos foram executados sem julgamento porque se
recusaram a confessar e retratar os crimes que não tinham cometido. De acordo com Trotski:
Stálin é como um homem que quer saciar a sede com água salgada. Condenou
milhares à morte e mandou centenas de milhares para as prisões e campos de
concentração. A própria natureza de seu plano forçava-o a agir dessa maneira.
Propusera-se destruir todos os homens capazes de formar um governo que pudesse
substituir o que ele chefiava. Mas cada um desses homens tinha seu crédito, muitos
anos de serviço durante os quais haviam preparado e promovido administradores e
oficiais, fazendo muitos amigos (DEUTSCHER, 1970, p. 343).
As consequências do terror foram sentidas na economia, na burocracia, no partido e na
vida cultural. No início de 1938, os danos humanos, econômicos e políticos e seu custo eram
tais que uma mudança de rumo era essencial e quase previsível:
De acordo com algumas fontes, os anos de 1937-8 registraram a prisão de 1.372.392
pessoas, das quais 681.692 foram mortas. Os números fornecidos por Kruschev ao
plenário do Comitê Central, em 1957, eram um pouco diferentes: mais de 1.500.000
presos e 68.692 mortos (as diferenças derivam dos critérios empregados pelos
estatísticos do KGB). Dados relativos a 1930-53 indicam 3.778.000 presos e 786 mil
executados (LEWIN, 2007, p. 139).
A nova geração era composta pela nova intelligentsia, que tinha pouco ou nenhum
conhecimento das ideias principais do partido e não estava interessada em tê-las.
De acordo com Trotski (2007b), uma contrarrevolução era inelutável, pois a
burocracia, além de ser um aparelho de coação, era também causa permanente de provocação;
a própria existência de uma casta de senhores mentirosos e cínicos não podia deixar de
suscitar uma revolta escondida. O governante esforçava-se por perpetuar e fortalecer os
órgãos de coerção e não media esforços para conservar seus rendimentos:
A divinização cada vez mais imprudente de Stálin é, apesar do que tem de
caricatural, necessária ao regime. A burocracia tem necessidade de um árbitro
supremo inviolável, primeiro consul à falta de um imperador, e leva aos ombros o
homem que melhor responder às suas pretensões de domínio. A „firmeza‟ do chefe
tão admirada pelos diletantes literários do Ocidente, não é mais do que a resultante
da pressão coletiva de uma casta, pronta a tudo para se defender. Todo funcionário
professa a fórmula „o Estado sou eu‟: todos se reconhecem sem dificuldade em
Stálin. Stálin personifica a burocracia e este é o fato que molda a sua personalidade
política (TROTSKI, 2007b, p.264).
O cesarismo ou bonapartismo parecia elevar o poder acima da nação e assegurava aos
governantes uma independência aparente relativamente às classes; o stalinismo construiu um
56
novo tipo de bonapartismo. O intuito verdadeiro de Stalin era destruir os homens que tinham
possibilidade de dar ao povo outros tipos de governo diferentes do seu:
Os atos terroristas são, por si sós, incapazes de subverter a oligarquia burocrática. O
burocrata, considerado individualmente, pode temer o revólver; a burocracia no seu
todo, explora com êxito o terrorismo, para justificar as suas próprias violências, não
sem acusar os seus adversários políticos (os casos de Zinoviev, Kamenev e outros).
O terrorismo individual é a arma dos isolados, dos impacientes ou desesperados,
pertencendo estes, muitas vezes, à jovem geração da burocracia. Mas, como na
autocracia, os crimes políticos anunciam que a atmosfera se carrega de eletricidade e
fazem pressentir uma crise (TROTSKI, 2007b, p. 271).
Em 1939, os expurgos públicos chegaram ao fim. Do México, Trotski71 continuou a
atacar a política do “coveiro da revolução”, denunciando os julgamentos e esforçando-se
inutilmente para dar impulso à Quarta Internacional. A vitória completa do extermínio dos
velhos bolcheviques ocorreu, em 1940, quando Trotski foi assassinado em sua casa. Assim,
Stalin tornava seu poder mais absoluto do que nunca:
A adoração e o culto ilimitado com que a população cerca Stálin é a primeira coisa
que causa admiração no visitante da União Soviética. Em todos os cantos, em cada
intercessão de ruas, em lugares adequados e inadequados, podem-se ver gigantescos
bustos e estátuas de Stálin. Os discursos ouvidos, não apenas os políticos, mas até
sobre assuntos científicos e artísticos, são preparados como glorificação a Stálin, e
por vezes, tal definição toma formas de mau gosto (VOLKOGONOV, 2004, p. 236).
O socialismo de Stalin tinha em comum com o pensamento marxista a propriedade
pública dos meios de produção e o planejamento. A divergência podia ser encontrada na
degradação de certos setores da comunidade, assim como no acirramento das desigualdades
sociais flagrantes em meio à pobreza que a Revolução herdara do passado; a diferença básica
entre o stalinismo e a concepção socialista tradicional residia nas respectivas atitudes para
com o papel na transformação da sociedade.
De acordo com Trotski (2007b), a URSS era uma sociedade intermediária entre o
capitalismo e o socialismo e apresentava as seguintes características: forças produtivas
insuficientes para conferir à propriedade estatal um caráter socialista, isto é, não apresentava
as condições para o socialismo real; a propensão da acumulação primitiva não satisfazia às
necessidades da população; as normas de repartição e de natureza burguesa se encontravam na
base da diferenciação social; o desenvolvimento econômico foi alcançado graças aos
trabalhadores; todavia apenas alguns foram privilegiados. A burocracia tornou-se uma casta
71
Todos seus filhos morreram em circunstâncias misteriosas, que o levaram a culpar Stalin.
57
incontrolável e, por defender apenas seus interesses e manter privilégios, era estranha ao
socialismo; a revolução foi traída pelo partido governante e conservava as relações de
propriedade e consciência dos trabalhadores; a evolução das contradições destacadas poderia
conduzir o socialismo russo para o capitalismo; a contrarrevolução que estava em marcha,
poderia quebrar a resistência dos operários; os operários deveriam derrubar a burocracia para,
enfim, resgatar o socialismo real. Tais questões, só seriam resolvidas se a luta das duas forças
vivas (a burocracia e os trabalhadores) fosse decidida na URSS e em outros países (ou seja, a
implantação dos ideais da Revolução socialista mundial).
A concepção de Stalin com relação ao papel da força política marcou a atmosfera do
totalitarismo do século XX, sendo para ele a força como “mãe da nova sociedade”
(DEUTSCHER, 1970).
2.4 A Segunda Grande Guerra e a Queda do “Czar Vermelho”
Entretanto, essa marcha promissora dos acontecimentos reclamava novo equilíbrio
entre a diplomacia soviética e o Comintern. Os dois objetivos – revolução mundial e
relações normais ou amistosas entre a Rússia e os países capitalistas – eram, au fond,
incompatíveis. Um deles teria de ser sacrificado ou, de qualquer maneira,
subordinado ao outro. A opção decorria da resposta que os acontecimentos davam a
estas duas perguntas: Quais são as probabilidades de revolução mundial? É possível
paz estável entre os soviéticos e o mundo capitalista? O dilema não surgiu
inopinadamente. Foi se manifestando aos poucos através de sucessivas mudanças na
situação internacional. Tampouco a solução tomou a forma de uma decisão
intencional, adotada e registrada em data precisa. Estava implícita numa série de
alterações, ora imprescindíveis ora espetaculares (DEUTSCHER, 1970, p. 352-353).
Após aproximadamente 20 anos da revolução na Rússia e 15 anos da formação da
URSS, o Politburo não podia ver as perspectivas da revolução mundial sem ceticismo. Em sua
teoria de “socialismo num só país”, Stalin considerava duas premissas gêmeas: o ceticismo
extremo a respeito da revolução mundial e a confiança na realidade de uma longa trégua entre
a Rússia e o mundo capitalista.
De modo geral, nos anos entre guerras, Stalin não revelou um desenvolvimento
sistemático de suas ideias ou de uma doutrina de política externa. Motivado por suas
premissas, as declarações do czar vermelho eram uma mistura de fórmulas secas e
contraditórias, reunidas de acordo com a necessidade e as exigências do momento. A URSS
desejava restaurar o equilíbrio europeu temporário, capaz de fortalecer sua posição diante do
58
mundo capitalista, como contrapeso; a partir de uma coligação parcial dos vencidos contra os
vencedores, unindo-se a Alemanha contra os aliados e principalmente, contra a França:
Como foi que os dois ditadores entraram num acordo tão rapidamente? Stálin vinha
negociando por muitos meses com ingleses e franceses, mas não chegara a bons
termos nas conversações, e com Hitler tudo ficou ajustado em dois ou três dias.
Ambos tinham planos de âmbito mundial, ambos detestavam a democracia, eram
comprometidos com o super-rearmamento e estavam acostumados com a
manipulação das armas do totalitarismo: mentira e força. Stálin era um racista social,
Hitler, um racista étnico (VOLKOGONOV, 2008, p.101).
A ascensão do nazismo na Alemanha não representou uma ameaça a Stalin ou alguma
alteração em sua “política externa”; o resultado da confiança do czar vermelho em Hitler
ocasionaria grandes perdas dois anos depois:
Graças ao tratamento que os nazistas davam às terras e aos povos subjugados, a luta
de 1941-1945 na Rússia foi uma guerra patriótica. Stálin encorajava expressões
autônomas de sentimento nacional e religioso da população russa, permitindo que o
partido e seus objetivos fossem, temporariamente, substituídos por uma aura de
propósito comum na batalha titânica contra os germânicos (JUDT, 2007, p. 179).
De acordo com Volkogonov (2004), Stalin e a liderança militar foram responsáveis
pelo início catastrófico da guerra72, pela derrota em muitas operações importantes, por utilizar
a força para a conquista dos objetivos e a cessão de vastas extensões de território ao inimigo,
o que assegurou a morte de milhões de pessoas indefesas. As ações de Stalin na guerra não
divergiram muito dos seus costumeiros métodos de governo. Os erros que cometeu foram
pagos com o autossacríficio do povo soviético, além do terror maciço que aplicou aos que
hesitaram, desanimaram ou demonstraram fraqueza diante da situação:
Durante esse período, só no front de Stalingrado foram fuzilados 140 homens pelas
unidades de bloqueio, enquanto no total de 1941-1942, por „semear pânico, covardia
e abandono não autorizado no campo de batalha‟ não menos que 157.593 homens –
dezesseis divisões completas – foram sentenciados à morte por tribunais do QG ou
do exército (VOLKOGONOV, 2008, p. 107).
Para Stalin, o importante na guerra era o resultado; e, por isso, as duzentas e vinte e
sete mil pessoas que morreram na guerra eram civis. O “czar vermelho” não buscou confronto
direto com o capitalismo, mas tentou criar o máximo de dificuldades, promovendo choques e
72
Foi nos anos da grande guerra que Stalin ficou altamente animado com as possibilidades da nova arma, a
bomba atômica, mas não considerava a possibilidade de utilizá-la.
59
sublevações e organizando ataques clandestinos. Acreditava que as “Brigadas Vermelhas” se
fortaleceriam com o auxílio de Moscou no Ocidente e em países com governos impopulares,
como China, Tchecoslováquia e Hungria:
A única saída aceitável para Stálin – em regiões que, por prevenção, não houvessem
sido absorvidas pela URSS – era a instalação de governos que inspirassem a certeza
de que jamais constituiriam uma ameaça à segurança soviética [...]. Ou melhor,
optaram por fazer com que os socialistas se unissem a eles. Tratava-se de um
venerável procedimento comunista. A tática inicial de Lenin, de 1918 a 1921, tinha
sido rachar os Partidos Socialistas da Europa, separando a esquerda radical em
novos movimentos comunistas, e denunciar os demais integrantes como reacionários
e retrógrados. Porém, quando ao longo das duas décadas seguintes os partidos
comunistas se viram em minoria, Moscou mudou a abordagem, e os comunistas
passaram a oferecer aos partidos socialistas (geralmente mais numerosos) a
perspectiva de „união‟ da esquerda – mas sob a égide comunista (JUDT, 2007,
p.145-146).
Stalin estava disposto a quebrar qualquer acordo ou tratado, se achasse que isso
serviria aos seus interesses e fortalecesse a posição da URSS. Stalin era indiferente às
particularidades nacionais (questão antiga), pois o que lhe interessava era o poder e este seria
aplicado pelo uso da força e do “apoio” dos satélites soviéticos. A diferença entre o “czar
vermelho” e os outros construtores de impérios, mesmo czares, era a insistência em
reproduzir, nos territórios sob seu controle, formas de governo e sociedade idênticas àquelas
verificadas na URSS.
Apesar de estar no grupo dos “vencedores” da Guerra, o fim da Segunda Guerra
Mundial, trouxe à URSS grandes dificuldades econômicas e sociais:
As estimativas de perda de vidas civis no território da União Soviética variam muito,
embora o número mais provável exceda 16 milhões [...]. As causas da morte de civis
incluíam massacres em campos de extermínio e campos de batalha, desde Odessa
até o Báltico; doenças, subnutrição e fome (induzidas ou não); fuzilamento ou
incineração de reféns – pela Wehrmacht, pelo Exército Vermelho e por integrantes
de diversas resistências; represálias; consequências de explosões, bombardeios e
batalhas travadas pela infantaria, em campos e cidades [...] (JUDT, 2007, p. 32).
Além do problema com a redução da população, a URSS enfrentaria o problema do
desequilíbrio entre homens e mulheres (o total de mulheres excedia o de homens em vinte
milhões), que só seria corrigido com mais de uma geração. Desta maneira, poderia diminuir as
disparidades econômicas e mostrar que a economia rural do país dependeria muito das
mulheres. Stalin também foi o responsável pelo deslocamento de povos inteiros pelo império
60
soviético, o que causaria grande problema para a URSS no futuro73; somando os esforços de
Stalin e Hitler (1939-1943), expatriaram, deslocaram, expulsaram, deportaram e dispersaram
cerca de trinta milhões de pessoas:
Quando acabou a Primeira Guerra Mundial, as fronteiras é que foram inventadas e
ajustadas, enquanto, de modo geral, as pessoas ficaram onde estavam. Depois de
1945, aconteceu exatamente o oposto: com uma grande exceção, as fronteiras
permaneceram basicamente intactas e as pessoas foram deslocadas [...]. Com
algumas exceções, o resultado foi uma Europa constituída de Estados-nações mais
etnicamente homogêneos do que nunca. A União Soviética continuou a ser um
império multinacional (JUDT, 2007, p. 41).
Stalin não se importava com a URSS como um império multinacional, pois o que
importava era o status soviético de grande potência e, por isso, novamente colocaria o povo
no “novo terror”:
Não pôde conceder ao povo nenhum descanso dos esforços da guerra. Teve de
mobilizá-lo novamente e extrair dele as últimas reservas de energia a fim de
reabilitar as indústrias destruídas ou sobrecarregadas de trabalho e reconstruiu as
dezenas de cidades reduzidas a ruínas. Com sua infatigável crueldade enfrentou o
cansaço extremo do povo. Disciplinou-o e arregimentou-o de novo, voltou a imporlhe os mais severos decretos de emergência e códigos de trabalho, sujeitou-o a um
onipresente controle policial e reprimiu os menores indícios de resistência e heresia
(DEUTSCHER, 1970, p. 521).
Os últimos anos de Stalin trouxeram-lhe esplendor e ruína; acelerou a industrialização
das repúblicas e províncias orientais, o desenvolvimento da indústria nuclear na Rússia, a
reabilitação da economia nacional, graças às indenizações pagas pela Alemanha e pelos outros
países derrotados. Ao mesmo tempo, como Stalin havia promovido a modernização da
sociedade e educação das massas, a população não aceitaria por muito tempo o stalinismo e o
czar vermelho temia uma contrarrevolução (DEUTSCHER, 1970).
No fim da guerra, as relações entre a URSS e os aliados ocidentais esfriaram e, depois
da guerra, pioraram drasticamente; o contraste entre a Rússia e o Ocidente tornou-se marcante
depois da guerra74:
73
Há dois conceitos sobre nacionalidade que devem ser esclarecidos: jus solis, pelo qual a nacionalidade de uma
pessoa é definida pelo local de nascimento; e jus sanguinis, pelo qual a nacionalidade de alguém é a mesma do
pai ou da mãe, isto é, a nacionalidade dos ancestrais é mantida. Os países eslavos adotam o segundo conceito
(SEGRILLO, 2000, p. 59).
74
Com receio da situação internacional e do acirramento entre o mundo capitalista e socialista, Stalin tentou
reviver a Internacional Comunista (dissolvida por ele em 1943) e fundou o Cominform, em 1947, com o objetivo
de unificar a ação comunista na Europa Oriental e dar nova orientação às diretrizes dos partidos da Europa
ocidental (DEUTSCHER, 1970).
61
Stálin não podia deixar de rejeitar essas condições. Não podia aceder em apresentar
ao Ocidente um balancete dos recursos econômicos soviéticos, no qual teria sido
obrigado a revelar a assustadora exaustão da Rússia e a terrível lacuna em sua mãode-obra, o que escondia até de seu próprio povo. E não estava apenas disposto a
ocultar a fraqueza da Rússia; temia a penetração econômica norte-americana na
Europa oriental, e mesmo na Rússia que poderia impulsionar todas as forças
anticomunistas locais e fomentar a contra-revolução. Decidiu fechar a Europa
oriental à penetração ocidental (DEUTSCHER, 1970, p. 531).
Depois da guerra, os principais instrumentos da política externa e interna do czar
vermelho foram os órgãos de segurança e as forças armadas, que isolaram cada vez mais a
URSS do mundo ocidental. A teoria do “socialismo num só país” passou a ser exercida sob a
ideia do “socialismo numa única zona” e assim, Stalin auxiliava financeiramente todos os
Estados que se mostrassem pró-socialistas, como por exemplo, a Alemanha Oriental e o muro
de Berlim (“recompensa da Segunda Guerra Mundial”), a China na Revolução Chinesa, a
Coréia do Norte na Guerra da Coréia (1950-1953); resultando no acirramento das
divergências entre o mundo capitalista, representado pelos Estados Unidos e Coréia do Sul e o
mundo comunista, representado pela URSS, Coréia do Norte e China:
Cabia a Moscou determinar a estratégia dos partidos comunistas, decidir quando
uma abordagem moderada era recomendável e quando uma ação radical deveria ser
adotada. Como origem e fonte da revolução mundial, a União Soviética não era um
modelo, mas o modelo. Dependendo das circunstâncias, partidos comunistas
menores podiam seguir os soviéticos, mas não era aconselhável ultrapassá-los
(JUDT, 2007, p. 154).
A seu modo, Stalin fortaleceria sua aliança com os países socialistas e auxiliaria
financeiramente ou militarmente os governos que precisassem de ajuda para se estabelecer.
Esta atitude custaria muito para a URSS.
Depois da Segunda Guerra Mundial, Stalin começou a dar mais atenção à saúde e a
temer a morte:
Tinha medo da morte, como sempre temera atentados contra sua vida, tramas e
sabotagens. Receava que seus atos diabólicos se tornassem conhecidos após sua
morte. Preocupava-se com o destino de sua criação, e não queria que ela se
transformasse em algo diferente. E, na verdade, depois que ele se foi, seu mundo e
seu culto não sobreviveram por muito tempo [...]. Sua filha escreveu que, ao se
aproximar do fim, ele sentiu-se vazio, “Negligenciara todas as relações humanas, era
torturado pelo medo que, nos últimos anos de vida, se transformou em autêntica
mania de perseguição, e, no final, seu ânimo forte o abandonou. Mas a mania não
era imaginação doentia: ele sabia e tinha consciência de que era odiado, e também
sabia por quê”. Sua velha crença na longevidade georgiana foi abalada por uma série
de tonturas que o desequilibravam (VOLKOGONOV, 2004, p. 548).
62
Em 6 de março de 1953, a morte do czar vermelho foi anunciada. Stalin sofreu um
primeiro ataque com uma hemorragia cerebral e um ataque de paralisia que teve como
consequência a perda da fala e da consciência e um segundo ataque que afetou suas vias
respiratórias e seu coração:
Segundo todos os depoimentos, a nação reagiu ao acontecimento com emoções
contraditórias que a complexa e ambígua personalidade de Stálin inspirava; uns
choravam de angústia, outros deram um suspiro de alívio; a maioria ficou atônita e
temerosa de pensar no futuro (DEUTSCHER, 1970, p. 573).
Os sucessores de Stalin agiram cautelosamente, pois foram sombras durante todos
esses anos. No funeral, Malenkov, Molotov e Beria falaram dos méritos do “czar vermelho” e
seu corpo foi colocado ao lado de Lênin no Mausoléu da Praça Vermelha.
63
3 A RECONSTRUÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO
O socialismo não pode ser e não será inaugurado por decreto; não pode ser
estabelecido por qualquer governo, ainda que admiravelmente socialista. O
socialismo deve ser criado pelas massas, deve ser realizado por todo o proletário.
Onde as cadeias do capitalismo são forjadas, aí existem cadeias a ser rompidas.
Somente isto é socialismo, e só assim ele pode nascer. As massas devem aprender a
usar o poder usando o poder. Não há outro modo (LUXEMBURGO, s.d. apud
MESZAROS, 2004, p. 325).
O objetivo deste capítulo é demonstrar a influência do Partido na União Soviética nos
âmbitos político, econômico e social, assim como as transferências de poder entre os líderes
soviéticos, a debilidade do regime e a causa do marxismo-leninismo. Com o tempo, a
população e os próprios líderes do Estado soviético não mais acreditaram no regime e na
ideologia socialista, recordavam Lênin e seus ideais para obter o “apoio” da população e
permanecer em seus cargos. É neste período que o sistema soviético começou a sucumbir; a
corrupção desvairada, a estagnação econômica, a fome e a miséria, a incansável corrida
armamentista com os Estados Unidos e os problemas antigos como o das nacionalidades
abalaram o “gigante de pés de barro”.
A queda da União Soviética era inevitável. Esse acontecimento abalou todos os países
que faziam parte do bloco, mas, sem dúvida alguma, a Rússia foi a principal herdeira do
império. Os impactos desta dissolução também serão analisados.
3.1 O “Desestalinizador”
Por toda a acusação de Kruschev a Stalin, ouve-se o tema da auto-justificação.
Sentimo-nos como se estivéssemos sentados num tribunal, a ouvir um promotor que,
enquanto empilha acusação sobre o homem no banco dos réus, tem de lembrar-se
todo o tempo de também provar que ele, o promotor, e seus amigos, não tiveram
participação nos crimes do réu (DEUTSCHER, 1968c, p. 18).
Com o desaparecimento dos dois gigantes do bolchevismo estava claro que
comparados a eles, seus sucessores, seriam pigmeus. Stalin não deixou “testamento” ou
indicação para o cargo de Secretário-Geral; por isso, os “herdeiros” reforçaram o prestígio e o
papel do partido para manter o curso leninista, a partir da “liderança coletiva”. Esse tipo de
liderança não existia na URSS e o sistema unipartidário e o monopólio do poder continuavam
sendo uma ameaça para a população e economia soviéticas:
64
O domínio do líder único foi repudiado, mas não a dominação da facção única (para
nem falar na do partido único), dominação da qual se originou a autocracia de Stálin.
O princípio da infalibilidade da liderança do partido foi abandonado, mas ainda é
denegada tanto aos membros como aos não membros do partido liberdade para
criticar e substituir os líderes falíveis (DEUTSCHER, 1968c, p. 28).
O stalinismo elevou a Rússia à posição de segunda potência industrial do mundo,
fomentou a modernização, venceu a Segunda Guerra Mundial e cooptou mais estados
comunistas satélites, usando métodos coercitivos. Com o término de seu legado, seus
princípios e práticas estão desacreditados, mas os hábitos mentais se reafirmam
repetidamente. O culto a Stalin estava morto, mas o culto a Lênin (mesmo sendo mais
racional no conteúdo e na forma) continuava a obscurecer a URSS. A chefia do Kremlin
acreditava que o sistema ainda se apoiava em três grandes pilares: o partido, a ideologia
bolchevique e o grande aparato repressor. Não existia mais um chefe dominante, mas o
sistema não poderia existir sem ele.
Como era de se esperar, em um partido no qual havia o monopólio do poder do líder
sobre o Estado, a disputa pelo cargo de primeiro Secretário-Geral de forma antidemocrática se
iniciara logo após a morte de Stalin. Os “herdeiros” que se destacavam eram: Malenkov que
não tinha qualidades suficientes para ser o novo líder; Beria que era uma ameaça para a
ascensão do novo líder e por isso foi acusado de ser a odiosa encarnação do sistema stalinista,
um falso comunista, espião, entre outras acusações que contribuíram para sua queda; e
Kruschev que teve a contribuição dos membros do partido para se tornar o novo líder. Com
essa disputa pelo poder, os “herdeiros” deixaram de lado milhões de pessoas que tinham sido
afetadas pelo império stalinista:
Os herdeiros de Stálin ainda não se preocupavam com a existência de mais de quatro
milhões de internos nos campos, a deportação de nações inteiras, a vigilância
cerrada que os “órgãos punitivos” ainda exerciam sobre todos. Permanecia ativo o
infame Conselho Especial da NKVD que condenara 442.531 pessoas à morte ou a
longas penas de prisão. Os herdeiros estavam mais preocupados com a própria sorte,
como preservar suas posições de destaque, como proteger suas carreiras futuras e,
sobretudo, como garantir sua segurança pessoal (VOLKOGONOV, 2008, p. 168).
Nikita Kruschev75 foi nomeado primeiro-secretário do Comitê Central em setembro de
1953, tornando-se o chefe do partido e o homem com o posto mais elevado do país. Sua
75
Quando alcançou o cargo mais alto do país, Kruschev tinha cinquenta e nove anos. Pertencia à geração dos
bolcheviques que surgiram depois da Revolução de 1917, principalmente na década de 20 e no início da década
de 30; entrou no lugar dos homens que tinham sido executados e contribuiu pessoalmente para a inquisição
stalinista.
65
ascensão representava a continuação da linha de terror stalinista com a exterminação física de
Beria, que não era mais culpado do que o restante do Comitê Central de Stalin, mas sabia de
tudo sobre todos e isso representava uma ameaça a Kruschev. Posteriormente, eliminou os
demais rivais: Malenkov, Kaganovich e Molotov; como era habitual para o fortalecimento dos
novos líderes.
Kruschev não apresentou nenhuma ideia ou política positiva própria. O novo líder não
mediu esforços para demolir o papel de Stalin através do ataque ao “culto à personalidade” do
antigo líder, acreditando que bastava desenraizar o culto, restaurar os “princípios leninistas”
para a vida interna do partido e reparar o dano causado à “ilegalidade revolucionária” para
que o país voltasse à “democracia socialista soviética”. Stalin era o responsável por suas
ações, mas tinha o “apoio” do partido:
Não entendia que, para libertar o sistema do stalinismo, tinha primeiro que repudiar
o leninismo. O alvo selecionado por ele no XX Congresso era essencialmente
secundário. Não fora apenas um ditador individual, o responsável pelas atrocidades,
e sim o sistema e a ideologia fundamentados em princípios leninistas. Não ficou
claro em 1956, mas o tempo iria mostrar que o ataque a Stálin jogou luz sobre
Lênin. Quanto a Kruschev, ele morreu sem perceber que, ao defender Lênin, estava
preservando Stálin (VOLKOGONOV, 2008. p. 188).
Os “herdeiros” queriam retomar o avanço em direção à igualdade e à democracia
socialista. Isto implicava o desenvolvimento insuficiente da população (garantindo apenas
para alguns um padrão de vida razoável) que sustentava a constante competição e luta de
todos contra todos; deixando de lado, o espírito e a cooperação socialistas. A escassez relativa
de bens de consumo é o fator objetivo decisivo que estabeleceu os limites da reforma
igualitária e democrática na URSS:
Essa escassez não deve ser encarada simplesmente no contexto da situação
econômica interna da URSS. Deve ser vista contra o fundo de cena da situação
mundial, que impõe à URSS uma competição econômica e de poderio político com
os Estados Unidos e, até certo ponto, força os dirigentes soviéticos a pressionar o
desenvolvimento da indústria pesada a expensas imediatas dos interesses do
consumidor [...]. O operário soviético começou a “financiar” com todo fervor a
industrialização dos países comunistas subdesenvolvidos e ele a “financia” com os
recursos que, doutra forma, poderiam ser usados para elevar seu próprio padrão de
vida (DEUTSCHER, 1968c, p. 30).
A reforma interna da Rússia e a reforma das relações da Rússia com todo o bloco
soviético podiam ser notadas como conflito mútuo e real. A contradição principal da
desestalinização estava no fato de seus principais agentes serem os antigos guardiões da
ortodoxia stalinista e isso não era por acaso. A desestalinização tornou-se uma necessidade
66
social e esta ocorreria com os materiais humanos disponíveis, isto é, com a série de expurgos
dos bolcheviques da velha guarda e verdadeiros antistalinistas que foram derrotados.
Poderiam conduzir este fenômeno de forma coerente, racional e sincera; diferentemente dos
novos bolcheviques que o faziam hipocritamente e com ressalvas.
Sob o governo de Kruschev, houve o desmantelamento de unidades-chave do governo
anterior: o Gulag (sistema de trabalho forçado) e o complexo econômico industrial do MVD76
(elemento essencial no império dos trabalhos forçados):
Com essa expropriação em larga escala, o MVD pouco a pouco transformou toda a
estrutura do Gulag em um sistema penitenciário reformado, com um novo nome,
além de promover uma redução no número de internos nos campos (agora chamados
“colônias”, “prisões” e “povoamentos de deportados”). O número de detidos nessas
várias instituições (excluindo as prisões) caiu de 5.223.000 em 1 de janeiro de 1953
para 997 mil em 1 de janeiro de 1959; e o número de contra-revolucionários passou
de 580 mil para 11 mil. Do início da década de 1960 em diante, as perseguições
arbitrárias deixaram de ser práticas comuns (LEWIN, 2007, p. 198).
A força de trabalho deixou de ser constituída por “escravos” e passou a ser formada
por trabalhadores pagos, o que resultaria em grandes transformações sociais e econômicas, tal
como a necessidade e pressão da população por reformas no sistema soviético; a população
soviética exigia a integração na sociedade de familiares e camaradas que tinham sofrido com
a repressão do governo anterior. A série de reformas de Kruschev foi iniciada pela agricultura
e resultou inicialmente em grande produção de grãos e no aumento do consumo, que gerou a
escassez dos produtos. Para “resolver” o problema da agricultura, a URSS passou a comprar
grandes quantidades de grãos do exterior, resultando na queda das reservas internacionais:
Comprar trigo no mercado mundial era mais fácil do que tentar resolver a
aparentemente crescente incapacidade da agricultura soviética de alimentar o povo
da URSS [...]. Lubrificar o enferrujado motor da economia com um sistema
universal e onipresente de suborno e corrupção era mais fácil que limpá-lo e
ressintonizá-lo, quanto mais substituí-lo [...]. A curto prazo, parecia mais importante
manter os consumidores satisfeitos, ou, de qualquer forma, manter o
descontentamento dentro dos limites (HOBSBAWM, 1994, p. 458).
O sistema agrícola soviético estava falido. Como não obteve sucesso na agricultura,
Kruschev tentou melhorar a pecuária através da compra compulsória de gado das fazendas
coletivas. Com o inverno e insuficiência de abrigo e forragem, grande quantidade dos animais
76
Antigo NKVD, que, como todos os outros comissariados, ganhou depois o status de ministério e tornou-se o
MVD ou Ministério de Assuntos Internos (LEWIN, 2007).
67
foi levada para o matadouro77. O novo líder atribuiu seus fracassos aos erros pessoais e
herança do sistema stalinista:
Como Stálin, ele raciocinou em termos de “alcançar e sobrepujar”. No XXI
Congresso, em 1961, proclamou: “Nos anos recentes, nosso país, como antes,
sobrepujou os EUA em ritmo de produção e começou a ultrapassá-los no que tange
ao crescimento absoluto em muitas das mais importantes formas da produção [...]. A
concretização do Plano Septenal levará nossa mãe-pátria ao ponto em que pouco
será necessário para superar os Estados Unidos em termos econômicos. Executada
essa tarefa, a União Soviética alcançará uma vitória universalmente histórica em
pacífica competição com os Estados Unidos da América”. A perspectiva ideológica
de Kruschev sobre a economia e seu futuro era igual à de Stálin, baseada em lutar
pela “vitória” sobre o imperialismo (VOLKOGONOV, 2008, p. 192).
O slogan de Kruschev em 1957 estava baseado em alcançar e ultrapassar os Estados
Unidos na produção de carne, manteiga e leite; naturalmente transformou-se em fantasia. O
XX Congresso do PCUS, em 1956, marcou o período que Kruschev governou e alterou as
perspectivas do povo com relação a Stálin e ao próprio regime:
E tomaram conhecimento, estarrecidos, de que Stálin, canonizado até então como o
principal líder e guia do socialismo contemporâneo, que, pelos seus méritos, chegara
a obscurecer os grandes do passado, e que repousava placidamente ao lado de Lênin,
no suntuoso mausoléu da Praça Vermelha, pois ele mesmo, o maquinista da
locomotiva da história, não passara de um déspota liberticida, um criminoso de
Estado, cruel e sanguinário, um tirano [...]. Aquilo fora um verdadeiro golpe, um
marco (REIS FILHO, 2007, p. 197).
Após o XX Congresso e o fracasso das medidas para melhorar as condições de vida, o
povo sentiu o enfraquecimento do regime e começou a expressar mais livremente seus
sentimentos, através de greves que foram combatidas pela KGB78. O novo líder não entendia
que a semiliberdade era uma ilusão e o povo não aceitava o sistema de opressão; Kruschev
tinha todas as características de um ditador totalitário e, por isso, também não tolerou
oposição, crítica aberta ou debate livre como tentativa de estabelecer o seu próprio domínio
autocrático.
77
Havia descontentamento aberto sobre o descontrole da economia e com o governo incompetente e incorrigível.
A KGB (Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnosti, Comitê de Segurança do Estado) era a principal agência de
informação e segurança da URSS e teve considerável influência em todas as esferas da vida soviética dos anos
1960 a 1980. Tinha como dever estatutário: a espionagem, ameaças à segurança do estado, guarda de fronteiras,
proteção de segredos oficiais e documentos confidenciais, investigação de atos de alta traição, terrorismo,
contrabando, crimes financeiros em grande escala e proteção de todas as linhas de comunicação e
contraespionagem eletrônica. Sua jurisdição, com sede em Moscou, se estendia a toda a URSS (LEWIN, 2007).
78
68
A diplomacia de Kruschev foi definida por Volkogonov (2008) como revolucionária.
A partir da “coexistência pacífica”79 com os países capitalistas, continuou a política externa
de apoio aos países comunistas e aos predispostos à ideologia socialista. Quanto aos países
em desenvolvimento, estes deveriam ser auxiliados a adotar posições anti-imperialistas e,
gradualmente, a se conscientizar de suas perspectivas socialistas; o que custaria à URSS
bilhões de dólares, sem obter sucesso80:
Não se sabe exatamente o tamanho dos atuais gastos soviéticos com armamentos,
isoladamente do orçamento nominal de defesa, mas parece que, da soma total da
renda nacional líquida (que montou em 175 bilhões de rublos em 1964 e foi
planejada para atingir 189 bilhões em 1965) apenas 55%, pouco mais ou menos, é
destinado ao consumo privado, aos serviços sociais e à educação. O resto é
distribuído, em proporções desconhecidas, entre o fundo de acumulação nacional e
os gastos com armamentos (DEUTSCHER, 1968c, p. 154).
No campo de pesquisas, o novo líder se dedicou à corrida armamentista, equipou as
forças armadas com mísseis nucleares e convocou os melhores engenheiros e técnicos para
pesquisas espaciais.
O período em que Kruschev governou foi marcado por uma série de eventos
históricos: o Pacto de Varsóvia, primeiro vôo espacial, a crise dos mísseis cubanos, a crise de
Berlim e de Suez, a reconciliação com Tito, o “cisma”81 sino-soviético, o incidente com o
avião americano U-2; e no âmbito interno: a acelerada construção de prédios de cinco andares
para a habitação de milhares de pessoas e reformas econômicas. Tais eventos, somados à
situação interna da URSS, ocasionavam a insatisfação da população soviética a respeito do
governo dominante:
Na primeira década do pós-guerra, as ineficiências típicas do comunismo tinham
ficado parcialmente camufladas pelas necessidades de reconstrução que se
impunham ao período. Porém, no principio dos anos 60, depois da bravata de
Kruschev – de que o comunismo “ultrapassaria” o Ocidente e de que a transição
para o socialismo estava concluída, o hiato entre a retórica do partido e a penúria do
79
A coexistência pacífica continha ambiguidades, pois se por um lado a URSS aparecia na cena internacional
com discursos moderados, por outro, não renunciava em nenhum momento à perspectiva de que um dia, o
mundo todo seria socialista.
80
No Oriente Médio adotou posição forte, apoiando Nasser no Egito e beneficiou os países: Iraque, Indonésia,
Índia, Etiópia, entre outros.
81
O “cisma” Moscou-Pequim teve suas raízes nas diferenças ideológicas entre os dois partidos comunistas, na
questão da energia nuclear, na ambição de Mao Tsé-Tung em erigir-se teórico principal do comunismo
internacional e nos sentimentos chineses diante da reforma do comunismo soviético. O desentendimento sinosoviético veio a confirmar na Ásia, o fim do monolitismo stalinista e elevava uma nova potência ao conjunto das
relações internacionais da região; a China de Mao apresentava-se como centro autônomo de poder em meio à
ordem bipolar vigente, além de contestar o congelamento nuclear nas mãos das duas superpotências (SARAIVA
2001,p.59).
69
cotidiano já não podia ser transposto por meio de exortações à recuperação dos
prejuízos causados pela guerra ou ao incremento da produção. E a alegação de que
sabotadores – kulaks, capitalistas, judeus, espiões ou “interesses ocidentais” – eram
responsáveis por impedir o avanço do comunismo, embora ainda ouvida em
determinados círculos, estava agora associada à época do terror: uma época em que
a maioria dos líderes comunistas, seguindo Kruschev, mostrava-se ansiosa por
deixar para trás. Os problemas, conforme o consenso crescente, estariam no próprio
sistema econômico comunista (JUDT, 2008, p. 432).
O sistema soviético apresentava graves problemas, Kruschev insistia em suas reformas
do alto e em novos Planos Quinquenais que não alcançavam bons resultados. Chegava a
época das “eleições” e o novo líder queria preservar o hábito do partido, no qual um só
candidato era apresentado:
Kruschev voltou-se então para a questão das eleições na URSS e para o motivo pelo
qual um só candidato era apresentado para cada assento. “Somos de opinião”, disse,
“que devemos continuar indicando apenas um candidato. Não temos outros partidos
e criá-los significaria fazer concessões à burguesia” (VOLKOGONOV, 2008, p.
200).
Kruschev foi o primeiro chefe da URSS que não permaneceu no poder até à morte. O
líder foi afastado por uma conspiração do Partido e forçado a se aposentar, sem ser eliminado
fisicamente:
Abrindo o plenário do Comitê Central no dia seguinte, 14 de outubro, Brejnev
declarou: A situação no Presidium se tornou anormal, e a culpa por isso recai,
sobretudo, sobre o camarada Kruschev, que embarcou num caminho de transgressão
aos princípios leninistas de liderança coletiva da vida do país e do partido, realçando
o culto à sua própria personalidade (VOLKOGONOV, 2008, p. 230).
A conspiração teve como objetivo mostrar que Kruschev ignorou a “liderança
coletiva” e só confiava apenas em si mesmo, resultando na ascensão de um novo líder em
1964, Leonid Brejnev.
3.2 O Marionete Estagnado
O período que se estende do golpe que afastou Kruschev, em outubro de 1964, e vai
até o começo da Perestroika de Gorbatchev, em março de 1985, apareceria na maior
parte da literatura especializada como sendo o auge da expansão da URSS como
superpotência. Os dirigentes soviéticos falavam de socialismo desenvolvido e
70
continuavam alimentando perspectivas de superar o Ocidente (RODRIGUES, 2008,
p. 158).
Em outubro de 1964, por meio de um golpe, ascendeu ao poder Leonid Brejnev 82 que,
diferentemente de Kruschev, não apoiava reformas, era um conservador. O novo líder muito
se assemelhou a um fantoche, pois era manipulado pelos mais influentes membros do
Politburo: Ustinov, Chernenko, Grishin, Tikhonov e Gromyko; e, mais uma vez, o SecretárioGeral tornava-se prisioneiro voluntário do poderoso aparato.
O período em que Brejnev governou, mesmo com a invasão da Tchecoslováquia
(1968), do Afeganistão (1979) e com a guerra do Vietnã, foi o mais pacífico da história
soviética. No âmbito internacional, foi neste período que ocorreu a primeira crise do petróleo
(1973), o que provocou o aumento dos preços que abalariam as economias ocidentais pelo
restante da década; enquanto isso, a URSS colheria frutos por ser grande exportadora de
petróleo, permitindo obter grandes lucros e manter os gastos militares. Mesmo com os lucros,
a URSS foi incapaz de sustentar sua população:
A URSS, sob o vacilante governo de Brejnev, se tornaria incapaz de cumprir a tarefa
mais importante de qualquer estratégia verdadeira: o uso eficiente dos meios
disponíveis para a consecução dos objetivos escolhidos. Isso deixou o campo aberto
para líderes de todas as outras partes com capacidade para tanto (GADDIS, 2007, p.
205).
Com a segunda crise do petróleo (1979), a grande quantidade de divisas obtidas a
partir da exportação de energia e matérias-primas possibilitou ao regime soviético aumentar
suas importações de cereais, forragens e bens de consumo. Na década de 1970, o comércio
entre norte-americanos e soviéticos multiplicou-se oito vezes: as importações soviéticas de
cereais chegaram a atingir uma média anual de 40 milhões de toneladas, no início dos anos 80
(REIS FILHO, 1997).
O cenário que era apresentado para a população soviética e para o exterior era falso,
pois havia graves contradições não resolvidas que se vinham acumulando na economia e no
82
Até 1938, Brejnev mudou constantemente de trabalho: em 1921, trabalhou em uma refinaria de petróleo em
Kursk; em 1923, tornou-se aprendiz metalúrgico em Kamensk; em 1927-28, completou o curso de administração
e tornou-se subadministrador regional de Terra do partido; em 1929-30, foi vice-presidente do Comitê executivo
regional de Sverdlovsk; em 1933-35, foi diretor de uma escola técnica de metalurgia e completou curso por
correspondência em Kamensk; em 1935, foi chefe de turno de uma usina elétrica; em 1936-37, estava de volta à
Ucrânia como diretor da Escola Técnica de Metalurgia; em 1938, tornou-se gerente do departamento de
comércio regional Dneprodzerzhink do Partido Comunista Ucraniano; em 1946, era o primeiro-secretário do
comitê central regional do Partido (Obkom) em Zaporozhie; depois da morte de Stálin, permaneceu despercebido
entre os funcionários incógnitos da hierarquia superior, sendo convocado como primeiro-secretário do partido da
Moldávia até se tornar o Secretário-Geral do partido em 1964 (VOLKOGONOV, 2008).
71
sistema soviético. Tais contradições refletiam no cenário internacional, por meio do comércio
com o principal “inimigo” capitalista como forma de garantir os alimentos da população:
Comprar trigo no mercado mundial era mais fácil do que tentar resolver a
aparentemente crescente incapacidade da agricultura soviética de alimentar o povo
da URSS [...]. Lubrificar o enferrujado motor da economia com um sistema
universal e onipresente de suborno e corrupção era mais fácil que limpá-lo e
ressintonizá-lo, quanto mais substituí-lo [...]. A curto prazo, parecia mais importante
manter os consumidores satisfeitos, ou, de qualquer forma, manter o
descontentamento dentro dos limites (HOBSBAWM, 1994, p. 458).
A situação da agricultura continuava desastrosa; para alguns especialistas, era preciso
reorganizar a produção, para outros, era preciso resolver o problema da mão-de-obra, entre
outros; o que mostrou a contínua debilidade do sistema. No transcorrer dos anos 1970, estava
cada vez mais evidente que algo de muito errado havia nos regimes e nas economias
socialistas, particularmente na URSS. A redução do ritmo de crescimento da economia
constituía a maior prova de crise do regime soviético e não poderia ficar escondida por muito
tempo. O tempo que Brejnev governou ficou conhecido como a década da estagnação,
contrária à “estabilidade” alcançada:
Um dos fatores que refletiram a condição de estabilidade foi a conquista da paridade
militar e estratégica com os Estados Unidos. A longa perseguição aos americanos na
fabricação de armas nucleares no desenvolvimento de foguetes que pudessem lançálas culminou nos anos 1970 com um equilíbrio militar instável. A obtenção da
paridade militar, no entanto, custou tanto à URSS que esgarçou o próprio tecido do
dirigismo econômico e trouxe mais perto a crise que se avizinhava do sistema todo
(VOLKOGONOV, 2008, p. 249).
A estagnação foi marcada por esforços desordenados na esfera militar. A conquista da
paridade militar com os Estados Unidos foi interpretada como um evento de notoriedade
histórica, entretanto, pouco foi mencionado sobre o poder econômico americano ser duas ou
três vezes maior que o da URSS; os Estados Unidos esgotaram a URSS com a corrida
armamentista, na qual a chefia soviética entrou sem medir esforços, o que conduziria ao
aprofundamento da crise econômica e a estagnação de toda a economia:
Desde 1973, as economias do Leste Europeu estavam ficando muito para trás, até
mesmo dos reduzidos índices de crescimento registrados na Europa Ocidental. Na
União Soviética, rica em petróleo, exceto um breve acúmulo financeiro causado pelo
aumento dos preços de energia, a inflação dos anos 70 e a globalização do comércio
e dos serviços nos anos 80 deixaram as economias do bloco em insuperável
desvantagem. Em 1963, o comércio internacional dos países do Comecon
representava 12% do total mundial. Em 1979, o índice descera a 9%, e indicava
queda rápida. Os países do bloco soviético não podiam competir em qualidade com
72
as economias industriais do Ocidente; tampouco qualquer país do bloco, a não ser a
URSS, contava com um suprimento sustentável de matérias-primas a ser vendido
para o Ocidente, de maneira que o bloco não podia sequer concorrer com os países
subdesenvolvidos (JUDT, 2007, p. 576).
Ao mesmo tempo em que a URSS alcançava a paridade militar, a disparidade
econômica com o Ocidente aumentava, tal como a insatisfação da população soviética:
A estagnação econômica era, em si mesma, uma refutação permanente das hipóteses
de superioridade do comunismo em relação ao capitalismo. E, se não constituía um
incentivo à oposição, com certeza era fonte de descontentamento. Para a maioria das
pessoas que viviam sob o regime comunista durante a era Brejnev, desde o final dos
anos 60 até o início dos anos 80, a vida já não era pautada pelo terror e pela
repressão. Mas era cinzenta e insípida (JUDT, 2007, p. 579).
O descontentamento da população soviética era enorme; casais tinham cada vez menos
filhos, o consumo per capita de bebida alcoólica quadriplicou no período e muitos jovens
morreram. As reformas econômicas necessárias no bloco soviético estavam fora de cogitação
e, não por acaso, os governantes dos Estados-satélites do Leste Europeu eram idosos e
oportunistas. O movimento social ganhou força e o protesto intelectual e moral contra a
perseguição policial ao pensamento heterodoxo e à liberdade de expressão foi o sintoma do
declínio cada vez maior do sistema comunista; os jovens foram aprisionados, encarcerados em
hospitais psiquiátricos, mandados para o exílio interno ou deportados.
Estava claro que a URSS não andava bem. O comando do partido no centro e na
periferia caracterizava-se pela aparência externa, disfarçando a passividade interna; a apatia
do povo crescia, a corrupção florescia em diversos níveis, a taxa de crescimento do país em
muitas esferas era nula e a agricultura vivia um estado de doença terminal. Podia estar
acontecendo isso, mas o Politburo permanecia tranquilo:
O país podia estar engajado numa guerra no Afeganistão, a détente podia ser letra
morta, a indústria e a agricultura podiam estar de joelhos, enquanto os barões do
partido se tornavam mais gordos e mais poderosos, mas o Politburo permanecia
tranquilo. A tradição leninista da “manutenção da unanimidade completa” era mais
importante que as estatísticas econômicas, de modo que a letargia continuava
(VOLKOGONOV, 2008, p. 252).
Brejnev acreditava no triunfo final da causa de Lênin e disse no XXIV Congresso que
o sistema mundial do socialismo era o protótipo da futura comunidade mundial de povos
livres, e que a vitória completa e a causa socialista em todo o mundo eram inevitáveis
(VOLKOGONOV, 2008, p.286). É difícil acreditar que o Secretário-Geral tivesse essa
crença, pois o sistema econômico da URSS nunca pôde vestir e alimentar a população e
73
sempre era apresentado algum motivo alheio para isso: safras ruins, negligência,
“subjetivismo” dos chefes anteriores e ações agressivas dos imperialistas dos Estados Unidos
que forçaram a URSS a desviar recursos adicionais significativos para fortalecer a capacidade
defensiva do país.
A partir dos anos 1970, Brejnev passou a não fazer parte ativa das questões do partido
e do Estado, queria apenas aparecer na televisão e receber condecorações. Em 1982, faleceu o
quarto líder da URSS e enquanto a população soviética recebia a noticia com alívio, os idosos
do Politburo ficaram alarmados. O fim da era Brejnev declarava o declínio do poder
bolchevique, ao qual o povo já estava indiferente; o regime não mais causava medo ou
respeito e o país estava próximo da mudança dramática.
3.3 O “Chefe” do KGB
No seu discurso de posse, Andropov ressaltou que:
A linha traçada pelo partido nos congressos recentes aponta o caminho leninista. Foi
ao longo dessa linha que o Politburo, sob a liderança de Leonid Ilyich, conduziu
nosso partido e todo o povo soviético sem desvios para o comunismo. É óbvio que
nossos inimigos farão o possível para destruir nossa unidade e nossa fé no futuro,
para desarticular nossos quadros e nossa determinação (VOLKOGONOV, 2008, p.
297).
O Secretário-Geral tinha poder sobre todas as nomeações: podia cooptar ou excluir
qualquer pessoa, entretanto, dependia de seus aliados para conseguir a aprovação dessas
decisões pelo Politburo e pelo Comitê Central; além desta situação, um grupo que quisesse
escolher um novo secretário-geral podia afastar o designado com o apoio do exército e da
KGB. Como já era de se esperar, com a queda do antigo líder, dois “herdeiros” passaram a
disputar a sucessão do governo soviético: Yuri Andropov83 e Konstantin Chernenko; a
precedência estaria com o primeiro dos dois, já que contava com o apoio do exército e da
KGB, da qual fora chefe 15 anos.
Com a morte de Brejnev, estava claro que o sistema soviético precisava de mudanças
urgentes. Andropov devia fazer algo novo e original, que desse esperança ao povo, em
83
Andropov foi cooptado bem jovem para a nomenclatura, não marcou passo nas funções inferiores e
intermediárias, caminhando rapidamente para o topo. Dos sete chefes soviéticos, foi o primeiro a sair da KGB
(15 anos como chefe) para a mais alta posição do partido (VOLKOGONOV, 2008).
74
especial, porque eles estavam cansados da “estabilidade” de Brejnev e queriam que o novo
chefe fizesse alguma coisa palpável a seus interesses:
Cada um dos chefes, embora jurando fidelidade ao leninismo, tinha, de alguma
forma, desacreditado o antecessor. Normalmente, sem falar abertamente sobre o
assunto, cada secretário-geral criou sua própria política, sua maneira de governar e
sua própria linha (VOLKOGONOV, 2008, p. 308).
Andropov iniciou suas reformas reorganizando o trabalho no partido e redistribuindo
as funções partidárias entre seus membros, com o objetivo de restaurar a disciplina no local de
trabalho. Permanecia no escritório até altas horas, reunido com diversos funcionários e
pedindo incontáveis informações e arquivos, procurando uma maneira de restabelecer a saúde
soviética e ressuscitar o sistema para inspirar a confiança da população, injetar vida nova no
partido e promover a “ascensão” final do comunismo:
Andropov ainda teve forças para lançar uma campanha contra preguiça, desordem e
ineficiência, e para desferir diversos golpes nos abastados e privilegiados secretários
das repúblicas e regiões, bem como nos funcionários de alto escalão dos ministérios,
onde a corrupção, o nepotismo e a fraude corriam soltos. Os tribunais estavam
abarrotados de processos contra gente que se interessava mais por lucros ilegais que
pela „disciplina no trabalho e na produção‟ (VOLKOGONOV, 2008, p. 312).
O erro comum de Andropov e de seus antecessores foi não perceber a necessidade de
reformas abrangentes e radicais no sistema ou então revisar certas suposições básicas do
marxismo-leninismo ou mobilizar recursos humanos da população para uma genuína
democratização da sociedade. Andropov era conservador convicto e, por isso, não tinha como
empreender reformas abrangentes que colocassem em risco as conquistas socialistas. Tal
como os líderes anteriores, Andropov era prisioneiro das regras do jogo do partido e das
demandas do sistema:
O sistema nada tinha a oferecer senão argumentos bolcheviques: mísseis, tanques,
controle intelectual, diretrizes do partido e serviço secreto. Mas os contra
argumentos eram ainda mais fortes: a bancarrota econômica do país, a completa falta
de liberdade do povo, uma burocracia infernal, dogmatismo e a ausência de
quaisquer soluções soviéticas aceitáveis para o impasse (VOLKOGONOV, 2008, p.
314).
O problema principal do sistema soviético estava no aparato partidário, no centralismo
democrático e na corrupção generalizada. De fato, o sistema estava paralisado e as reservas
internacionais de entusiasmo, das quais os bolcheviques se tinham valido por décadas. Diante
75
desta situação, Andropov apresentou um memorando ao Politburo, sugerindo que o órgão
considerasse a possibilidade de implantar determinados “procedimentos democráticos” nas
eleições para o Soviet Supremo:
À medida que se aproximava a campanha para reeleição dos organismos do partido,
acompanhada de relatórios habitualmente divulgados nessas ocasiões, Andropov
repentinamente declarou, em uma resolução oficial do partido, em agosto de 1983:
As assembléias eleitorais do partido são conduzidas de acordo com um roteiro
preestabelecido, sem debate sério e franco. Os discursos são previamente editados;
qualquer iniciativa ou crítica foi suprimida. De agora em diante, nada disso será
tolerado (LEWIN, 2007, p. 327).
Na política interna o novo líder optou por combater a crise, na externa, essa opção era
viável. Recebeu diversos relatórios a respeito do conflito no Afeganistão, da continuada
tensão na Polônia, profunda incerteza nas relações com a China e Japão, perigosa deterioração
do Oriente Médio, Etiópia e África do Sul e as relações com a Europa Ocidental não eram
boas e principalmente a interminável disputa com os Estados Unidos84. A disputa com os
Estados Unidos fazia com que a URSS mergulhasse cada vez mais fundo na ruína econômica,
pois de seu orçamento, 70% estava sendo aplicado em necessidades militares (o que não era
revelado na época).
Quando assumiu o poder, todos sabiam que Andropov estava seriamente enfermo. Dos
15 meses em que esteve no poder, metade do tempo foi passado no hospital, onde esperava
que o tratamento lhe recuperasse a grande capacidade de trabalho ou que resultasse em cura
parcial. Em 1984, o Politburo estava reunido como de praxe: o quinto chefe soviético havia
falecido e deixara livre um sistema que estava paralisado econômica e ideologicamente.
3.4 O Favorito de Brejnev
Entretanto, chegou o estágio em que mais e mais o povo começou a ver que as
verdades bolcheviques eram, com efeito, expressões de uma grande mentira dentro
de um sistema de inverdades. Foi com essa base que, dentro do sistema, cercado de
arame farpado e criado pelos dois primeiros líderes, a crise se aprofundou e as
rachaduras no monólito se alargaram (VOLKOGONOV, 2008, p. 343).
84
Ao fim do mandato de Brejnev, a um custo muito maior que o dos Estados Unidos, a URSS alcançou a
paridade nuclear com seu inimigo. A competição, na qual todos os chefes entraram sem hesitação, solapara o
sistema comunista.
76
Até o XX Congresso do Partido, em 1956, o povo soviético enxergava o futuro
através de uma lente focada na ideologia oficial do partido: a prometida utopia comunista,
ameaçada por diversos inimigos – o cerco imperialista. Após este congresso, surgiram novos
ângulos da aparência bolchevique e o povo não aceitava as mesmas promessas, porém, poucos
líderes entenderam isso: Kruschev combateu o culto à personalidade e pensou que essa
insatisfação seria temporária; Brejnev nem notou; Andropov sabia da existência, mas foi
incapaz de resolver; e Chernenko não estava a par desses graves problemas da URSS, mas,
mesmo sem saber, foi o precursor da mudança.
Os setenta anos de bolchevismo alteraram fundamentalmente o povo e seus chefes. O
distanciamento entre política e moralidade se tornara tão amplo que os líderes justificavam
como moral tudo o que servisse à causa do comunismo. A indicação de Chernenko 85 não foi
acidental, mas o produto da onipotência burocrática, a degeneração bolchevique e sua
ascensão significaram o aprofundamento da crise na sociedade, a ausência de ideias positivas
no partido e a inevitabilidade das convulsões que viriam e a estagnação continuada:
Para fins externos, quase nada mudou. Medalhas ainda eram distribuídas aos
vitoriosos na competição socialista, longas filas esperavam pacientemente no lado
de fora de lojas com quase nada a oferecer, células do partido ainda organizavam
intermináveis e apinhadas reuniões, os trens suburbanos continuavam transportando
pessoas esperançosas de comprar alguma coisa nos centros, a milícia interrompia o
trânsito para dar passagem às longas e negras limusines – ou membromóveis como
eram conhecidas – que levavam os intocáveis para suas vilas no campo depois de
longo e exaustivo dia no escritório. A incompreensível guerra no Afeganistão
continuava (VOLKOGONOV, 2008, p. 348).
No âmbito externo, estava claro para os Estados Unidos que a URSS estalava sob o
peso da corrida armamentista e da crise da economia dirigida. Apesar desta situação
insustentável, o Kremlin ainda expedia recomendações para intensificar a luta contra os
planos de mísseis dos Estados Unidos, o eurocomunismo e a sabotagem ideológica.
Chernenko não tinha a intenção de promover mudanças importantes, as únicas
mudanças que apresentou eram continuação da era Brejnev. Nenhum dos líderes soviéticos
fora eleito e todos se utilizaram da autoridade do partido e da população: os inocentes úteis
que acreditaram durante décadas na superioridade histórica do socialismo, no papel salvador
da ditadura do proletariado, na total ausência de direitos e liberdades para os trabalhadores
85
O período de maior crescimento para a carreira de Chernenko começou em 1961, no Comitê Central, onde
trabalhou por 25 anos. A partir de 1965, ficou encarregado do Departamento Geral, permanecendo no cargo por
18 anos. Em 1976, tornou-se secretário do Comitê Central, em 1977, membro-candidato e, em 1978, membro
pleno do Politburo (VOLKOGONOV, 2008).
77
dos países capitalistas, na inevitabilidade do colapso do comunismo e no triunfo dos ideais
comunistas em todo o planeta:
Versões são impingidas ao povo de cima para baixo e podem ser alteradas logo no
dia seguinte. Não há critério confiável de verdade a não ser o que é declarado
verdade em determinado momento. Dessa forma, a mentira, de fato, se torna verdade
ou, o que dá no mesmo, a distinção entre verdade e mentira, na acepção normal
dessas palavras, desaparece (VOLKOGONOV, 2008, p. 352).
Quando Chernenko ascendeu ao poder, a crise social atingiu enormes proporções e as
mentiras não eram mais capazes de disfarçar as fendas na economia ou a verdade a respeito
dos padrões de vida e dos direitos humanos. Os mitos que sustentaram o regime por tanto
tempo, estavam sendo destruídos e a população estava cansada de mentiras e promessas de
um futuro brilhante próximo, o Plano Quinquenal; além disso, a vida interna dos funcionários
do Comitê Central sempre fora secreta, como uma casta separada da sociedade, que vivia com
regras diferentes e desfrutavam de privilégios especiais negados aos seus camaradas cidadãos.
A degeneração do sistema refletiu-se no aprofundamento da crise econômica, no anacronismo
do sistema político, no controle cínico da vida espiritual e na natureza das pessoas que
detinham o poder.
Na política externa, a URSS caminhava para um beco sem saída, pois os países que
tentava colocar na orientação socialista estavam sendo armados, enquanto se tornavam cada
vez mais pobres e sem qualquer esperança de solução (não era o que o Politburo pensava).
Quando a URSS invadiu a Tchecoslováquia, a Hungria e o Afeganistão, a propaganda era que
se cumpria um dever internacional; enquanto proclamava as vantagens de uma economia
dirigida, comprou por décadas os cereais nos países que de fato desfrutavam tais vantagens.
A grande maioria da população mostrava total indiferença por Chernenko, pelo
partido, pelo marxismo-leninismo e pelas sábias políticas do Comitê Central. Estavam
cansados de tantas mentiras, sustentadas pelas estatísticas econômicas manipuladas, indicando
um crescimento industrial anual de 4,2%.
Chernenko ficara muito doente em seu governo e não havia um sistema racional de
sucessão na URSS, logo o próximo líder seria indicado pela maioria do Politburo:
A ausência de um sistema racional de sucessão resultava em cenas grotescas como a
descrita por Gorbachev. Era como se os descendentes de Lênin se recusassem a
reconhecer a morte. A vaidade fazia com que se apegassem ao poder até o último
suspiro. A despeito da situação, no entanto, a chefia tentou passar a impressão de
tudo normal (VOLKOGONOV, 2008, p. 384).
78
Em 10 de março de 1985, faleceu o sexto chefe soviético e, no dia seguinte, o
Politburo indicara o novo líder: Mikhail Gorbachev.
3.5 O Último Leninista
Talvez o mais importante a registrar seja que 70 anos depois da Revolução que tanto
comoveu o mundo, porque viria por termo à carência e suprir o indivíduo daquilo de
que necessitava, as autoridades soviéticas são obrigadas a reconhecer que a carência
persiste, que os serviços públicos de saúde são deficientes, que a infância, no campo,
é desassistida, que os milhões de aposentados e pensionistas, entre esses as viúvas
de guerra, percebem benefícios que não ficam tão à frente daqueles que se pagam no
Brasil (FERREIRA, 1990, p.78).
De acordo com Mandel (1989), cada indivíduo “histórico” é um indivíduo concreto,
no campo psicológico e social. Este indivíduo nasce e se forma com caráter, talentos e
disposições, entretanto, dentro de um meio social determinado, fortemente marcado pelo
grupo social ao qual pertence. Tal como os antigos líderes soviéticos, Mikhail Gorbachev 86
também teve seus talentos dedicados a um grupo social mais amplo – a burocracia soviética –
por um comportamento adequado às regras e consequências da dominação desse grupo:
Não se pode compreender o “fenômeno Gorbachev” senão como o encontro de uma
evolução e de uma necessidade sociais com uma personalidade dotada das
qualidades requeridas para dar-lhe expressão marcante em determinado momento da
história. Gorbachev é o produto da efervescência anterior da sociedade soviética,
antes de acentuar, por sua vez, essa mesma efervescência (MANDEL, 1989, p. 81).
Não foi à toa que Gorbachev foi nomeado o sétimo secretário geral da URSS, pois as
nomeações para o exercício de funções-chave são todas feitas ad hoc pela burocracia do
partido, que escolhe entre candidatos pré-selecionados e preparados pelo setor interessado.
Se foi escolhido, é porque a maioria do partido pertencia à burocracia soviética e
dentro dos interesses da classe, a que Gorbachev pertencia, estavam em mudança. As
circunstâncias nas quais foi eleito, sem hiatos do poder e nem solução de continuidade às
políticas de Chernenko, confirmavam a intervenção discreta da KGB a favor do “renovador”.
86
Gorbachev ingressou no PCUS em 1952, formou-se em Direito pela Universidade de Moscou, em 1955, e em
agronomia pelo Instituo Agrícola de Stavropol, em 1967. Iniciou sua carreira política na Juventude Comunista de
Stavropol, foi eleito para o Soviete Supremo, em 1970. Em 1971, passou a integrar o Comitê Central do PCUS e,
em 1979, tornou-se membro provisório do Politburo, sendo membro efetivo desde 1980.
79
Desde suas origens, Gorbachev representava a “nova classe média” na URSS,
resultante da industrialização “socialista”; por esse traço, era um personagem completamente
diferente de Kruschev, Brejnev, Andropov e Chernenko que vieram de classes sociais précapitalistas ou capitalistas, além disso, todos eles tiveram suas carreiras marcadas por Stalin:
As mortes sucessivas de três comunistas da velha guarda, todos nascidos antes da
Primeira Guerra Mundial, foram um tanto sintomáticas: a geração de líderes do
partido que guardava memórias das origens bolcheviques da União Soviética e cujas
vidas e carreiras tinham sido marcadas por Stalin começava a desaparecer. A
referida geração herdara e comandara uma burocracia autoritária e gerontocrata, cuja
grande prioridade era a própria sobrevivência; no mundo em que Brejnev, Andropov
e Chernenko tinham crescido ter morte tranquila não era um feito significante
(JUDT, 2007, p. 592).
Era o primeiro representante da geração pós-stalinista de “comunistas” soviéticos que
chegava ao poder na URSS, livre dos grandes combates e dos grandes traumas do passado. A
realidade econômica da URSS tinha sido muito prejudicada em razão das falhas dos antigos
chefes, tal como a incansável corrida armamentista com os Estados Unidos, o “auxílio” aos
demais países socialistas e o apoio financeiro e militar aos demais conflitos nas nações
comunistas existentes (como o Afeganistão):
Cada vez mais a economia era pressionada em termos financeiros. A venda de
grandes quantidades de petróleo, de outros combustíveis, de recursos energéticos e
matérias-primas no mercado mundial não ajudou em nada, só piorou a situação [...].
A queda das taxas de crescimento e a estagnação econômica acabaram por
influenciar outros aspectos da sociedade soviética. A esfera social foi seriamente
afetada por tendências negativas, o que levou ao aparecimento do chamado princípio
residual, de acordo com o qual os programas sociais e culturais recebiam o que
sobrava do orçamento depois da alocação de recursos para a produção. Parecia que
éramos insensíveis aos problemas sociais (GORBACHEV, 1987, p. 19).
De acordo com Aganbeguian (1990), devido à estrutura deformada resultante do
princípio residual, menos de 10% dos investimentos eram destinados à produção dos bens de
consumo e serviços pagos87. A maior parte dos investimentos era destinada ao
desenvolvimento da indústria pesada, principalmente aos seus ramos produtores de matériasprimas. Estas matérias-primas eram desperdiçadas, pois eram utilizadas irracionalmente;
portanto, os recursos públicos eram “enterrados”, sem produzir efeito algum.
Some-se a isso, a necessidade do crescimento prioritário dos meios de produção em
detrimento da produção dos bens de consumo. Ao mesmo tempo, era aplicada a política de
87
Serviços pagos são aqueles que não são distribuídos coletivamente e o consumo, mesmo que subsidiado, é
pago pela população.
80
contenção do desenvolvimento da indústria leve e alimentícia, considerada um ramo
secundário, e, por essa razão, com equipamento obsoleto, salários mais baixos e o suprimento
habitacional mais precário. Tal situação caracterizava a debilidade do sistema econômico88:
Essa deformação profundamente anti-social da nossa economia nacional, orientada
no passado, sobretudo, para a produção dos meios de produção, fez com que o nível
de vida do povo não correspondesse ao poderio econômico da URSS, ao grau de
desenvolvimento da ciência e da tecnologia e ao nível de instrução da população.
Nós vivemos um nível de 30 a 50% inferior ao que poderíamos ter alcançado com o
nível de desenvolvimento das forças produtivas, mas com uma estrutura normal do
produto nacional (AGANBEGUIAN, 1990, p. 51).
Os antigos chefes apresentavam uma falsa realidade, sem problemas, gerando a
passividade da população e a descrença nos lemas proclamados, tudo o que era dito foi posto
em dúvida. De acordo com Volkogonov (2008), as organizações do partido nos institutos e
universidades se dissolviam por si mesmas. Milhares de pessoas deixaram o partido como
forma de protesto contra a continuação do monopólio político e dos métodos de chefia, e, ao
mesmo tempo, assistia-se à rápida depreciação dos valores fundamentais do “marxismoleninismo”:
Para que aquilo que Gorbachev chama de “reestruturação” (perestroika) se tenha
tornado necessário, foi preciso que esses vícios tivessem produzido danos à altura da
grandeza do PIB soviético – o que significa que a deterioração da economia
começou a afetar o Estado, sua capacidade militar e seu domínio, ou, pelo menos, o
domínio do Partido sobre a população. O mito construído durante a guerra civil (da
revolução até o fim da intervenção em 1920) já não pode ser usado para justificar
malogros; a teoria do “cerco capitalista”, tão cara a Stalin [...], da mesma maneira
não explicaria mais coisa alguma; o argumento da “Grande Guerra Patriótica” nada
esclarece, pois se está em paz; a “guerra fria” não pode ser mais dada como
responsável pela crise econômica (FERREIRA, 1990, p. 33).
Os insucessos econômicos eram mais frequentes, as dificuldades se acumulavam e os
problemas não solucionados multiplicavam-se. Formou-se uma espécie de freio que afetou o
desenvolvimento sócio-econômico:
Este é o estado da economia soviética em 1985, 68 anos depois da revolução: uma
crise agrícola que se vinha estendendo fazia décadas; produção industrial
tecnologicamente atrasada com relação aos padrões do Ocidente; sistemas de gestão
voltados menos para a eficiência do que para manter vivo o mito do “pleno
emprego” (a estocagem de mão-de-obra é exemplo dessa mentalidade
administrativa); crise na balança comercial e, embora só revelado mais tarde,
acentuado déficit público permeando todo o processo (FERREIRA, 1990, p. 39).
88
Um dos mais importantes objetivos da perestroika era mudar a situação existente, em melhorar a vida das
pessoas e em reorientar socialmente a política estrutural e dos investimentos (AGANBEGUIAN, 1990).
81
A URSS tinha problemas graves relacionados à falta de mão de obra qualificada,
redução do número de trabalhadores na agricultura, devido ao êxodo rural, aceleração técnicocientífica (fábricas soviéticas eram velhas e os laboratórios dos institutos de pesquisa não
produziam tecnologia), queda nos preços do petróleo em 1986, ocasionando déficit na balança
comercial. Além de problemas antigos como o alcoolismo89, o consumo de drogas, os crimes,
estagnação econômica e a corrupção:
Um exame imparcial e honesto levou-nos à única conclusão lógica: o país estava à
beira de uma crise [...]. Trabalhadores, agricultores e intelectuais, funcionários do
partido a nível central e local começaram a analisar a situação do país. Havia uma
crescente conscientização de que não se podia continuar daquele modo por muito
tempo. A perplexidade e indignação jorraram quando se percebeu que os nobres
valores nascidos com a Revolução de Outubro e a luta heróica pelo socialismo
estavam sendo pisoteados (GORBACHEV, 1987, p. 23-24).
O partido comunista e o país estavam à deriva, enquanto a fermentação intelectual
crescia, a “nova intelligentsia” soviética tornava ainda mais difícil a crença nos ideais
leninistas e, ao mesmo tempo, servia como apoio para as reformas que seriam propostas por
Gorbachev.
Depois de Lênin, Gorbachev foi o único chefe soviético que pôde ser considerado
comunista real, seguidor das obras de Lênin e dos ideais socialistas, não proclamando tais
ideais para se autopromover ou para assegurar o “apoio” do povo.
Nesse contexto político-econômico e social interno, Gorbachev propôs um conjunto de
transformações na URSS, representadas pela Perestroika (reestruturação) e pela Glasnost
(transparência). É importante destacar que, se a direção anterior do país fosse competente e
progressista, esta reestruturação teria sido realizada há vinte ou trinta anos antes. Por outro
lado, se, na década de 80, outras pessoas subissem ao poder, a estagnação econômica e a
deterioração social poderiam continuar por décadas, o que ocasionaria o descontentamento
das massas. Como resultado, o partido deveria escolher: voltar aos métodos stalinistas de
submissão do povo ou realizar uma reforma radical de todas as relações sociais e econômicas;
por isso, a realização da Perestroika deveria ser compreendida como um “imperativo
categórico” que a história impôs à URSS:
89
De acordo com Ferreira (1990), desde os tempos do czar se faziam esforços para impedir o alcoolismo na
Rússia (era uma calamidade pública). O alcoolismo marcou a URSS nos moldes do regime czarista e os custos
sociais passaram a ser tão altos (aumento da criminalidade, baixa da produtividade, aumento do absenteísmo,
aumento de crianças-problema com pais alcoólatras, redução da expectativa de vida e aumento do número de
acidentes de trânsito) que o governo teve de conter o consumo a partir de multas elevadas e de prisões com
trabalhos forçados para determinadas infrações.
82
A nova política econômica que Gorbachev procurou introduzir na União Soviética
foi, assim a entendo, uma tentativa extrema de mobilizar energias políticas
(evidentemente humanas) para impedir que o Estado soviético – aqui entendido no
sentido amplo de organização „estatal‟, „social‟ e „humana‟ – desaparecesse tragado
pelas contradições que se criaram entre as necessidades da sociedade e as relações
de produção ditadas pelos interesses da burocracia, cujo domínio sobre o país não
decorria da implantação do bolchevismo, mas deita fundas raízes no passado russo
(FERREIRA, 1990, p. 27).
De acordo com Gorbachev (1987), o sinônimo que representava a essência da
Perestroika, com mais precisão é Revolução, isto implicaria na demolição de tudo aquilo que
ficou estagnado e que emperrava o progresso, tal como a eliminação dos obstáculos que
prejudicavam o desenvolvimento econômico e social, dos métodos antiquados de
administração econômica e da mentalidade estereotipada e dogmática:
Tornou-se claro que a “chave” para a realização da perestroika se encontrava não na
esfera sócio-econômica, mas, antes de mais nada, na esfera política, mais
concretamente na esfera partidária. Sem a democratização radical do poder político,
era impossível a resolução dos problemas essenciais [...]. A questão básica de
qualquer revolução é a questão do poder. A revolução significa uma mudança brusca
do rumo e a inauguração de uma etapa essencialmente nova de desenvolvimento da
sociedade (ZASLAVSKAIA, 1990, p. 141).
Para alcançar tais objetivos90, Gorbachev tomaria medidas de longo alcance, rápidas e
inflexíveis para acelerar o desenvolvimento sócio-econômico e cultural da sociedade
soviética, e que afetariam toda a sociedade soviética. As transformações começaram com o
partido e sua liderança, entretanto, foi preciso o apoio da população soviética, a iniciativa do
alto com o movimento das bases, os interesses fundamentais e de longo prazo de todos os
trabalhadores, como resposta a suas exigências. A essência social da perestroika consistiu no
retorno da sociedade às necessidades do homem, à renovação e depuração das relações sociais
e das deturpações e deformações que nela surgiram. Renasceriam os traços do sistema
socialista que o tornavam mais atraente do que o capitalismo, isto é, o maior valor do
socialismo é o homem:
Chegamos à conclusão de que sem acionar o fator humano, isto é, sem levar em
consideração os diversos interesses das pessoas, tanto as unidades de trabalho (os
“coletivos”) como os órgãos públicos e os vários grupos sociais, sem contar com
eles e sem atraí-los para se empenharem ativa e construtivamente, será impossível
completar qualquer das tarefas fixadas ou mudar a situação [...]. O povo, os seres
90
Elevar o nível de vida da população, fim do desabastecimento de produtos alimentícios, desenvolvimento
rápido de diversas formas de assistência social à população, superação da alienação dos indivíduos com relação
aos objetivos e valores sociais, desenvolvimento das garantias sociais, ampliação dos direitos e liberdades do
homem, entre outros (ZASLAVSKAIA, 1990).
83
humanos, com toda a sua diversidade criativa, é quem faz a História. Logo, a
primeira tarefa da reestruturação, a condição indispensável para garantir o sucesso, é
acordar aqueles que adormeceram, fazendo com que fiquem ativos e atentos; é
assegurar que cada um se sinta como dono do país, de sua empresa, escritório ou
instituição. Isto é o principal (GORBACHEV, 1987, p. 29).
Perestroika também deveria ser entendida como a iniciativa das massas, o que
implicava o total desenvolvimento da democracia, autogestão socialista, encorajamento da
iniciativa e empenho criativo, críticas e autocríticas em todos os campos da sociedade
soviética. A essência desta “revolução” estava no fato de que uniria o socialismo com a
democracia e reviveria o conceito leninista de construção socialista na teoria e na prática. Para
isso foi necessária a Glasnost (transparência) que representava a abertura democrática e que
complementava a Perestroika:
A glasnost (transparência), como abertura democrática, abriu caminho para a
reforma do Estado e para as discussões ideológicas, nas quais a reconstituição da
história e a crítica da burocracia e das deficiências da organização social, assim
como da formação do homem soviético, substituindo a versão formal da realidade,
identificam as questões reais que hoje se põem no país (POMERANZ, 1990, p.11).
O grande desafio da Perestroika foi como reativar a população que durante décadas
foi educada em obediência incondicional e temor, onde quaisquer formas de autonomia e
iniciativa eram esmagadas e punidas severamente. Nos tempos de Perestroika, a sociedade
soviética pagou por ter tolerado por tanto tempo a hipocrisia moral do partido. Por esse
motivo, Gorbachev lançou a Glasnost que implicava a transparência da vida social, garantia
do acesso livre dos cidadãos a todos os tipos de informação, discussão dos problemas sociais
na ampla imprensa e o lema “mais socialismo, mais democracia”91; o que remontava ao
período de Kruschev, quando se tentou um sistema mais democrático, esquecendo-se de que o
sistema soviético não suportava tal função:
No processo de tentar, ele conseguiu um avanço marcante ao subscrever a glasnost
como um meio para a eliminação de todas as mentiras. O sistema leninista,
independentemente do desejo de todos os seus funcionários, se fundamentava em
falsidade, segredo, controle de informação e manipulação da consciência pública e
privada. Tão logo o povo começou a entender a verdade sobre o regime e seus
incontáveis mitos, os alicerces do sistema começaram a rachar. A verdade foi uma
arma contra a qual o sistema leninista se revelou impotente (VOLKOGONOV,
2008, p. 417).
91
Mais socialismo significava mais democracia, abertura e coletivismo na vida diária, mais cultura e humanismo
na produção, relações sociais, respeito próprio, mais patriotismo, mais preocupação da população com relação
aos assuntos internos do país (GORBACHEV, 1987).
84
De acordo com Gorbachev (1987), as dificuldades e problemas dos anos 70 e 80 não
significaram nenhum tipo de crise do socialismo como sistema político e social, mas era o
resultado de inconsistência na aplicação de seus princípios, de afastamento e até de distorções,
somados à adoção continua de métodos e formas de condução da população que surgiram sob
condições históricas particulares nos primeiros estágios de desenvolvimento socialista. De
acordo com Volkogonov (2008), qualquer ato democrático do sétimo Secretário-Geral era
notado pela maioria da população como revelação inesperada, como qualquer “revolução” e
nem todos apoiariam tais reformas:
Os verdadeiros problemas aparecem quando examinamos os objetivos e projetos de
Gorbachev no domínio político, não apenas à luz das necessidades objetivas da
sociedade soviética, de seus cidadãos e cidadãs trabalhadoras - antes de tudo do
proletariado soviético que constitui a grande maioria da população -, mas ainda em
função dos interesses específicos da burocracia, isto é, dos governantes e dos
abastados do país [...]. A questão para eles é consertar a situação econômica sem por
em risco o essencial de seu poder e de seus privilégios. É assim que as classes e
camadas dominantes sempre agiram na história. A burocracia soviética não constitui
uma exceção a esta regra (MANDEL, 1989, p. 125-126).
O sistema burocrático que se formou na URSS, ao longo de décadas, tinha
possibilidades ilimitadas de subordinar, sem exceção, todas as esferas da vida social (nos
âmbitos político, econômico, cultural e ideológico), sem encontrar quaisquer forças contrárias
ou restrições reais.
Durante décadas predominou, na URSS, um sistema único de
“absolutismo burocrático”, isto é, uma burocracia que pretendia o domínio absoluto da
sociedade e que teve como consequências principais a alienação entre o mecanismo do poder
e as massas, a corrupção e a estagnação econômica:
O domínio do sistema burocrático levou a sociedade à estagnação, suas instituições
à profunda degradação e a própria burocracia triunfante à corrupção em escala nunca
vista. Tal degradação não foi acidental nem inesperada [...]. Há muito se sabe que o
poder absoluto, ilimitado e incontrolável corrompe por completo, inclusive a si
próprio. Em regime de poder irrestrito nenhuma organização de revolucionários
pode estar garantida contra a degradação burocrática (GUDKOV et al, 1990, p.198199).
Com a Perestroika, Gorbachev procurava renovar um sistema que não tinha mais
solução devido à amplitude da crise, à gravidade da situação econômica, às contradições
políticas que as medidas92 apresentavam, além do descontentamento de grande parte da
92
Gorbachev e sua equipe propunham a democratização da sociedade com os seguintes objetivos: afastar os
representantes mais tenazes do imobilismo em todos os escalões do aparelho; engrenar esse processo como o
despertar, a fim de liberar energias criadoras e permitir iniciativas indispensáveis para o sucesso da Perestroika;
e manter o controle do partido sobre o conjunto da renovação (MANDEL, 1989).
85
população (inclusive o descontentamento dos burocratas e da KGB). De acordo com Mandel
(1989), Gorbachev e seus aliados sentiam-se assentados sobre uma bomba relógio e pensando
na Perestroika como imperativo categórico e na Glasnost como complemento para o conjunto
de transformações, o sistema não poderia e nem deveria durar muito tempo: “Hoje a tarefa é
quebrar esse sistema. Não “limpar” as impurezas, não corrigir as “deformações”, mas sim
quebrar o sistema de dominação burocrática, lançando bases completamente novas de
desenvolvimento social e político do país” (GUDKOV et al, p. 199-200).
De acordo com Ferreira (1990), foi por pretender reformar uma sociedade em que a
burocracia tinha privilégios e poderes, que a proposição de Gorbachev foi dificultada na
moldura do Estado conhecido como URSS e sob o domínio do PCUS. Segundo Gorbachev
(1987), o processo iniciado com a Perestroika era de interesse de todo o povo soviético, pois
reforçaria o socialismo por essa reestruturação, que tem como objetivo elevar o nível da
sociedade soviética para um patamar novo com a volta do elemento mais importante deste
regime, o homem. Em seu livro Perestroika, ele também destaca que a comunidade socialista
só seria bem sucedida se partidos e nações conseguissem manter, ao mesmo tempo, estreita
ligação com seus interesses particulares e com o interesse geral, mas não notou a contradição
constante entre o sistema de partido único e suas propostas:
Isso confirma mais uma vez a tese difundida pelos marxistas revolucionários,
segundo a qual a verdadeira democracia socialista, o exercício real do poder político
pelas massas trabalhadoras, um verdadeiro poder dos sovietes, são incompatíveis
com o regime de partido único. Os sovietes só serão realmente soberanos e reais
órgãos de “governo popular” se forem livremente eleitos: se elegerem livremente os
responsáveis pela administração da economia; se votarem livremente com base em
linhas estratégicas e políticas alternativas (MANDEL, 1989, p. 144).
Isso pressupõe a existência de oposições reconhecidas como legais, o direito de os
operários e camponeses elegerem livremente todos aqueles e aquelas que quiserem eleger,
independentemente de sua filiação política ou ideológica, e sem o direito de veto prévio pelo
PCUS e KGB, levando a sociedade soviética à pluralidade das tendências e partidos políticos:
O que tornava a situação pior era que, na mente dos reformadores, glasnost era um
programa muito mais específico que perestroika. Significava a introdução, ou
reintrodução, de um Estado constitucional e democrático baseado no império da lei e
no gozo das liberdades civis como comumente entendidos. Isso implicava a
separação de partido e Estado, e (ao contrário de todo acontecimento desde a
ascensão de Stalin) a mudança do locus do governo efetivo de partido para Estado.
Isso, por sua vez, implicaria o fim do sistema unipartidário e do „papel condutor‟ do
partido. Também, obviamente, significaria revivescência dos sovietes em todos os
níveis, em forma de assembleias eleitas genuinamente representativas, que
culminariam num Soviete Supremo, uma assembleia legislativa genuinamente
86
soberana, que concederia poder a um Executivo forte, mas seria capaz de controlá-lo
(HOBSBAWM, 1994, p. 466).
Na política externa Gorbachev também teve um papel renovador. Diferentemente dos
outros seis chefes soviéticos, optou por uma coexistência pacífica93, isto é, declarou o fim da
corrida armamentista e da “guerra” nuclear. Com esta declaração, estava definitivamente
extinta a possibilidade de uma terceira guerra mundial:
A corrida armamentista, como a guerra nuclear, não terá vencedores. A continuação
dessa corrida no planeta, extensiva também ao espaço, fará com que se acelerem a
acumulação e modernização do arsenal nuclear a níveis ainda inimagináveis. A
situação mundial poderá, de um momento para outro, deixar de depender de
decisões políticas para submeter-se, exclusivamente, à sorte. Todos nós nos vemos
frente a frente com a necessidade de viver em paz, de encontrar outro modo de
pensar e analisar a realidade, pois as atuais condições de vida que enfrentamos são
muito diferentes das que existiam há três ou quatro décadas (GORBACHEV, 1987,
p. 159).
A catástrofe de Chernobyl (1986) e a guerra do Afeganistão exacerbaram
materialmente os aspectos da crise política e econômica vivida pelo país, assim como a
posição do Secretário-Geral diante da população. A URSS já não tinha mais o mesmo poder
de antes e, assim, no último semestre de 1989 o poder comunista deixou de existir em seus
“estados-satélites”: Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia,
Albânia, além da reunificação da Alemanha (República Democrática Alemã) – sem o uso da
força (exceto na Romênia). Isso indicava a perda da hegemonia soviética nesses países e
estimularia a dissolução do império:
Os últimos anos da União Soviética foram uma catástrofe em câmara lenta. A queda
dos satélites europeus em 1989 e a relutante aceitação por Moscou da reunificação
alemã demonstraram o colapso da União Soviética como potência internacional,
mais ainda como superpotência [...]. Em termos internacionais, a URSS era como
um país abrangentemente derrotado, como após uma grande guerra – só que sem
guerra. Apesar disso, manteve as Forças Armadas e o complexo industrial militar da
ex-superpotência, uma situação que impunha severos limites à sua política
(HOBSBAWM, p. 476, 1994).
A transição para as novas condições de gestão da economia foi acompanhada por erros
graves em todas as linhas, e, por essa razão, não se conseguiu o efeito econômico esperado. A
URSS teria de enfrentar a necessidade de sanear a economia e de retornar aos princípios
proclamados, de continuar a desenvolver e aprofundar a reforma econômica:
93
Gorbachev frisou que os países eram interdependentes e destacou a responsabilidade de todos para manter a
integridade do planeta, como o papel fundamental da ONU para garantir a estabilidade e paz mundial.
87
O problema crucial da concepção do mecanismo econômico do futuro é a formação
de um mercado desenvolvido. Só com a sua ajuda é que se pode realmente
subordinar a produção às necessidades dos consumidores e orientá-la pela satisfação
das necessidades sociais. Nas condições de distribuição centralizada dos recursos, as
desproporções são inevitáveis, pois é conservada a ditadura dos produtores sobre os
consumidores. Neste caso, a produção se afasta cada vez mais das necessidades
sociais, torna-se auto-suficiente e trabalha apenas em prol da sua própria ampliação
(AGANBEGUIAN, 1990, p. 61).
Uma economia deficitária não pode ser eficiente por princípio. A situação se agrava
pelo critério da eficiência de uma economia socialista ser a plenitude das necessidades sociais
(não atendidas). A fome e a escassez permaneciam na URSS, a economia estava em ruínas, os
estados satélites abandonaram os regimes comunistas, os países que formavam a URSS
davam sinais de manifestações nacionalistas, a Perestroika havia fracassado94 e a Glasnost
depunha contra o Estado soviético; era nítida a rejeição de Gorbachev pela população
soviética. Para alguns analistas, estava claro que o império deslizaria em breve:
O que ninguém conseguia compreender, no começo de 1989, é que a União
Soviética, seu império, sua ideologia – e, portanto, a própria Guerra Fria – eram um
monte de areia prestes a deslizar. Tudo de que precisou para que isso acontecesse foi
de mais alguns grãos de areia (GADDIS, 2007, p. 230).
Em meados da década de 1990, a situação saiu do controle do partido95. O ano de 1991
marcou a URSS por dois acontecimentos: o primeiro relacionado às eleições por voto popular
direto, sendo Boris Yeltsin eleito o presidente da Rússia; e o segundo relacionado ao Golpe de
Agosto96 para retirada de Gorbachev do cargo de Secretário-Geral do PCUS.
Em decorrência do golpe e de um regime falido, era inevitável que ocorresse a
desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Em dezembro de 1991,
a URSS é formalmente dissolvida:
No comovente discurso, transmitido pela televisão central, em 25 de dezembro de
1991, no qual anunciou que deixava o cargo de presidente da URSS, Gorbachev
expressou aquilo que a história seguramente decidirá a respeito de seu turbulento
período como sétimo chefe da URSS: „A sociedade possui agora liberdade, foi
94
De acordo com Aganbeguian (1990), uma das lições mais importantes da perestroika era a necessidade de
criar um mercado desenvolvido, sem o qual era impossível a resolução dos prementes problemas econômicos.
95
Gorbachev foi pressionado pela população em nome do fim do monopartidarismo, e com isso, o Soviete
Supremo criou o cargo de presidente da URSS, que Gorbachev ocuparia.
96
Na manha de 19 de agosto de 1991, os meios de comunicação anunciaram que um autodenominado Comitê
Estatal de Emergência havia assumido o poder, por motivo de suposta enfermidade do presidente Gorbachev,
que o impossibilitava de exercer as funções de chefe de Estado da URSS. Com exceção do presidente do
Azerbaijão, nenhum presidente das demais repúblicas deu apoio ao Comitê de Emergência. O golpe de agosto
teve como principal consequência a adoção de medidas iniciadas por Yeltsin e seguidas por Gorbachev que
determinaram o fim do PCUS (fechou a sede do PCUS, dissolveu o comitê central e determinou o confisco dos
bens e a cessação da sua existência legal) (GORENDER, 1992, p. 93-95).
88
emancipada política e espiritualmente. E esta é a principal conquista que não
entendemos completamente porque ainda não aprendemos como usar tal liberdade‟
(VOLKOGONOV, p. 472, 2008).
Volkogonov (2008) destaca os motivos pelos quais houve a desintegração: insana
corrida armamentista, na qual a paridade foi atingida há um custo financeiro exorbitante (um
terço de todos os recursos do país estava comprometido por despesas militares); estagnação
econômica que se transformou em característica permanente; natureza unitária da União que
não conseguiria manter por muito tempo o nacionalismo dos países que a compunham; o
sistema que deveria representar em nome do “coletivo” e da “sociedade”, porém, privou o
cidadão de importantes direitos e liberdades; a insensata guerra no Afeganistão que gerou
baixas financeiras, populacionais e agravou o índice de alcoolismo no país; e o monopólio do
poder político.
É preciso frisar o papel do monopólio do poder político como fator fundamental para
a dissolução da URSS, pelas seguintes características: ineficiência na satisfação das
necessidades da população, a ausência de liberdade e direitos, a manipulação dos cidadãos e
dos ideais comunistas (retorno às raízes do leninismo), eleições forjadas e líderes préselecionados, corrupção, incansável “luta” entre o socialismo e o capitalismo e o auxílio
econômico e militar aos países “satélites” da URSS ou aos simpatizantes do regime.
Após a dissolução da URSS, formaram-se ou ressuscitaram os seguintes países:
Estônia, Letônia, Lituânia, Bielo-Rússia, Ucrânia, Moldávia, Geórgia, Azerbaijão,
Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão, Armênia, Cazaquistão, Turcomenistão e Rússia.
De acordo com Hobsbawm (1994), o paradoxo da URSS é que, em sua morte,
ofereceu um dos mais fortes argumentos para a análise de Karl Marx:
Na produção social de seus meios de existência, os seres humanos entram em
relações definidas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção
que correspondem a um estágio definido no desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais [...]. Em determinado estágio de seu desenvolvimento, as forças
produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de
produção existentes ou, o que é apenas uma expressão legal destas, com as relações
de propriedade dentro das quais antes se movimentavam. De formas de
desenvolvimento das forças produtivas, essas relações se transformam em seus
grilhões. Entramos então numa era de revolução social (MARX, 1859, apud
HOBSBAWM, 1994, p. 481).
O resultado da “era da revolução social” foi a destruição do velho sistema. Com o
colapso da URSS, a experiência do socialismo realmente existente chegou ao fim. A
experiência soviética foi tentada como um conjunto específico de respostas à situação
89
particular de um país imenso e atrasado e o fracasso da revolução em outros países deixou a
URSS isolada e cercada por países capitalistas e comprometida em construir o socialismo em
um país onde não havia pleno desenvolvimento do processo produtivo, combate à pobreza e a
desigualdade social.
3.6 O Legado de um Império: A Nova Rússia
O ponto vital, é claro, era a própria Rússia – nitidamente a república que dominava a
União, com a metade da população do país, três quintos do Produto Interno Bruto e
três quartos da massa territorial. Em certo sentido, o país „Rússia‟, como tal, não
existia: tratava-se de um império havia séculos, fosse em realidade ou em aspiração.
Abrangendo 11 fusos horários e 12 povos diferentes, a „Rússia‟ sempre fora grande
demais para ser reduzida a uma única identidade ou a um propósito comum [...]. Ser
russo era ser soviético. Os dois conceitos apresentavam uma complementaridade
natural: na era pós-imperial, a União Soviética protegia o Estado imperial russo,
enquanto a „Rússia‟ emprestava à União Soviética legitimidade histórica e
territorial. Os limites entre „Rússia‟ e „União Soviética‟ eram, portanto, mantidos
(propositadamente) indistintos (JUDT, 2008, p. 646).
Com o desaparecimento da URSS surgiram 15 novos Estados. Neste grupo estava a
Federação russa, superpotência que disputou durante décadas com os Estados Unidos o
predomínio mundial, e por isso, sua herdeira natural. Como herdeira principal do antigo
sistema soviético, a Rússia eliminou as consequências do colapso de um Estado e de um
sistema econômico unificados. Como essas transformações ocorreram ao mesmo tempo,
houve um profundo retrocesso econômico e reformas políticas e econômico-sociais
inconsequentes, levando a uma persistente crise do sistema.
As expectativas com relação ao desmembramento da URSS eram grandes. A
população russa, em geral, considerava que o país avançaria ao se separar das demais
repúblicas socialistas soviéticas, pois estaria livre da responsabilidade de subsidiar economias
atrasadas (ADAM, 2011).
Dentre os impactos do comunismo na Rússia no âmbito econômico, destacam-se não
só a estagnação econômica soviética, como a debilidade do sistema econômico e índices
negativos do PIB em quase todos os anos. Este decréscimo, em grande parte, é decorrente da
perda de laços e comunicação na cadeia produtiva entre as diferentes repúblicas que estavam
se separando:
90
Como se observou com o desmembramento da URSS, houve a desintegração das
cadeias produtivas, em particular com a localização na Ucrânia de segmentos
importantes da indústria pesada e da agricultura moderna. Com isso, os
desequilíbrios estruturais da URSS – baixa produtividade da agricultura em relação
à indústria, baixa produtividade da indústria em relação ao setor exportador – foram
ampliados (MEDEIROS, 2011, p. 29).
Para amenizar o problema, o país passou por uma “terapia de choque” (prezando a
rápida transformação do antigo modelo socialista para uma economia capitalista) por meio de
programas de reformas estruturais (centrados em privatizações97) e de ajustamento econômico
(visando a correção dos desequilíbrios existentes no funcionamento da economia russa). Este
processo de transformação econômica não fortaleceu o sistema, e, por estar debilitado, não
protegeu o país da grave crise econômica em 1998 (POMERANZ, 2000).
Decorrente das privatizações98, no âmbito social, houve o enriquecimento da camada
superior, isto é, de banqueiros e empresários (chamados “oligarcas”99 ou novos russos) e a
redução de renda da grande massa da população, gerando uma desestabilização social:
As reformas ultrarradicais lideradas por Anatoly Chubais e Yegor Gaidar no
governo Yeltsin, centradas na liberalização dos preços, dos mecanismos de controle
e na privatização, resultaram em drástica contração dos setores e das atividades não
exportadoras e na formação de uma nova classe dominante, a dos oligarcas. Esta era
constituída por três grupos: os gerentes das grandes empresas estatais que, na
desmontagem dos grandes órgãos de planejamento e no processo de privatização em
massa, assumiram o seu controle patrimonial; os banqueiros privados, que serviram
de intermediários dos grandes empréstimos internacionais dos anos 1990; os
gângsteres que prosperaram com o colapso das instituições soviéticas. Esses três
grupos tinham duas semelhanças: a sua dependência aos recursos do Estado russo e
a sua recusa em investir a nova riqueza na Rússia (MEDEIROS, 2011, p. 24).
De acordo com Bossen (2000), em amplas regiões da Rússia podia-se constatar a
existência de corrupção, nepotismo, repressão à mídia regional, influência sobre os tribunais,
obstrução à autonomia administrativa municipal e manipulação das eleições. No âmbito
político-social, o governo teria problemas com as mais de 80 unidades da Federação Russa. A
97
A honestidade e lisura dos leilões foram colocadas em dúvida, pois os mesmos foram marcados por
irregularidades, isto é, o valor das empresas e das participações a serem leiloadas foi subavaliado e os bancos
que organizaram os leilões também puderam participar. Assim, grandes empresas foram entregues a um grupo
reduzido de banqueiros, vinculado ao governo (devido ao financiamento da campanha de reeleição de Boris
Yeltsin à Presidência da República) (POMERANZ, 2000).
98
De acordo com Medeiros (2011), a expansão do poder econômico privado se deu em duas ondas de
privatizações. Os “vencedores” da primeira e da segunda onda foram os gerentes, que, com o capital financeiro
privado, se beneficiaram das lucrativas operações de financiamento da dívida do Estado russo, em geral via
empréstimos externos, garantidos por ações de grandes empresas estatais.
99
Os oligarcas são os que se beneficiaram com as privatizações na Rússia. Cada oligarca dominava seu grupo de
empresas associadas; foi em cima dos recursos minerais do país que essa classe se enriqueceu (SEGRILLO,
2000).
91
Rússia, como a antiga URSS, tinha “repúblicas”, “regiões” e “áreas autônomas”, onde a
população tinha um „autogoverno‟, principalmente na área cultural e linguística:
Neste contexto, um enfraquecimento decisivo do Estado central, avantajando-se as
margens de arbítrio dos governos locais e regionais, gerando, mesmo nos grandes
centros urbanos, a formação de verdadeiras milícias privadas no quadro de ascensão
das chamadas máfias e fazendo também emergir o fantasma de um novo processo de
desagregação política (conflitos armados e guerras no Cáucaso, na esteira da
proclamada independência da Tchetchênia, ameaças de secessão de regiões
orientais) (REIS FILHO, 2007, p. 204).
A Rússia também enfrentaria problemas relacionados à nacionalidade, pois a antiga
URSS era um mosaico de nacionalidades, com mais de cem oficialmente registradas e quando
foi dissolvida, nem todos os problemas foram resolvidos.
De acordo com Cervo (2001), a dissolução do império soviético desencadeou na
Rússia um debate sobre sua identidade e papel no “novo” mundo100. A Rússia emergia com
autonomia, sem abandonar os desígnios do império czarista e a influência sobre a Europa
Oriental.
Por essa razão formou a Comunidade dos Estados Independentes (CEI) 101, organização
multilateral que poderia representar um meio institucional legítimo como alternativa aos
países que compunham o Estado soviético. Contudo, a Rússia não seria mais tratada pelos
Estados Unidos e Europa como grande potência (como se imaginava), mas sim como uma
parceira bem menor.
O fato de a Rússia estar enfraquecida favorece os Estados Unidos, que fizeram
parcerias com os antigos estados-membros da URSS, pela importância da região. De acordo
com Adam (2011), a região formada pelo espaço pós-soviético é importante para os Estados
100
Desde o período czarista é possível identificar uma divisão na política russa entre ocidentalistas, eslavófilos e
eurasianistas. Os primeiros consideram a Rússia um país europeu, razão pela qual deve se aproximar do ocidente
e seguir seus exemplos políticos, econômicos e sociais. Os eslavófilos argumentam que sua origem eslava, seu
passado camponês e seu catolicismo ortodoxo tornam a Rússia um país único no mundo, que deve ser o líder dos
povos eslavos. E os eurasianos, entendem que pela sua história e posição geográfica, a Rússia é um país
eurasiano e por isso, deve estreitar laços com os países do oriente e desconfiar dos países do ocidente,
tradicionalmente, causadores de instabilidade e invasões no território russo; tais divisões políticas influenciaram
e divergiram na atuação dos governos de Boris Yeltsin, Vladimir Putin e Dmitri Medvedev (ADAM, 2011, p.
41).
101
Em um primeiro momento, a CEI foi projetada em 8 de dezembro de 1991, tendo como membros a Rússia, a
Ucrânia e Bielo-Rússia para ser a comunidade dos estados eslavos. Contudo, a pedidos de outras repúblicas
soviéticas que tinham declarado suas independências, ela aumentou o quadro e modificou seu nome. Sua
fundação foi no dia 25 de dezembro de 1991, com os signatários: Rússia, Ucrânia, Bielo-Rússia, Cazaquistão,
Quirguistão, Tadjiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão, Moldávia, Azerbaijão e Armênia (ADAM, 2011).
92
Unidos principalmente por ser o elo que une geograficamente e comercialmente a Europa, o
Leste Asiático e o Oriente Médio:
Em seu livro The Grand Chessboard, Brzezinski argumentou que o controle sobre a
Eurásia continuava a ser geopoliticamente fundamental para os Estados Unidos, pois
a grande extensão de terras que, segundo o autor, vai de Lisboa até Vladvostok
(Rússia), concentraria: 75% da população mundial; a maior parte das riquezas
(naturais e em forma de empreendimentos) do planeta; três quartos das reservas
provadas de recursos energéticos; além das seis maiores economias, depois da norteamericana; e dos seis exércitos maiores do mundo, também depois do norteamericano (BRZEZINSKI, 1997, apud ADAM, 2011, p. 44).
Os novos governantes não se contentariam com o status de potência média, pois a
Rússia por décadas foi caracterizada como grande potência. Dessa forma, os líderes passaram
a ter como objetivo a retomada da Rússia como grande potência no sistema internacional e,
como tal, precisaria continuar com sua zona de influência:
Devido ao seu passado de guerras e invasões provenientes de praticamente todos os
pontos cardeais, sedimentou-se na Rússia a necessidade de contar com uma esfera
de proteção que ultrapasse as suas fronteiras, a fim de manter a segurança do país e,
especialmente, do seu núcleo, Moscou. No período soviético, por exemplo, as
demais repúblicas socialistas soviéticas cumpriam esta função, pois mesmo que
fizessem parte de único Estado, a principal república, sem dúvida, era a russa
(TRENIN, 2001, apud ADAM, 2011, p. 47).
Quanto mais extenso for o espaço sob o domínio ou influência de Moscou, maior será
a estabilidade social russa, devido à sensação de que o país está cumprindo com o seu destino
de grande potência. De acordo com a visão do Kremlin, o espaço pós-soviético é a zona de
influência natural da Rússia, conservando o antigo status de “Mãe Rússia”102.
O fato é que após a dissolução do espaço soviético, a Rússia como principal paísmembro, recebe seu legado. Isso gerou uma Rússia instável nos âmbitos político, econômico e
social, que teria de buscar alternativas para seu desenvolvimento e transformação de um
regime socialista para capitalista, além dos problemas com as nacionalidades, os países da
CEI, a corrupção arraigada, o domínio dos oligarcas e os novos governantes.
102
De acordo com Adam (2011), outro aspecto de extrema relevância para Moscou é o fato de que
aproximadamente 73% do gás natural exportado pela Rússia para os consumidores europeus ainda passam por
gasodutos existentes em solos das ex-repúblicas soviéticas (como é o caso da Ucrânia).
93
CONCLUSÃO
A Rússia nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial apresentava debilidades
relacionadas às condições básicas de vida. A população era em sua maioria camponesa e
enfrentava problemas como fome e miséria, o que sustentava o descontentamento com o Czar
Nicolau II.
A Primeira Guerra Mundial acentuou no mundo e, em particular, na Rússia, uma crise
político-social que evidenciou as falhas do sistema capitalista. As revoltas e levantes que
surgiram depois da Primeira Guerra Mundial refletiam a insatisfação da população mundial
sobre o sistema econômico vigente e sobre a dominação de classes que estava subentendida.
Por essa razão, a parte da população que se viu excluída do sistema capitalista, em meio à
miséria e a pobreza, uniu-se e começou a defender o fim do capitalismo.
Foi nesse período que a Revolução de Outubro liderada por Lênin e Trotski tomou
força. Cabe ressaltar que a Rússia era pobre, semifeudal e economicamente atrasada e,
portanto, não tinha o pleno desenvolvimento do processo produtivo, isto é, não possuía as
condições objetivas para uma revolução socialista como previam Marx e Engels. Além disso,
a Revolução Russa não foi liderada pelo proletariado, mas principalmente pelos camponeses
que queriam apenas um pedaço de terra ou pelos grandes proprietários que estavam
descontentes com o governo, sendo que eles não conheciam as características do sistema
socialista.
Em decorrência da Primeira Guerra Mundial e da Guerra Civil, os problemas políticos,
econômicos e sociais foram acentuados na Rússia. Diante da deterioração econômica, o
primeiro governo soviético foi obrigado a implantar o comunismo de guerra, baseado nas
ideias de Marx, entretanto, ocorreu o oposto, isto é, o governo tentou abolir a desigualdade,
mas o fez pela redução dos padrões de vida, tornando universal a pobreza e consequentemente
a insatisfação da população. Com o fim da Guerra Civil e o fracasso do Comunismo de
Guerra, Lênin instituiu a NEP, que traria uma economia mista e estabeleceria o monopólio
político.
Essa medida marcou o governo soviético, pois a partir deste momento, teria um centro
onipotente no partido russo, com direito ilimitado de controle e de decisão, que restringiria o
movimento. Após a Revolução de Outubro e a Guerra Civil, Lênin precisava de estabilidade
política para organizar o país e, por essa razão, adotou essa medida como indiscutível e
necessária. Ocorreu que tal medida não foi desfeita, seja pelo benefício que traria aos
94
membros do partido, por falta de tempo (Lênin faleceu no início de seu governo) ou por
ausência de um líder após o falecimento de Lênin.
O sistema monopartidário favoreceu a ascensão de Stalin e a queda de Trotski. Stálin
como Secretário-Geral proclamou o “início” do socialismo real em 1922, isto é, a formação
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Enquanto Lênin estava vivo, Stalin fingiu ser
um seguidor pleno dos ideais marxista-leninistas, com algumas exceções que quase o
derrubaram de seu cargo (como as questões relacionadas ao seu cargo de Comissariado das
Nacionalidades, Geórgia). Com o falecimento de Lênin, Stalin, com auxílio de Kamenev e
Zinoviev, ascende ao poder e aos poucos se rebela como um líder autoritário, cruel e
manipulador.
A máquina partidária ficou em suas mãos, e isto foi fundamental para conseguir seu
objetivo principal: vencer Trotski e o debate acerca dos rumos da revolução socialista
mundial, através da sua teoria do “socialismo em um só país”, mostrando que a Rússia deveria
passar, em um primeiro momento, por uma revolução burguesa para desenvolver-se social e
industrialmente, e posteriormente, o proletariado assumiria o poder. O socialismo em um só
país não condizia com as ideias de Marx e Engels e a vitória de Stalin foi possível em grande
parte porque a URSS estava em um momento que precisava acreditar em sua “autosuficiência” socialista.
Cabe destacar que após a Revolução de Outubro, a URSS encarou o capitalismo como
inimigo a ser derrubado pela revolução mundial. O fato é que essa revolução não ocorreu e,
portanto, a URSS estava cercada por um mundo capitalista, cuja maioria dos governos queria
impedir o estabelecimento do sistema socialista, senão eliminá-lo assim que possível. Por essa
razão, a URSS foi necessariamente obrigada a um desenvolvimento autossuficiente e isolada
do resto da economia mundial.
O governo do “czar vermelho” também foi marcado pela incessante fome e miséria da
população, que ainda eram justificadas pela Primeira Guerra Mundial e Guerra Civil. Para
melhorar as condições de vida da população, utilizou-se dos famosos “Planos Quinquenais”
que consistiam em processos de industrialização acelerada e planificação da economia;
políticas que tinham sido propostas por Trotski. Com suas “contribuições teóricas”, Stálin
arrancou a essência humanística do socialismo, substituindo-a pelo socialismo sacrificial a
partir da eliminação de seus opositores, coletivização forçada e implantando a era do terror.
Com a morte de Lênin e de Stalin estava claro que os sucessores não teriam destaque.
A queda do “czar vermelho” reafirmou a inexistência da liderança coletiva na URSS, ou seja,
o sistema monopartidário e o monopólio de poder continuaram sendo uma ameaça à
95
população e à economia soviéticas. Além disso, a chefia do Kremlin ainda acreditava que o
sistema se apoiava em três grandes pilares: o partido, a ideologia bolchevique e o grande
aparato repressor. Portanto, a disputa pelo cargo de primeiro Secretário- Geral ocorreu de
forma antidemocrática, tal como todos os outros chefes soviéticos. Kruschev ascendeu ao
poder condenando “o culto à personalidade” de Stalin a partir de um fenômeno que ficou
conhecido como desestalinização, anunciando a volta aos ideais leninistas como forma de
restaurar a vida interna do partido e reparar o dano causado pela “ilegalidade revolucionária”,
auxiliando o país à volta da “democracia socialista soviética”. De acordo com alguns
estudiosos, a desestalinização deveria ter sido feita pelos verdadeiros antistalinistas e, por essa
razão, a atitude de Kruschev foi julgada como hipócrita.
A contribuição de Kruschev se deu pela eliminação dos campos de trabalho forçado
(Gulag) e do complexo econômico industrial (MVD). No entanto, fracassou em suas
reformas, principalmente com o sistema agrícola soviético que estava debilitado e assim
continuou por décadas. O fracasso foi atribuído ao governo anterior (ato que se tornaria
constante entre os chefes) e depois da divulgação dos crimes de Stalin e do insucesso em suas
medidas, o povo sentiu a debilidade do regime.
A debilidade somada à insatisfação dos demais membros do partido contribuiu para a
queda de Kruschev, primeiro chefe soviético que não permaneceu em seu cargo até sua morte.
Brejnev ficou conhecido como um marionete que era manipulado pelos influentes membros
do Politburo. Ademais, seu governo foi marcado por uma profunda estagnação ligada aos
abusivos esforços militares para alcançar os Estados Unidos, o que comprometeu as condições
básicas de vida da população. Neste período, a apatia do povo cresceu, a corrupção floresceu
nos mais diversos níveis, a taxa de crescimento do país era nula e a agricultura estava
“morta”. Brejnev proclamava o socialismo, anunciando os ideais leninistas e uma sociedade
“sem classes” e igualitária, no entanto, havia nítidas distorções quanto às condições de vida da
população e quanto aos privilégios dos membros do partido, forjando uma situação razoável
inexistente.
Com a morte de Brejnev, Andropov assumiu o governo graças à influência que
possuía junto aos demais membros do partido. Procurou estabelecer reformas, entretanto, os
erros permaneciam: o primeiro relacionado ao aparato partidário (centralismo democrático), o
segundo relacionado aos pressupostos do marxismo-leninismo e o terceiro relacionado à
necessidade de reformas abrangentes e radicais (que poderiam prejudicar ou colocar em risco
o partido). O governo de Chernenko e os últimos anos do Império Soviético marcaram o
distanciamento da política, da moralidade e dos fundamentos do marxismo-leninismo, isto é,
96
tudo o que servia à causa do “socialismo” era considerado justo. Ademais, seu governo
refletiu-se no aprofundamento da crise econômica, no anacronismo do sistema político e no
descontentamento da população, o que refletia a nítida degeneração do sistema.
Gorbachev assumiu o poder com uma situação bem delicada na URSS. O último líder
soviético era um personagem totalmente diferente dos antigos chefes soviéticos, por
representar a “nova classe média”, por ser o mais novo entre os antigos líderes ou por não ter
sua carreira marcada pelos anos stalinistas. O momento em que Gorbachev governou não
tinha mais como forjar a realidade; a deterioração da economia começou a afetar o Estado,
sua capacidade militar e principalmente, o domínio do partido sobre a população.
Diante desta situação, Gorbachev tentou reformar o sistema a partir da Perestroika
(reconstrução) e da Glasnost (transparência). Ocorre que o sistema em sua base, não
suportaria reformas econômicas e sociais profundas e, portanto, deslizaria. Cabe destacar a
“semelhança” em uma ação de Lênin e Gorbachev. De acordo com o último líder da URSS, as
dificuldades e problemas dos anos 1970 e 1980 não significaram nenhum tipo de crise do
socialismo como sistema político e social, mas era o resultado da inconsistência na aplicação
de seus princípios, de afastamento e até de distorções. Isto é, para os líderes, o sistema nunca
esteve em crise na URSS, a culpa sempre foi atribuída aos imperialistas ou aos antigos líderes
soviéticos que eram selecionados pelos membros do partido. E os mesmos membros que
selecionavam, excluíam e, por isso, Gorbachev foi “deposto” de seu cargo.
A dissolução da URSS teve, como fator fundamental, o monopólio do poder político.
O partido mostrou-se incapaz de cumprir o que tinha prometido na Revolução de Outubro,
isto é, satisfazer as necessidades da população, garantir a liberdade e os direitos de sua
população. Manipulou o povo soviético, fraudou os verdadeiros ideais socialistas (retorno às
raízes do leninismo), manteve-se por eleições antidemocráticas e corruptas (com líderes préselecionados) e auxiliou economicamente e militarmente os países “satélites” da URSS e os
simpatizantes do regime, enquanto o povo “pagava a conta”.
Há grande dificuldade em perceber o que as sete décadas do Império Soviético tiveram
de socialismo e o quanto isso “beneficiou” os países membros. A queda do “gigante dos pés
de barro” abalou todos os países que faziam parte do bloco, mas, sem dúvida, a Rússia foi a
principal herdeira do Império.
O modelo soviético foi uma alternativa ao modelo ultrapassado, o capitalismo, mas
não seguiu os verdadeiros ideais marxista-leninistas e de certa forma, isso também contribuiu
para a derrocada do sistema soviético. Portanto, minha hipótese não foi refutada, o que não
quer dizer que o assunto esteja esgotado.
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O objetivo do trabalho foi demonstrar como a dissolução da URSS alterou o
ressurgimento da Federação Russa, isto é, como o passado influenciou o presente e o futuro.
Como herdeira principal do antigo sistema soviético, a Rússia teve de eliminar as
consequências do colapso de um Estado e de um sistema econômico unificados. Logo em seu
ressurgimento, a população acreditava que a Rússia avançaria ao se separar das demais
repúblicas, pois deixaria de subsidiar as demais repúblicas socialistas, entretanto, ocorreu o
inverso.
O fato é que a Rússia nos anos soviéticos era cercada pelos demais países que
compunham a URSS e, de algum modo, aspira continuar com esse “espaço vital”. Quanto
mais extenso for o espaço sob o domínio ou a influência de Moscou, maior será a estabilidade
social russa. O espaço pós-soviético é a zona de influência natural da “Mãe Rússia”.
O ressurgimento da Rússia representa a nova ordem do sistema internacional, em que
os Estados Unidos ascendem como única superpotência. O “novo” mundo traz novos desafios
aos países tanto internamente quanto externamente, e prova que os países precisam unir-se em
determinados assuntos ou problemas que têm em comum. Ao mesmo tempo, a Rússia encara
um debate interno a respeito de sua identidade e seu papel no novo mundo, isto é, a respeito
destas alianças fundamentais. O colapso da URSS levou a Rússia de superpotência à potência
emergente, de um Império soviético a um governo parlamentar, mas sem dúvida, por bastante
tempo será vista, principalmente pelos países do Leste Europeu, como a continuação do
antigo ou como um “novo Império”.
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