FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO FACULDADE DE ECONOMIA ESTADO, SOCIALISMO E REVOLUÇÃO: DO SONHO SOCIALISTA À RÚSSIA DOS NOVOS CZARES. MAYRA COAN LAGO Monografia de Conclusão de Curso apresentada à Faculdade de Economia para obtenção do título de graduação em Relações Internacionais, sob orientação do Prof. Antonio Sérgio Bichir. São Paulo, 2011 LAGO, Mayra C. ESTADO, SOCIALISMO E REVOLUÇÃO: DO SONHO SOCIALISTA À RÚSSIA DOS NOVOS CZARES. São Paulo, FAAP, 2011, 102p. (Monografia Apresentada ao Curso de Graduação em Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado) Palavras-Chave: Socialismo – URSS – Rússia. AGRADECIMENTOS Ao excelente professor e orientador, Antonio Sergio Bichir, que durante um ano inteiro de trabalho esteve à disposição para esclarecimentos e apoio. Agradeço pela contribuição com material bibliográfico, com suas esclarecedoras orientações e tempo dedicado. À professora Helena Margarido Moreira, que também contribuiu com a realização deste trabalho, com importante material bibliográfico, com o qual pude aprofundar meus conhecimentos referentes à Rússia atual e enriquecer o capítulo três. Aos professores da Fundação Armando Alvares Penteado que, de alguma forma, auxiliaram a minha formação e desenvolvimento pessoal e profissional. Aos meus pais e à minha irmã que me proporcionaram a oportunidade de estudar em uma universidade reconhecida por seu ensino de qualidade e tradição. Agradeço também por sempre apoiarem, incentivarem, acreditarem em mim e também por mostrarem que, com esforço e dedicação, tudo é possível. SUMÁRIO RESUMO INTRODUÇÃO 1 1 A CONSTRUÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO: A RÚSSIA DE LÊNIN 4 1.1 A Kerenschina 4 1.2 A Construção do Socialismo 14 1.3 O Sistema de um Único Partido 26 2 A DESTRUIÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO: A RÚSSIA DE STALIN 28 2.1 Da Obscuridade ao Triunvirato 28 2.2 A “Revolução Permanente” versus “Socialismo num só País” 40 2.3 A Retomada do “Império”: O Governo de Josef Stalin 45 2.4 A Segunda Grande Guerra e a Queda do “Czar Vermelho” 57 3 A RECONSTRUÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO 63 3.1 O “Desestalinizador” 63 3.2 O Marionete Estagnado 69 3.3 O “Chefe” do KGB 73 3.4 O Favorito de Brejnev 75 3.5 O Último Leninista 78 3.6 O Legado de um Império: A Nova Rússia 89 CONCLUSÃO 93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 98 RESUMO Esta monografia busca estabelecer uma relação entre o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os impactos políticos, econômicos e sociais na Federação Russa. A Revolução de Outubro instaurou na Rússia um governo de caráter socialista, entretanto, após a morte de Lênin houve uma interrupção do modelo proposto. Por isso, também será feita uma reflexão a respeito do socialismo marxistaleninista e do “socialismo sacrificial” após a morte de Lênin, por Stalin, Kruschev, Brejnev, Andropov, Chernenko e Gorbachev. 1 INTRODUÇÃO O tema deste trabalho é o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e seus impactos políticos, econômicos e sociais na Federação Russa. Essa pesquisa se justifica pela importância do tema para se entender como os fatores político, econômico e social influenciaram a Rússia. O debate sobre a dissolução da URSS é um assunto estudado de forma vasta, por diversos autores, no entanto, procurou-se estabelecer uma relação entre o fim da URSS e a “nova” Rússia e, por esse motivo, é um tema intrigante para todos os interessados na história da URSS e da Rússia, na revolução socialista e na história políticoeconômica mundial. Assim, o objetivo deste estudo é demonstrar como a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) alterou a “formação” da Rússia, no contexto atual. Além disso, será abordada a história da URSS desde a Revolução de Outubro, com o intuito de obter uma reflexão sobre o comunismo proposto nas bases teóricas do marxismo-leninismo e o que foi aplicado por Stalin e os demais líderes soviéticos. Em geral, dois acontecimentos marcaram a história do século XX: a Revolução Russa que possibilitou a implantação do socialismo real a partir da proclamação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, tornando-o uma alternativa ao capitalismo ultrapassado, e a derrocada desse socialismo. Tais acontecimentos estão intimamente ligados. Após a Revolução de Outubro e a Guerra Civil, Lênin instituiu o sistema do partido único, pois precisava de estabilidade para governar. O sistema unipartidário favoreceu a corrupção e a ascensão de diversos líderes de forma antidemocrática que moldaram o socialismo a seu favor, como Stalin (conhecido como coveiro do socialismo), Kruschev, Brejnev, Andropov, Chernenko e Gorbachev. Acrescentase aos problemas políticos, os problemas econômicos e sociais, isto é, a URSS alcançou o status de grande potência, mas com altos custos para a população, que nunca teve acesso ao que lhe foi prometido no início: terra, alimento, paz e liberdade. Como consequência de sete décadas de socialismo, com a exploração da população, altos gastos com os demais países socialistas, entre outros fatores, assistiu-se ao enfraquecimento do regime e ao seu inevitável colapso. Sabe-se, ainda, que todos os países do bloco soviético sofreram grande impacto com a dissolução da URSS em 1991. Assim, refletindo-se sobre o “socialismo real” que foi proposto 2 na URSS, sobre o papel dos sete líderes e atuação da grande potência no âmbito doméstico e global, de que forma a dissolução do sistema soviético alterou o ressurgimento da Federação Russa? Como hipótese, destaca-se: o modelo soviético como uma alternativa ao modelo ultrapassado, o capitalismo, mas não o “real modelo socialista” que foi proposto nas bases do marxismo-leninismo. O fato é que o sistema soviético desabou e a Rússia ficou como principal herdeira do antigo regime. O país representava a maior parte do território, da economia e da população soviética. Para o estudo sobre a evolução política do regime soviético, esta monografia pode ser dividida em três grandes capítulos. O primeiro capítulo fará uma tentativa para demonstrar quais foram as consequências da Primeira Guerra Mundial para a Rússia e como as condições econômico-sociais motivaram a revolução que derrubou o governo czarista e, mais tarde, implantou o governo bolchevique nos moldes do comunismo proposto por Lênin. Para o estudo, serão utilizadas fontes primárias como Lênin e Trotski que defendiam a revolução proletária na Rússia e mostraram como as contradições capitalistas encontravam-se no país. Fontes secundárias como Deutscher e Hobsbawm defendem a revolução proletária em países mais avançados, pois a Rússia não tinha as condições necessárias para realizá-la. Após a Revolução de Fevereiro, mostra-se a indignação dos líderes da Revolução de Outubro, com relação ao governo instituído e aos seus membros. Com a Revolução de Outubro, em seguida, utilizam-se as fontes primárias e secundárias, mas com outro enfoque, demonstrando a instalação do governo provisório, a Guerra Civil, as condições econômicas necessárias após tais acontecimentos e, por fim, o debate acerca de um único partido. O segundo capítulo busca descrever como se deu a ascensão do “czar” vermelho como sucessor de Lênin e como Stalin moldou o comunismo a seu favor. Também serão abordadas discussões a respeito do debate acerca da revolução socialista (socialismo em um só país e revolução permanente), a vitória de Stálin sobre Trotsky, os anos do Terror e as medidas econômicas que possibilitaram a vitória da URSS na Segunda Guerra Mundial. Para este estudo, também serão utilizadas as fontes primárias como Lênin e Trotski que, após um tempo, começaram a alertar o partido sobre os atos de Stalin, e fontes secundárias como Deutscher e Volkogonov que descrevem como se deu a ascensão do “czar vermelho”. Além disso, serão utilizadas fontes primárias acerca do debate dos rumos da URSS, marcados pela dualidade entre Trotski e Stálin. O primeiro liderou a Revolução Permanente, isto é, a necessidade de outros países se aliarem à URSS, para alcançar o sucesso da revolução socialista mundial e o segundo liderou a teoria do Socialismo em um só país, em que a URSS 3 conseguiria atingir a revolução proletária mundial sem o auxílio de outros países. Também são utilizados autores secundários como Deutscher, Hobsbawm, Volkogonov e Judt para a era do extermínio, posições econômicas, Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria. O terceiro capítulo tem como objetivo demonstrar o forte domínio do partido da URSS nos âmbitos político, econômico e social, a ascensão dos líderes soviéticos, o enfraquecimento do regime e a causa do marxismo-leninismo. Após aproximadamente setenta anos da Revolução de Outubro, a população e os próprios líderes soviéticos desiludiram-se com o regime e a ideologia socialista, recordavam Lênin e seus ideais para ter o apoio da população e permanecer em seus cargos. É nesse período que o sistema soviético começou a sucumbir, sendo a queda da URSS algo inevitável. Para o estudo, serão utilizadas principalmente fontes secundárias como Deutscher que trata do fenômeno da desestalinização, a relação entre Stalin e Kruschev, a queda de Kruschev e o início da estagnação de Brejnev. Volkogonov comenta sobre todos os chefes soviéticos, mas traz um enfoque mais pessimista quanto ao papel dos sete chefes: a corrupção, a estagnação econômica e o enfraquecimento do regime. Judt trata do período da Guerra Fria nos anos em que Brejnev e Andropov governaram, e sobre suas decisões. Por fim, Gorbachev foi utilizado como fonte primária para tratar da Perestroika, da Glasnost e dos últimos anos do sistema soviético. Em contraposição a Gorbachev, utiliza-se de Mandel e Hobsbawm que defendem a idéia de que este regime não tinha “conserto” e por isso, deveria ser eliminado. Hobsbawm faz uma reflexão sobre o socialismo idealizado pelo marxismo-leninismo e conclui que o socialismo praticado na URSS estava em desacordo com o socialismo proposto e, por isso, teve entraves e foi dissolvido. Tal acontecimento abalou todos os países que faziam parte do bloco, mas, sem dúvida, a Rússia foi a principal herdeira do império. Por essa razão, a parte final do terceiro capítulo é composta por autores secundários como Adam, Pomeranz, Medeiros, entre outros, que tratam dos entraves da Rússia pós-soviética e dos debates internos a respeito da sua identidade e papel no “novo” mundo. 4 1 A CONSTRUÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO: A RÚSSIA DE LÊNIN Obrigados a unir-se em torno do Czar para defender a terra natal, mantidos prisioneiros pelo espaço imenso da planície, os russos ignoraram por longo tempo a revolta contra a ordem estabelecida. Assim, diferentemente dos povos do Ocidente, não transformaram seu destino coletivo impondo ao Estado concessões e reformas: só o Czar decidia. A sociedade russa desejava afirmar-se, mas era incapaz disso e não conseguia nem mesmo transformar-se. Não lhe restava outra saída senão contemplar o poder, adorando-o ou odiando-o (FERRO, 1967, p. 14). Neste capítulo, serão estudados os antecedentes da Insurreição de Outubro, isto é, as condições econômico-sociais que motivaram a Revolução Russa de 1917, que derrubou o governo czarista. Também serão pesquisados o primeiro governo soviético, o comunismo que foi proposto por Lênin, os debates e discussões internas no Partido e o fortalecimento do mesmo. 1.1 A Kerenschina A revolução é uma prova de força aberta entre as forças sociais, na luta pelo poder. O Estado não tem fim em si mesmo. É simplesmente um instrumento de trabalho nas mãos da força social dominante. Como qualquer instrumento, tem seus mecanismos motrizes de transmissão e execução. A força motriz é o interesse de classe, cujo mecanismo consiste na agitação, na imprensa, na propaganda de igreja, na escola, no partido; a manifestação de rua, o pedido e a revolta. O mecanismo de transmissão é a organização legislativa dos interesses de casta, dinastia, camada ou classe, sob o signo da vontade divina (absolutismo) ou nacional (parlamentarismo). O mecanismo executor finalmente é a administração, com a polícia, os tribunais, os cárceres e o exército. O Estado não tem fim em si mesmo, mas é a mais perfeita organização média, desorganização e reorganização das relações sociais. De acordo com as mãos que se encontram, pode ser a alavanca para uma revolução profunda ou o instrumento de uma paralização organizada (TROTSKI, 1971, p.171, tradução nossa). De acordo com Kennedy (1989), o império czarista, pelo seu tamanho e população, também estava no clube seleto das “potências mundiais” no século XX. Mesmo nesse clube, a Rússia nas décadas anteriores a 1914 poderia ser considerada poderosa e fraca: poderosa se se considerasse a alta produção de aço, o segundo maior produtor de petróleo do mundo, indústria têxtil crescendo, fábricas enormes empregando milhares de trabalhadores em cidades grandes; e fraca se fosse considerada a proporção de trabalhadores nas fábricas (apenas 1,75%) com o restante da população da Rússia: a maioria da sociedade era composta de 5 camponeses1; problemas com a redistribuição de terras2; e a maior dívida externa do mundo decorrente de uma economia imatura3. De acordo com Laqueur (1994), grande parte da população não tinha acesso às condições básicas de vida, ocasionando graves problemas sociais: ausência de esgoto, fome, miséria, exploração do trabalho, terríveis condições de moradia, altos índices de embriaguez e a mais alta taxa de mortalidade da Europa. Somavam-se a essa situação os altos gastos com o exército, que eram os maiores da Europa no século XIX e de qualquer outra nação antes da Primeira Guerra Mundial, elevando ainda mais o descontentamento da população: Essas condições, a disciplina imposta dentro das fábricas, e a falta de qualquer melhoria real apreciável nos padrões de vida, provocavam um ressentimento irritado contra o sistema que, por sua vez, oferecia o terreno ideal para a exploração dos populistas, dos bolcheviques, dos anarco-sindicalistas, dos radicais – na verdade, de qualquer um que (apesar da censura) defendesse mudanças drásticas (KENNEDY, 1989, p. 230). O descontentamento se disseminava por toda a parte, provocando a incidência de greves, protestos em massa, prisões pela polícia e assassinatos que cresciam em ritmo alarmante. Essa situação favorecia os revolucionários: Imobilizados em sua condição, os trabalhadores da cidade ou do campo eram animados por uma consciência revolucionária mais viva que nos outros países. Na luta contra o czarismo, dispunham de um exército de reserva não desprezível, os quarenta milhões de alógenos, distribuídos em torno da grande Rússia. A ausência dos laços comuns, entretanto, os mantinha divididos, como divididos estavam operários, camponeses e burgueses (FERRO, 1967, p.16). Em seu livro Como iludir o povo (1974), Lênin deixara claro que os trabalhadores não podiam enganar-se com falsas promessas e discursos sobre liberdade e igualdade. Era preciso reconhecer os verdadeiros aliados e unir-se para atingir o objetivo final: a destruição do capitalismo. Trotski notou que a recuperação do czarismo acontecia em pouco espaço de tempo entre as revoluções e apesar de não ter papel ativo nesse período, insistiu tanto quanto 1 Um número considerável de pessoas ganhava a vida na agricultura ou vivia em aldeias e comunidades, o que representava 80% da população. Mesmo em Moscou, (segunda capital e cidade espiritual do Império) era mantido um típico ar rural, com suas construções de madeira e maciça presença camponesa (REIS FILHO, 2007). 2 Havia o efeito de posse comunal e o hábito medieval de plantar em faixas de terreno. Para aumentar o espaço, era necessário ter mais filhos e isso acarretava outro problema, mesmo a produção agrícola aumentando, não era suficiente considerando a quantidade da população. 3 A Rússia não tinha nenhuma indústria significativa (somente têxteis e de processamento de alimentos), nenhuma infraestrutura de transportes. Suas tarifas eram as mais altas da Europa para proteger as indústrias que eram ineficientes e instáveis – e, mesmo assim, o influxo de produtos manufaturados importados crescia a cada aumento do orçamento de defesa e da construção de estradas de ferro. 6 Lênin na necessidade de o movimento reconstruir sua organização clandestina e que ativistas se infiltrassem em todas as instituições legais, desde o Duma até os sindicatos, pregando suas opiniões. Os problemas com o povo russo e ideais revolucionários sobrecarregavam o exército que já estava sufocando as ressentidas minorias étnicas: poloneses, finlandeses, lituanos, georgianos, estonianos, armênios que buscavam preservar as concessões sobre a russificação obtidas na fase de debilidade do regime, nos anos de 1905-064. A Primeira Guerra Imperialista mundial assolara a Europa, provocando o fim súbito da fase áurea do capitalismo liberal, do socialismo reformista e do parlamentarismo, que tinham surgido juntos no quase meio século de paz. Duas gerações de europeus cresceram com a perspectiva otimista de que o homem progredira o suficiente para assegurar o domínio sobre a natureza e conseguiria modificar e aperfeiçoar seu ambiente social através da discussão, conciliação e voto. Além disso, a guerra era uma relíquia do passado bárbaro ao qual a humanidade não voltaria, assim como, a acumulação de riqueza que esteve presente na Europa (como um todo) foi tão impressionante e rápida que parecia garantir a prosperidade crescente de todas as classes da sociedade, afastando as possibilidades de conflito social violento. Estas idéias estavam relacionadas ao movimento revolucionário, na Segunda Internacional5 (DEUTSCHER, 1968). Lênin queria que a guerra gerasse a revolução e, através do movimento das massas, difundiria as ideias e opiniões entre os trabalhadores e as forças armadas. Caracterizava-se o momento ideal para a revolução proletária: Os falatórios de toda espécie, segundo os quais as condições históricas não estariam "maduras" para o socialismo, são apenas produto da ignorância ou de um engano consciente. As premissas objetivas da revolução proletária não estão somente maduras: elas começam a apodrecer. Sem vitória da revolução socialista no próximo período histórico, toda a civilização humana está ameaçada de ser conduzida a uma catástrofe. Tudo depende do proletariado, ou seja, antes de mais nada, de sua vanguarda revolucionária. A crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária (TROTSKI, 1936, p.1). 4 A Revolução de 1905-06 marcou as divergências entre mencheviques e bolcheviques, tendo repercutido mundialmente, em razão das greves de massa, do surgimento da forma soviética de organização, do movimento camponês pela terra, revoltas dos marinheiros e participação das nacionalidades não russas. O fato é que esse processo questionou princípios, abalou certezas, inovou questões, organizou o Partido Social Democrata e impôs mudanças, que foram agravadas em 1917. É considerado pelos bolcheviques o “Ensaio Geral” para a Revolução de 1917 (FERRO, 1967; REIS FILHO, 2007). 5 As palavras de ordem e os símbolos falavam da solidariedade internacional, dos trabalhadores e da irreconciliável luta de classe, culminando na derrubada do governo burguês. Na prática, os partidos deixaram de ter muita coisa em comum com essas tradições. A luta de classe irreconciliável daria lugar às negociações pacíficas e ao reformismo parlamentar (DEUTSCHER, 1968). 7 Ambos concordavam que o medo da derrota nacional não deveria impedir os socialistas de cumprirem seu dever, na esperança de que os revolucionários alemães fizessem o mesmo, de modo que, no fim, todos os governos imperialistas seriam dominados pelos esforços conjuntos dos internacionalistas; a derrota de qualquer país seria apenas um incidente no avanço da revolução, que deveria propagar-se pelos países. A Primeira Guerra Mundial ocasionou perdas irreparáveis em todos os aspectos (econômicos, políticos e sociais) e a Rússia que já era um barril de pólvora, não demoraria a explodir, embora poucos enxergassem o que estava claro: Em 1914, ninguém suspeitava que somente Lenin via claro ao afirmar que a guerra fora o mais belo presente de Nicolau II à Revolução. Julgava-se ao contrário que a abertura das hostilidades era o dobre de finados do movimento revolucionário. Pois, à exceção de alguns bolcheviques, não tinham chefes e tropas corrido para o inimigo, como todo mundo? Além disso, os revolucionários russos estavam tão divididos entre si desde o revés de 1905 que ninguém mais acreditava capazes de atingir seu fim (FERRO, 1967, p.15). O povo russo estava imobilizado em sua condição, os trabalhadores da cidade e do campo eram animados pelos ideais revolucionários (mais vivos do que em outros países) que após 1905-06, e somado ao desdém que recebiam, passou a nutrir tal ódio contra seus dirigentes que derrubar o czar era um dever tão sagrado quanto a defesa da pátria. De acordo com Hobsbawm (1994), as revoltas e levantes que surgiram depois da Primeira Guerra Mundial, refletiam a desilusão da população mundial sobre o sistema econômico e sobre a dominação de classes que estava subentendida. A parte da população que se viu excluída deste sistema, em meio à miséria e à pobreza, uniu-se e começou a defender a mudança do sistema vigente e o fim do capitalismo. Foi nesse período que as ideias socialistas tomaram força e se propagaram como alternativa a todos os problemas econômicos enfrentados: Parece óbvio que o velho mundo estava condenado. A velha sociedade, a velha economia, os velhos sistemas políticos tinham, como diz o provérbio chinês, “perdido o mandato do céu”. A humanidade estava à espera de uma alternativa. Essa alternativa era conhecida em 1914, os partidos socialistas, com o apoio das classes trabalhadoras em expansão de seus países, e inspirados pela crença na inevitabilidade da história de sua vitória, representavam essa alternativa na maioria dos Estados da Europa (HOBSBAWM, 1994, p.62). A alternativa que pretendia dar ao mundo esse sinal era a revolução socialista, que tinha as condições ideais para ocorrer na Rússia desde o Ensaio Geral de 1905-06 liderado por Trotski. No entanto, há algumas considerações de autores como Hobsbawm (1994) e 8 Deutscher (1967) com relação à possibilidade de o país de contraste, como a Rússia, conseguir passar por uma revolução e principalmente de uma situação capitalista para socialista. Na realidade, a Rússia não tinha pleno desenvolvimento do processo produtivo6 e então teria de sofrer por isso, por ser um país subdesenvolvido: E, no entanto, com exceção dos românticos que viam uma estrada reta levando das práticas coletivas da comunidade aldeã russa a um futuro socialista, todos tinham como igualmente certo que uma revolução da Rússia não podia e não seria socialista. As condições para uma tal transformação simplesmente não estavam presentes num país camponês que era sinônimo de pobreza, ignorância e atraso [...] (HOBSBAWM, 1994, p. 64). Lênin e Trotski acreditavam que a Rússia era um país atrasado, porém, desde o Ensaio Geral de 1905, declaravam que o país tinha dado um exemplo da atividade espontânea das massas oprimidas, mostrando pela primeira vez a combinação da greve econômica com a greve política e, passados esses anos, com a lição da derrota, estariam preparados para o êxito do movimento. Sem esperar pelos outros, escreveu Lênin, a revolução deveria começar na Rússia, para incentivar as outras nações da Europa a seguirem o mesmo caminho da revolução para combater a desigualdade do desenvolvimento econômico e político, principal característica do capitalismo (DEUTSCHER, 1967). Era inevitável que ocorresse a Revolução na Rússia, porque no país se encontrava o ponto de convergência das contradições do imperialismo que se manifestava mais do que em outros países pelo seu caráter escandaloso e intolerável, não só porque a Rússia era o principal ponto de apoio do imperialismo no Ocidente, mas também, na Rússia existia uma força real capaz de resolver as contradições do imperialismo pela via revolucionária. E, assim, o país se converteu no berço do leninismo e o chefe dos comunistas russos, Lênin, no seu criador (STALIN, 1975). A real intenção era que a Revolução socialista em sua forma pura ocorresse em países industrialmente avançados, mas como isso não foi possível, Lênin e Trotski acreditavam que a Rússia seria o primeiro passo para que os outros países (principalmente os industrializados) 6 O que é indispensável para o socialismo, pois não pode ser desenvolvido sob a necessidade e a pobreza. Enquanto existirem, todas as aspirações do regime serão impotentes porque a escassez gera desigualdade, e onde não há bastante comida, moradia e roupa para todos; uma minoria acaba por se apoderar de tudo que pode; enquanto o resto passa fome, veste-se de andrajos e se aglomera em barracos. Com essa situação, o socialismo torna-se um castelo no ar (DEUTSCHER, 1967). 9 começassem a seguir o mesmo modelo e assim ocorreria a revolução socialista mundial7: Uma ilustração clara: a grande guerra, produto das contradições do imperialismo mundial, arrastou em seu torvelinho países que se achavam em diferentes etapas de desenvolvimento e impôs a todos as mesmas exigências. Resulta, pois, que os encargos da guerra se tornariam mais insuportáveis, particularmente, para os países mais atrasados. A Rússia foi o primeiro que se viu obrigado a ceder terreno. Mas, para sair da guerra, o povo precisava abater as classes dominantes. Assim foi como a cadeia se quebrou (TROTSKI, 1967, p. 138). O conjunto dos fatores internos e externos levou a Rússia à Revolução de 1917, que é considerada por Hobsbawm (1994) a filha da guerra no século XX. A Revolução de Fevereiro8 começou onde havia parado em 1905, mas seu ponto de partida ficou para trás: 9 Em 2 de março, o Czar abdicou em favor do irmão, o Grão-Duque Miguel, que renunciou no dia seguinte. O príncipe Lvov assumiu o poder e formou um governo provisório. Mandou prender os ministros do governo anterior e nomeou o Prof. Miliukov, como Ministro do Exterior, e o deputado esquerdista Kerensky, como Ministro da Justiça (DEUTSCHER, 1968). O Governo Provisório iniciou suas atividades em meio ao entusiasmo e expectativa populares. Além disso, contava com o apoio dos Sovietes de Petersburgo, organização criada dias antes da abdicação do czar, com a função de impossibilitar o governo de impor qualquer decisão sem o seu apoio (o governo dependia dos sovietes, embora ambos não tivessem a consciência do fato). Os cargos de que o governo provisório dispunha eram duvidosos já que deviam sua existência a antigos integrantes da última Duma, o semiparlamento desacreditado que já tinha sido dissolvido pelo czar (DEUTSCHER, 1970). Trotski não concordou com a composição do Governo Provisório do Príncipe Lvov e com seu pedido de “reconstituição da ordem”. A revolução se iniciava e ninguém poderia contê-la: Não era uma vergonha, exclamava ele nas reuniões, que o primeiro Ministro do Exterior da revolução fosse Miliukov, que chamara a Bandeira Vermelha de trapo 7 Fundamental para que o modelo na Rússia desse certo, ou então, estaria destinado a perecer, de forma que o país ficaria isolado em um mundo hostil e sem o apoio das grandes potências. Na mente de Lênin e de seus camaradas, era praticamente uma batalha na “campanha” para alcançar a vitória dos bolcheviques em escala global, ampla e dificilmente justificável, a não ser como estava (HOBSBAWM, 1994; REIS FILHO, 2007). 8 As datas obedecem ao calendário juliano utilizado na Rússia – há uma diferença de 13 dias em relação ao calendário gregoriano, introduzido por uma reforma papal no seio do cristianismo e adotado pelo mundo capitalista. Desse modo, a Insurreição de 24 de Outubro realizou-se em 7 de novembro para os europeus ocidentais – o governo soviético adaptou, em fevereiro de 1918, o calendário e as diferenças desapareceram (REIS FILHO, 2007). 9 O ponto de partida seria retomado por Lênin em suas Teses de Abril, dizendo que não era para se aceitar uma República Parlamentar, era preciso uma República dos Sovietes de deputados operários, trabalhadores agrícolas e operários; não podiam acreditar ou apoiar promessas falsas, já que o novo governo continha membros do antigo (continuava sendo um governo capitalista). 10 vermelho, e seu primeiro Ministro de Guerra fosse Guchkov, que servira a Stolipin? (DEUTSCHER, 1967, p.264). Além disso, acusara o novo governo da revolução de herdar o czarismo e seu imperialismo, saudando o aparecimento do Soviete de Petrogrado como governo potencial; enquanto os mencheviques e os social-revolucionários evocavam o patriotismo dos camponeses para justificar o apoio que davam à guerra imperialista. Trotski notou que não era o patriotismo dos camponeses que deveria importar, mas a sua fome de terra e, assim, os donos de terra, a burguesia e o czarismo estavam forçando os camponeses a desviar-se do caminho da revolução agrária em razão da guerra e esclareceu que a tarefa do socialismo era levá-los de volta à revolução agrária (DEUTSCHER, 1967). De fato, a função dos bolchevistas não era ter relações com defensistas e semidefensistas, deveriam estabelecer a ditadura proletária. Em fevereiro, a classe operária tinha quase todo o poder nas mãos, e, sem saber o que fazer com ele, entregou-o à burguesia, para Lênin: Até mesmo nossos bolchevistas depositam confiança no governo. Isso só pode ser explicado pela embriaguez gerada pela revolução. Isso é a morte do socialismo. Vós camaradas, confiais no governo. Se é essa a vossa atitude, nossos caminhos não podem ser iguais. Prefiro ficar em minoria (DEUTSCHER, 1970, p.125). As posições de Lênin e Trotski, em fevereiro de 1917, com relação ao governo provisório da Rússia pós-revolucionária, eram bem similares. Em suas Teses de Abril (1978b), Lênin comentou sobre a situação em que se encontrava a Rússia revolucionária em fevereiro de 1917 e que atitudes deveriam ser tomadas. Dentre elas, destacavam-se: a necessidade de sair da guerra, porque era fruto das contradições imperialistas que encaravam a guerra apenas como uma necessidade e não com o fim de conquistas (o objetivo já estava alcançado); não aceitar uma república parlamentar, seria dar um passo para trás, pois era fundamental formar a República dos Sovietes de deputados operários, trabalhadores agrícolas e camponeses; não apoiar o governo provisório ou acreditar em suas promessas falsas; desmascarar o governo capitalista ao invés de exigir que deixasse de ser imperialista; perceber que o partido estava em minoria, o que resultava na prevalência dos interesses burgueses; e criar uma nova internacional. Os desafios deveriam ser superados, porém, dependiam do combate ao defensismo: O problema essencial, que salta aos olhos quando lemos o que se escreve sobre a Rússia e quando vemos o que ocorre aqui, é a vitória do defensismo, a vitória dos traidores do socialismo, o engodo das massas pela burguesia. É claro que, aqui na 11 Rússia, no movimento socialista, a situação é a mesma que em outros países: o defensismo, a “defesa da pátria”. A diferença é que não existe em parte alguma uma liberdade semelhante à que temos aqui, e isto nos torna responsáveis frente a todo proletariado internacional. O novo governo é imperialista como o anterior; malgrado sua promessa em proclamar a República, é imperialista até a medula dos ossos. “Nenhuma concessão, por mínima que seja, ao “defensismo revolucionário”, pode ser tolerada em nossa atividade com respeito à guerra que, em relação à Rússia, mesmo sob o governo de Lvov e Cia, continua, incontestavelmente, uma guerra imperialista de rapina, em virtude do caráter capitalista deste governo” (LÊNIN, 1978b, p. 19). A Revolução era algo difícil, não podia evitar cometer erros e o erro do presente era não desmascarar o “defensismo revolucionário” que era uma traição do socialismo: Não é difícil ser revolucionário quando a revolução já estourou e está em seu apogeu, quando todos aderem à revolução simplesmente por entusiasmo, modismo e inclusive, às vezes, por interesse pessoal de fazer carreira. Custa muito ao proletariado, causa-lhe duras penas, origina-lhe verdadeiros tormentos desfazer-se depois do triunfo desses revolucionários. É muitíssimo mais difícil – e muitíssimo mais meritório - saber ser revolucionário quando ainda não existem as condições para a luta direta, aberta, autenticamente de massas, autenticamente revolucionária, saber defender os interesses da revolução (através da propaganda, da agitação e da organização) em instituições não revolucionárias e, muitas vezes, simplesmente reacionárias, numa situação não revolucionária, entre massas incapazes de compreender imediatamente a necessidade de um método revolucionário de ação (LÊNIN, 1978, p.113). A grande questão do momento era identificar os verdadeiros socialistas e os que se aproveitavam da situação. Isso seria possível a partir da explicação para as massas sobre o que realmente era o socialismo e, se fosse necessário, o partido permaneceria em minoria, mas não perderia sua essência10. O momento vivido na Rússia era a passagem da primeira etapa da revolução para a segunda etapa: O que existe de original na atual situação russa é a passagem da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia em função do insuficiente grau de consciência e organização do proletariado, à sua segunda etapa, que deve dar o poder ao operariado e às camadas pobres do campesinato. Esta transição caracterizase, de um lado, por um máximo de possibilidades legais (a Rússia é, atualmente, de todos os países em guerra, o mais livre do mundo); de outro lado, pela irrefletida confiança das massas no governo dos capitalistas, o pior inimigo da paz e do socialismo (LÊNIN, 1978b, p. 22). 10 Na quarta tese, Lênin reconhecia que o partido estava em minoria e constituía uma minoria na maioria dos sovietes em razão do bloco de todos os elementos oportunistas e pequenos burgueses que estavam sob influência da burguesia, estendendo-a ao proletariado. Enquanto for minoria, deviam aplicar-se a explicar e criticar os erros cometidos e, ao mesmo tempo, convencer da passagem necessária de todos os trabalhadores para os sovietes, para que as massas se libertem do erro de sua experiência (LENIN, 1978b). 12 Segundo Lênin (1978b), a tarefa imediata era conduzir as massas à construção do socialismo, convocar o Congresso do Partido, revisar o programa anterior e criar um novo nome para o partido: Pessoalmente, em meu próprio nome, proponho modificar o nome do Partido, chamá-lo Partido Comunista. O povo compreenderá o nome “comunista”. A maioria dos social-democratas oficiais desertou, traiu o socialismo [...] Liebknecht é o único social democrata [...] Vocês têm medo de trair velhas lembranças [...] A palavra social-democrata é inexata. Não devemos apegar-nos a um velho termo que está completamente podre. Vocês querem construir um novo partido [...] em sua direção virão todos oprimidos (LÊNIN, 1978b, p.29). Em 1917, Trotski fez um discurso no plenário onde ressaltou as insatisfações com relação ao governo provisório, porém, com um tom mais conciliador, como se dessa forma conseguisse motivar os antigos camaradas a apoiá-lo. Agora estava disposto a unir-se em favor de uma nova internacional e deixar o antigo partido, e assim, os caminhos de Trotski e Lênin que tanto divergiram, encontraram-se. Cada um chegou à conclusão de que o outro havia chegado muito antes e que se opusera por tanto tempo; entretanto, nenhum deles adotou conscientemente o ponto de vista do outro, mas concordavam que, para a verdadeira revolução, precisavam de uma verdadeira coalizão: A Revolução não perecerá devido a um ministério de coalizão. Mas devemos lembrar três mandamentos: desconfiar da burguesia, controlar nossos próprios líderes e confiar em nossa força revolucionária [...] Creio que nessa medida seguinte deve ser transferido todo o poder para as mãos dos sovietes. Somente um poder único terá condições de salvar a Rússia (DEUTSCHER, 1968, p. 276). Lênin era o líder aceito de um grande partido, que se tornara o ponto de convergência de toda a oposição proletária ao Regime de Fevereiro, e Trotski e seus amigos eram um grupo brilhante de generais sem exército. Naquele momento, os dois se completavam: Trotski podia fazer ouvir sua voz da tribuna da Revolução, mas somente um partido maciço e disciplinado podia transformar suas palavras em atos duradouros. A aliança entre Lênin e Trotski possibilitou a coalizão do movimento e o incentivo à participação das massas graças à compreensão de suas necessidades: Os chamados agitadores de esquerda, disse Trotski, preparam o futuro da revolução russa. Arrisco-me a dizer que nós, em nosso trabalho, não solapamos a autoridade – somos um elemento indispensável no preparo do futuro. Camaradas, não espero convencê-los hoje, pois seria uma esperança demasiado ousada. Hoje, gostaria de poder mostrar-lhes que, se nos opusermos a vocês, não o faremos por quaisquer motivos hostis de uma facção egoísta, mas porque junto com vocês estamos sofrendo todas as dores e agonias da revolução. Vemos soluções diferentes das suas, 13 e estamos firmemente convencidos de que enquanto vocês consolidam o presente da revolução, nós preparamos o futuro dela para vocês (DEUTSCHER, 1968, p. 286). A insatisfação da população russa continuava e isso favorecia o partido bolchevique, assim como a revolução. A Insurreição de Julho foi contida, o partido novamente estava dividido com relação à tomada de poder11. Mesmo assim, Lênin e Trotski insistiam na derrubada do novo governo: Lênin também julgava que os insurgentes deviam convocar um congresso de sovietes de toda a Rússia e colocar o poder em suas mãos. Recusava-se a deixar que a insurreição esperasse até a convocação do congresso, porque estava convencido de que a Executiva menchevique retardaria a reunião até às calendas gregas, e com isso a insurreição jamais ocorreria, pois seria obstada por uma contra revolução bem sucedida. Mas também considerava o congresso dos sovietes como uma fonte constitucional de poder. Trotski, por sua vez, tinha como certo que os bolcheviques, constituindo a maioria nos sovietes, seriam na realidade o partido governante (DEUTSCHER, 1968, p. 313). O país mergulhava na derrota e no caos da guerra imperialista a ponto de o governo admitir que a capital poderia ser entregue aos inimigos. Diante disso, os bolchevistas passaram a ser semidefensistas, propondo a defesa de Petersburgo como capital da Revolução, não do Império – decisão que contou com todo o apoio dos partidos representados no Soviete e possibilitou o direito de comandar as tropas na capital e nas províncias mais próximas, isto é, o direito de controlar o exército e seu Estado-Maior. Em setembro, a correlação de forças e principalmente do domínio de consciência pendia mais para o lado dos bolcheviques e assim não poderiam perder esse momento (DEUTSCHER, 1970). Em 10 de outubro de 1917, o Comitê Central adotou a decisão de empreender a insurreição armada e 15 dias depois o poder estava tomado. A Revolução de Outubro12 estava declarada e, assim, constituía-se o governo soviético em São Petersburgo, momento em que os líderes bolcheviques perante o Congresso prometeram dar ao povo paz, terra e liberdade. De acordo com Trotski (1967), a revolução ocorreu devido à série de premissas históricas, como: a podridão das velhas classes dominantes (nobreza, monarquia e burocracia); a debilidade política da burguesia, isto é, sem raiz nas massas populares; o caráter revolucionário da questão agrária, tal como o problema com as nacionalidades oprimidas; o peso social do proletariado; o “Ensaio Geral” de 1905-06, onde os sovietes 11 12 Entre a oposição do Comitê Central estavam Zinoviev e Kamenev e Stálin. Stalin não esteve entre os atores principais no dia do levante. 14 apareceram pela primeira vez como forma de organização; a guerra imperialista que aguçou todas as contradições; e o partido bolchevique. Os primeiros meses que se seguiram à conquista do poder político pelo proletariado deixavam claro que, em razão das diferenças existentes entre a Rússia atrasada e os países adiantados da Europa Ocidental, a revolução proletária seria pouco semelhante à de 191713. Lênin (1978) acreditava que o país possuía uma experiência internacional relevante, experiência que demonstrava que alguns dos aspectos fundamentais da revolução não eram compostos apenas por aspectos nacionais (russos), mas revestiam-se também de significação internacional; todos os aspectos fundamentais da Revolução de Outubro tinham importância internacional quanto à influência que podiam exercer em todos os países: O significado desta revolução consiste, antes de tudo, em que vamos ter um governo soviético, nosso próprio órgão de poder, sem qualquer participação da burguesia. As próprias massas oprimidas criarão o poder. Será destruído pela raiz o velho aparelho do Estado e criado um novo aparelho de direção: a organização dos sovietes. Iniciase uma nova etapa na história da Rússia, e esta terceira revolução deve conduzir, no final de contas, à vitória do socialismo (LÊNIN,1974, p. 4). 1.2 A Construção do Socialismo Toda grande revolução começa com uma explosão fenomenal de energia, impaciência, ira e esperança populares. Toda grande revolução termina em cansaço, exaustão e desilusão do povo revolucionário. Na primeira fase, o partido que der maior expressão ao estado de espírito popular sobrepuja os rivais, conquista a confiança das massas e sobe ao poder. Até mesmo o partido mais revolucionário não chega, às vezes, a ser suficientemente revolucionário aos olhos dos setores mais extremados da população. É impelido pela corrente a vencer todos os obstáculos que encontra em seu caminho e a desafiar todas as forças conservadoras (DEUTSCHER, 1970, p. 156). O primeiro governo soviético ou o primeiro conselho dos Comissários do Povo, que pretendia acabar com os hábitos tradicionais da autoridade, era composto de 11 intelectuais e quatro trabalhadores, e contava com os principais responsáveis pela realização da Revolução de Outubro: Lênin como autoridade central do partido e do Governo, Trotski como o Comissário das Relações Exteriores e Stalin como o presidente do Comissariado das Nacionalidades. Cabe destacar as transformações (políticas, econômicas e sociais) que o 13 De acordo com a experiência, a respeito de algumas questões essenciais na revolução proletária, inevitavelmente, todos os países passarão por onde a Rússia passou. 15 governo exigiu da nação e que ocasionariam insatisfação de grande parte da população (principalmente dos mencheviques) e, em decorrência das transformações, os líderes deveriam lidar com a sabotagem dos funcionários públicos no governo e no exército, com a demissão daqueles que não estavam de acordo com os objetivos do governo e em desacordo com a exclusão de alguns funcionários do antigo governo e do partido menchevique, como forma de pressionar o governo (DEUTSCHER, 1967): Sabemos que o velho aparelho do poder estatal nos opôs resistência, que os funcionários tentaram no início negar-se a exercer funções; esta sabotagem, a mais grosseira, foi exterminada em algumas semanas pelo poder proletário. Tal poder demonstrou que aquelas negativas não produziam o menor efeito, e uma vez que acabamos com tão rude sabotagem, esse mesmo inimigo empreendeu outro caminho (LÊNIN, 1979, p.161). Na primeira fase pós-revolucionária, Lênin ressaltou a coesão, a organização, a disciplina e a unanimidade, como o único meio de salvar o país das calamidades e horrores por que passou e da guerra imperialista. Também frisou o que escreveu em suas Teses de Abril a respeito da necessidade de terminar a guerra e, para isso, precisava vencer o capital, porque era uma guerra imperialista e capitalista; abolir a propriedade latifundiária e entregar a terra ao campesinato; estabelecer o controle operário sobre a produção e distribuição dos produtos, assim como o controle do povo sobre os bancos, transformando-os em empresa do Estado; e os apelos à revolução mundial que seria aceita pelos países ocidentais (seu ponto de vista), auxiliando a vitória completa e continuando a causa do socialismo: Agora aprendemos a trabalhar uníssono. Testemunho disso é a revolução que acaba de ocorrer. Dispomos da força da organização das massas, que tudo vencerá, e conduzirá o proletariado à revolução mundial. Na Rússia, devemos dedicar-nos agora a edificar o Estado socialista proletário. Viva a revolução socialista mundial! (LÊNIN, 1974, p.5). Lênin e Trotski não consideraram os governantes dos outros países ocidentais que claramente não estavam a favor de uma Revolução proletária em seus países e, consequentemente, os líderes revolucionários seriam esmagados pela força do Governo, o que necessitaria de um esforço maior dos revolucionários russos para consolidar-se no poder e provar para a população dos países ocidentais que a situação da Rússia pós-revolução era melhor que a deles. De acordo com Ferro (1984), a Revolução Russa de 1917, assim como seus aspectos mais importantes (situação da população, sovietes, proletariado e burgueses) não eram divulgados pelos jornais no Ocidente: 16 Lendo-se a imprensa patriótica, logo após a queda do tzarismo, pode-se crer que jamais houve revolução na Rússia. Segundo a Action Française, monarquista, o tzar certamente abdicara, „mas por sua própria vontade e, precisamente, para salvar o povo de uma revolução‟ [..]. Já que não havia revolução, não podia haver tampouco revolucionários. Os despachos das agências falam da existência de soviete de deputados, mas não de seu papel; os manifestos que ele emite são praticamente escamoteados. Naturalmente, essa mistificação não podia se eternizar; mas foi suficientemente bem orquestrada para ser contagiosa (FERRO, 1984, p. 18). A verdade é que os países ocidentais e principalmente os aliados da guerra tinham medo da revolução que ocorrera, de perder o poder, como os impactos afetariam seus países e os “revolucionários internos” 14. Além dos desafios externos, como “chamar” os países desenvolvidos para a construção do socialismo em seus países e proclamar a revolução proletária mundial, Lênin ainda enfrentou problemas internos. A administração do Estado soviético era necessária, porém, essa tarefa não seria fácil já que o poder soviético tinha dificuldade de mostrar com clareza as particularidades desta passagem tanto aos dirigentes políticos do povo, quanto aos elementos conscientes das massas trabalhadoras em geral. A característica particular dessa organização do Estado consistia no fato de ter uma particularidade: a função predominante não é desempenhada pela política, mas pela economia e, nesse ponto, precisavam de uma reorganização econômica (LÊNIN, 1967). O temor dos países ocidentais somado à insatisfação dos mencheviques que não estavam mais no poder (foram excluídos de seus cargos) e a situação degradante que o país vivia formaram a situação ideal para a Guerra Civil na Rússia com a intervenção de alguns países (Grã-Bretanha, França, Estados Unidos e Japão) por cerca de três anos, o que gerou extrema dificuldade para o governo de Lênin15: A República soviética está rodeada de inimigos. Mas vencerá tanto os inimigos externos como os internos. Entre as massas operárias observa-se já o entusiasmo que garantirá o triunfo. Na atualidade, o inimigo externo da República Socialista Soviética da Rússia é o imperialismo anglo-francês e nipo-norte-americano (LÊNIN, 1979, p. 36). 14 Em 1918, foi assinado o tratado de Brest Litovsk, tratado de paz entre a Rússia soviética (negociado por Trotski) e os países do bloco alemão (Alemanha, Áustria-Hungria, Bulgária e Turquia). As condições de paz eram extremamente pesadas para a Rússia soviética, pois, de acordo com o tratado, a quase totalidade da região do Báltico, uma parte da Bielo-Rússia e a Ucrânia ficariam sob o controle da Alemanha e da Áustria-Hungria, a Polónia. Além disso, pouco depois a Alemanha impôs à Rússia soviética um tratado adicional e um acordo financeiro, que apresentavam novas exigências abusivas; gerou controvérsias no recém-formado Estado soviético. Após a revolução de novembro de 1918, na Alemanha, que resultou na queda do regime monárquico, o Comité Executivo Central declarou anulado o tratado abusivo de Brest-Litovsk (DEUTSCHER, 1970). 15 Os acontecimentos reduziram a força do partido da revolução e o obrigaram a abrir mão de alguma das suas aspirações, esperanças e ilusões, para salvar a estrutura essencial da revolução. 17 Em meio à primeira fase pós-revolucionária, ocorreu a provocação inevitável da guerra civil, forçando o partido a continuar seu curso com a maioria da nação, seguindo os objetivos, desejos e aspirações populares. Os líderes acreditaram que bastava assumir o poder como um governo do povo, pelo povo e para o povo que a vitória seria garantida. Contudo, a república soviética tinha que contar com inimigos internos: Ao se lançarem contra a Rússia pacífica, os tubarões capitalistas anglo-japoneses confiam ainda em sua aliança com o inimigo interior do Poder Soviético. Sabemos muito bem quem é esse inimigo interior. São os capitalistas, os latifundiários, os culaques e seus sequazes, que odeiam o poder dos operários e camponeses trabalhadores, dos camponeses que não sugam o sangue de seus semelhantes. Uma onda de sublevações de culaques percorre toda a Rússia. O culaque odeia furiosamente o Poder Soviético e está disposto a estrangular, degolar centenas e milhares de operários. Sabemos perfeitamente que se os culaques conseguissem triunfar, assassinariam sem piedade centenas de milhares de operários, aliar-se-iam aos latifundiários e aos capitalistas, restabeleceriam os trabalhos forçados para os operários, aboliriam a jornada de 8 horas e colocariam as fábricas novamente ao jugo dos capitalistas (LÊNIN, 1979, p. 37). Rebeliões e explosões contrarrevolucionárias foram provocadas por oficiais brancos e o país, que já estava arrasado por anos de guerra, seria ainda mais devastado. A República não tinha fronteiras, tinha fronts: Uma fronteira de sangue dividiu então pelo meio a Rússia, rasgada pela guerra interna. Em sua ferocidade implacável, a guerra civil russa refletiu o profundo ódio de classes que rachou a nação em dois campos hostis [...] O tifo arrasava as linhas de frente, reféns eram levados para fossas e mortos. A vida não tinha qualquer valor [...] O maior catalisador da guerra civil foi a intervenção armada estrangeira. Foi o imperialismo mundial, observou Lênin, o verdadeiro provocador de nossa guerra civil e o responsável por sua longa duração (VOLKOGONOV, 2004, p. 39). A Guerra Civil acentuou os problemas já existentes e as transformações ocorridas no país, nos âmbitos político, econômico e social. Com relação às transformações políticas, cabe destacar que Lênin identificava alguns aspectos que deveriam ser considerados após a tomada do poder, entre eles: deveria ser um movimento revolucionário sólido e, para isso, precisaria de uma organização de dirigentes estáveis que assegurasse sua continuidade; quanto maior o número de pessoas incorporadas para formar a base do movimento, maior seria a necessidade de uma organização sólida formada por essas pessoas; a organização deveria ser composta de homens que se entregassem profissionalmente às atividades revolucionárias; deveria ampliar os membros para que a classe trabalhadora e as demais classes da sociedade tivessem participação; deveria ser um partido proletário (pela sua antiga ideologia), democrático, revolucionário e internacionalista; e, para que essas coisas acontecessem, era necessário 18 instituir a ditadura do proletariado, como já tinha escrito em 190516. A ditadura do proletariado era uma das principais formas de estabilizar o socialismo no país: A ditadura do proletariado não é o fim da luta de classes, mas a sua continuação em novas formas. A ditadura do proletariado é a luta de classes do proletariado que venceu e tomou nas mãos o poder político contra a burguesia derrotada, mas não destruída, que não desapareceu e não cessou de oferecer resistência, contra esta resistência da burguesia. A ditadura do proletariado é uma forma particular de aliança de classe entre o proletariado, a guarda avançada dos trabalhadores (a pequena burguesia, os pequenos proprietários, o campesinato, a intelligentsia), uma aliança contra o capital, uma aliança que visa total destruição do capital, a total supressão da resistência da burguesia e todos os seus esforços para restaurar uma aliança visando a criação final e estabilização do socialismo (LÊNIN, 1974, p. 11). A ditadura do proletariado tornaria possível a vitória sobre o capitalismo, pois unificaria as forças comunistas dispersas e formaria em cada país um partido comunista único; era a forma mais decidida e revolucionária da luta de classes do proletariado contra a burguesia. De acordo com Lênin (1979), a vitória do socialismo dependia de três tarefas do proletariado: a primeira era derrubar os exploradores e a burguesia, vencê-los de qualquer forma (já estava completa); a segunda era atrair e conduzir atrás do Partido Comunista, não só todo o proletariado, mas todas as massas de trabalhadores e de explorados pelo capital; a terceira era neutralizar as relações de exploração entre a burguesia e o proletariado, contando com o proletariado nos mais altos cargos do governo, como responsáveis pelo Estado. Entre os problemas internos do partido, destacava-se o acirramento das divergências entre Stalin e Trotski17, principalmente com questões relacionadas ao exército, ao posicionamento das tropas e às questões de nacionalidade. No âmbito nacional, o governo soviético parecia incapaz de cumprir as promessas anteriores, relacionadas ao suprimento das necessidades básicas da população (representadas por pão, terra e paz), isto é, derrubaram o antigo regime, mas não conseguiram suprir tais necessidades (DEUTSCHER, 1968). 16 Quando o czar fosse derrubado, Lênin recomendava a instituição de um governo provisório, que representaria a ditadura revolucionária e democrática do proletariado e campesinato; isso consistiria em uma etapa necessária à instituição de uma Rússia atrasada como república socialista. Além disso, o país deveria apoiar-se na Europa mais adiantada, onde a classe operária já teria tomado o poder. 17 Stalin teve papel de líder político nas fases da Guerra Civil, posição que não foi alcançada na Revolução de Outubro, e se lembraria daqueles que se opuseram naquele momento, e que pagariam preço alto por isso. Trotski teve destaque principalmente por ter organizado o Exército Vermelho, porém, com o desenrolar da guerra civil, perdeu sua posição de destaque; Stalin continuava a considerar Trotski um menchevique, além de não gostar da sua autoconfiança, da sua eloquência, da sua autoridade, enfim, da sua capacidade de manter-se em evidência (VOLKOGONOV, 2004). 19 De acordo com Volkogonov (2004), a guerra civil foi rude com seus inimigos, mas foi também para aqueles que não a desejavam. Com relação às transformações no âmbito econômico: Os anos de guerra mundial, Revolução, guerra civil e intervenção provocaram a ruína total da economia russa e a desintegração de sua estrutura social. Os bolcheviques tiveram de arrancar de sua economia arruinada os meios da guerra civil. Em 1919 o Exército Vermelho já consumira todos os estoques de munições e outros abastecimentos. A indústria sob o controle soviético não podia substituí-los senão parcialmente. Normalmente, a Rússia meridional fornecia combustível, ferro, aço e matéria-prima às indústrias da Rússia central e setentrional. Mas o Sul do país, ocupado primeiro pelos alemães e depois por Denikin, só esteve sob controle soviético em períodos intermitentes e breves (DEUTSCHER, 1968, p. 521). Cabe ressaltar o que Lênin (1979) escreveu com relação à transição do modelo capitalista para o comunista, em que o período não pôde deixar de reunir traços ou propriedades de ambas as formações da economia social, não pôde deixar de ser um período de luta entre o capitalismo agonizante e o comunismo nascente, isto é, entre o capitalismo vencido, porém, não aniquilado e o comunismo nascido, mas muito débil. Esses apontamentos deixavam claro que, além do problema com essa transição, o país ainda era assolado por uma guerra civil e colhia os frutos de uma recém-terminada guerra mundial, logo, os resultados não eram imediatos, ao contrário, eram retardados18. Privados de combustível e matéria-prima, os centros industriais do país ficaram paralisados. A situação piorou com a destruição dos transportes (linhas ferroviárias e as pontes foram destruídas), o que já podia ser considerado como ponto morto, a agricultura estava arruinada, tornando impossível a sobrevivência no país. Em 1920, a Rússia passou por fome, mortes e privações maiores que em 1917 (VOLKOGONOV, 2004). Diante da situação sem controle e com a necessidade de suprir as necessidades da população da cidade, do campo e do exército, o governo passou a exercer o mais rigoroso controle sobre os escassos recursos e, assim, implantou uma política que ficou conhecida como “Comunismo de guerra”19 que tinha ideias baseadas nos escritos marxistas20, que preconizavam o mais absoluto igualitarismo e deveria ocorrer de forma natural, no qual a 18 Isso não era culpa do comunismo. “Comunismo de guerra” era o conjunto de medidas que precisavam ser tomadas nos primeiros anos de transição para o socialismo. Os objetivos do Comunismo de guerra eram sustentar as indústrias de guerra e usar os escassos recursos para acabar com a fome nas cidades (DEUTSCHER, 1968). 20 O Comunismo de guerra era um travesti trágico da visão marxista da sociedade do futuro e, por isso, não poderia funcionar por muito tempo. As requisições de alimentos com a proibição do comércio privado, no momento, ajudaram o governo a controlar as mais graves emergências, porém, no longo prazo, essas políticas agravaram e aceleraram a redução e a desintegração da economia; camponeses recusavam-se a produzir o excedente, só produziam para si próprios (DEUTSCHER, 1968). 19 20 produção e a distribuição socialmente planejadas tomariam o lugar da produção para o mercado e distribuição por meio do dinheiro. O modelo que fora proposto por Marx: Tal sociedade teria, como pano de fundo, recursos produtivos altamente desenvolvidos e organizados e uma superabundância de bens e serviços. Deveria organizar e desenvolver a riqueza social que o capitalismo, em seus melhores exemplos, produzia desordenadamente e não podia controlar, distribuir e promover. O comunismo devia abolir a desigualdade econômica de uma vez por todas, nivelando os padrões de desintegração social, da destruição e da desorganização dos recursos produtivos, de uma escassez sem paralelos de bens e serviços (DEUTSCHER, 1968, p. 523). O que ocorreu foi o inverso. Houve um rígido igualitarismo, pregado e praticado pelo partido, que consistiu em um decreto ou proibição de qualquer empreendimento privado; nacionalização de grande parte das fábricas, oficinas e do comércio; salários em mercadorias para operários e empregados; expropriação de todos os excedentes dos camponeses; abolição da propriedade privada da terra; trabalho obrigatório para a classe média; e liquidando com a moeda21. Na realidade, o Governo Soviético tentou abolir a desigualdade, mas o fez pela redução dos padrões de vida, tornando universal a pobreza e consequentemente a insatisfação da população que organizaria rebeliões (DEUTSCHER, 1968; REIS FILHO, 2000; VOLKOGONOV, 2004). Entre as consequências primárias do conflito, destacavam-se: as cidades despovoadas da Rússia como forma de os trabalhadores fugirem da fome, a presença do mercado negro com atividades ilegais e a insatisfação da população como um todo. Estava claro que esse sistema não poderia funcionar por muito tempo, e, por isso, Trotski tomou uma medida inevitável para controlar os trabalhadores, com a frase “quem não trabalha, não come”, ou seja, o governo, depois de mandar centenas de milhares de homens para morrer nos campos de batalha, estava agora enviando-os para trabalhar nas oficinas e minas, onde era travada a luta pela sobrevivência22 (DEUTSCHER, 1968). Finalmente, em 1921, a paz chegou à Rússia soviética. Os últimos tiros silenciaram os campos de batalha da guerra civil, os exércitos brancos foram dissolvidos e desapareceram, os exércitos de intervenção não estavam mais no país, foi firmada a paz com a Polônia e as fronteiras européias da Federação Soviética foram traçadas e consolidadas (DEUTSCHER, 1968). 21 Devido às emissões para cobrir as despesas, as prensas fabricavam dinheiro dia e noite. A moeda se transformou em papel pintado. Isso fez com que a moeda se desvalorizasse tanto que os salários tinham que ser pagos em mercadorias (que constituía uma magra ração de alimento). 22 Foi criado o exército do trabalho, não pela militarização da mão-de-obra civil, mas pela transformação de um exército regular em uma força de trabalho. 21 Também houve vitórias nesses anos de luta contra os inimigos internos e externos. Em março de 1919, em Moscou, foi fundada a III Internacional Comunista23 com o objetivo de prosseguir e finalizar a grande obra empreendida pela II Internacional dos Trabalhadores. A III Internacional Comunista foi constituída no final do massacre imperialista 1914-1918, período em que a burguesia dos diversos países sacrificou milhões de vida e, por isso, teve como objetivo principal a luta armada para a liquidação da burguesia internacional e criação da República Internacional dos Sovietes, primeira etapa da supressão total de qualquer regime governamental, com as seguintes considerações: a ditadura proletária como único meio disponível para arrancar o que o capitalismo impunha; fraternização entre todos os homens de raça branca, amarela, negra, com os trabalhadores de toda a terra; convidava os proletários de todo o mundo para seguirem o mesmo caminho; comprometia-se a apoiar, com todos os meios a seu alcance, toda república socialista que fosse criada em qualquer lugar; e todos os partidos e organizações que se filiassem à Internacional Comunista teriam o nome de Partido Comunista e o nome do seu país. Após três longos anos de guerra civil (1917-1920), o partido da revolução foi o vencedor com enorme orgulho e autoconfiança, mas com a total exaustão do povo. Isso acentuou o enfraquecimento interno e mostrou o real isolamento com o mundo exterior. O país, que já estava devastado pela guerra imperialista mundial, depois da guerra civil e intervenção estrangeira, afundou em uma miséria ainda maior: Cerca de 3 milhões de soldados pereceram em combate ou em consequência de ferimentos ou doenças. Cerca de 13 milhões de civis morreram de forma prematura, principalmente devido à fome de 1921-2 e a uma série de epidemia que atingiu a Rússia (particularmente a gripe espanhola que assolou a Europa) (LEWIN, 2007, p. 362). Com relação à fome e ao frio, Lênin (1979) ressaltou que isso não era culpa do comunismo e mostrou que em todos os países estava havendo fome e frio e, em pouco tempo, todos estariam convencidos de que a situação da Rússia não era consequência do comunismo, mas dos quatro anos de guerra internacional – que deu origem a todos os horrores, inclusive fome e frio. Era preciso ter confiança, os operários precisavam trabalhar para si e não para sustentar um novo combate. De acordo com Lênin (1978), os bolcheviques se mantiveram no poder por esses primeiros anos, graças à disciplina rigorosa e férrea do partido, ao total e incondicional apoio da massa da classe operária e ao centralismo do poder. A Rússia tornou sua a única teoria 23 Também conhecida como Comintern. 22 revolucionária justa: o marxismo, mesmo que tenha sido implantado em pleno período de guerras: Camaradas: Há dois anos, quando a guerra imperialista ainda estava em seu apogeu, a insurreição do proletariado russo e a conquista do poder político por ele pareciam a todos os partidários da burguesia na Rússia, pareciam às massas populares e talvez à maioria dos operários dos outros países uma tentativa audaz, mas sem perspectivas. Parecia então que o imperialismo mundial era uma força tão enorme e invencível que, se os operários de um país atrasado tentassem levantar-se contra ele, precederiam como insensatos. Mas agora, olhando para os dois anos transcorridos, vemos que até nossos adversários começam a reconhecer cada vez mais as razões em que nos apoiamos. Vemos que o imperialismo, que parecia um colosso inabalável, mostrou-se, aos olhos de todo o mundo, como um colosso de pés de barro. Estes dois anos de experiência e de luta marcam com evidência cada vez maior a vitória não só do proletariado russo, mas do proletariado internacional (LÊNIN, 1979, p.159). À primeira vista, não era necessário temer as forças do imperialismo internacional que armaram os inimigos internos do governo soviético e que se mostraram grandiosas e invencíveis, porque eram frágeis. No momento era importante extrair os ensinamentos gerais desses dois anos heróicos de trabalho, assim como nos anos de 1905, que serviram como base para a vitória atual (LÊNIN, 1979). Nesses dois anos de governo soviético, os seguintes fatores tiveram destaque: a edificação do poder operário em que só a participação dos operários na direção geral do Estado permitiu que o governo soviético permanecesse no poder, mesmo diante de tantas dificuldades, e que, só seguindo esse caminho, conseguiriam a vitória completa; estabeleceram relações justas com os camponeses, já que foram essas relações que permitiram alcançar a vitória inicial; em cada setor (militar, político e econômico) do Estado foi preciso conquistar as posições que antes eram ocupadas por aqueles que estavam à frente das massas operárias e trabalhadoras, trabalho que ainda não terminou: Para nós tem particular importância compreender a evolução operada durante este período, porque em todos os países esta evolução segue caminho idêntico. As massas operárias e trabalhadoras não dão seus primeiros passos com seus verdadeiros dirigentes; agora é o próprio proletariado que toma em suas mãos a direção do Estado, o poder político; à frente do proletariado vemos em todo lugar chefes que acabam com os velhos preconceitos da democracia pequeno-burguesa, velhos preconceitos de que são expressão em nosso país os mencheviques e esserristas – sabemos que, ao organizar nosso trabalho, tivemos depois que transformar cada ramo da administração de modo que os verdadeiros representantes, os operários revolucionários, a autêntica vanguarda do proletariado, tomassem em suas mãos a edificação do Poder (LÊNIN, 1979,p.161). O desafio “recém-superado” trouxe consequências graves no âmbito social, que contou com uma terrível redução de forças: a população tinha caído de 171 milhões em 1914, 23 para 132 milhões em 1921; em 1920, a indústria tinha sido reduzida a 13% da produção, comparada com 1913; a produção bruta da agricultura era menos da metade do período anterior à guerra; o comércio exterior tinha desaparecido totalmente; e a renda nacional da população tinha caído em mais de 60% (KENNEDY, 1989): A estrutura social da Rússia não fora apenas derrubada, fora esmagada e destruída. As classes sociais que lutaram uma contra a outra, de forma tão implacável e furiosa, estavam todas, com a exceção parcial do campesinato, esgotadas e prostradas, ou então pulverizadas. A nobreza latifundiária perecera nas suas mansões incendiadas e nos campos de batalha da guerra civil; os sobreviventes fugiram para o exterior com o resto dos Exércitos Brancos que se dispersaram ao vento. Da burguesia que jamais fora muito numerosa ou politicamente confiante, muitos também haviam perecido e emigrado. Os que salvaram a pele, ficaram na Rússia e procuraram ajustar-se ao novo regime, eram apenas os restos da sua classe. A velha intelectualidade e, em proporções menores, a burocracia, partilharam o destino da burguesia: alguns comeram o pão dos emigrados no Ocidente; outros serviram aos novos senhores da Rússia, como especialistas (DEUTSCHER, 1968, p. 16). O que impossibilitava o desenvolvimento da Rússia Soviética no âmbito social era o abismo histórico entre a maioria da população (ainda rural) e a elite, o que tornava impossível a coesão entre as diversas camadas sociais. Com relação aos indicadores demográficos, a redução de forças não foi apenas do exército, mas também dos proprietários de terras e dos empresários que morreram durante a Guerra Civil ou emigraram, o que sustentava ainda mais o atraso de cinquenta anos do ponto de vista cultural, econômico e social. Partia-se de um tremendo desastre e o regime precisava do influxo de pessoas do povo para os níveis médios e inferiores da burocracia e das profissões técnicas. Oferecer essa oportunidade significava uma fonte constante de força e apoio popular, imprescindíveis naquele momento e sustentariam a posição do regime nos anos subsequentes (LEWIN, 2007). Atravessando problemas em todos os âmbitos, Lênin e Trotski tiveram papel fundamental nesse momento, para a permanência dos bolcheviques no poder24. No âmbito econômico, a situação continuava precária, visto que o Comunismo de guerra já estava ultrapassado. Trotski sentiu a necessidade de reestabelecer uma margem de liberdade econômica para os camponeses e, assim, em termos claros e precisos, descreveu a reforma que era a única capaz de solucionar o impasse em que se encontrava o país: As requisições de colheitas deviam ser suspensas. O camponês devia ser estimulado a cultivar e vender excedentes e ter lucro com eles. O governo e o partido não 24 As esperanças populares despertadas pela Revolução estavam frustradas (só o partido estava animado). As pessoas ouviam com simpatia os anarquistas agitados que denunciavam o regime bolchevique; o governo soviético não podia permitir eleições livres, pois certamente seria afastado do poder e, assim, a Revolução chegara a uma encruzilhada (quando o povo não acreditasse mais, acreditaria pela força) (DEUTSCHER, 1968). 24 tinham consciência da magnitude do desastre, porque a última coleta forçada produzira mais alimentos do que a anterior. Isso se devia à retirada dos guardas brancos, após a qual as requisições abrangeram uma área muito maior do que antes. Em geral, porém, as reservas de alimentos correm o risco de se esgotarem, e contra isso nenhum aperfeiçoamento do mecanismo de requisição pode ter qualquer utilidade. Tal caminho levava à maior desintegração e redução da força de trabalho e, por fim, à degradação econômica e política (DEUTSCHER, 1968, p. 530). Tal proposta não foi aceita pelo Comitê Central e por Lênin, pois não estavam dispostos a suspender as requisições, além de a reforma parecer um salto no escuro. Lênin e o Comitê Central ainda não tinham perdido as esperanças no Comunismo de guerra; acreditavam que, se o sistema tinha sido útil no período de guerra, seria ainda mais no período de paz. Entretanto, não foi isso que ocorreu (DEUTSCHER, 1968): O resultado foi, na realidade, o colapso total da economia. Espremido contra a parede pelo desastre que se auto-impôs, Lênin foi compelido a introduzir a NEP, uma meia-volta apresentada a gerações sucessivas de estudantes da história soviética como exemplo brilhante da dialética revolucionária em ação (VOLKOGONOV, 2008, p. 73). A Nova Política Econômica (NEP), sugerida por Lênin em 1921, para superar a crise gerada pelo “Comunismo de guerra”, tinha como base as propostas de Trotski25 que foram rejeitadas anteriormente. A NEP estabeleceu uma economia mista: A grande indústria e os transportes continuaram propriedade do Estado. A empresa privada teve permissão de explorar a pequena e a media indústria e o comércio. Companhias estrangeiras foram convidadas a reiniciar atividades na Rússia, inclusive no setor da grande indústria. Suspendeu-se a requisição de alimentos das áreas rurais e adotou-se, em substituição, a cobrança de impostos agrícolas comuns, que a princípio foram pagos em espécie e, mais tarde, em dinheiro. Em seguida, estabilizou-se o rublo. O objetivo principal dessas amplas reformas foi o reequipamento da indústria, partindo quase da estaca zero, a renovação do intercâmbio de produtos manufaturados por alimentos e matérias-primas, em suma, o restabelecimento de uma economia viável, auxiliada pelo capital-particular (DEUTSCHER, 1970, p. 198). Nesse plano, os “setores” socialista e privado deveriam competir um com outro em uma base comercial. O objetivo principal era o fortalecimento da indústria como forma de o socialismo provar seu valor numa competição econômica já que não tinha o apoio dos países mais avançados. Diante da situação do país, Lênin deveria enfrentar um Ocidente que 25 Essa estratégia foi saudada como um golpe de gênio, ato corajoso e de estadismo. Trotski abandonou suas políticas que tinham sido rejeitadas pelo Comitê Central e pelo líder, e seguiu implementando a segunda fase do Comunismo de guerra, que tinha, como único remédio, a férrea disciplina do trabalho; esta foi sua lógica clara, coerente e rápida que o derrotou, pois no momento em que tentava reerguer o Comunismo de guerra, o partido bolchevique voltou-se para a NEP (DEUTSCHER, 1968). 25 começava a recuperar sua força e uma Rússia mais atrasada do que antes. Outro grande desafio era mostrar para o Ocidente e para a nação russa que seus lemas revolucionários e a criação do Comintern26 eram capazes de recuperar um país que estava “falido”. A NEP resultou em certa prosperidade para o país durante algum tempo, com retorno limitado à economia de mercado, abandono das nacionalizações das empresas e concessões aos camponeses. A princípio foi bem sucedida na restauração de níveis mínimos de viabilidade física e política, entretanto, insuficiente para os desafios internos e especialmente externos27 (DEUTSCHER, 1970). A NEP também estabeleceu o monopólio político (reforçou a ditadura política)28 por ter liberalizado a política econômica. Por isso, Lênin propôs que o Congresso proibisse os grupos ou facções organizadas dentro do partido e, como forma de não desagradar totalmente os líderes desses grupos, pediu que fossem eleitos na formação do novo Comitê Central; insistiu que a oposição deveria ficar difusa e que os discordantes não deveriam ser estruturados nos mesmos comitês do partido (DEUTSCHER, 1968). Esse modo de operar o partido fez com que a maioria dos líderes perdesse contato com o espírito de seus partidários, e, dessa forma, o partido estava se transformando em uma máquina burocrática. Ao trilhar esse caminho, o bolchevismo estava perdendo sua velha identidade, com o objetivo de salvar a revolução. O partido deixou de ser uma associação livre de revolucionários independentes para se submeter à máquina partidária que estava cada vez mais poderosa (DEUTSCHER, 1970). 26 É o termo que designa a Terceira Internacional ou a Internacional Comunista (1919), organização que foi fundada por Lênin e pelo PCUS da Rússia soviética, reunindo os partidos comunistas de outros países e tendo como objetivo principal, a luta pela superação do capitalismo. 27 De fato, o que se esperava era que a revolução socialista tivesse vencido simultaneamente nos países avançados (na Europa principalmente), porque assim seria mais fácil engajar os melhores especialistas provenientes das fileiras dos dirigentes do velho capitalismo no processo da nova organização de produção e do próprio modelo socialista real. Assim, a Rússia “falida” conseguiria apoio econômico e da massa dos demais países desenvolvidos, conseguindo atingir a revolução mundial. 28 Lênin e Trotski concordavam que era de se esperar que, com a liberdade econômica, buscariam criar seus próprios meios de expressão política ou tentariam usar organizações antibolcheviques existentes, e isso não permitiriam (DEUTSCHER, 1968). 26 1.3 O Sistema de um Único Partido “O ultracentralismo defendido por Lênin aparece-nos como impregnado não mais de um espírito positivo e criador, mas sim do espírito do vigilante noturno (LUXEMBURGO, 1981, p.9).” A questão do centralismo democrático, proposto por Lênin, surtiu grande debate com Rosa Luxemburgo29. De acordo com Rosa, a teoria do partido leninista era inseparável do programa, pois para os bolcheviques, o programa era o partido; a derrubada do capitalismo deveria resultar em profissionais educados para fins revolucionários, os quais estariam designados de forma reconhecida e centralizada, isto é, os membros da organização se transformariam em órgãos básicos e executores das ordens de uma vontade antecipada e fixada, reconhecida por um Comitê Central (LUXEMBURGO, 1981). Era um absurdo ter um centro onipotente no partido russo, com direito ilimitado de controle e de decisão, e restringir o movimento ao invés de desenvolvê-lo e consequentemente dividi-lo ao invés de unificá-lo. O centralismo democrático foi a base do partido bolchevique e auxiliou na organização da Revolução de Outubro e na estabilidade do poder. O momento em que foi instituído o sistema de partido único era indiscutível e necessário, pois após a Revolução de Outubro e Guerra civil30, precisavam de estabilidade política para governar e organizar o país. O objetivo não é criticar a forma como Lênin organizou o sistema partidário na Rússia, transformando-o em unipartidário com ressalvas e temporário, prezando pela disciplina, mas mostrar que, depois da morte de Lênin, o partido estava nas mãos de Stálin e o sistema unipartidário favoreceu o monopólio do poder e sua tirania: [...] e o monopólio do partido único se tornou, de fato, o monopólio de uma simples facção, a facção stalinista. Na segunda década da revolução, o monopólio totalitário tomou forma. Finalmente, a norma da facção única transformou-se em norma pessoal de seu chefe. O fato de Stálin só ter podido estabelecer sua autocracia sobre os cadáveres da maioria dos líderes originais da revolução e seus seguidores, e que tivesse de passar por cima dos cadáveres até mesmo de bons stalinistas, dá bem a 29 Rosa Luxemburgo (1871-1919) foi representante do pensamento e da ação socialdemocrata na Europa. Ela tentou impedir a Primeira Guerra Mundial e teve esperança com a Revolução Russa. Porém, como revolucionária e democrata, permaneceu numa posição crítica, combatendo a política que considerava ditatorial dos bolcheviques. 30 A elite era o governo e tinha como posse uma fortaleza que tinha acabado de ser “destruída” e precariamente salva, que precisava ser defendida e reconstruída das ruínas. Para isso, deveria ser dirigida nas bases de uma nova ordem social. As fortalezas que são sitiadas raramente são governadas por regimes democráticos, pois os vencedores de uma guerra civil dificilmente concedem liberdade de expressão e de organização aos vencidos, especialmente quando estes têm o apoio de estrangeiros (DEUTSCHER, 1968). 27 medida da profundidade e da força da resistência que ele teve de quebrar (DEUTSCHER, 1968b, p. 22). Os problemas com a máquina burocrática não estavam nem perto de uma solução, pois dentro da ditadura do proletariado, Stalin estava acumulando cada vez mais poder. Este acontecimento passou despercebido e menosprezado pelo partido e pelos membros mais antigos e traria graves consequências em todos os aspectos (político, econômico e social): O fim da Guerra Civil veio encontrar Stalin, como político, ainda na obscuridade. Os elementos do Partido naturalmente o conheciam, mas não o encaravam como um dos dirigentes importantes. Para a base, tratava-se de um dos membros menos notáveis do Comitê Central, não obstante pertencer ao todo poderoso Politburo. O país, em conjunto, mal ouvira falar de seu nome. O mundo não soviético nem mesmo suspeitava sua existência (TROTSKI, 1947, p.441). Próximo de sua morte, Lênin alertou o partido sobre o “Grande Tirano”, entretanto, tarde demais, pois Stalin tinha um plano para as críticas que recebeu. Dessa forma, sob o governo do tirano, o povo perceberia que o socialismo stalinista não requeria apenas a propriedade estatal e planificação, rápida industrialização, coletivização e educação popular, mas também algo que ficou conhecido como “culto à personalidade”, que consistiu no privilégio e igualdade para poucos, na onipotência da polícia e na “era do terror”. 28 2 A DESTRUIÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO: A RÚSSIA DE STALIN O objetivo deste capítulo é demonstrar como se deu a ascensão do “czar” vermelho como sucessor de Lênin e a derrota de Trotski, que, no início da década de 1920, era mais popular e mais próximo a Lênin do que Stalin. Também serão abordadas as discussões a respeito da teoria do socialismo em um só país e da revolução permanente, a vitória de Stalin sobre Trotski (sua expulsão da URSS), os anos do Terror e as medidas econômicas que possibilitaram a vitória da URSS na Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria. Stalin moldou a ideologia do socialismo a seu favor, destruiu tudo o que foi preconizado por Lênin e alterou os rumos do socialismo na URSS, sendo conhecido como o coveiro do socialismo. 2.1 Da Obscuridade ao Triunvirato Outros dois anos se passaram, e Trotski apenas superado por Lênin em preeminência como condutor da Revolução de Outubro e, do Governo Soviético, se viu relegado pela máquina de Stalin a uma precária posição política. Stálin não se converteu apenas num membro do triunvirato que dirigiu o Partido no lugar de Lênin enfermo. Foi o triúnviro mais poderoso, e subsequentemente o único sucessor de Lênin. Todavia, com o passar dos anos, adquiriu uma força com a qual Lênin jamais sonhara – de fato, uma autoridade mais absoluta que a de qualquer czar na longa história do despotismo russo (TROTSKI, 1947, p. 441). A tradição do partido era uma sutil combinação de elementos diversos: autoconfiança moral, superioridade, senso de missão revolucionária, disciplina interna e plena convicção de que a autoridade era indispensável à revolução proletária: qualidades que formavam os elementos autoritários do partido bolchevique. Esses elementos não eram revelados, pois precisavam dedicar-se aos trabalhadores, ter o apoio dos mesmos para que houvesse a convicção de que o fim da Revolução de Outubro iria garantir as condições básicas de vida para os explorados e os oprimidos, e que, após esse momento, eles seriam os verdadeiros senhores do novo Estado (DEUTSCHER, 1968). A questão é que, depois dos acontecimentos (Primeira Guerra Mundial, Revolução de 1917 e Guerra civil), o partido bolchevique perdeu o apoio de grande parte dos trabalhadores. Os bolcheviques fingiam assumir os ideais dos trabalhadores, mas, nos seus discursos, os objetivos eram os do partido: 29 Quando um bolchevique do membro do Politburo, até o mais humilde homem de uma célula, repetia que o proletariado insiste, ou exige, ou jamais concordaria com isto ou aquilo, queria dizer que seu Partido, ou seus líderes, insistiam, exigiam e jamais concordariam. Sem essa mistificação semiconsciente, a mente bolchevique não podia funcionar. O partido não podia admitir, nem mesmo para si, que já não tinha base na democracia proletária. É certo que em momentos de cruel lucidez, os próprios líderes bolcheviques falavam francamente da situação. Mas esperavam que o tempo, a recuperação econômica e a reconstituição da classe trabalhadora resolvessem a questão (DEUTSCHER, 1968b, p. 25). A Revolução de Outubro e a Guerra civil fizeram com que o partido tivesse um aumento de 250.000 membros em 1919 para 700.000 membros em 1922. O interesse já não era mais revolucionário, a questão era correr para o lado vencedor. Além disso, era interessante para o Partido a cooptação de novos membros que aceitassem a disciplina para preencherem cargos nos postos do governo, na indústria, nos sindicatos, entre outros; e nesse momento, era difícil distinguir os bolchevistas “reais”, isto é, os que entravam pela ideologia (compreendiam os objetivos, aspirações e estavam prontos para lutar por eles), daqueles que entravam buscando empregos ou queriam entrar para a vida política, mas não tinham opção de partido31; em meio a essa massa, poucos eram os verdadeiros bolcheviques (DEUTSCHER, 1968). Diante dessa situação, os bolcheviques sentiram que estavam sendo esmagados por esses elementos “estranhos” e, assim, tinham de separar o joio do trigo. Em Más vale poco pero bueno, Lênin criticou o funcionamento do aparelho estatal e destacou o pouco tempo32 que os membros do partido tiveram para se preocupar com as deficiências do Estado. Também deveriam cuidar da formação de material humano realmente moderno, que não estivesse atrasado em relação aos melhores modelos da Europa ocidental. O problema com o aparelho estatal deveria ser resolvido sem pressa, para que não se cometessem os mesmos erros do passado: Nosso aparelho estatal se encontra em um estado tão lamentável, para não dizer detestável, que em primeiro lugar devemos pensar profundamente na maneira de lutar contra suas deficiências, lembrando que as raízes destas encontram-se no passado; o qual, apesar de ter sido subvertido, não desapareceu por completo, não passou à situação de uma cultura velha e superada. Levantei assim esta questão porque neste plano deve ser considerado como atingido só aquilo que faz parte da cultura, da vida diária e dos costumes (LÊNIN, 1971, p. 87, tradução nossa). 31 Na época, Zinoviev escreveu que muitos dos membros do partido bolchevique eram mencheviques inconscientes, social-revolucionários inconscientes, que se consideravam sinceramente bons bolcheviques (DEUTSCHER, 1968). 32 Os primeiros cinco anos causaram bastante desconfiança e ceticismo. Os membros do partido eram influenciados involuntariamente por aqueles que falavam sem saber da cultura proletária. Com relação à cultura, o mais prejudicial era a pressa de querer abarcar tudo de uma vez. 30 De acordo com Lênin (1971), não foi pensado a fundo o que havia de bom na organização social, nem compreendido, nem confirmado ou consolidado pela experiência; o que não poderia ter ocorrido de outro modo em uma época revolucionária, que em cinco anos levou a Rússia czarista a um regime soviético. Era preciso reconhecer os erros em tempo, para corrigir os passos e não deixar a pressa em primeiro lugar; um dos erros destacados por Lênin (1971) era acreditar na existência de um número considerável de elementos para a organização de um aparelho 33 realmente novo, que realmente merecesse o nome de socialista, soviético. Isso não era possível, porque, na Rússia, o aparelho e os elementos que a formavam eram pequenos. Diante desta situação, Lênin ressaltou a necessidade de mudança e o estabelecimento do princípio: mais vale pouco em quantidade, mas bom em qualidade; um princípio difícil de se manter e aplicar na realidade do momento, mas deveria ser feito e por essa razão, Lênin (1971) recomendou a melhor forma de filtrar os novos membros do governo (condições que também favoreceram a ascensão dos outros secretários-gerais): Primeiro: ser recomendado por vários comunistas. Segundo: passar por um exame que comprove seus conhecimentos sobre nosso aparelho estatal. Terceiro: submeter a prova a respeito dos fundamentos em que se baseiam o aparelho estatal, os problemas essenciais da ciência administrativa, os trabalhadores de escritório e etc. Quarto: trabalhar em estreito contato com os membros do Comitê Central de Controle e seu secretariado, de maneira tal que possamos responder pelo funcionamento de todo o aparelho em conjunto (LÊNIN, 1971, p. 89, tradução nossa). O influxo dos elementos sem as condições estabelecidas ameaçava a tradição e o caráter do partido. Por isso, os membros do partido e do aparato do Estado resolveram defender o partido contra a infiltração, decidindo retirar alguns membros do Partido através de tribunais do partido, que examinavam a moral e as fichas de todos os membros, elevados ou modestos. Assim, qualquer pessoa presente poderia testemunhar a favor ou contra o membro que estava sendo investigado; os que foram afastados do partido não sofreram punição, apenas a perda da condição de membro do partido dominante. Em pouco tempo, 200.000 membros estavam afastados do partido (DEUTSCHER, 1968). 33 Dois elementos são necessários para criar o aparelho: os operários entusiasmados com a luta em prol do socialismo e que não estão suficientemente instruídos, não sabem como melhorar o aparelho, pois ainda não alcançaram o desenvolvimento e a cultura indispensável para isto; e alguns conhecimentos, como educação e instrução que estão escassos e que os bolcheviques poderiam compensar esta ausência de conhecimento com dedicação e precipitação (LÊNIN,1979). 31 Com a formação do partido debilitada e a partir de novas ameaças internas, Lênin decidiu proibir facções, grupos ou partidos opositores, tornando a Rússia um sistema unipartidário, reconhecendo que o partido existente não poderia continuar sendo um partido no sentido habitual; de centralismo democrático, passou a ser utilizado apenas o centralismo, pois os membros não podiam mais discutir em público e nem discordar das opiniões abertamente, mantiveram a disciplina, mas não a liberdade democrática (DEUTSCHER, 1968b; VOLKOGONOV, 2004): Mas a crise partidária de 1920-21 era o fruto do fracionismo, do florescimento das frações e grupos, e esta crise forçou Lênin a propor medidas reunidas a partir da sua concepção da democracia partidária; a dissolução das facções que se tinham formado sobre a base de uma ou outra plataforma (a saber, oposição dos trabalhadores, centralismo democrático e etc), sob pena de imediata e incondicional expulsão do partido (ARICÓ, 1974, p. 151, tradução nossa). Por sugestão de Lênin, foi estabelecida uma hierarquia dentro do partido, baseada no mérito e tempo de serviço, assim, determinados cargos importantes só poderiam ser ocupados por pessoas que haviam ingressado na organização pelo menos no início da Guerra Civil. Outros postos que envolviam responsabilidade maior seriam ocupados por pessoas que haviam participado da revolução, e as mais altas posições ficavam reservadas aos veteranos, na luta contra o czarismo. Cabe destacar as características da velha-guarda bolchevique: A velha guarda era um conjunto formidável de homens unidos pela lembrança de lutas heróicas travadas em comum, por uma confiança inquebrantável no socialismo e pela convicção de que, entre a dissolução e a apatia universais, as oportunidades do socialismo dependiam deles e quase que exclusivamente deles. Agiam com autoridade, mas freqüentemente também com arrogância (DEUTSCHER, 1968b, p. 32). A velha-guarda dirigia os órgãos principais do governo e era fundamental na preservação dos interesses do partido e consequentemente do aparato estatal; ajudando a fortalecer a organização social. Era preciso uma organização social forte, fundamentada nos princípios do socialismo soviético, para impedir que as potências capitalistas ocidentais cumprissem seu objetivo de arruinar a Rússia soviética o máximo possível. Iniciaram a estratégia na Guerra civil, fazendo tudo que era possível e não conseguindo derrubar o governo, decidiram dificultar ao máximo o desenvolvimento da Rússia em direção ao socialismo, obtendo êxito parcial na sua tarefa. No momento era preciso adotar uma tática para que os membros do Partido Comunista da 32 Rússia e do Poder Soviético da Rússia pudessem impedir que os Estados contrarrevolucionários da Europa os esmagassem. O Décimo Primeiro Congresso do Partido elegeu um novo e ampliado Comitê Central e modificou seus estatutos. Por causa da instabilidade nas principais organizações do partido ou mau funcionamento do Comitê Central por razões burocráticas, foi criado o cargo de secretário-geral, com o intuito de coordenar o trabalho dos inúmeros departamentos que cresciam e se sobrepunham uns aos outros: O Secretariado preparava os documentos para as sessões do Politburo, transmitia suas decisões para os encarregados pela execução e cumpria ordens de seus membros. Apesar de não se envolver diretamente com as questões relacionadas com economia, defesa, administração do estado ou educação, desempenhava parte importante na administração geral do aparato do partido. Uma vez que os órgãos principais eram dirigidos por bolcheviques importantes, que não davam muita atenção aos detalhes técnicos, ficou resolvido que um dos membros do Politburo seria responsável por todo o trabalho do secretariado, com o cargo de secretário geral (VOLKOGONOV, 2004, p.69). O Politburo34 foi o verdadeiro governo do país e representava o cérebro e o espírito do partido bolchevique, composto pelos seguintes membros: Lênin que era o líder do partido e do governo; Trotski que foi o responsável pela direção da guerra civil; Kamenev que era o substituto de Lênin em várias atividades; Bukárin que se encarregava da imprensa e propaganda, Stalin que cuidava da administração cotidiana do partido; e posteriormente, Zinoviev e Tomski. Em tese, o Secretário-Geral era subordinado ao ilustre Politburo, contudo, o órgão passou a depender tanto do Secretário, que sem este o Politburo parecia um órgão suspenso no vácuo. Em qualquer máquina governamental havia organizações semelhantes, porém, raramente adquiriam autoridade independente, impedindo que ultrapassem os limites fixados. Tal falha foi consequência do excesso de centralização do poder na liderança bolchevista somado à falta de controle eficaz e à ambição do Secretário-Geral (DEUTSCHER, 1970). Para tornar-se secretário-geral, Stálin precisou do apoio de Kamenev e Zinoviev para a proposta de sua candidatura com base em seu histórico no partido que dava provas suficientes de sua contribuição para a reestruturação da sociedade, experiência em suas atribuições na administração política e no Estado e sua inclinação pelo trabalho da organização, 34 Trata-se de um Comitê Executivo que reunia os partidos políticos comunistas. Durante o período soviético, o Politburo do PCUS se transformou na maior associação política do país. 33 reconhecidas pelos velhos bolcheviques35. Em 1922 estava eleito o novo Secretário-Geral do comitê central do partido que teria funções mais burocráticas do que políticas e coordenaria e organizaria o aparato do partido; grande parte dos líderes do partido continuava a considerar o cargo rotineiro, o que implicava pouco para pensadores como eles e não encaravam o Secretário-Geral como ameaça: Stálin ascendeu ao posto de secretário geral a 2 de abril de 1922. Dois meses mais tarde, Lênin caiu seriamente enfermo. Por esse tempo, através de uma combinação de circunstâncias fortuitas, e com a sua própria convivência, Stálin já conquistara uma posição potencialmente estratégica. Se Lênin sarasse rapidamente, haveria possibilidade de Stálin recuar para a obscuridade – possibilidade, não certeza absoluta. Mas a moléstia de Lênin piorou cada vez mais (TROTSKI, 1947, p. 457). Nesse momento e função, Stalin continuava pouco conhecido pelo partido e pelo país, portanto, não representava ameaça. Ficaria conhecido a partir de sua atuação no cargo de Secretário-Geral; mesmo com essa função, a questão da chefia do partido e do estado não era contestada, somente um líder absoluto, Lênin. O líder do aparato estatal e do partido raramente se queixava de seus problemas de saúde e, enquanto esteve em forma, jamais se discutiram nomes de possíveis sucessores, Lênin era o cérebro do partido. Menos de dois meses depois da nomeação de Stalin para o cargo de Secretário-Geral, o controle do governo escorregou das mãos de Lênin, pois, em fins de maio de 1922, sua saúde ficou extremamente debilitada, o que o impossibilitou de controlar o governo, já que fora afastado e voltaria somente cinco meses depois. É fato que o impacto causado pela doença do líder sobre a liderança do partido e do governo, não poderia ter sido maior; com a doença de Lênin, seus “discípulos e satélites”36 começaram a procurar rumos próprios e independentes e, a partir desse momento, o partido percebeu o impacto negativo da dependência e influência de Lênin e de suas ideias (DEUTSCHER, 1970). Aproveitando o distanciamento de Lênin, Stalin adquiriu firmeza e autoconfiança cada vez maiores. Sua conduta era ditada pelas tendências, necessidades e pressões da máquina política que controlava e, desse modo, suas ações ficaram reduzidas a garantir o domínio da máquina com o emprego dos meios mais convenientes e possíveis, sendo que nessas situações o meio mais conveniente e mais disponível era quase sempre a repressão. Seus abusos envolviam as questões referentes à quase metade da população da República Socialista 35 Zinoviev, Kamenev, Lênin e até Trotski foram figuras-chave para o desenvolvimento de Stálin e os cargos que ocupou. Cargos que ocupou após a guerra civil: Comissário das Nacionalidades, Comissário da Inspetoria dos Operários e Camponeses e membro do Politburo. 36 Entende-se por discípulos e satélites os mais próximos do líder. 34 Federativa Soviética Russa37; a periferia asiática e semiasiática tornou-se seu primeiro domínio incontestável e foi responsável por grandes divergências e atritos com Lênin. Quando retornou a suas atividades, Lênin não encontrou situação semelhante à anterior: De volta ao trabalho, sentiu uma mudança imprecisa mas inegável no ambiente que o cercava. Os defeitos da máquina administrativa tinham piorado durante sua ausência. Tornara-se mais difícil obter respostas rápidas e diretas às suas indagações. As pessoas se queixavam de grosserias em certas repartições, de entraves burocráticos em outras e de abusos do poder em outras mais. As ordens e instruções que ele mesmo dava encalhavam frequentemente em lugares desconhecidos, sem que jamais chegassem a seu destino. Tinha a sensação de que acontecimentos obscuros ocorriam às escondidas. Antes mesmo de sua doença, comunicara ao partido essa misteriosa sensação de que toda a máquina governamental movia-se em direção diferente da que ele traçara como comandante. Essa sensação tornava-se agora ainda mais forte. Ao tentar localizar a origem da modificação, deparou logo com os escritórios da Secretaria Geral (DEUTSCHER, 1970, p. 221). Quando descobriu o comportamento de Stalin (os conflitos internos no partido, suas decisões infelizes e principalmente com relação à questão da Geórgia38), Lênin percebeu que Stalin não era bom para o cargo de Secretário-Geral e deveria ir para outra função. O comportamento de Stalin também surtiu críticas de Trotski, e quando foi cobrado, o Secretário-Geral soube justificar todos os atos de repressão contra os bolcheviques descontentes no Décimo e Décimo Primeiro Congressos, por iniciativa de Lênin e Trotski e disse que tudo o que fez foi consequência inevitável das decisões anteriores tomadas por comum consentimento (VOLKOGONOV, 2004). Apesar dos atritos entre Stalin, Trotski e Lênin, era preciso resolver o problema das nacionalidades das repúblicas independentes (mais de cem nacionalidades diferentes). Lênin e Stálin não tinham o mesmo ponto de vista: Lênin acreditava que a unificação das repúblicas independentes (inclusive a Rússia) devia ser de forma voluntária, não poderia acabar com a independência dessas repúblicas, deveria ter a preservação dos direitos totalmente iguais para 37 De uma população de 140 milhões de habitantes, 65 milhões de habitantes não tinham nacionalidade russa. E representavam todos os níveis da população. 38 Embora o resto do Cáucaso tivesse passado aos poucos para o controle soviético, até 1921, a Geórgia tinha um governo menchevista. Moscou aceitou de certa maneira, pois acreditavam que a Geórgia sob o controle dos menchevistas não duraria muito tempo, já que o Cáucaso estava sovietizado e o país dependia da região para abastecer-se de pão e combustível. A paciência de Stálin se esgotou e, em fevereiro de 1921, resolveu mandar o Exército Vermelho invadir a Geórgia e outras atividades que forçaram a fuga e extinção do governo menchevista e, no outono do mesmo ano, Stálin defenderia a ideia de uma Federação Caucasiana de Repúblicas Soviéticas, ideia que não despertou o entusiasmo dos georgianos que não queriam renunciar à sua soberania em troca de organização regional. A invasão já tinha ferido o sentimento que foi alimentado pela prepotência do Comissariado das Nacionalidades de Moscou e com as atividades dos agentes da polícia política. Lênin não ficou sabendo por Stálin e julgou-as quase imperialistas (DEUTSCHER,1970). 35 todas para haver o progresso autêntico do socialismo e, assim, formariam a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Stalin acreditava que essa unificação deveria ocorrer por meio da ideia de autonomização, que consistia na ideia de unificação das repúblicas nacionais por meio da adesão à Federação Russa, isto é, à criação da República Federativa Socialista Soviética Russa, na qual as outras entidades teriam direito à autonomia. Lênin qualificou a proposta de Stalin como afastamento do internacionalismo proletário, cujo objetivo era unir um bloco de países com os mesmos ideais e Stalin, com sua ideia de autonomização e suas ações na Geórgia e em outros lugares, queria exercer seu domínio sobre as outras repúblicas (LEWIN, 2007; VOLKOGONOV, 2004). No final, a ideia de autonomização de Stalin foi rejeitada, e a política de Lênin sobre as relações da nacionalidade foi aceita. Em 30 de dezembro de 1922, foi proclamada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), com o texto de Lênin: Todas as repúblicas (inclusive a Rússia) estavam se unindo para formar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, mas mantinham o direito de abandoná-la. Este mais alto órgão do Estado seria o “Comitê Executivo da União”, em que todas as repúblicas estariam representadas, na proporção de suas populações. Esse comitê se chamaria Conselho de Comissários da União (LEWIN, 2007, p.74). O Relatório e a Declaração sobre a Formação da URSS39 consistiam na ideia do internacionalismo proletário, o compromisso de todas as nacionalidades com a amizade, solidariedade de classe e dedicação aos ideais revolucionários. Mesmo que Stálin tivesse aceitado a modificação constitucional, Lênin desconfiava que, a partir desta aprovação, ele acabaria com a autonomia das repúblicas não russas e restabeleceria a Rússia única e indivisível; tendo um governo centralizado, disfarçaria a opressão às pequenas nacionalidades. Lênin percebeu nos seus últimos meses de vida que suas preocupações com Stálin40 estavam apenas começando e que por isso deveria tomar urgentemente uma atitude (DEUTSCHER, 1968b; VOLKOGONOV, 2004). 39 Abrangeria quatro entidades regionais: Rússia, Transcaucásia, Ucrânia e Bielo-Rússia (foi em função disso que Stálin forçou os georgianos a se unirem à Transcaucásia). 40 No dia da proclamação da URSS, Lênin começou a ditar uma série de notas sobre a política a ser adotada para as pequenas nações. Disse que se sentia culpado diante dos trabalhadores da Rússia, por ter sido impedido pela enfermidade, por não ter intervindo de forma mais rigorosa e drástica nessa questão; os direitos dos georgianos, ucranianos e dos outros eram mais importantes do que a necessidade da centralização administrativa, além de o respeito e o caráter voluntário da URSS significarem o progresso autêntico na direção do socialismo (DEUTSCHER, 1968b). 36 Os primeiros sinais de desgaste da doença de Lênin começaram a surgir no final de 1921, entretanto, apenas em 1922, isso passou a ser a principal preocupação do Politburo41 e dos camaradas mais próximos do líder: A questão, portanto, não era exatamente a de quem substituiria Lênin, mas sim de como se disporiam as suas forças sem ele, e que espécie de maioria se formaria para proporcionar uma liderança estável. A estabilidade da liderança baseara-se, até agora, pelo menos em parte, na autoridade incontestada de Lênin ou em sua capacidade de persuasão e habilidade tática que, em geral, pelo menos em parte, na autoridade incontestada de Lênin ou em sua capacidade de persuasão e habilidade tática que, em geral, lhe permitiam conseguir a maioria dos votos para as propostas que ia apresentando à medida que surgiam os problemas (DEUTSCHER, 1968b, p. 88). Os homens do partido acreditavam que, pela popularidade e por ser visto como segundo líder do partido, Trotski seria o próximo líder. Stálin não era cogitado como futuro líder, mas criou uma facção especial no Politburo com a finalidade única de impedir que Trotski tivesse a maioria que lhe permitisse ocupar o lugar de Lênin. Desse modo foi criado o triunvirato: Stalin, Zinoviev e Kamenev42 (VOLKOGONOV, 2004). Em El diário de las secretarias de Lenin, havia uma série de ideias e sugestões que foram ditadas pelo líder, essenciais para se compreender até que ponto Lênin sabia dos perigos que ameaçavam o jovem Estado soviético e o partido e principalmente sua opinião a respeito dos grandes nomes do partido: “Trotski e Stalin”. A carta foi enviada ao Congresso, em seguida a Stalin, e, por decisão de Stalin e apoio de Kamenev e Zinoviev, esta não foi completamente divulgada no momento, assim como algumas de suas reivindicações também não foram atendidas. Sua carta e suas reivindicações só foram divulgadas 30 anos depois. As medidas principais que Lênin destacou para o regime político: propôs a retirada imediata do Secretário-Geral em razão dos indícios de autoritarismo e poder ilimitado alcançado pelo cargo, nomeando outro homem como Secretário-Geral, que fosse mais paciente, leal, cortês e atencioso para com os camaradas; o aumento de sangue novo no partido e na liderança do Estado como forma de elevar a autoridade do Comitê Central e melhorar o fundo do aparato, além de impedir os pequenos conflitos nos setores do Comitê; para essa estabilidade, era preciso prestar atenção ao perigo de uma divisão do partido, provocada por Trotski e Stalin: 41 A princípio, essa preocupação do Politburo não deveria existir. Com ou sem a presença do líder, o órgão como um todo deveria dirigir o Partido e sua vontade correspondia à da maioria (DEUTSCHER, 1968). 42 Suas ambições políticas reais até então, não tinham sido reveladas. Mostrava ser fiel à grande ideia. 37 Penso que, neste sentido, o ponto essencial do problema da estabilidade são os membros do Comitê Central, Stálin e Trotsky. As relações entre eles constituem, na minha opinião, o principal perigo de divisão do partido que poderia ser evitado e para o qual, entre outras coisas, serviria, creio eu, o aumento dos membros do Comitê Central, elevando de 50 a 100 pessoas (LÊNIN, 1974, p. 132, tradução nossa). O antagonismo entre os dois não era novidade para Lênin, mas acreditava que era apenas um choque de personalidades, não envolvia conflito de interesse de classe ou de princípio. Sua opinião a respeito de Stalin e Trotski era bem crítica, não os designando para ocupar o seu lugar: O camarada Stálin, convertido em secretário-geral, tem concentrado um poder ilimitado em suas mãos, e não estou seguro de que sempre será utilizado com prudência suficiente. Por outro lado, o camarada Trotsky, como já demonstrou sua luta contra o Comitê Central no problema do Comissariado do Povo pelas vias da comunicação, não se destaca apenas por suas capacidades eminentes. Pessoalmente, talvez seja o homem mais capaz de atuar no C.C., mas também é presunçoso em excesso e é apaixonado pelos aspectos puramente administrativos do trabalho. Estas duas características de ambos os líderes eminentes do Comitê Central atual poderiam levar acidentalmente a uma divisão do partido: e, se nosso partido não tomar as medidas necessárias para opor-se a isso, a divisão poderia vir de forma inesperada (LENIN, 1974, p. 138, tradução nossa). Lênin avaliou os dois líderes mais conhecidos do partido e deixou claro que nenhum deles estava preparado para dirigi-lo. Na realidade, deixou implícito que a velha guarda estava apta a exercer a liderança coletiva do partido, criando ressalvas para que o poder não fosse exercido por um só homem e, acima de tudo, o sistema democrático deveria apoiar aquele que melhor servisse ao país, mas foi com a ajuda da velha guarda que Stalin criou seu próprio sistema burocrático. Trotski tinha potencial para ser o futuro líder do partido, mas a velha guarda bolchevique não o considerava como um deles; não apenas pelas lembranças do seu passado menchevique, mas também por sua forte personalidade que parecia acreditar que estava acima dos leninistas, pela simples força da mente e vontade e, dessa forma, sentiam-se inferiores: Assim, quase tudo nele, sua mente fértil, sua ousadia retórica, sua originalidade literária, sua capacidade administrativa, seus métodos rigorosos de trabalho, as exigências que fazia aos companheiros e seus subordinados, seu alheamento, a ausência de trivialidade nele e até mesmo sua incapacidade de conversas miúdas – tudo isso provocava nos membros da velha guarda um sentimento de inferioridade (DEUTSCHER, 1968b, p.45). Lênin se preocupou com Trotski em razão de sua adesão tardia aos bolcheviques, além de seu extremismo de esquerda e autoconfiança excessiva que o colocou diversas vezes em 38 confronto com o Comitê Central. Segundo Volkogonov (2004), Trotski acreditava realmente que, se o desejo de Lênin de demitir o Secretário-Geral se realizasse, se tornaria líder do partido; o que não aconteceu porque o “testamento”43 não foi divulgado. Desde o final da guerra civil, a sociedade russa, sem saber, já se encontrava sob o domínio de Stalin e, mesmo sendo menos popular que Trotski, recebeu votos da velha guarda a qual o nomeou para todos os cargos que ocupou. A partir das questões relacionadas à união das repúblicas independentes, Lênin lançou duras críticas ao Secretário-Geral que eram conhecidas por Stalin, porém, não durariam muito tempo, pois, em 9 de março, Lênin sofreu o terceiro ataque de sua doença, e não conseguiu restabelecer-se: Stalin não estava inteiramente a par das providências de Lênin, mas pressentia o perigo. Conhecia seu temível adversário bastante bem para perceber que toda a sua carreira estava ameaçada. Assim, não deverá ter sido só com tristeza que recebeu a notícia da recaída de Lênin. O fato de Lênin não poder mais denunciá-lo perante o Congresso, aliviou-o antecipadamente da maior parte de seu embaraço. Ainda tinha motivos para esperar uma investida de Trotski, que podia ser um crítico perigoso, mas que podia igualmente revelar-se um lutador de músculos postiços. Tratou então de imobilizar Trotski (DEUTSCHER, 1970, p. 226). A estratégia consistia em quem dirigiria o Congresso no lugar de Lênin. Formou-se dentro do Politburo o triunvirato que era composto por Stalin, Zinoviev e Kamenev. Esta união representava poderosa combinação e praticamente controlava o partido e consequentemente, o governo; a união teve como objetivo comum impedir que Trotski assumisse a liderança do partido. Cedo ou tarde todos sabiam que a hora de Lênin chegaria: Em 21 de janeiro de 1924, Lênin morreu. Apesar de todas as tristezas e desilusões dos últimos anos, o povo lamentou sua morte como a de raros líderes da história. Na mente popular seu nome ainda simbolizava a grande promessa da Revolução, a sociedade de homens iguais e livres. As multidões enlutadas volviam os olhos inquietos para os discípulos de Lênin: qual deles iria substituí-lo na direção do país? Apesar das recentes altercações e excomunhões, o pensamento de muitos voltava-se para Trotski. Mas ele não seria visto ao lado da essa de Lênin, junto à qual o povo desfilou numa última homenagem ao líder morto, exposto em câmara ardente, nem nas numerosas cerimônias que se seguiram (DEUTSCHER, 1970, p. 240). A cerimônia solene estava em total contradição com o modo e estilo de Lênin. Na realidade, tal cerimônia foi planejada com a intenção de impressionar a imaginação do povo, para que se entregasse à exaltação do novo culto leninista. Foi essa a intenção de embalsamar o corpo de Lênin, de depositá-lo no Mausoléu da Praça Vermelha e do discurso de Stalin: 43 Receoso de uma morte súbita ou que a paralisia total o atingisse, Lênin apressou-se a escrever suas ideias e sugestões a respeito das questões internas do partido, do governo e de Stálin; com exceção dos secretários e da mulher de Lênin, Krupskaia, ninguém sabia do testamento. 39 [...] nos esquivaremos de incontáveis golpes [...] não pouparemos nossas vidas [...] na construção do reinado do trabalho na terra, não no céu. Em nome do partido, Stalin jurou honrar o título de membro do partido, proteger sua unidade, reforçar a ditadura do proletariado, fortalecer a união de operários e camponeses e das repúblicas irmanadas, e permanecer fiel ao internacionalismo (VOLKOGONOV, 2004, p. 91). Devido aos últimos acontecimentos entre Lênin e Stalin, seu juramento pôde parecer uma manifestação de hipocrisia. Entretanto, Stálin realmente se considerava discípulo de Lênin, pois há vinte anos aderiu ao bolchevismo e participou de praticamente todos os grandes acontecimentos do partido, seguindo ordens diretas do líder; considerava seu desentendimento com o líder um mal entendido, que, se não fosse a morte de Lênin, teria sido solucionado44. De acordo com Trotski (1947), o motivo pelo qual não compareceu às cerimônias fúnebres foi a falta de informação, pois estava no Cáucaso, tentando se libertar de uma infecção. Sua ausência causou aborrecimentos a muitos amigos, mas Trotski se justificou com essa versão: Stalin se orientava em suas arriscadas manobras por motivos mais tangíveis. Ele teria receado que eu conjugasse a morte de Lênin à conversa do último ano acerca do veneno, que interrogasse os médicos a respeito, e exigisse uma autópsia especial. Era, por conseguinte, muito mais seguro conservar-me à distância até que o corpo fosse embalsamado, as vísceras cremadas e um exame post mortem, inspirado por tais suspeitas, já não fosse praticado (TROTSKI, 1947, p.497). Há quem diga que Trotski não alcançou o poder, pois não esteve presente no funeral de Lênin, mas nem ele acreditou nisso. O testamento de Lênin era o único texto do mestre, que podia ter abalado a vitória de Stalin, entretanto, permaneceu desconhecido pelo partido. Após quatro meses da morte de Lênin, o testamento foi lido no Comitê Central que tinha como principal informação as considerações que excluiriam Stálin do cargo de Secretário-Geral. De acordo com o culto leninista, não havia possibilidade de desconsiderar o testamento de Lênin. Zinoviev salvou Stalin no momento mais decisivo da sua vida e de toda a URSS: „Camaradas‟, disse Zinoviev aos presentes,‟ todas as palavras de Ilich [Lênin] são leis para nós. [...] Juramos cumprir tudo o que o agonizante Ilich nos ordenou. Sabeis muito bem que cumpriremos esse juramento‟. „Mas temos a alegria de afirmar que, num determinado ponto os temores de Lênin são infundados. Refiro-me à questão relacionada com o Secretário Geral. Todos vós testemunhastes nossa 44 Não demoraria a começar explicar o leninismo, de acordo com sua interpretação e como forma de incitar as massas e chegar ao poder. E, a cada frase sua, usaria alguma de Lênin para fortalecer o que estava falando (DEUTSCHER, 1970). 40 cooperação harmoniosa nestes últimos meses; e, assim como eu, tereis a satisfação de dizer que os temores de Lênin são infundados‟ (DEUTSCHER, 1970, p. 244). Kamenev pediu que Stalin permanecesse no cargo e, se isso ocorresse, era aconselhável não divulgar o testamento de Lênin ao Congresso. Diante da situação, Krupskaia protestou em vão contra a não divulgação do testamento de seu marido. Enquanto Trotski, orgulhoso demais para intervir nesta situação que também afetava sua posição, manteve-se calado, expressando seu desprezo com caretas. A proposta de Zinoviev contra a publicação do testamento e em defesa de sua divulgação confidencial a alguns membros selecionados foi aprovada e, naquele momento, Stálin retomou sua posição com firmeza até a morte. A campanha de calúnias utilizada pelo triunvirato dentro do partido deu certo, falavase que Trotski era o Bonaparte da Revolução russa. O triunvirato venceu graças à “obscuridade” de Stalin e o apoio maciço de Zinoviev e Kamenev que estavam certos de que, comparado a Trotski, Stálin não representava perigo, erro fatal que seria comprovado pouco tempo depois. 2.2 A “Revolução Permanente” versus “Socialismo num só País” O partido [disse Trotski], em última análise, está sempre com a razão, porque o partido é o único instrumento histórico de que dispõe o proletariado para a solução de seus problemas fundamentais. Já disse que não há nada mais fácil do que admitir um erro perante o próprio partido, nada mais fácil do que dizer: todas as minhas críticas, minhas declarações, minhas advertências, meus protestos, tudo não passou de um simples erro. Camaradas, eu, porém, não posso dizer isso, porque não penso assim. Sei que não se deve estar certo contra o partido. Só se pode estar certo com o partido e através do partido, pois a história não abriu outro caminho para a realização do que está certo. Os ingleses costumam dizer: Certo ou errado, é meu país. Com justificação histórica muito maior podemos dizer: certo ou errado, em determinadas questões isoladas, é o meu partido (DEUTSCHER, 1970, p. 250). A consolidação do poder de Stalin foi possível, em grande parte, devido às favoráveis circunstâncias do momento: a morte de Lênin e a não divulgação do “testamento” resultaram na permanência do Secretário-Geral no poder. A não utilização dos últimos escritos de Lênin, assim como o apoio de alguns membros da “velha guarda” do partido facilitaram a derrubada de Trotski, a sustentação do governo ditatorial e a livre interpretação da teoria leninista como principal objetivo do novo líder. 41 Foi após a morte de Lênin, em 1924, que o debate entre Stalin e Trotski a respeito dos rumos do socialismo tomou força. Stalin defendia a ideia do “socialismo num só país”, que propunha o oposto da “revolução permanente” de Trotski. Os dois representavam a disputa da visão do mundo pequeno-burguesa e da internacionalização da revolução. Segundo Stálin (1975), o “socialismo num só país” mostrava que a Rússia deveria passar, em primeiro lugar, por uma revolução burguesa para desenvolver-se social e industrialmente e, assim, o proletariado assumiria o poder. A Rússia era um país semifeudal e atrasado, mas poderia conquistar a vitória socialista: Antes julgava-se impossível a vitória da revolução num só país, supondo-se que, para alcançar a vitória sobre a burguesia, era necessária a ação conjunta dos operários de todos os países adiantados, ou pelo menos, da maioria deles. Agora, este ponto de vista já não corresponde à realidade. Agora há que partir da possibilidade deste triunfo, pois o desenvolvimento desigual e por saltos dos diferentes países capitalistas no imperialismo, o desenvolvimento, no seio do imperialismo, de contradições catastróficas que levam a guerras inevitáveis, o incremento do movimento revolucionário em todos os países do mundo; tudo isto não só conduz à possibilidade, mas também à necessidade do triunfo do proletariado num ou noutro país (STALIN, 1975, p. 215-216). Essa ideia combatia a teoria dos críticos leninistas que consideravam utopia a tomada do poder pelo proletariado num só país ou a sobrevivência da revolução proletária, sem ser acompanhada, ao mesmo tempo, pela revolução vitoriosa noutros países. E, assim, Stálin em seus escritos criticou as posições de Trotski45 e dos “trotskistas”: quem não acreditasse nos êxitos da edificação do socialismo num só país, beneficiava indiretamente aos socialdemocratas, enfraquecia a amplidão do movimento internacional e consequentemente o internacionalismo, provocando a deturpação do leninismo (STALIN, 1975). A teoria do socialismo num só país de Stálin foi decisiva para a estratégia de derrubar Trotski, afirmando que a teoria da “revolução permanente” era o oposto do leninismo, logo, uma variante do menchevismo: “A revolução permanente de Trotski é a negação da teoria leninista da revolução proletária, e vice-versa: a teoria leninista da revolução proletária é a negação da teoria da revolução permanente” (STALIN,1975, p.123). De acordo com Procacci (1975), a teoria do “socialismo num só país” continha incertezas e obscuridades. Inicialmente a ideia foi divulgada por Stálin, entretanto, por ser 45 Trotski não considerou os camponeses como força revolucionária e, assim, lançou a “revolução permanente” em 1905. Com a palavra de ordem “sem czar, por um governo operário”; ideia oposta à de Lênin quando se tratava da aliança entre o proletariado e os camponeses, como base da ditadura do proletariado (STALIN, 1975). 42 considerado “autoridade como teórico”, Bukárin46 foi quem mais propagou a ideia entre os militantes do partido. Trotski representava o lado oposto das ideias de Stálin, acreditava em uma luta revolucionária em massa e imediata. De acordo com Procacci (1975), no momento em que a Internacional Comunista afirmava que o comunismo estava passando por relativa estabilização, Trotski proclamava a necessidade de uma recuperação revolucionária, de um regresso às origens, explicitado nas Teses de Abril e Insurreição de Outubro, como forma de reencontrar a audácia, coragem e a confiança nos recursos inesgotáveis do proletariado revolucionário russo e europeu47. Na introdução do livro A Revolução Permanente (2007), Trotski destacou a incapacidade dos epígonos48 de fazer um prognóstico histórico, pois avaliaram e analisaram o contexto de 1905, como se fosse o de 192449. De acordo com Trotski (2007), a “revolução permanente” implicava o caráter internacional da revolução socialista, que era resultado do estado da economia e da estrutura social da humanidade. Não se podia separar o internacionalismo da revolução proletária (como fizeram os epígonos), pois este era o reflexo político e teórico do desenvolvimento mundial das forças produtivas e do ímpeto mundial da luta de classes. Assim, a revolução socialista começou no âmbito nacional e se estabeleceu como um regime transitório, não podendo permanecer apenas dentro do país, pois no caso de uma ditadura proletária isolada, as contradições internas e externas aumentavam, assim como abalavam os êxitos: Se o Estado proletário continuar isolado, ele, ao cabo, sucumbirá vítima dessas contradições. Sua salvação reside unicamente na vitória do proletariado nos países avançados. Desse ponto de vista, a revolução nacional não constitui um fim em si, apenas representa um elo da cadeia internacional. A revolução internacional, a despeito de seus recuos e refluxos provisórios, representa um processo permanente (TROTSKI, 2007, p. 65). A campanha contra Trotski foi dirigida pela oposição aos três aspectos da “revolução 46 Bukárin era um dos principais membros do Politburo. Em um primeiro momento, não acreditava que poucos trabalhadores e camponeses alcançariam o sucesso do socialismo; acreditava que o auxílio dos países europeus resolveria problemas como o atraso econômico russo. Mas quando notou que a Rússia estava “sozinha”, isto é, não receberia o apoio dos outros países europeus, uniu-se a Stálin na teoria do “socialismo num só país”. 47 Por esse motivo havia sido criada a Internacional Comunista, com estrutura em diversos países e com o objetivo de ampliar e organizar o movimento revolucionário mundial. 48 Epígono significa seguidor, discípulo de um grande mestre em determinado assunto (nas letras, nas ciências, nas artes) ou representante da geração seguinte. Era assim que Trotski classificava os burocratas estalinistas que dominavam o governo soviético, após a morte de Lênin. 49 Em 1924, era muito mais fácil perceber as lacunas que não estavam evidentes em 1905. 43 permanente”50, o que era natural, pois eram partes indissolúveis e formavam o todo. Trotski (2007) também ressaltou que os epígonos separavam facilmente a ditadura democrática da ditadura socialista, tal como a revolução nacional da revolução internacional; representando para eles a conquista nos quadros nacionais, na essência, não como ato inicial, mas ato final da revolução. De acordo com Volkogonov (2004), Trotski acreditava que o “socialismo num só país” era impensável, pois manter a revolução proletária dentro dos limites nacionais significaria um regime temporário, ainda que prolongado: Para a questão de como construir o socialismo, Trotski, efetivamente deu a resposta, “pela espera da revolução mundial, impulsionando-a”. Trotski acreditava que Revoluções de Outubro espocariam no mundo, uma atrás a outras, e que o Exército Vermelho teria que ajudar outros países para a grande sublevação (VOLKOGONOV, 2004, p.104). As ideias apresentadas por Trotski em 1905 e posteriormente em 1924 a respeito do significado da revolução proletária e sua associação com a revolução internacional podiam ser fundamentadas nos Princípios do Comunismo (1847), escrito por Engels; destacando que, após a revolução industrial e consequentemente com o poder alcançado pela burguesia, todos os povos civilizados estariam interligados: Poderá esta revolução realizar-se apenas num único país? Não. A grande indústria, pelo fato de ter criado o mercado mundial, levou todos os povos da terra- e, nomeadamente, os civilizados – a uma tal ligação uns com os outros que cada povo está dependente daquilo que acontece com o outro. Além disso, em todos os países civilizados ela igualou de tal maneira o desenvolvimento social, que em todos os países a burguesia e o proletariado se tornaram as duas classes decisivas da sociedade e a luta entre elas, a luta principal dos nossos dias. A revolução comunista não será, portanto, uma revolução simplesmente nacional; será uma revolução que se realizará simultaneamente em todos os países civilizados, isto é, pelo menos em Inglaterra, América, França e Alemanha... Ela é uma revolução universal e terá, portanto, também um âmbito universal 51. 50 A teoria da revolução permanente demonstrava que o cumprimento das tarefas democráticas, proposto pelos países burgueses atrasados, conduziria diretamente à ditadura do proletariado; nisso consiste a ideia fundamental da teoria. O segundo aspecto dizia respeito à revolução permanente: proclamar para os países atrasados, que, para chegar à democracia, passariam pela ditadura do proletariado e, por isso, a democracia não era considerada como um fim em si, mas como o prólogo imediato da revolução socialista. E o terceiro aspecto implicava o caráter internacional da revolução socialista, resultado do estado da economia e da estrutura social da humanidade (TROTSKI, 2007). 51 ENGELS, F. Princípios Básicos do Comunismo [on line]. Disponível em: <www.marxists.org.> Acesso em: 20 jul. 2011. 44 Para Bukárin (1975), a teoria de Marx e Engels a respeito da “revolução permanente” era uma teoria válida, entretanto, era preciso considerar o contexto em que se encontrava a revolução e suas etapas: No decurso da revolução, muda continuamente a correlação entre as classes em luta, de que a revolução passa, continuamente, no seu desenvolvimento, de uma fase para a seguinte. A revolução passa da fase feudal para a da burguesia liberal; depois desta, passa para a pequena burguesia e, posteriormente, desta fase para a da revolução proletária (BUKÁRIN, 1975, p. 168). Portanto, para Bukárin (1975), as ideias de Trotski não tinham sentido quando colocadas em prática, no contexto soviético. Stalin (1975) defendia que os “permanentistas” estavam equivocados quando diminuíam a importância do campesinato52, pois estes priorizavam as estratégias que deveriam ser defendidas pelo partido e eram essenciais para a ruptura do regime econômico. O “socialismo num só país” era possível mesmo com o atraso econômico da Rússia, pois cada país tem seu tempo no desenvolvimento e suas contradições; aspectos que, de acordo com Stálin (1975), não eram considerados por Trotski. De acordo com Deutscher (1968b), o “socialismo num só país” favoreceu a vitória de Stálin como líder do Partido e do Estado, pois a URSS estava em um momento que precisava acreditar em sua auto-suficiência socialista. Enquanto a “revolução permanente” previa a necessidade da revolução mundial para a manutenção do Estado soviético, além de lutas e revoluções constantes: A compreensão popular da Revolução Permanente sugeria uma perspectiva de levantes contínuos e lutas intermináveis e a impossibilidade, para a Revolução Russa, de consolidar-se e atingir certa margem de estabilização. Ao denunciar a Revolução Permanente, os triúnviros apelaram para o desejo popular de paz e estabilidade. Na verdade, a teoria de Trotski pretendia que a sorte da Rússia bolchevique dependia, em última instância, da difusão da Revolução no exterior [...] Os bolcheviques sentiam-se mais isolados do que nunca. Encontraram uma defesa psicológica em seu sentimento complacente de auto-suficiência revolucionária da Rússia. A teoria de Trotski ofendia e ridicularizava tal sentimento (DEUTSCHER, 1968b, p.171). Stálin aproveitou o sentimento dos bolcheviques para conquistá-los com suas promessas de paz e estabilidade, proclamando a autossuficiência soviética; os que não 52 Para Preobrajensky, só a superindustrialização, à custa do setor agrícola, poderia promover um Estado com base industrial e a possibilidade do socialismo; papel que o campesinato representava para Stálin (VOLKOGONOV, 2004). 45 conquistou, afastou do partido53. Dessa forma, afastou do partido Trotski e todos os que compartilhavam suas ideias, e assim, tornou-se vitorioso. 2.3 A Retomada do “Império”: O Governo de Josef Stalin [Bukárin] A época de transição para o socialismo coube ao gênio de Lênin, e ele personificou aqueles tempos tumultuosos com seus movimentos fortes. [...] Porém, cada época produz as pessoas de que necessita, e outros passos da história puseram Stalin no seu lugar, cujo centro de gravidade do pensamento e da ação constitui a nova fase da história, quando o socialismo foi conquistado para sempre sob sua liderança. Todas as funções ativas foram simbolizadas nas conquistas vitoriosas no grande e stalinista Plano dos Cinco Anos, e a teoria se alia à prática em gigantesca escala social (VOLKOGONOV, 2008, p. 87). Quando alcançou efetivamente o poder, em 1925, Stalin54 se deparou com um país que não se tinha recuperado completamente das consequências da Primeira Guerra Mundial e da Guerra civil (1918-1921) e, além disso, o sistema internacional tinha alcançado certa estabilidade: Stálin e Bukárin comunicaram ao partido que o período de tensão revolucionária na Europa chegara ao fim e que o capitalismo estrangeiro alcançara um grau de estabilidade que certamente deixaria isolada a Rússia Soviética por muito tempo ainda [...] Stálin acentuou as circunstâncias que poderiam destruir a “estabilização”; mas o teor geral de suas palavras conduzia também à conclusão de que qualquer crise revolucionária no exterior pertencia agora a um futuro mais ou menos remoto (DEUTSCHER, 1970, 273). Os primeiros meses do governo de Stalin marcaram a dissolução do triunvirato e o início de suas contribuições teóricas que arrancaram a essência humanística do socialismo, substituindo-a pelo “socialismo sacrificial”: O stalinismo foi um misto de burocracia e socialismo de quartel adornado com terminologia dogmática [...]. O socialismo autêntico ocorre quando o homem é o centro das atenções, e onde a democracia, o humanismo e a justiça social são propriedades intrínsecas. Uma abordagem dessas não tem lugar para a violência, para o distanciamento do povo do poder, para líderes semideuses (LEWIN, 2007, p.121). 53 A crença no “socialismo num único país” tornou-se prova suprema de lealdade ao partido e ao Estado. Nos dez ou 15 anos que se seguiram, todos os que não passavam nesta prova eram condenados e castigados (DEUTSCHER, 1970). 54 Tinha à sua disposição o tesouro da Internacional, do qual o partido russo era o maior contribuinte e os partidos europeus eram os maiores dependentes (LEWIN, 2007). 46 Tornara-se o líder supremo do partido e do Estado, entretanto, só podia afirmar sua liderança de maneira constitucional, como porta-voz da maioria do Politburo55. Como declarou o fim do triunvirato, Stálin dependia do apoio de três membros: Bukárin, Rikov e Tomski. De acordo com Deutscher (1970), o novo arranjo coincidiu com a formação de uma ala direita no partido e no Politburo, representada por: Bukárin, Rikov e Tomski contra Zinoviev e Kamenev (ala esquerda)56. A Nova Política Econômica dos anos 20, embora bem sucedida na restauração dos níveis mínimos de viabilidade econômica e política, foi insuficiente em relação ao que era necessário para enfrentar os desafios internos e externos da Rússia: A Nova Política Econômica deu aos camponeses a oportunidade de negociarem sua produção, depois do pagamento de uma taxa fixa em espécie [...] Embora melhorasse muito a produção de grãos durante o período de reconstrução, foi principalmente o abastecimento de cereais para consumo interno que aumentou, ao passo que a utilização desses grãos para o comércio estatal se atrasou, e a produção total tinha ainda um longo caminho para alcançar os níveis antes da guerra. Os baixos preços pagos aos camponeses e a escassez de bens manufaturados para venda nas vilas perpetuavam essa situação [...] A NEP proporcionava segurança para os camponeses pobres e de situação mediana, e naturalmente, também fortalecia a posição dos kulaks (VOLKOGONOV, 2004, p.161). Devido ao rebaixamento da taxa em espécie, o excedente agrícola ficou nas mãos dos camponeses remediados e bem sucedidos, sendo que o poder de compra dos camponeses cresceu proporcionalmente. No entanto, havia escassez de bens no país todo e, portanto, os camponeses não estavam dispostos a vender os grãos, já que não tinham diversidade de bens: O descontentamento cresceu e tornou-se motivo de inquietação. As esperanças na criação de subsídios não se concretizaram, empréstimos dos estados capitalistas não se materializaram, e o comércio de exportação nem chegou a 50% do nível anterior à guerra. Um milhão e meio de desempregados enchiam as divisões de oferta de ocupações. Um em cada dois adultos do sexo masculino não sabia ler ou escrever. Não havia como comprar máquinas e ferramentas. Na realidade, nenhuma construção do vulto em curso. Mesmo assim, os jornais estampavam que o país vivia as vésperas de mudanças enormes. Parecia que o jovem estado não tinha escolha: para sobreviver num mundo complexo e perigoso tinha que correr (VOLKOGONOV, 2004, p.113). 55 A vontade do Politburo expressava-se constitucionalmente através do voto majoritário, em 1925, este era composto: Stalin, Zinoviev, Kamenev, Trotski, Bukárin, Rikov e Tomski. Com o fim do triunvirato, Stalin dependia de três membros: Bukárin, Rikov e Tomski. 56 Stalin não pertencia a nenhuma dessas alas. Razões táticas levaram-no a unir-se aos porta-vozes da direita, de cujo voto dependia no Politburo. Além disso, Bukárin, Rikov e Tomski aceitaram o socialismo num único país; Bukárin podia ser considerado coautor da doutrina, pois forneceu-lhe instrumentos teóricos e polimento intelectual (DEUTSCHER, 1970). 47 A questão primordial no âmbito econômico era a interpretação prática da política da 57 NEP . Era preciso definir o ritmo da industrialização da Rússia e a atitude do governo com relação à agricultura privada, sendo que a industrialização (até fins de 1928, foi deixada de lado) e as fazendas particulares precisavam de capital. Ao mesmo tempo, os camponeses58 exigiam a extensão das concessões determinadas pela NEP (restrições de impostos que pesavam sobre a agricultura, restrições referentes ao aluguel de mão-de-obra e ao arrendamento de terras a longo prazo). O debate sobre os rumos da NEP foi um dos momentos mais importantes para o enfraquecimento de Trotski na disputa pela sucessão de Lênin. Seu discurso no Congresso, ao contrário de todos os outros, foi direto e impiedoso, falou apenas de política econômica; para ele, política e planificação econômica eram assuntos primordiais: Fez ao Partido um apelo para que controlasse o destino econômico do país e atacasse a grande e difícil tarefa da acumulação primitiva socialista. Analisou a experiência de dois anos da Nova Política Econômica e redefiniu-lhe os princípios. O duplo propósito da N.P.E era, argumentou ele, desenvolver os recursos econômicos da Rússia e dirigir tal desenvolvimento pelos canais socialistas. O aumento da produção industrial ainda era lento, estando atrasado em relação à recuperação da agricultura privada (DEUTSCHER, 1968b, p. 112). Após ter alcançado o poder, Stalin optou por defender os mujiques e atacar os kulaks59, tendo como consequência a redução do imposto agrícola e a remoção das restrições relacionadas ao arrendamento de terras, ao contrato de lavradores e à acumulação de capital. A posição adotada por Stalin foi duramente criticada pela ala esquerda que não concordava com o trabalho forçado dos camponeses nas fazendas coletivas (na realidade seriam as amplas fazendas dos kulaks), defendendo que a transição da agricultura particular para a coletiva deveria ser processada gradativamente, com o próprio consentimento dos camponeses. 57 Com a NEP, a economia do país era mista, a indústria de propriedade do Estado formava o setor socialista. No comércio e na pequena indústria, prevalecia a empresa privada e a propriedade particular dominava a agricultura. 58 Os camponeses dividiam-se em três grupos: fazendeiros “poderosos” ou ricos que contratavam mão-de-obra e eram conhecidos como kulaks; os camponeses pobres que possuíam pequenas propriedades, mas também se alugavam como trabalhadores e eram conhecidos como byednyaks; e o camponês médio que era o pequeno proprietário independente, que, nem empregava trabalhadores, nem alugava sua força de trabalho a outros, era conhecido como serednyak; os camponeses pobres e médios também eram conhecidos como mujiques (DEUTSCHER, 1970). 59 A ala direita (Bukárin, Rikov e Tomski) queria que o governo estimulasse o desenvolvimento das fazendas prósperas, que eram capazes de abastecer as cidades, sendo assim, os camponeses médios e pobres produziriam para o seu próprio sustento (Bukárin propôs que os camponeses “enriquecessem”). Também acreditava que os fazendeiros prósperos não constituíam ameaça ao socialismo, de modo que o governo dominava a indústria, o transporte, os bancos e os “postos de comando” da economia nacional. A oposição era representada por Zinoviev e Kamenev, que denunciavam a política pró-mujique e defendiam que, quanto mais fortes se tornassem os kulaks, mais especulariam com a produção agrícola, elevando os preços para a população urbana, além de exigirem novas concessões do governo (DEUTSCHER, 1970). 48 O XIV Congresso aprovou a resolução assegurando que, “no geral, a vitória do socialismo (não no sentido de sua vitória final) é definitivamente possível em um só país”, retirou Trotski do cargo de Comissariado de Guerra (continuava como chefe das Forças Armadas), concordou com os novos rumos da NEP (destacando a importância da industrialização) e serviu como “mesa de debate” para a nova oposição que surgira. Após as divergências e “ataques” públicos entre os antigos triúnviros e Stalin, no XIV Congresso, o novo líder derrotou Zinoviev e Kamenev; que protestaram contra o domínio do SecretárioGeral e tentaram tardiamente informar ao partido a respeito do testamento de Lênin: [...] discurso da ala esquerda] Somos contra a criação de uma teoria de “liderança”, somos contra a confecção de um “chefe”. Somos contra um secretariado, que, na prática, reúne a política e a organização, postando-se acima do órgão político. Somos a favor de um Politburo organizado internamente de forma tal que, enquanto congrega os políticos do partido, seja genuíno detentor, órgão superior que é, de poder total; e somos a favor de um secretariado subordinado ao Politburo e executor das instruções deste. Pessoalmente, digo que nosso Secretário-Geral não é a pessoa para unir em torno de si a equipe do antigo QG bolchevique. Precisamente por ter dito isso, em pessoa e inúmeras vezes, ao camarada Stálin, e por ter repetido incontáveis vezes ao grupo de companheiros leninistas, é que reitero meu ponto de vista neste congresso: cheguei à conclusão de que o camarada Stálin não pode desempenhar o papel unificador da equipe bolchevique. Comecei esta parte de meu discurso com as seguintes palavras: „somos contra a teoria de liderança de um só homem, somos contra a criação de um chefe!‟ (VOLKOGONOV, 2004, p .61). O discurso de Kamenev não surtiu resultados contra Stalin, que se firmava cada vez mais como “líder supremo” do Estado soviético a partir de sua “defesa do leninismo”, “liderança coletiva” e a promessa de tornarem públicas as demandas urgentes de Lênin: restauração da economia nacional, desenvolvimento de cooperativas, reativação do comércio e alfabetização. Após a derrota da ala esquerda, foi formada uma nova aliança entre Zinoviev, Kamenev e Trotski; aliança que estava enfraquecida devido às inimizades e conflitos anteriores entre os membros. Em 1926, Stalin iniciou a eliminação de seus opositores do Politburo e posteriormente, do partido e do “mundo”: Em fins de outubro de 1926 ele expulsou Trotski do Politburo. Entre os membros desse órgão não se encontrava mais nenhum representante da oposição. Depôs Zinoviev da presidência da Internacional Comunista e denunciou perante o Executivo da Internacional, que confirmou a deposição. Uma conferência russa do partido endossou as modificações no Politburo e atendeu aos pedidos de readmissão ao partido [...]. Ficou, assim, estabelecido um padrão para futuras expulsões, retratações e readmissões (DEUTSCHER, 1970, p. 278-279). 49 O Politburo eleito depois do congresso era composto de maneira a garantir-lhe o predomínio. Consistia em nove membros: Stálin, Molotov, Kuibischev, Rudzutak, Bukárin, Rikov, Tomski, Voroshilov e Kalinin; sendo que Stálin tinha quatro votos garantidos (o dele, Molotov, Kuibischev e Rudzutak). À sua maneira, o czar vermelho usava e descartava seus antigos aliados; foi o que ocorreu com os que o auxiliaram a alcançar o poder (Zinoviev e Kamenev) e com os que auxiliaram a manter-se no poder nos primeiros anos (Bukárin, Rikov e Tomski): Nos primórdios da controvérsia, em julho de 1928, Bukárin pediu apoio a Kamenev, exatamente como Kamenev e Zinoviev tinham pedido a Trotsky. Nos dois casos, as „revelações‟ feitas pelos antigos colegas de Stálin foram idênticas, repetindo-se no mesmo clima de pânico misturado a uma vaga esperança. Zinoviev e Kamenev tinham falado do perigo que ameaçava sua vida e a de Trotsky. “Ele nos estrangulará”, sussurrou Bukárin aterrorizado para Kamenev. “É um intrigante sem princípios que subordina tudo à sua sede de poder. É capaz de modificar suas teorias a qualquer momento só para se livrar de uma determinada pessoa”. „Consideramos a linha seguida por Stálin fatal para a Revolução. Essa linha está nos conduzindo ao abismo. Nossos desacordos com Stálin são muitíssimos mais sérios do que nossos desentendimentos com você‟ (DEUTSCHER, 1970, p. 283). Mesmo tendo derrotado Trotski60 dentro do partido, Stalin sabia que continuava sendo seu principal adversário e, por isso, em 1929 propôs ao Politburo a expulsão de Trotski da Rússia. Após ter finalmente afastado seu principal opositor da Rússia, passou a dispersar os líderes da ala direita61: Do comitê político do tempo de Lenin ninguém mais resta que Stalin: dois dos seus membros, Zinoviev e Kamenev, que durante os longos anos da emigração foram os mais íntimos colaboradores de Lenin, cumprem, no momento em que escrevo, uma pena de dez anos de reclusão por um crime que não cometeram; três outros, Rikov, Bukárin e Tomski foram completamente afastados do poder, embora se tenha recompensado a sua resignação concedendo-lhes funções de segundo plano; por fim, o autor destas linhas foi banido. A viúva de Lenin, Krupskaia, é mantida sob suspeita, nunca tendo sabido, por mais esforços que tenha feito neste sentido, adaptar-se ao Termidor. Os atuais membros do comitê político ocuparam, na história do Partido bolchevique, lugares secundários [...]. A regra segundo a qual o comitê político tem sempre razão, e que ninguém poderá ter razão, seja em que caso for, contra ele, é aplicada ainda com mais vigor (TROTSKY, 2007, p.128). 60 Ele e sua família entraram para as fileiras dos inimigos irreconciliáveis do socialismo stalinista a partir da preservação da reputação de Trotski como revolucionário e o “escolhido” por Lênin como seu sucessor; continuou publicando coleções de suas obras, com o objetivo de atingir Stálin, seu estado ditatorial, colocando seu governo como a “caricatura do socialismo”. 61 Rikov foi deposto do cargo de primeiro ministro do Governo Soviético, Tomski foi removido da liderança dos sindicatos (acusado de fazer uso da sua influência para rebelar os sindicatos contra a industrialização) e Bukárin foi demitido da liderança da Internacional Comunista (tinha substituído Zinoviev) e do Politburo (DEUTSCHER, 1970). 50 A ascendência do czar vermelho estava completa. Sua luta pelo poder chegara ao fim, com todos os seus adversários eliminados; nenhum membro do Politburo tentaria desafiar sua autoridade. Mesmo com a vitória política, Stalin se deparava com a derrota econômica e, em 1928, como tinha sido previsto por Zinoviev e Kamenev, houve um novo surto de fome pelo país, o que resultou em ataques de Stálin aos kulaks, afirmando que, ao privar o governo de cereais, “destruíam a política econômica soviética”62, forçando o Politburo a adotar “medidas de emergência”63; além das propostas de Stalin relacionadas ao ataque aos camponeses ricos, a imediata coletivização da agricultura e aceleração da industrialização: Por natureza, Stálin era pessoa muito cautelosa; no entanto, lançou-se na coletivização total de milhões de propriedades camponesas, sabendo que aquela massa de gente semi-alfabetizada não estava preparada para ela [...]. O camponês deveria ser afastado dos meios de produção e distribuição de alimentos. Com efeito, Stálin dispôs-se a trocar o status social do camponês produtor livre para trabalhador sem direitos [...]. O método do comando na economia substituiu as leis econômicas e, gradualmente, provocou a morte da NEP, juntamente com o desaparecimento do interesse material do camponês, de seu espírito empreendedor e de seu compromisso com o trabalho (VOLKOGONOV, 2004, p. 164). O primeiro Plano Quinquenal previa que quase a totalidade (85%) das propriedades dos camponeses fosse transformada em cooperativas no prazo de cinco anos, sendo que até 20% seria de fazendas coletivas. Para a coletivização forçada, o regime precisou equipar-se com um vasto aparato coercitivo que resultou em milhões de mortes nos anos 30: Alguns meses mais tarde, estava em pleno andamento a coletivização „geral‟; e a agricultura individual estava condenada. Antes que o ano terminasse, Stálin declarou: “Conseguimos afastar o grosso do campesinato em numerosas regiões da velha trilha do desenvolvimento capitalista”. O Politburo esperava que as fazendas estatais e coletivas fornecessem às cidades metade de todos os víveres. Nos últimos dias do ano as ordens de Stálin para que fosse efetuada uma completa „ofensiva contra os kulaks‟ ressoaram ameaçadoras pelo Kremlin afora. „Precisamos esmagar os kulaks, eliminá-los como classe. [...]. A menos que nos dediquemos a esses objetivos, qualquer ofensiva será mera arenga, altercação, palavrório oco [...]. Precisamos atacar os kulaks com uma força tal que impeça definitivamente o seu ressurgimento‟ (DEUTSCHER, 1970, p.288). A palavra “deskulakização”64 passou a fazer parte do vocabulário e cobriu o tratamento dispensado a mais de um milhão de propriedades camponesas, nem a todos kulaks. 62 Os kulaks e os camponeses médios seguravam seus estoques à espera de que os preços subissem e houvesse mais bens no mercado. 63 Nas palavras de Stalin, caracterizavam-se por arbitrariedade administrativa, violação da lei revolucionária, ataques às casas dos camponeses e buscas ilegais (DEUTSCHER, 1970, p. 282). 64 O partido justificava sua “ditadura” pela pureza de seus ensinamentos, sua fé. Suas escrituras eram os ensinamentos do marxismo-leninismo, considerados verdades “científicas” (MONTEFIORE, 2006). 51 Stalin precisou culpar pelos problemas econômicos da URSS; esquecendo-se de que os verdadeiros problemas econômicos estavam na administração ineficiente do Estado: Por deliberação de um Politburo chefiado por Molotov e sob pressão de Stálin, o comitê central, em janeiro de 1930, aprovou uma resolução “Sobre medidas para liquidação das fazendas kulaks em áreas de coletivização total”. Essa diretriz do partido provocou tensão no campo por fechar as fazendas coletivas aos kulaks, cuja situação tornou-se desesperadora. Foram também usadas contra eles as medidas mais impiedosas, inclusive o confisco total de suas posses e a deportação das famílias, para regiões distantes. Como reação, os ataques kulaks ao regime soviético aumentaram, por vezes se estendendo por amplas áreas. As ações contra o setor mais bem sucedido dos camponeses resultaram numa onda de protestos, banditismo e sublevações armadas contra as autoridades (VOLKOGONOV, 2004, p. 169). A era do terror imposta por Stalin teve como base de sustentação a coletivização forçada e, mesmo indiretamente, teve o apoio do partido e de seus membros. A coletivização forçada dos kulaks favoreceu a fuga dos cidadãos soviéticos para o exterior; Stalin repreendeu fortemente tal acontecimento: Stálin propôs: Os indivíduos que se recusarem a retornar à URSS se colocarão fora da lei. Por se fora da lei implica: a) o confisco de todas as posses da pessoa condenada; b) a execução da pessoa condenada vinte e quatro horas depois da confirmação de sua identidade. Esta lei tem força retroativa (VOLKOGONOV, 2008, p. 89) Esta nova lei foi utilizada para a execução de assassinatos secretos no exterior, de quem quer que fosse considerado inimigo do regime. Foi o primeiro terror em massa imposto por Stalin em seu próprio país. Essa coletivização mal planejada da agricultura65 custou nove milhões e quinhentas mil vidas; mais de um terço delas haviam sido fuziladas ou torturadas, pereceram em longas e penosas marchas para o exílio ou morreram nas terras geladas da Sibéria, e o restante morreu de inanição. Este era o preço do progresso (VOLKOGONOV, 2008). Além da coletivização forçada66, Stalin tinha planos para acelerar a industrialização e perseguia os opositores. Conservando sua opinião, iniciou a “revolução industrial” sem saber os efeitos desastrosos que esta poderia causar: [...] eles iriam construir o socialismo imediatamente e abolir o capitalismo. Seu programa industrial, o Plano Quinquenal, faria da Rússia uma grande potência que 65 A Rússia rural transformou-se em um “pandemônio”. A maioria dos camponeses enfrentou o governo em uma oposição desesperada; a coletivização degenerou numa operação militar, numa cruel guerra civil. 66 A “revolução agrária” de Stalin condenou a agricultura soviética a décadas de estagnação. 52 nunca mais seria humilhada pelo Ocidente, sua guerra no campo exterminaria para sempre o inimigo interno, os kulaks, e retornaria aos valores de 1917. Foi Lênin que disse: „Terror de massa impiedoso contra os kulaks [...]. Morte a eles!‟. Milhares de jovens compartilhavam desse idealismo. O Plano exigia um aumento de 110% da produtividade que Stálin. Kuibichev e Sergo insistiam que era possível porque tudo era possível. „Diminuir o ritmo significa ficar para trás‟, explicou Stálin em 1931. „E os retardatários são derrotados! Mas não queremos ser derrotados [...]. A história da velha Rússia consistia [...] em ser derrotada [...] devido a seu atraso‟ (MONTEFIORE, 2006, p. 69). No final do primeiro Plano Quinquenal, seis décimos de todas as propriedades estavam coletivizadas67 e o processo de industrialização estava encaminhado (seria concluído apenas no segundo Plano Quinquenal”68); seu objetivo estava praticamente cumprido. Foi no final da década de 30 que a “segunda revolução industrial” começou a apresentar resultados na Rússia; a capacidade industrial da Rússia era quase a mesma da Alemanha (mas inferior em eficiência e capacidade de organização, assim como os padrões de vida do povo). No âmbito político, em 1935, Stalin providenciou uma nova constituição que seria a “mais democrática do mundo”, para substituir a adotada em 1924. A carta refletia a nova base industrial do Estado, a destruição dos kulaks, a vitória do sistema de fazendas coletivas e a liquidação completa da propriedade privada. Tendo eliminado os elementos “antagônicos” da sociedade, propunha um sistema eleitoral “democrático”, com base no voto universal, direto e secreto, substituindo o sistema baseado em classes da antiga constituição: A promessa de oferecer aos cidadãos soviéticos a liberdade de votar „nos que eles quiserem votar‟ é mais uma metáfora estética que uma fórmula política. Os cidadãos soviéticos não terão o direito de escolher os seus „representantes‟ senão entre os candidatos que lhes serão designados, sob a égide do Partido, os chefes centrais e locais. O partido bolchevique exerceu sem dúvida um monopólio político no primeiro período da era soviética. Mas identificar estes dois fenômenos, seria tomar a aparência pela realidade. A interdição dos Partidos de oposição foi uma medida provisória, ditada pelas necessidades da guerra civil, do bloqueio, da intervenção estrangeira e da fome. E o Partido governante que era nesse momento a organização autêntica da vanguarda proletária, tinha uma vida bastante rica [...]. Agora que o socialismo venceu “definitiva e irrevogavelmente” a formação de facções no partido é punida com internação no campo de concentração, senão com uma bala na nuca (TROTSKI, 2007b, p. 255-256). Stalin era candidato em um sistema eleitoral que só era democrático e representativo no nome, pois não havia opositores e todos tinham que ser aprovados pelo Partido. O czar 67 Com as “reformas stalinistas” surgiram os kolkhozes (membros do kolhkoz, que deveria ser uma espécie de cooperativa) que deveriam partilhar dos lucros da fazenda, tendo o direito de possuir uma pequena extensão de terras, aves e poucas cabeças de gado; com o passar do tempo, verificou-se uma diferenciação social, existindo kolkhozes ricos e pobres (DEUTSCHER, 1970). 68 Os Planos Quinquenais de Stálin possibilitaram a Rússia a produzir canhões, tanques e aviões em grande quantidade, mas o mérito principal foi ter habilitado o país a modernizar-se, a transformar a sociedade (DEUTSCHER, 1970). 53 vermelho sabia que todos os candidatos já tinham sido designados para seus cargos e ele mesmo havia assinado a lista dos “servidores do povo”. Entretanto, foi necessário um espetáculo político para demonstrar como as eleições de 1937 foram “democráticas e livres”, para Stalin: Jamais houve antes no mundo eleições tão genuinamente livres e tão genuinamente democráticas, jamais! [...] Eleitores, o povo espera que seus deputados sejam ativistas tão claros e tão precisos quanto Lênin [aplausos], que não tenham medo no combate e sejam impiedosos com os inimigos do povo, como Lênin foi [aplausos], tão imunes a qualquer espécie de pânico como Lênin [aplausos], tão sábios e ponderados na decisão de questões difíceis, que exijam visão ampla e percepção multifacetada dos prós e dos contras como Lênin [aplausos], que sejam corretos e honestos como Lênin [aplausos] e que amem o povo como Lênin amou [aplausos] (VOLKOGONOV, 2008, p. 80). Sem as mentiras e a força, o regime soviético não poderia existir. As eleições sem seleção de candidatos e, como pano de fundo, o derramamento de sangue, criavam um clima de permanente medo em que os votos de aproximadamente 100% constituíam o resultado “natural” das eleições. Stálin configurou um sistema com base em uma ideologia infalível e fundamental, em um partido que contava com legiões de burocratas, com um chefe único e infalível que era um “deus” terreno, em uma grande máquina militar e vigilância política total exercitada pelos “órgãos punitivos”; neste sistema, os indivíduos se caracterizavam como pequenas engrenagens da máquina que executava a vontade do ditador: É fácil constatar até que ponto Stalin se afastou do que até então se considerava a corrente central do pensamento socialista e marxista. O que seu socialismo tinha em comum com a nova sociedade, como fora imaginado pelos socialistas de quase todos os tipos, era a propriedade pública dos meios de produção e planejamento. Diferia na degradação a que submetera certos setores da comunidade, assim como no recrudescimento das desigualdades sociais flagrantes em meio à pobreza que a Revolução herdara do passado. Mas a diferença básica entre o stalinismo e a concepção socialista tradicional residia nas respectivas atitudes para com o papel da força na transformação da sociedade [...]. A concepção que Stálin tinha do papel da força política, tal como a vemos refletida mais em seus feitos que em suas palavras, patenteia a atmosfera do totalitarismo do século XX. Stálin podia ter parafraseado o velho aforismo marxista: a força já não é a parteira – a força é a mãe da nova sociedade (DEUTSCHER, 1970, p. 310). Além das “conquistas” econômicas e políticas, a década de 30 marcou o lado mais obscuro do governo Stálin, conhecido como “Terror”. Período em que ocorreu uma série de julgamentos e expurgos em que ele destruiu quase toda velha guarda bolchevique e todos aqueles que estavam contra o regime. Deutscher (1970) encontrou semelhanças entre Stalin e Robespierre: 54 Esse período tem sido frequentemente comparado com a fase derradeira da revolução jacobina – o regime da guilhotina – na França [...]. No “reino do terror” de Stálin, como no de Robespierre, houve a mesma característica macabra, as mesmas cores negras de crueldade irracional, o mesmo horror mitológico que a visão de uma revolução devorando os próprios filhos não deixa de provocar [...]. Já vimos Stálin transformar-se no líder da facção centrista do bolchevismo. Vimo-lo, apoiado a princípio pela direita bolchevista, derrotar a esquerda e voltar-se depois contra a direita. Vimo-lo, finalmente, como líder triunfante de sua facção, apossar-se sozinho do poder (DEUTSCHER, 1970, p. 311-312). O assassinato de Kirov, em 1934, foi o marco inicial para a série de expurgos que ocorreria; o povo acreditou que ex-revolucionários estavam envolvidos com atividades terroristas subversivas. Os primeiros suspeitos da morte de Kirov foram Zinoviev e Kamenev, submetidos a um julgamento secreto e persuadidos a “confessar” o crime; os prisioneiros recusaram-se a fazer tal confissão, entretanto, Zinoviev “confessou” em público que os terroristas deveriam estar inspirados na velha propaganda da oposição69. Stalin estava disposto a atacar seus verdadeiros oponentes e evitar a proliferação70, pois sabia que a velha geração revolucionária, apesar de exausta e humilhada, não se converteria de bom grado ao “milagre”, mistério e autoridade e sempre o consideraria um falsificador dos primeiros princípios e um usurpador. Todos os velhos bolchevistas foram acusados de tentar assassinar Stalin, restaurar o capitalismo, destruir o poder militar e econômico do país, envenenar ou matar de qualquer outro modo multidões de operários russos e de colaborar, nos primeiros dias da Revolução, com os serviços de espionagem da Grã Bretanha, França, Japão e Alemanha: Dessa série interminável de julgamentos públicos e secretos, quatro foram de maior importância: “o julgamento dos dezesseis” (Zinoviev, Kamenev, Smirnov, Mrachkovski e outros) em agosto de 1936; “o julgamento dos dezessete” (Piatakov, Radek, Sokolnikov, Muralov, Serebriakov e outros) em janeiro de 1937; “o julgamento dos vinte e um” (Rikov, Bukárin, Krestinski, Rakovski, Yagoda e outros) em março de 1938. Entre os colocados no banco dos réus nesses julgamentos, achavam-se todos os membros do Politburo de Lênin, com exceção de Stalin e de Trotski. Este, embora ausente, era o principal acusado (DEUTSCHER, 1970, p. 335). Depois de destruir o primeiro grupo de possíveis líderes do governo, Stalin eliminou o segundo, o terceiro, o quarto e assim por diante. Acusou todos que tinham relações com os velhos bolcheviques, pois precisava garantir a eliminação dos adeptos vingadores das vítimas, 69 Zinoviev foi condenado a dez anos de trabalhos forçados e Kamenev, a cinco. Stalin não tinha intenção de manter os dois velhos bolchevistas na prisão, pois acabariam transformados em mártires e se restabeleceriam; o desejo do líder era fazê-los confessar o crime. 70 Dissolveu a Sociedade dos Velhos Bolchevistas, a Sociedade dos Antigos Presos Políticos e a Academia Comunista, instituições nas quais o espírito do bolchevismo encontrava seu refúgio. 55 além de serem julgados em segredo; muitos foram executados sem julgamento porque se recusaram a confessar e retratar os crimes que não tinham cometido. De acordo com Trotski: Stálin é como um homem que quer saciar a sede com água salgada. Condenou milhares à morte e mandou centenas de milhares para as prisões e campos de concentração. A própria natureza de seu plano forçava-o a agir dessa maneira. Propusera-se destruir todos os homens capazes de formar um governo que pudesse substituir o que ele chefiava. Mas cada um desses homens tinha seu crédito, muitos anos de serviço durante os quais haviam preparado e promovido administradores e oficiais, fazendo muitos amigos (DEUTSCHER, 1970, p. 343). As consequências do terror foram sentidas na economia, na burocracia, no partido e na vida cultural. No início de 1938, os danos humanos, econômicos e políticos e seu custo eram tais que uma mudança de rumo era essencial e quase previsível: De acordo com algumas fontes, os anos de 1937-8 registraram a prisão de 1.372.392 pessoas, das quais 681.692 foram mortas. Os números fornecidos por Kruschev ao plenário do Comitê Central, em 1957, eram um pouco diferentes: mais de 1.500.000 presos e 68.692 mortos (as diferenças derivam dos critérios empregados pelos estatísticos do KGB). Dados relativos a 1930-53 indicam 3.778.000 presos e 786 mil executados (LEWIN, 2007, p. 139). A nova geração era composta pela nova intelligentsia, que tinha pouco ou nenhum conhecimento das ideias principais do partido e não estava interessada em tê-las. De acordo com Trotski (2007b), uma contrarrevolução era inelutável, pois a burocracia, além de ser um aparelho de coação, era também causa permanente de provocação; a própria existência de uma casta de senhores mentirosos e cínicos não podia deixar de suscitar uma revolta escondida. O governante esforçava-se por perpetuar e fortalecer os órgãos de coerção e não media esforços para conservar seus rendimentos: A divinização cada vez mais imprudente de Stálin é, apesar do que tem de caricatural, necessária ao regime. A burocracia tem necessidade de um árbitro supremo inviolável, primeiro consul à falta de um imperador, e leva aos ombros o homem que melhor responder às suas pretensões de domínio. A „firmeza‟ do chefe tão admirada pelos diletantes literários do Ocidente, não é mais do que a resultante da pressão coletiva de uma casta, pronta a tudo para se defender. Todo funcionário professa a fórmula „o Estado sou eu‟: todos se reconhecem sem dificuldade em Stálin. Stálin personifica a burocracia e este é o fato que molda a sua personalidade política (TROTSKI, 2007b, p.264). O cesarismo ou bonapartismo parecia elevar o poder acima da nação e assegurava aos governantes uma independência aparente relativamente às classes; o stalinismo construiu um 56 novo tipo de bonapartismo. O intuito verdadeiro de Stalin era destruir os homens que tinham possibilidade de dar ao povo outros tipos de governo diferentes do seu: Os atos terroristas são, por si sós, incapazes de subverter a oligarquia burocrática. O burocrata, considerado individualmente, pode temer o revólver; a burocracia no seu todo, explora com êxito o terrorismo, para justificar as suas próprias violências, não sem acusar os seus adversários políticos (os casos de Zinoviev, Kamenev e outros). O terrorismo individual é a arma dos isolados, dos impacientes ou desesperados, pertencendo estes, muitas vezes, à jovem geração da burocracia. Mas, como na autocracia, os crimes políticos anunciam que a atmosfera se carrega de eletricidade e fazem pressentir uma crise (TROTSKI, 2007b, p. 271). Em 1939, os expurgos públicos chegaram ao fim. Do México, Trotski71 continuou a atacar a política do “coveiro da revolução”, denunciando os julgamentos e esforçando-se inutilmente para dar impulso à Quarta Internacional. A vitória completa do extermínio dos velhos bolcheviques ocorreu, em 1940, quando Trotski foi assassinado em sua casa. Assim, Stalin tornava seu poder mais absoluto do que nunca: A adoração e o culto ilimitado com que a população cerca Stálin é a primeira coisa que causa admiração no visitante da União Soviética. Em todos os cantos, em cada intercessão de ruas, em lugares adequados e inadequados, podem-se ver gigantescos bustos e estátuas de Stálin. Os discursos ouvidos, não apenas os políticos, mas até sobre assuntos científicos e artísticos, são preparados como glorificação a Stálin, e por vezes, tal definição toma formas de mau gosto (VOLKOGONOV, 2004, p. 236). O socialismo de Stalin tinha em comum com o pensamento marxista a propriedade pública dos meios de produção e o planejamento. A divergência podia ser encontrada na degradação de certos setores da comunidade, assim como no acirramento das desigualdades sociais flagrantes em meio à pobreza que a Revolução herdara do passado; a diferença básica entre o stalinismo e a concepção socialista tradicional residia nas respectivas atitudes para com o papel na transformação da sociedade. De acordo com Trotski (2007b), a URSS era uma sociedade intermediária entre o capitalismo e o socialismo e apresentava as seguintes características: forças produtivas insuficientes para conferir à propriedade estatal um caráter socialista, isto é, não apresentava as condições para o socialismo real; a propensão da acumulação primitiva não satisfazia às necessidades da população; as normas de repartição e de natureza burguesa se encontravam na base da diferenciação social; o desenvolvimento econômico foi alcançado graças aos trabalhadores; todavia apenas alguns foram privilegiados. A burocracia tornou-se uma casta 71 Todos seus filhos morreram em circunstâncias misteriosas, que o levaram a culpar Stalin. 57 incontrolável e, por defender apenas seus interesses e manter privilégios, era estranha ao socialismo; a revolução foi traída pelo partido governante e conservava as relações de propriedade e consciência dos trabalhadores; a evolução das contradições destacadas poderia conduzir o socialismo russo para o capitalismo; a contrarrevolução que estava em marcha, poderia quebrar a resistência dos operários; os operários deveriam derrubar a burocracia para, enfim, resgatar o socialismo real. Tais questões, só seriam resolvidas se a luta das duas forças vivas (a burocracia e os trabalhadores) fosse decidida na URSS e em outros países (ou seja, a implantação dos ideais da Revolução socialista mundial). A concepção de Stalin com relação ao papel da força política marcou a atmosfera do totalitarismo do século XX, sendo para ele a força como “mãe da nova sociedade” (DEUTSCHER, 1970). 2.4 A Segunda Grande Guerra e a Queda do “Czar Vermelho” Entretanto, essa marcha promissora dos acontecimentos reclamava novo equilíbrio entre a diplomacia soviética e o Comintern. Os dois objetivos – revolução mundial e relações normais ou amistosas entre a Rússia e os países capitalistas – eram, au fond, incompatíveis. Um deles teria de ser sacrificado ou, de qualquer maneira, subordinado ao outro. A opção decorria da resposta que os acontecimentos davam a estas duas perguntas: Quais são as probabilidades de revolução mundial? É possível paz estável entre os soviéticos e o mundo capitalista? O dilema não surgiu inopinadamente. Foi se manifestando aos poucos através de sucessivas mudanças na situação internacional. Tampouco a solução tomou a forma de uma decisão intencional, adotada e registrada em data precisa. Estava implícita numa série de alterações, ora imprescindíveis ora espetaculares (DEUTSCHER, 1970, p. 352-353). Após aproximadamente 20 anos da revolução na Rússia e 15 anos da formação da URSS, o Politburo não podia ver as perspectivas da revolução mundial sem ceticismo. Em sua teoria de “socialismo num só país”, Stalin considerava duas premissas gêmeas: o ceticismo extremo a respeito da revolução mundial e a confiança na realidade de uma longa trégua entre a Rússia e o mundo capitalista. De modo geral, nos anos entre guerras, Stalin não revelou um desenvolvimento sistemático de suas ideias ou de uma doutrina de política externa. Motivado por suas premissas, as declarações do czar vermelho eram uma mistura de fórmulas secas e contraditórias, reunidas de acordo com a necessidade e as exigências do momento. A URSS desejava restaurar o equilíbrio europeu temporário, capaz de fortalecer sua posição diante do 58 mundo capitalista, como contrapeso; a partir de uma coligação parcial dos vencidos contra os vencedores, unindo-se a Alemanha contra os aliados e principalmente, contra a França: Como foi que os dois ditadores entraram num acordo tão rapidamente? Stálin vinha negociando por muitos meses com ingleses e franceses, mas não chegara a bons termos nas conversações, e com Hitler tudo ficou ajustado em dois ou três dias. Ambos tinham planos de âmbito mundial, ambos detestavam a democracia, eram comprometidos com o super-rearmamento e estavam acostumados com a manipulação das armas do totalitarismo: mentira e força. Stálin era um racista social, Hitler, um racista étnico (VOLKOGONOV, 2008, p.101). A ascensão do nazismo na Alemanha não representou uma ameaça a Stalin ou alguma alteração em sua “política externa”; o resultado da confiança do czar vermelho em Hitler ocasionaria grandes perdas dois anos depois: Graças ao tratamento que os nazistas davam às terras e aos povos subjugados, a luta de 1941-1945 na Rússia foi uma guerra patriótica. Stálin encorajava expressões autônomas de sentimento nacional e religioso da população russa, permitindo que o partido e seus objetivos fossem, temporariamente, substituídos por uma aura de propósito comum na batalha titânica contra os germânicos (JUDT, 2007, p. 179). De acordo com Volkogonov (2004), Stalin e a liderança militar foram responsáveis pelo início catastrófico da guerra72, pela derrota em muitas operações importantes, por utilizar a força para a conquista dos objetivos e a cessão de vastas extensões de território ao inimigo, o que assegurou a morte de milhões de pessoas indefesas. As ações de Stalin na guerra não divergiram muito dos seus costumeiros métodos de governo. Os erros que cometeu foram pagos com o autossacríficio do povo soviético, além do terror maciço que aplicou aos que hesitaram, desanimaram ou demonstraram fraqueza diante da situação: Durante esse período, só no front de Stalingrado foram fuzilados 140 homens pelas unidades de bloqueio, enquanto no total de 1941-1942, por „semear pânico, covardia e abandono não autorizado no campo de batalha‟ não menos que 157.593 homens – dezesseis divisões completas – foram sentenciados à morte por tribunais do QG ou do exército (VOLKOGONOV, 2008, p. 107). Para Stalin, o importante na guerra era o resultado; e, por isso, as duzentas e vinte e sete mil pessoas que morreram na guerra eram civis. O “czar vermelho” não buscou confronto direto com o capitalismo, mas tentou criar o máximo de dificuldades, promovendo choques e 72 Foi nos anos da grande guerra que Stalin ficou altamente animado com as possibilidades da nova arma, a bomba atômica, mas não considerava a possibilidade de utilizá-la. 59 sublevações e organizando ataques clandestinos. Acreditava que as “Brigadas Vermelhas” se fortaleceriam com o auxílio de Moscou no Ocidente e em países com governos impopulares, como China, Tchecoslováquia e Hungria: A única saída aceitável para Stálin – em regiões que, por prevenção, não houvessem sido absorvidas pela URSS – era a instalação de governos que inspirassem a certeza de que jamais constituiriam uma ameaça à segurança soviética [...]. Ou melhor, optaram por fazer com que os socialistas se unissem a eles. Tratava-se de um venerável procedimento comunista. A tática inicial de Lenin, de 1918 a 1921, tinha sido rachar os Partidos Socialistas da Europa, separando a esquerda radical em novos movimentos comunistas, e denunciar os demais integrantes como reacionários e retrógrados. Porém, quando ao longo das duas décadas seguintes os partidos comunistas se viram em minoria, Moscou mudou a abordagem, e os comunistas passaram a oferecer aos partidos socialistas (geralmente mais numerosos) a perspectiva de „união‟ da esquerda – mas sob a égide comunista (JUDT, 2007, p.145-146). Stalin estava disposto a quebrar qualquer acordo ou tratado, se achasse que isso serviria aos seus interesses e fortalecesse a posição da URSS. Stalin era indiferente às particularidades nacionais (questão antiga), pois o que lhe interessava era o poder e este seria aplicado pelo uso da força e do “apoio” dos satélites soviéticos. A diferença entre o “czar vermelho” e os outros construtores de impérios, mesmo czares, era a insistência em reproduzir, nos territórios sob seu controle, formas de governo e sociedade idênticas àquelas verificadas na URSS. Apesar de estar no grupo dos “vencedores” da Guerra, o fim da Segunda Guerra Mundial, trouxe à URSS grandes dificuldades econômicas e sociais: As estimativas de perda de vidas civis no território da União Soviética variam muito, embora o número mais provável exceda 16 milhões [...]. As causas da morte de civis incluíam massacres em campos de extermínio e campos de batalha, desde Odessa até o Báltico; doenças, subnutrição e fome (induzidas ou não); fuzilamento ou incineração de reféns – pela Wehrmacht, pelo Exército Vermelho e por integrantes de diversas resistências; represálias; consequências de explosões, bombardeios e batalhas travadas pela infantaria, em campos e cidades [...] (JUDT, 2007, p. 32). Além do problema com a redução da população, a URSS enfrentaria o problema do desequilíbrio entre homens e mulheres (o total de mulheres excedia o de homens em vinte milhões), que só seria corrigido com mais de uma geração. Desta maneira, poderia diminuir as disparidades econômicas e mostrar que a economia rural do país dependeria muito das mulheres. Stalin também foi o responsável pelo deslocamento de povos inteiros pelo império 60 soviético, o que causaria grande problema para a URSS no futuro73; somando os esforços de Stalin e Hitler (1939-1943), expatriaram, deslocaram, expulsaram, deportaram e dispersaram cerca de trinta milhões de pessoas: Quando acabou a Primeira Guerra Mundial, as fronteiras é que foram inventadas e ajustadas, enquanto, de modo geral, as pessoas ficaram onde estavam. Depois de 1945, aconteceu exatamente o oposto: com uma grande exceção, as fronteiras permaneceram basicamente intactas e as pessoas foram deslocadas [...]. Com algumas exceções, o resultado foi uma Europa constituída de Estados-nações mais etnicamente homogêneos do que nunca. A União Soviética continuou a ser um império multinacional (JUDT, 2007, p. 41). Stalin não se importava com a URSS como um império multinacional, pois o que importava era o status soviético de grande potência e, por isso, novamente colocaria o povo no “novo terror”: Não pôde conceder ao povo nenhum descanso dos esforços da guerra. Teve de mobilizá-lo novamente e extrair dele as últimas reservas de energia a fim de reabilitar as indústrias destruídas ou sobrecarregadas de trabalho e reconstruiu as dezenas de cidades reduzidas a ruínas. Com sua infatigável crueldade enfrentou o cansaço extremo do povo. Disciplinou-o e arregimentou-o de novo, voltou a imporlhe os mais severos decretos de emergência e códigos de trabalho, sujeitou-o a um onipresente controle policial e reprimiu os menores indícios de resistência e heresia (DEUTSCHER, 1970, p. 521). Os últimos anos de Stalin trouxeram-lhe esplendor e ruína; acelerou a industrialização das repúblicas e províncias orientais, o desenvolvimento da indústria nuclear na Rússia, a reabilitação da economia nacional, graças às indenizações pagas pela Alemanha e pelos outros países derrotados. Ao mesmo tempo, como Stalin havia promovido a modernização da sociedade e educação das massas, a população não aceitaria por muito tempo o stalinismo e o czar vermelho temia uma contrarrevolução (DEUTSCHER, 1970). No fim da guerra, as relações entre a URSS e os aliados ocidentais esfriaram e, depois da guerra, pioraram drasticamente; o contraste entre a Rússia e o Ocidente tornou-se marcante depois da guerra74: 73 Há dois conceitos sobre nacionalidade que devem ser esclarecidos: jus solis, pelo qual a nacionalidade de uma pessoa é definida pelo local de nascimento; e jus sanguinis, pelo qual a nacionalidade de alguém é a mesma do pai ou da mãe, isto é, a nacionalidade dos ancestrais é mantida. Os países eslavos adotam o segundo conceito (SEGRILLO, 2000, p. 59). 74 Com receio da situação internacional e do acirramento entre o mundo capitalista e socialista, Stalin tentou reviver a Internacional Comunista (dissolvida por ele em 1943) e fundou o Cominform, em 1947, com o objetivo de unificar a ação comunista na Europa Oriental e dar nova orientação às diretrizes dos partidos da Europa ocidental (DEUTSCHER, 1970). 61 Stálin não podia deixar de rejeitar essas condições. Não podia aceder em apresentar ao Ocidente um balancete dos recursos econômicos soviéticos, no qual teria sido obrigado a revelar a assustadora exaustão da Rússia e a terrível lacuna em sua mãode-obra, o que escondia até de seu próprio povo. E não estava apenas disposto a ocultar a fraqueza da Rússia; temia a penetração econômica norte-americana na Europa oriental, e mesmo na Rússia que poderia impulsionar todas as forças anticomunistas locais e fomentar a contra-revolução. Decidiu fechar a Europa oriental à penetração ocidental (DEUTSCHER, 1970, p. 531). Depois da guerra, os principais instrumentos da política externa e interna do czar vermelho foram os órgãos de segurança e as forças armadas, que isolaram cada vez mais a URSS do mundo ocidental. A teoria do “socialismo num só país” passou a ser exercida sob a ideia do “socialismo numa única zona” e assim, Stalin auxiliava financeiramente todos os Estados que se mostrassem pró-socialistas, como por exemplo, a Alemanha Oriental e o muro de Berlim (“recompensa da Segunda Guerra Mundial”), a China na Revolução Chinesa, a Coréia do Norte na Guerra da Coréia (1950-1953); resultando no acirramento das divergências entre o mundo capitalista, representado pelos Estados Unidos e Coréia do Sul e o mundo comunista, representado pela URSS, Coréia do Norte e China: Cabia a Moscou determinar a estratégia dos partidos comunistas, decidir quando uma abordagem moderada era recomendável e quando uma ação radical deveria ser adotada. Como origem e fonte da revolução mundial, a União Soviética não era um modelo, mas o modelo. Dependendo das circunstâncias, partidos comunistas menores podiam seguir os soviéticos, mas não era aconselhável ultrapassá-los (JUDT, 2007, p. 154). A seu modo, Stalin fortaleceria sua aliança com os países socialistas e auxiliaria financeiramente ou militarmente os governos que precisassem de ajuda para se estabelecer. Esta atitude custaria muito para a URSS. Depois da Segunda Guerra Mundial, Stalin começou a dar mais atenção à saúde e a temer a morte: Tinha medo da morte, como sempre temera atentados contra sua vida, tramas e sabotagens. Receava que seus atos diabólicos se tornassem conhecidos após sua morte. Preocupava-se com o destino de sua criação, e não queria que ela se transformasse em algo diferente. E, na verdade, depois que ele se foi, seu mundo e seu culto não sobreviveram por muito tempo [...]. Sua filha escreveu que, ao se aproximar do fim, ele sentiu-se vazio, “Negligenciara todas as relações humanas, era torturado pelo medo que, nos últimos anos de vida, se transformou em autêntica mania de perseguição, e, no final, seu ânimo forte o abandonou. Mas a mania não era imaginação doentia: ele sabia e tinha consciência de que era odiado, e também sabia por quê”. Sua velha crença na longevidade georgiana foi abalada por uma série de tonturas que o desequilibravam (VOLKOGONOV, 2004, p. 548). 62 Em 6 de março de 1953, a morte do czar vermelho foi anunciada. Stalin sofreu um primeiro ataque com uma hemorragia cerebral e um ataque de paralisia que teve como consequência a perda da fala e da consciência e um segundo ataque que afetou suas vias respiratórias e seu coração: Segundo todos os depoimentos, a nação reagiu ao acontecimento com emoções contraditórias que a complexa e ambígua personalidade de Stálin inspirava; uns choravam de angústia, outros deram um suspiro de alívio; a maioria ficou atônita e temerosa de pensar no futuro (DEUTSCHER, 1970, p. 573). Os sucessores de Stalin agiram cautelosamente, pois foram sombras durante todos esses anos. No funeral, Malenkov, Molotov e Beria falaram dos méritos do “czar vermelho” e seu corpo foi colocado ao lado de Lênin no Mausoléu da Praça Vermelha. 63 3 A RECONSTRUÇÃO DO ESTADO SOVIÉTICO O socialismo não pode ser e não será inaugurado por decreto; não pode ser estabelecido por qualquer governo, ainda que admiravelmente socialista. O socialismo deve ser criado pelas massas, deve ser realizado por todo o proletário. Onde as cadeias do capitalismo são forjadas, aí existem cadeias a ser rompidas. Somente isto é socialismo, e só assim ele pode nascer. As massas devem aprender a usar o poder usando o poder. Não há outro modo (LUXEMBURGO, s.d. apud MESZAROS, 2004, p. 325). O objetivo deste capítulo é demonstrar a influência do Partido na União Soviética nos âmbitos político, econômico e social, assim como as transferências de poder entre os líderes soviéticos, a debilidade do regime e a causa do marxismo-leninismo. Com o tempo, a população e os próprios líderes do Estado soviético não mais acreditaram no regime e na ideologia socialista, recordavam Lênin e seus ideais para obter o “apoio” da população e permanecer em seus cargos. É neste período que o sistema soviético começou a sucumbir; a corrupção desvairada, a estagnação econômica, a fome e a miséria, a incansável corrida armamentista com os Estados Unidos e os problemas antigos como o das nacionalidades abalaram o “gigante de pés de barro”. A queda da União Soviética era inevitável. Esse acontecimento abalou todos os países que faziam parte do bloco, mas, sem dúvida alguma, a Rússia foi a principal herdeira do império. Os impactos desta dissolução também serão analisados. 3.1 O “Desestalinizador” Por toda a acusação de Kruschev a Stalin, ouve-se o tema da auto-justificação. Sentimo-nos como se estivéssemos sentados num tribunal, a ouvir um promotor que, enquanto empilha acusação sobre o homem no banco dos réus, tem de lembrar-se todo o tempo de também provar que ele, o promotor, e seus amigos, não tiveram participação nos crimes do réu (DEUTSCHER, 1968c, p. 18). Com o desaparecimento dos dois gigantes do bolchevismo estava claro que comparados a eles, seus sucessores, seriam pigmeus. Stalin não deixou “testamento” ou indicação para o cargo de Secretário-Geral; por isso, os “herdeiros” reforçaram o prestígio e o papel do partido para manter o curso leninista, a partir da “liderança coletiva”. Esse tipo de liderança não existia na URSS e o sistema unipartidário e o monopólio do poder continuavam sendo uma ameaça para a população e economia soviéticas: 64 O domínio do líder único foi repudiado, mas não a dominação da facção única (para nem falar na do partido único), dominação da qual se originou a autocracia de Stálin. O princípio da infalibilidade da liderança do partido foi abandonado, mas ainda é denegada tanto aos membros como aos não membros do partido liberdade para criticar e substituir os líderes falíveis (DEUTSCHER, 1968c, p. 28). O stalinismo elevou a Rússia à posição de segunda potência industrial do mundo, fomentou a modernização, venceu a Segunda Guerra Mundial e cooptou mais estados comunistas satélites, usando métodos coercitivos. Com o término de seu legado, seus princípios e práticas estão desacreditados, mas os hábitos mentais se reafirmam repetidamente. O culto a Stalin estava morto, mas o culto a Lênin (mesmo sendo mais racional no conteúdo e na forma) continuava a obscurecer a URSS. A chefia do Kremlin acreditava que o sistema ainda se apoiava em três grandes pilares: o partido, a ideologia bolchevique e o grande aparato repressor. Não existia mais um chefe dominante, mas o sistema não poderia existir sem ele. Como era de se esperar, em um partido no qual havia o monopólio do poder do líder sobre o Estado, a disputa pelo cargo de primeiro Secretário-Geral de forma antidemocrática se iniciara logo após a morte de Stalin. Os “herdeiros” que se destacavam eram: Malenkov que não tinha qualidades suficientes para ser o novo líder; Beria que era uma ameaça para a ascensão do novo líder e por isso foi acusado de ser a odiosa encarnação do sistema stalinista, um falso comunista, espião, entre outras acusações que contribuíram para sua queda; e Kruschev que teve a contribuição dos membros do partido para se tornar o novo líder. Com essa disputa pelo poder, os “herdeiros” deixaram de lado milhões de pessoas que tinham sido afetadas pelo império stalinista: Os herdeiros de Stálin ainda não se preocupavam com a existência de mais de quatro milhões de internos nos campos, a deportação de nações inteiras, a vigilância cerrada que os “órgãos punitivos” ainda exerciam sobre todos. Permanecia ativo o infame Conselho Especial da NKVD que condenara 442.531 pessoas à morte ou a longas penas de prisão. Os herdeiros estavam mais preocupados com a própria sorte, como preservar suas posições de destaque, como proteger suas carreiras futuras e, sobretudo, como garantir sua segurança pessoal (VOLKOGONOV, 2008, p. 168). Nikita Kruschev75 foi nomeado primeiro-secretário do Comitê Central em setembro de 1953, tornando-se o chefe do partido e o homem com o posto mais elevado do país. Sua 75 Quando alcançou o cargo mais alto do país, Kruschev tinha cinquenta e nove anos. Pertencia à geração dos bolcheviques que surgiram depois da Revolução de 1917, principalmente na década de 20 e no início da década de 30; entrou no lugar dos homens que tinham sido executados e contribuiu pessoalmente para a inquisição stalinista. 65 ascensão representava a continuação da linha de terror stalinista com a exterminação física de Beria, que não era mais culpado do que o restante do Comitê Central de Stalin, mas sabia de tudo sobre todos e isso representava uma ameaça a Kruschev. Posteriormente, eliminou os demais rivais: Malenkov, Kaganovich e Molotov; como era habitual para o fortalecimento dos novos líderes. Kruschev não apresentou nenhuma ideia ou política positiva própria. O novo líder não mediu esforços para demolir o papel de Stalin através do ataque ao “culto à personalidade” do antigo líder, acreditando que bastava desenraizar o culto, restaurar os “princípios leninistas” para a vida interna do partido e reparar o dano causado à “ilegalidade revolucionária” para que o país voltasse à “democracia socialista soviética”. Stalin era o responsável por suas ações, mas tinha o “apoio” do partido: Não entendia que, para libertar o sistema do stalinismo, tinha primeiro que repudiar o leninismo. O alvo selecionado por ele no XX Congresso era essencialmente secundário. Não fora apenas um ditador individual, o responsável pelas atrocidades, e sim o sistema e a ideologia fundamentados em princípios leninistas. Não ficou claro em 1956, mas o tempo iria mostrar que o ataque a Stálin jogou luz sobre Lênin. Quanto a Kruschev, ele morreu sem perceber que, ao defender Lênin, estava preservando Stálin (VOLKOGONOV, 2008. p. 188). Os “herdeiros” queriam retomar o avanço em direção à igualdade e à democracia socialista. Isto implicava o desenvolvimento insuficiente da população (garantindo apenas para alguns um padrão de vida razoável) que sustentava a constante competição e luta de todos contra todos; deixando de lado, o espírito e a cooperação socialistas. A escassez relativa de bens de consumo é o fator objetivo decisivo que estabeleceu os limites da reforma igualitária e democrática na URSS: Essa escassez não deve ser encarada simplesmente no contexto da situação econômica interna da URSS. Deve ser vista contra o fundo de cena da situação mundial, que impõe à URSS uma competição econômica e de poderio político com os Estados Unidos e, até certo ponto, força os dirigentes soviéticos a pressionar o desenvolvimento da indústria pesada a expensas imediatas dos interesses do consumidor [...]. O operário soviético começou a “financiar” com todo fervor a industrialização dos países comunistas subdesenvolvidos e ele a “financia” com os recursos que, doutra forma, poderiam ser usados para elevar seu próprio padrão de vida (DEUTSCHER, 1968c, p. 30). A reforma interna da Rússia e a reforma das relações da Rússia com todo o bloco soviético podiam ser notadas como conflito mútuo e real. A contradição principal da desestalinização estava no fato de seus principais agentes serem os antigos guardiões da ortodoxia stalinista e isso não era por acaso. A desestalinização tornou-se uma necessidade 66 social e esta ocorreria com os materiais humanos disponíveis, isto é, com a série de expurgos dos bolcheviques da velha guarda e verdadeiros antistalinistas que foram derrotados. Poderiam conduzir este fenômeno de forma coerente, racional e sincera; diferentemente dos novos bolcheviques que o faziam hipocritamente e com ressalvas. Sob o governo de Kruschev, houve o desmantelamento de unidades-chave do governo anterior: o Gulag (sistema de trabalho forçado) e o complexo econômico industrial do MVD76 (elemento essencial no império dos trabalhos forçados): Com essa expropriação em larga escala, o MVD pouco a pouco transformou toda a estrutura do Gulag em um sistema penitenciário reformado, com um novo nome, além de promover uma redução no número de internos nos campos (agora chamados “colônias”, “prisões” e “povoamentos de deportados”). O número de detidos nessas várias instituições (excluindo as prisões) caiu de 5.223.000 em 1 de janeiro de 1953 para 997 mil em 1 de janeiro de 1959; e o número de contra-revolucionários passou de 580 mil para 11 mil. Do início da década de 1960 em diante, as perseguições arbitrárias deixaram de ser práticas comuns (LEWIN, 2007, p. 198). A força de trabalho deixou de ser constituída por “escravos” e passou a ser formada por trabalhadores pagos, o que resultaria em grandes transformações sociais e econômicas, tal como a necessidade e pressão da população por reformas no sistema soviético; a população soviética exigia a integração na sociedade de familiares e camaradas que tinham sofrido com a repressão do governo anterior. A série de reformas de Kruschev foi iniciada pela agricultura e resultou inicialmente em grande produção de grãos e no aumento do consumo, que gerou a escassez dos produtos. Para “resolver” o problema da agricultura, a URSS passou a comprar grandes quantidades de grãos do exterior, resultando na queda das reservas internacionais: Comprar trigo no mercado mundial era mais fácil do que tentar resolver a aparentemente crescente incapacidade da agricultura soviética de alimentar o povo da URSS [...]. Lubrificar o enferrujado motor da economia com um sistema universal e onipresente de suborno e corrupção era mais fácil que limpá-lo e ressintonizá-lo, quanto mais substituí-lo [...]. A curto prazo, parecia mais importante manter os consumidores satisfeitos, ou, de qualquer forma, manter o descontentamento dentro dos limites (HOBSBAWM, 1994, p. 458). O sistema agrícola soviético estava falido. Como não obteve sucesso na agricultura, Kruschev tentou melhorar a pecuária através da compra compulsória de gado das fazendas coletivas. Com o inverno e insuficiência de abrigo e forragem, grande quantidade dos animais 76 Antigo NKVD, que, como todos os outros comissariados, ganhou depois o status de ministério e tornou-se o MVD ou Ministério de Assuntos Internos (LEWIN, 2007). 67 foi levada para o matadouro77. O novo líder atribuiu seus fracassos aos erros pessoais e herança do sistema stalinista: Como Stálin, ele raciocinou em termos de “alcançar e sobrepujar”. No XXI Congresso, em 1961, proclamou: “Nos anos recentes, nosso país, como antes, sobrepujou os EUA em ritmo de produção e começou a ultrapassá-los no que tange ao crescimento absoluto em muitas das mais importantes formas da produção [...]. A concretização do Plano Septenal levará nossa mãe-pátria ao ponto em que pouco será necessário para superar os Estados Unidos em termos econômicos. Executada essa tarefa, a União Soviética alcançará uma vitória universalmente histórica em pacífica competição com os Estados Unidos da América”. A perspectiva ideológica de Kruschev sobre a economia e seu futuro era igual à de Stálin, baseada em lutar pela “vitória” sobre o imperialismo (VOLKOGONOV, 2008, p. 192). O slogan de Kruschev em 1957 estava baseado em alcançar e ultrapassar os Estados Unidos na produção de carne, manteiga e leite; naturalmente transformou-se em fantasia. O XX Congresso do PCUS, em 1956, marcou o período que Kruschev governou e alterou as perspectivas do povo com relação a Stálin e ao próprio regime: E tomaram conhecimento, estarrecidos, de que Stálin, canonizado até então como o principal líder e guia do socialismo contemporâneo, que, pelos seus méritos, chegara a obscurecer os grandes do passado, e que repousava placidamente ao lado de Lênin, no suntuoso mausoléu da Praça Vermelha, pois ele mesmo, o maquinista da locomotiva da história, não passara de um déspota liberticida, um criminoso de Estado, cruel e sanguinário, um tirano [...]. Aquilo fora um verdadeiro golpe, um marco (REIS FILHO, 2007, p. 197). Após o XX Congresso e o fracasso das medidas para melhorar as condições de vida, o povo sentiu o enfraquecimento do regime e começou a expressar mais livremente seus sentimentos, através de greves que foram combatidas pela KGB78. O novo líder não entendia que a semiliberdade era uma ilusão e o povo não aceitava o sistema de opressão; Kruschev tinha todas as características de um ditador totalitário e, por isso, também não tolerou oposição, crítica aberta ou debate livre como tentativa de estabelecer o seu próprio domínio autocrático. 77 Havia descontentamento aberto sobre o descontrole da economia e com o governo incompetente e incorrigível. A KGB (Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnosti, Comitê de Segurança do Estado) era a principal agência de informação e segurança da URSS e teve considerável influência em todas as esferas da vida soviética dos anos 1960 a 1980. Tinha como dever estatutário: a espionagem, ameaças à segurança do estado, guarda de fronteiras, proteção de segredos oficiais e documentos confidenciais, investigação de atos de alta traição, terrorismo, contrabando, crimes financeiros em grande escala e proteção de todas as linhas de comunicação e contraespionagem eletrônica. Sua jurisdição, com sede em Moscou, se estendia a toda a URSS (LEWIN, 2007). 78 68 A diplomacia de Kruschev foi definida por Volkogonov (2008) como revolucionária. A partir da “coexistência pacífica”79 com os países capitalistas, continuou a política externa de apoio aos países comunistas e aos predispostos à ideologia socialista. Quanto aos países em desenvolvimento, estes deveriam ser auxiliados a adotar posições anti-imperialistas e, gradualmente, a se conscientizar de suas perspectivas socialistas; o que custaria à URSS bilhões de dólares, sem obter sucesso80: Não se sabe exatamente o tamanho dos atuais gastos soviéticos com armamentos, isoladamente do orçamento nominal de defesa, mas parece que, da soma total da renda nacional líquida (que montou em 175 bilhões de rublos em 1964 e foi planejada para atingir 189 bilhões em 1965) apenas 55%, pouco mais ou menos, é destinado ao consumo privado, aos serviços sociais e à educação. O resto é distribuído, em proporções desconhecidas, entre o fundo de acumulação nacional e os gastos com armamentos (DEUTSCHER, 1968c, p. 154). No campo de pesquisas, o novo líder se dedicou à corrida armamentista, equipou as forças armadas com mísseis nucleares e convocou os melhores engenheiros e técnicos para pesquisas espaciais. O período em que Kruschev governou foi marcado por uma série de eventos históricos: o Pacto de Varsóvia, primeiro vôo espacial, a crise dos mísseis cubanos, a crise de Berlim e de Suez, a reconciliação com Tito, o “cisma”81 sino-soviético, o incidente com o avião americano U-2; e no âmbito interno: a acelerada construção de prédios de cinco andares para a habitação de milhares de pessoas e reformas econômicas. Tais eventos, somados à situação interna da URSS, ocasionavam a insatisfação da população soviética a respeito do governo dominante: Na primeira década do pós-guerra, as ineficiências típicas do comunismo tinham ficado parcialmente camufladas pelas necessidades de reconstrução que se impunham ao período. Porém, no principio dos anos 60, depois da bravata de Kruschev – de que o comunismo “ultrapassaria” o Ocidente e de que a transição para o socialismo estava concluída, o hiato entre a retórica do partido e a penúria do 79 A coexistência pacífica continha ambiguidades, pois se por um lado a URSS aparecia na cena internacional com discursos moderados, por outro, não renunciava em nenhum momento à perspectiva de que um dia, o mundo todo seria socialista. 80 No Oriente Médio adotou posição forte, apoiando Nasser no Egito e beneficiou os países: Iraque, Indonésia, Índia, Etiópia, entre outros. 81 O “cisma” Moscou-Pequim teve suas raízes nas diferenças ideológicas entre os dois partidos comunistas, na questão da energia nuclear, na ambição de Mao Tsé-Tung em erigir-se teórico principal do comunismo internacional e nos sentimentos chineses diante da reforma do comunismo soviético. O desentendimento sinosoviético veio a confirmar na Ásia, o fim do monolitismo stalinista e elevava uma nova potência ao conjunto das relações internacionais da região; a China de Mao apresentava-se como centro autônomo de poder em meio à ordem bipolar vigente, além de contestar o congelamento nuclear nas mãos das duas superpotências (SARAIVA 2001,p.59). 69 cotidiano já não podia ser transposto por meio de exortações à recuperação dos prejuízos causados pela guerra ou ao incremento da produção. E a alegação de que sabotadores – kulaks, capitalistas, judeus, espiões ou “interesses ocidentais” – eram responsáveis por impedir o avanço do comunismo, embora ainda ouvida em determinados círculos, estava agora associada à época do terror: uma época em que a maioria dos líderes comunistas, seguindo Kruschev, mostrava-se ansiosa por deixar para trás. Os problemas, conforme o consenso crescente, estariam no próprio sistema econômico comunista (JUDT, 2008, p. 432). O sistema soviético apresentava graves problemas, Kruschev insistia em suas reformas do alto e em novos Planos Quinquenais que não alcançavam bons resultados. Chegava a época das “eleições” e o novo líder queria preservar o hábito do partido, no qual um só candidato era apresentado: Kruschev voltou-se então para a questão das eleições na URSS e para o motivo pelo qual um só candidato era apresentado para cada assento. “Somos de opinião”, disse, “que devemos continuar indicando apenas um candidato. Não temos outros partidos e criá-los significaria fazer concessões à burguesia” (VOLKOGONOV, 2008, p. 200). Kruschev foi o primeiro chefe da URSS que não permaneceu no poder até à morte. O líder foi afastado por uma conspiração do Partido e forçado a se aposentar, sem ser eliminado fisicamente: Abrindo o plenário do Comitê Central no dia seguinte, 14 de outubro, Brejnev declarou: A situação no Presidium se tornou anormal, e a culpa por isso recai, sobretudo, sobre o camarada Kruschev, que embarcou num caminho de transgressão aos princípios leninistas de liderança coletiva da vida do país e do partido, realçando o culto à sua própria personalidade (VOLKOGONOV, 2008, p. 230). A conspiração teve como objetivo mostrar que Kruschev ignorou a “liderança coletiva” e só confiava apenas em si mesmo, resultando na ascensão de um novo líder em 1964, Leonid Brejnev. 3.2 O Marionete Estagnado O período que se estende do golpe que afastou Kruschev, em outubro de 1964, e vai até o começo da Perestroika de Gorbatchev, em março de 1985, apareceria na maior parte da literatura especializada como sendo o auge da expansão da URSS como superpotência. Os dirigentes soviéticos falavam de socialismo desenvolvido e 70 continuavam alimentando perspectivas de superar o Ocidente (RODRIGUES, 2008, p. 158). Em outubro de 1964, por meio de um golpe, ascendeu ao poder Leonid Brejnev 82 que, diferentemente de Kruschev, não apoiava reformas, era um conservador. O novo líder muito se assemelhou a um fantoche, pois era manipulado pelos mais influentes membros do Politburo: Ustinov, Chernenko, Grishin, Tikhonov e Gromyko; e, mais uma vez, o SecretárioGeral tornava-se prisioneiro voluntário do poderoso aparato. O período em que Brejnev governou, mesmo com a invasão da Tchecoslováquia (1968), do Afeganistão (1979) e com a guerra do Vietnã, foi o mais pacífico da história soviética. No âmbito internacional, foi neste período que ocorreu a primeira crise do petróleo (1973), o que provocou o aumento dos preços que abalariam as economias ocidentais pelo restante da década; enquanto isso, a URSS colheria frutos por ser grande exportadora de petróleo, permitindo obter grandes lucros e manter os gastos militares. Mesmo com os lucros, a URSS foi incapaz de sustentar sua população: A URSS, sob o vacilante governo de Brejnev, se tornaria incapaz de cumprir a tarefa mais importante de qualquer estratégia verdadeira: o uso eficiente dos meios disponíveis para a consecução dos objetivos escolhidos. Isso deixou o campo aberto para líderes de todas as outras partes com capacidade para tanto (GADDIS, 2007, p. 205). Com a segunda crise do petróleo (1979), a grande quantidade de divisas obtidas a partir da exportação de energia e matérias-primas possibilitou ao regime soviético aumentar suas importações de cereais, forragens e bens de consumo. Na década de 1970, o comércio entre norte-americanos e soviéticos multiplicou-se oito vezes: as importações soviéticas de cereais chegaram a atingir uma média anual de 40 milhões de toneladas, no início dos anos 80 (REIS FILHO, 1997). O cenário que era apresentado para a população soviética e para o exterior era falso, pois havia graves contradições não resolvidas que se vinham acumulando na economia e no 82 Até 1938, Brejnev mudou constantemente de trabalho: em 1921, trabalhou em uma refinaria de petróleo em Kursk; em 1923, tornou-se aprendiz metalúrgico em Kamensk; em 1927-28, completou o curso de administração e tornou-se subadministrador regional de Terra do partido; em 1929-30, foi vice-presidente do Comitê executivo regional de Sverdlovsk; em 1933-35, foi diretor de uma escola técnica de metalurgia e completou curso por correspondência em Kamensk; em 1935, foi chefe de turno de uma usina elétrica; em 1936-37, estava de volta à Ucrânia como diretor da Escola Técnica de Metalurgia; em 1938, tornou-se gerente do departamento de comércio regional Dneprodzerzhink do Partido Comunista Ucraniano; em 1946, era o primeiro-secretário do comitê central regional do Partido (Obkom) em Zaporozhie; depois da morte de Stálin, permaneceu despercebido entre os funcionários incógnitos da hierarquia superior, sendo convocado como primeiro-secretário do partido da Moldávia até se tornar o Secretário-Geral do partido em 1964 (VOLKOGONOV, 2008). 71 sistema soviético. Tais contradições refletiam no cenário internacional, por meio do comércio com o principal “inimigo” capitalista como forma de garantir os alimentos da população: Comprar trigo no mercado mundial era mais fácil do que tentar resolver a aparentemente crescente incapacidade da agricultura soviética de alimentar o povo da URSS [...]. Lubrificar o enferrujado motor da economia com um sistema universal e onipresente de suborno e corrupção era mais fácil que limpá-lo e ressintonizá-lo, quanto mais substituí-lo [...]. A curto prazo, parecia mais importante manter os consumidores satisfeitos, ou, de qualquer forma, manter o descontentamento dentro dos limites (HOBSBAWM, 1994, p. 458). A situação da agricultura continuava desastrosa; para alguns especialistas, era preciso reorganizar a produção, para outros, era preciso resolver o problema da mão-de-obra, entre outros; o que mostrou a contínua debilidade do sistema. No transcorrer dos anos 1970, estava cada vez mais evidente que algo de muito errado havia nos regimes e nas economias socialistas, particularmente na URSS. A redução do ritmo de crescimento da economia constituía a maior prova de crise do regime soviético e não poderia ficar escondida por muito tempo. O tempo que Brejnev governou ficou conhecido como a década da estagnação, contrária à “estabilidade” alcançada: Um dos fatores que refletiram a condição de estabilidade foi a conquista da paridade militar e estratégica com os Estados Unidos. A longa perseguição aos americanos na fabricação de armas nucleares no desenvolvimento de foguetes que pudessem lançálas culminou nos anos 1970 com um equilíbrio militar instável. A obtenção da paridade militar, no entanto, custou tanto à URSS que esgarçou o próprio tecido do dirigismo econômico e trouxe mais perto a crise que se avizinhava do sistema todo (VOLKOGONOV, 2008, p. 249). A estagnação foi marcada por esforços desordenados na esfera militar. A conquista da paridade militar com os Estados Unidos foi interpretada como um evento de notoriedade histórica, entretanto, pouco foi mencionado sobre o poder econômico americano ser duas ou três vezes maior que o da URSS; os Estados Unidos esgotaram a URSS com a corrida armamentista, na qual a chefia soviética entrou sem medir esforços, o que conduziria ao aprofundamento da crise econômica e a estagnação de toda a economia: Desde 1973, as economias do Leste Europeu estavam ficando muito para trás, até mesmo dos reduzidos índices de crescimento registrados na Europa Ocidental. Na União Soviética, rica em petróleo, exceto um breve acúmulo financeiro causado pelo aumento dos preços de energia, a inflação dos anos 70 e a globalização do comércio e dos serviços nos anos 80 deixaram as economias do bloco em insuperável desvantagem. Em 1963, o comércio internacional dos países do Comecon representava 12% do total mundial. Em 1979, o índice descera a 9%, e indicava queda rápida. Os países do bloco soviético não podiam competir em qualidade com 72 as economias industriais do Ocidente; tampouco qualquer país do bloco, a não ser a URSS, contava com um suprimento sustentável de matérias-primas a ser vendido para o Ocidente, de maneira que o bloco não podia sequer concorrer com os países subdesenvolvidos (JUDT, 2007, p. 576). Ao mesmo tempo em que a URSS alcançava a paridade militar, a disparidade econômica com o Ocidente aumentava, tal como a insatisfação da população soviética: A estagnação econômica era, em si mesma, uma refutação permanente das hipóteses de superioridade do comunismo em relação ao capitalismo. E, se não constituía um incentivo à oposição, com certeza era fonte de descontentamento. Para a maioria das pessoas que viviam sob o regime comunista durante a era Brejnev, desde o final dos anos 60 até o início dos anos 80, a vida já não era pautada pelo terror e pela repressão. Mas era cinzenta e insípida (JUDT, 2007, p. 579). O descontentamento da população soviética era enorme; casais tinham cada vez menos filhos, o consumo per capita de bebida alcoólica quadriplicou no período e muitos jovens morreram. As reformas econômicas necessárias no bloco soviético estavam fora de cogitação e, não por acaso, os governantes dos Estados-satélites do Leste Europeu eram idosos e oportunistas. O movimento social ganhou força e o protesto intelectual e moral contra a perseguição policial ao pensamento heterodoxo e à liberdade de expressão foi o sintoma do declínio cada vez maior do sistema comunista; os jovens foram aprisionados, encarcerados em hospitais psiquiátricos, mandados para o exílio interno ou deportados. Estava claro que a URSS não andava bem. O comando do partido no centro e na periferia caracterizava-se pela aparência externa, disfarçando a passividade interna; a apatia do povo crescia, a corrupção florescia em diversos níveis, a taxa de crescimento do país em muitas esferas era nula e a agricultura vivia um estado de doença terminal. Podia estar acontecendo isso, mas o Politburo permanecia tranquilo: O país podia estar engajado numa guerra no Afeganistão, a détente podia ser letra morta, a indústria e a agricultura podiam estar de joelhos, enquanto os barões do partido se tornavam mais gordos e mais poderosos, mas o Politburo permanecia tranquilo. A tradição leninista da “manutenção da unanimidade completa” era mais importante que as estatísticas econômicas, de modo que a letargia continuava (VOLKOGONOV, 2008, p. 252). Brejnev acreditava no triunfo final da causa de Lênin e disse no XXIV Congresso que o sistema mundial do socialismo era o protótipo da futura comunidade mundial de povos livres, e que a vitória completa e a causa socialista em todo o mundo eram inevitáveis (VOLKOGONOV, 2008, p.286). É difícil acreditar que o Secretário-Geral tivesse essa crença, pois o sistema econômico da URSS nunca pôde vestir e alimentar a população e 73 sempre era apresentado algum motivo alheio para isso: safras ruins, negligência, “subjetivismo” dos chefes anteriores e ações agressivas dos imperialistas dos Estados Unidos que forçaram a URSS a desviar recursos adicionais significativos para fortalecer a capacidade defensiva do país. A partir dos anos 1970, Brejnev passou a não fazer parte ativa das questões do partido e do Estado, queria apenas aparecer na televisão e receber condecorações. Em 1982, faleceu o quarto líder da URSS e enquanto a população soviética recebia a noticia com alívio, os idosos do Politburo ficaram alarmados. O fim da era Brejnev declarava o declínio do poder bolchevique, ao qual o povo já estava indiferente; o regime não mais causava medo ou respeito e o país estava próximo da mudança dramática. 3.3 O “Chefe” do KGB No seu discurso de posse, Andropov ressaltou que: A linha traçada pelo partido nos congressos recentes aponta o caminho leninista. Foi ao longo dessa linha que o Politburo, sob a liderança de Leonid Ilyich, conduziu nosso partido e todo o povo soviético sem desvios para o comunismo. É óbvio que nossos inimigos farão o possível para destruir nossa unidade e nossa fé no futuro, para desarticular nossos quadros e nossa determinação (VOLKOGONOV, 2008, p. 297). O Secretário-Geral tinha poder sobre todas as nomeações: podia cooptar ou excluir qualquer pessoa, entretanto, dependia de seus aliados para conseguir a aprovação dessas decisões pelo Politburo e pelo Comitê Central; além desta situação, um grupo que quisesse escolher um novo secretário-geral podia afastar o designado com o apoio do exército e da KGB. Como já era de se esperar, com a queda do antigo líder, dois “herdeiros” passaram a disputar a sucessão do governo soviético: Yuri Andropov83 e Konstantin Chernenko; a precedência estaria com o primeiro dos dois, já que contava com o apoio do exército e da KGB, da qual fora chefe 15 anos. Com a morte de Brejnev, estava claro que o sistema soviético precisava de mudanças urgentes. Andropov devia fazer algo novo e original, que desse esperança ao povo, em 83 Andropov foi cooptado bem jovem para a nomenclatura, não marcou passo nas funções inferiores e intermediárias, caminhando rapidamente para o topo. Dos sete chefes soviéticos, foi o primeiro a sair da KGB (15 anos como chefe) para a mais alta posição do partido (VOLKOGONOV, 2008). 74 especial, porque eles estavam cansados da “estabilidade” de Brejnev e queriam que o novo chefe fizesse alguma coisa palpável a seus interesses: Cada um dos chefes, embora jurando fidelidade ao leninismo, tinha, de alguma forma, desacreditado o antecessor. Normalmente, sem falar abertamente sobre o assunto, cada secretário-geral criou sua própria política, sua maneira de governar e sua própria linha (VOLKOGONOV, 2008, p. 308). Andropov iniciou suas reformas reorganizando o trabalho no partido e redistribuindo as funções partidárias entre seus membros, com o objetivo de restaurar a disciplina no local de trabalho. Permanecia no escritório até altas horas, reunido com diversos funcionários e pedindo incontáveis informações e arquivos, procurando uma maneira de restabelecer a saúde soviética e ressuscitar o sistema para inspirar a confiança da população, injetar vida nova no partido e promover a “ascensão” final do comunismo: Andropov ainda teve forças para lançar uma campanha contra preguiça, desordem e ineficiência, e para desferir diversos golpes nos abastados e privilegiados secretários das repúblicas e regiões, bem como nos funcionários de alto escalão dos ministérios, onde a corrupção, o nepotismo e a fraude corriam soltos. Os tribunais estavam abarrotados de processos contra gente que se interessava mais por lucros ilegais que pela „disciplina no trabalho e na produção‟ (VOLKOGONOV, 2008, p. 312). O erro comum de Andropov e de seus antecessores foi não perceber a necessidade de reformas abrangentes e radicais no sistema ou então revisar certas suposições básicas do marxismo-leninismo ou mobilizar recursos humanos da população para uma genuína democratização da sociedade. Andropov era conservador convicto e, por isso, não tinha como empreender reformas abrangentes que colocassem em risco as conquistas socialistas. Tal como os líderes anteriores, Andropov era prisioneiro das regras do jogo do partido e das demandas do sistema: O sistema nada tinha a oferecer senão argumentos bolcheviques: mísseis, tanques, controle intelectual, diretrizes do partido e serviço secreto. Mas os contra argumentos eram ainda mais fortes: a bancarrota econômica do país, a completa falta de liberdade do povo, uma burocracia infernal, dogmatismo e a ausência de quaisquer soluções soviéticas aceitáveis para o impasse (VOLKOGONOV, 2008, p. 314). O problema principal do sistema soviético estava no aparato partidário, no centralismo democrático e na corrupção generalizada. De fato, o sistema estava paralisado e as reservas internacionais de entusiasmo, das quais os bolcheviques se tinham valido por décadas. Diante 75 desta situação, Andropov apresentou um memorando ao Politburo, sugerindo que o órgão considerasse a possibilidade de implantar determinados “procedimentos democráticos” nas eleições para o Soviet Supremo: À medida que se aproximava a campanha para reeleição dos organismos do partido, acompanhada de relatórios habitualmente divulgados nessas ocasiões, Andropov repentinamente declarou, em uma resolução oficial do partido, em agosto de 1983: As assembléias eleitorais do partido são conduzidas de acordo com um roteiro preestabelecido, sem debate sério e franco. Os discursos são previamente editados; qualquer iniciativa ou crítica foi suprimida. De agora em diante, nada disso será tolerado (LEWIN, 2007, p. 327). Na política interna o novo líder optou por combater a crise, na externa, essa opção era viável. Recebeu diversos relatórios a respeito do conflito no Afeganistão, da continuada tensão na Polônia, profunda incerteza nas relações com a China e Japão, perigosa deterioração do Oriente Médio, Etiópia e África do Sul e as relações com a Europa Ocidental não eram boas e principalmente a interminável disputa com os Estados Unidos84. A disputa com os Estados Unidos fazia com que a URSS mergulhasse cada vez mais fundo na ruína econômica, pois de seu orçamento, 70% estava sendo aplicado em necessidades militares (o que não era revelado na época). Quando assumiu o poder, todos sabiam que Andropov estava seriamente enfermo. Dos 15 meses em que esteve no poder, metade do tempo foi passado no hospital, onde esperava que o tratamento lhe recuperasse a grande capacidade de trabalho ou que resultasse em cura parcial. Em 1984, o Politburo estava reunido como de praxe: o quinto chefe soviético havia falecido e deixara livre um sistema que estava paralisado econômica e ideologicamente. 3.4 O Favorito de Brejnev Entretanto, chegou o estágio em que mais e mais o povo começou a ver que as verdades bolcheviques eram, com efeito, expressões de uma grande mentira dentro de um sistema de inverdades. Foi com essa base que, dentro do sistema, cercado de arame farpado e criado pelos dois primeiros líderes, a crise se aprofundou e as rachaduras no monólito se alargaram (VOLKOGONOV, 2008, p. 343). 84 Ao fim do mandato de Brejnev, a um custo muito maior que o dos Estados Unidos, a URSS alcançou a paridade nuclear com seu inimigo. A competição, na qual todos os chefes entraram sem hesitação, solapara o sistema comunista. 76 Até o XX Congresso do Partido, em 1956, o povo soviético enxergava o futuro através de uma lente focada na ideologia oficial do partido: a prometida utopia comunista, ameaçada por diversos inimigos – o cerco imperialista. Após este congresso, surgiram novos ângulos da aparência bolchevique e o povo não aceitava as mesmas promessas, porém, poucos líderes entenderam isso: Kruschev combateu o culto à personalidade e pensou que essa insatisfação seria temporária; Brejnev nem notou; Andropov sabia da existência, mas foi incapaz de resolver; e Chernenko não estava a par desses graves problemas da URSS, mas, mesmo sem saber, foi o precursor da mudança. Os setenta anos de bolchevismo alteraram fundamentalmente o povo e seus chefes. O distanciamento entre política e moralidade se tornara tão amplo que os líderes justificavam como moral tudo o que servisse à causa do comunismo. A indicação de Chernenko 85 não foi acidental, mas o produto da onipotência burocrática, a degeneração bolchevique e sua ascensão significaram o aprofundamento da crise na sociedade, a ausência de ideias positivas no partido e a inevitabilidade das convulsões que viriam e a estagnação continuada: Para fins externos, quase nada mudou. Medalhas ainda eram distribuídas aos vitoriosos na competição socialista, longas filas esperavam pacientemente no lado de fora de lojas com quase nada a oferecer, células do partido ainda organizavam intermináveis e apinhadas reuniões, os trens suburbanos continuavam transportando pessoas esperançosas de comprar alguma coisa nos centros, a milícia interrompia o trânsito para dar passagem às longas e negras limusines – ou membromóveis como eram conhecidas – que levavam os intocáveis para suas vilas no campo depois de longo e exaustivo dia no escritório. A incompreensível guerra no Afeganistão continuava (VOLKOGONOV, 2008, p. 348). No âmbito externo, estava claro para os Estados Unidos que a URSS estalava sob o peso da corrida armamentista e da crise da economia dirigida. Apesar desta situação insustentável, o Kremlin ainda expedia recomendações para intensificar a luta contra os planos de mísseis dos Estados Unidos, o eurocomunismo e a sabotagem ideológica. Chernenko não tinha a intenção de promover mudanças importantes, as únicas mudanças que apresentou eram continuação da era Brejnev. Nenhum dos líderes soviéticos fora eleito e todos se utilizaram da autoridade do partido e da população: os inocentes úteis que acreditaram durante décadas na superioridade histórica do socialismo, no papel salvador da ditadura do proletariado, na total ausência de direitos e liberdades para os trabalhadores 85 O período de maior crescimento para a carreira de Chernenko começou em 1961, no Comitê Central, onde trabalhou por 25 anos. A partir de 1965, ficou encarregado do Departamento Geral, permanecendo no cargo por 18 anos. Em 1976, tornou-se secretário do Comitê Central, em 1977, membro-candidato e, em 1978, membro pleno do Politburo (VOLKOGONOV, 2008). 77 dos países capitalistas, na inevitabilidade do colapso do comunismo e no triunfo dos ideais comunistas em todo o planeta: Versões são impingidas ao povo de cima para baixo e podem ser alteradas logo no dia seguinte. Não há critério confiável de verdade a não ser o que é declarado verdade em determinado momento. Dessa forma, a mentira, de fato, se torna verdade ou, o que dá no mesmo, a distinção entre verdade e mentira, na acepção normal dessas palavras, desaparece (VOLKOGONOV, 2008, p. 352). Quando Chernenko ascendeu ao poder, a crise social atingiu enormes proporções e as mentiras não eram mais capazes de disfarçar as fendas na economia ou a verdade a respeito dos padrões de vida e dos direitos humanos. Os mitos que sustentaram o regime por tanto tempo, estavam sendo destruídos e a população estava cansada de mentiras e promessas de um futuro brilhante próximo, o Plano Quinquenal; além disso, a vida interna dos funcionários do Comitê Central sempre fora secreta, como uma casta separada da sociedade, que vivia com regras diferentes e desfrutavam de privilégios especiais negados aos seus camaradas cidadãos. A degeneração do sistema refletiu-se no aprofundamento da crise econômica, no anacronismo do sistema político, no controle cínico da vida espiritual e na natureza das pessoas que detinham o poder. Na política externa, a URSS caminhava para um beco sem saída, pois os países que tentava colocar na orientação socialista estavam sendo armados, enquanto se tornavam cada vez mais pobres e sem qualquer esperança de solução (não era o que o Politburo pensava). Quando a URSS invadiu a Tchecoslováquia, a Hungria e o Afeganistão, a propaganda era que se cumpria um dever internacional; enquanto proclamava as vantagens de uma economia dirigida, comprou por décadas os cereais nos países que de fato desfrutavam tais vantagens. A grande maioria da população mostrava total indiferença por Chernenko, pelo partido, pelo marxismo-leninismo e pelas sábias políticas do Comitê Central. Estavam cansados de tantas mentiras, sustentadas pelas estatísticas econômicas manipuladas, indicando um crescimento industrial anual de 4,2%. Chernenko ficara muito doente em seu governo e não havia um sistema racional de sucessão na URSS, logo o próximo líder seria indicado pela maioria do Politburo: A ausência de um sistema racional de sucessão resultava em cenas grotescas como a descrita por Gorbachev. Era como se os descendentes de Lênin se recusassem a reconhecer a morte. A vaidade fazia com que se apegassem ao poder até o último suspiro. A despeito da situação, no entanto, a chefia tentou passar a impressão de tudo normal (VOLKOGONOV, 2008, p. 384). 78 Em 10 de março de 1985, faleceu o sexto chefe soviético e, no dia seguinte, o Politburo indicara o novo líder: Mikhail Gorbachev. 3.5 O Último Leninista Talvez o mais importante a registrar seja que 70 anos depois da Revolução que tanto comoveu o mundo, porque viria por termo à carência e suprir o indivíduo daquilo de que necessitava, as autoridades soviéticas são obrigadas a reconhecer que a carência persiste, que os serviços públicos de saúde são deficientes, que a infância, no campo, é desassistida, que os milhões de aposentados e pensionistas, entre esses as viúvas de guerra, percebem benefícios que não ficam tão à frente daqueles que se pagam no Brasil (FERREIRA, 1990, p.78). De acordo com Mandel (1989), cada indivíduo “histórico” é um indivíduo concreto, no campo psicológico e social. Este indivíduo nasce e se forma com caráter, talentos e disposições, entretanto, dentro de um meio social determinado, fortemente marcado pelo grupo social ao qual pertence. Tal como os antigos líderes soviéticos, Mikhail Gorbachev 86 também teve seus talentos dedicados a um grupo social mais amplo – a burocracia soviética – por um comportamento adequado às regras e consequências da dominação desse grupo: Não se pode compreender o “fenômeno Gorbachev” senão como o encontro de uma evolução e de uma necessidade sociais com uma personalidade dotada das qualidades requeridas para dar-lhe expressão marcante em determinado momento da história. Gorbachev é o produto da efervescência anterior da sociedade soviética, antes de acentuar, por sua vez, essa mesma efervescência (MANDEL, 1989, p. 81). Não foi à toa que Gorbachev foi nomeado o sétimo secretário geral da URSS, pois as nomeações para o exercício de funções-chave são todas feitas ad hoc pela burocracia do partido, que escolhe entre candidatos pré-selecionados e preparados pelo setor interessado. Se foi escolhido, é porque a maioria do partido pertencia à burocracia soviética e dentro dos interesses da classe, a que Gorbachev pertencia, estavam em mudança. As circunstâncias nas quais foi eleito, sem hiatos do poder e nem solução de continuidade às políticas de Chernenko, confirmavam a intervenção discreta da KGB a favor do “renovador”. 86 Gorbachev ingressou no PCUS em 1952, formou-se em Direito pela Universidade de Moscou, em 1955, e em agronomia pelo Instituo Agrícola de Stavropol, em 1967. Iniciou sua carreira política na Juventude Comunista de Stavropol, foi eleito para o Soviete Supremo, em 1970. Em 1971, passou a integrar o Comitê Central do PCUS e, em 1979, tornou-se membro provisório do Politburo, sendo membro efetivo desde 1980. 79 Desde suas origens, Gorbachev representava a “nova classe média” na URSS, resultante da industrialização “socialista”; por esse traço, era um personagem completamente diferente de Kruschev, Brejnev, Andropov e Chernenko que vieram de classes sociais précapitalistas ou capitalistas, além disso, todos eles tiveram suas carreiras marcadas por Stalin: As mortes sucessivas de três comunistas da velha guarda, todos nascidos antes da Primeira Guerra Mundial, foram um tanto sintomáticas: a geração de líderes do partido que guardava memórias das origens bolcheviques da União Soviética e cujas vidas e carreiras tinham sido marcadas por Stalin começava a desaparecer. A referida geração herdara e comandara uma burocracia autoritária e gerontocrata, cuja grande prioridade era a própria sobrevivência; no mundo em que Brejnev, Andropov e Chernenko tinham crescido ter morte tranquila não era um feito significante (JUDT, 2007, p. 592). Era o primeiro representante da geração pós-stalinista de “comunistas” soviéticos que chegava ao poder na URSS, livre dos grandes combates e dos grandes traumas do passado. A realidade econômica da URSS tinha sido muito prejudicada em razão das falhas dos antigos chefes, tal como a incansável corrida armamentista com os Estados Unidos, o “auxílio” aos demais países socialistas e o apoio financeiro e militar aos demais conflitos nas nações comunistas existentes (como o Afeganistão): Cada vez mais a economia era pressionada em termos financeiros. A venda de grandes quantidades de petróleo, de outros combustíveis, de recursos energéticos e matérias-primas no mercado mundial não ajudou em nada, só piorou a situação [...]. A queda das taxas de crescimento e a estagnação econômica acabaram por influenciar outros aspectos da sociedade soviética. A esfera social foi seriamente afetada por tendências negativas, o que levou ao aparecimento do chamado princípio residual, de acordo com o qual os programas sociais e culturais recebiam o que sobrava do orçamento depois da alocação de recursos para a produção. Parecia que éramos insensíveis aos problemas sociais (GORBACHEV, 1987, p. 19). De acordo com Aganbeguian (1990), devido à estrutura deformada resultante do princípio residual, menos de 10% dos investimentos eram destinados à produção dos bens de consumo e serviços pagos87. A maior parte dos investimentos era destinada ao desenvolvimento da indústria pesada, principalmente aos seus ramos produtores de matériasprimas. Estas matérias-primas eram desperdiçadas, pois eram utilizadas irracionalmente; portanto, os recursos públicos eram “enterrados”, sem produzir efeito algum. Some-se a isso, a necessidade do crescimento prioritário dos meios de produção em detrimento da produção dos bens de consumo. Ao mesmo tempo, era aplicada a política de 87 Serviços pagos são aqueles que não são distribuídos coletivamente e o consumo, mesmo que subsidiado, é pago pela população. 80 contenção do desenvolvimento da indústria leve e alimentícia, considerada um ramo secundário, e, por essa razão, com equipamento obsoleto, salários mais baixos e o suprimento habitacional mais precário. Tal situação caracterizava a debilidade do sistema econômico88: Essa deformação profundamente anti-social da nossa economia nacional, orientada no passado, sobretudo, para a produção dos meios de produção, fez com que o nível de vida do povo não correspondesse ao poderio econômico da URSS, ao grau de desenvolvimento da ciência e da tecnologia e ao nível de instrução da população. Nós vivemos um nível de 30 a 50% inferior ao que poderíamos ter alcançado com o nível de desenvolvimento das forças produtivas, mas com uma estrutura normal do produto nacional (AGANBEGUIAN, 1990, p. 51). Os antigos chefes apresentavam uma falsa realidade, sem problemas, gerando a passividade da população e a descrença nos lemas proclamados, tudo o que era dito foi posto em dúvida. De acordo com Volkogonov (2008), as organizações do partido nos institutos e universidades se dissolviam por si mesmas. Milhares de pessoas deixaram o partido como forma de protesto contra a continuação do monopólio político e dos métodos de chefia, e, ao mesmo tempo, assistia-se à rápida depreciação dos valores fundamentais do “marxismoleninismo”: Para que aquilo que Gorbachev chama de “reestruturação” (perestroika) se tenha tornado necessário, foi preciso que esses vícios tivessem produzido danos à altura da grandeza do PIB soviético – o que significa que a deterioração da economia começou a afetar o Estado, sua capacidade militar e seu domínio, ou, pelo menos, o domínio do Partido sobre a população. O mito construído durante a guerra civil (da revolução até o fim da intervenção em 1920) já não pode ser usado para justificar malogros; a teoria do “cerco capitalista”, tão cara a Stalin [...], da mesma maneira não explicaria mais coisa alguma; o argumento da “Grande Guerra Patriótica” nada esclarece, pois se está em paz; a “guerra fria” não pode ser mais dada como responsável pela crise econômica (FERREIRA, 1990, p. 33). Os insucessos econômicos eram mais frequentes, as dificuldades se acumulavam e os problemas não solucionados multiplicavam-se. Formou-se uma espécie de freio que afetou o desenvolvimento sócio-econômico: Este é o estado da economia soviética em 1985, 68 anos depois da revolução: uma crise agrícola que se vinha estendendo fazia décadas; produção industrial tecnologicamente atrasada com relação aos padrões do Ocidente; sistemas de gestão voltados menos para a eficiência do que para manter vivo o mito do “pleno emprego” (a estocagem de mão-de-obra é exemplo dessa mentalidade administrativa); crise na balança comercial e, embora só revelado mais tarde, acentuado déficit público permeando todo o processo (FERREIRA, 1990, p. 39). 88 Um dos mais importantes objetivos da perestroika era mudar a situação existente, em melhorar a vida das pessoas e em reorientar socialmente a política estrutural e dos investimentos (AGANBEGUIAN, 1990). 81 A URSS tinha problemas graves relacionados à falta de mão de obra qualificada, redução do número de trabalhadores na agricultura, devido ao êxodo rural, aceleração técnicocientífica (fábricas soviéticas eram velhas e os laboratórios dos institutos de pesquisa não produziam tecnologia), queda nos preços do petróleo em 1986, ocasionando déficit na balança comercial. Além de problemas antigos como o alcoolismo89, o consumo de drogas, os crimes, estagnação econômica e a corrupção: Um exame imparcial e honesto levou-nos à única conclusão lógica: o país estava à beira de uma crise [...]. Trabalhadores, agricultores e intelectuais, funcionários do partido a nível central e local começaram a analisar a situação do país. Havia uma crescente conscientização de que não se podia continuar daquele modo por muito tempo. A perplexidade e indignação jorraram quando se percebeu que os nobres valores nascidos com a Revolução de Outubro e a luta heróica pelo socialismo estavam sendo pisoteados (GORBACHEV, 1987, p. 23-24). O partido comunista e o país estavam à deriva, enquanto a fermentação intelectual crescia, a “nova intelligentsia” soviética tornava ainda mais difícil a crença nos ideais leninistas e, ao mesmo tempo, servia como apoio para as reformas que seriam propostas por Gorbachev. Depois de Lênin, Gorbachev foi o único chefe soviético que pôde ser considerado comunista real, seguidor das obras de Lênin e dos ideais socialistas, não proclamando tais ideais para se autopromover ou para assegurar o “apoio” do povo. Nesse contexto político-econômico e social interno, Gorbachev propôs um conjunto de transformações na URSS, representadas pela Perestroika (reestruturação) e pela Glasnost (transparência). É importante destacar que, se a direção anterior do país fosse competente e progressista, esta reestruturação teria sido realizada há vinte ou trinta anos antes. Por outro lado, se, na década de 80, outras pessoas subissem ao poder, a estagnação econômica e a deterioração social poderiam continuar por décadas, o que ocasionaria o descontentamento das massas. Como resultado, o partido deveria escolher: voltar aos métodos stalinistas de submissão do povo ou realizar uma reforma radical de todas as relações sociais e econômicas; por isso, a realização da Perestroika deveria ser compreendida como um “imperativo categórico” que a história impôs à URSS: 89 De acordo com Ferreira (1990), desde os tempos do czar se faziam esforços para impedir o alcoolismo na Rússia (era uma calamidade pública). O alcoolismo marcou a URSS nos moldes do regime czarista e os custos sociais passaram a ser tão altos (aumento da criminalidade, baixa da produtividade, aumento do absenteísmo, aumento de crianças-problema com pais alcoólatras, redução da expectativa de vida e aumento do número de acidentes de trânsito) que o governo teve de conter o consumo a partir de multas elevadas e de prisões com trabalhos forçados para determinadas infrações. 82 A nova política econômica que Gorbachev procurou introduzir na União Soviética foi, assim a entendo, uma tentativa extrema de mobilizar energias políticas (evidentemente humanas) para impedir que o Estado soviético – aqui entendido no sentido amplo de organização „estatal‟, „social‟ e „humana‟ – desaparecesse tragado pelas contradições que se criaram entre as necessidades da sociedade e as relações de produção ditadas pelos interesses da burocracia, cujo domínio sobre o país não decorria da implantação do bolchevismo, mas deita fundas raízes no passado russo (FERREIRA, 1990, p. 27). De acordo com Gorbachev (1987), o sinônimo que representava a essência da Perestroika, com mais precisão é Revolução, isto implicaria na demolição de tudo aquilo que ficou estagnado e que emperrava o progresso, tal como a eliminação dos obstáculos que prejudicavam o desenvolvimento econômico e social, dos métodos antiquados de administração econômica e da mentalidade estereotipada e dogmática: Tornou-se claro que a “chave” para a realização da perestroika se encontrava não na esfera sócio-econômica, mas, antes de mais nada, na esfera política, mais concretamente na esfera partidária. Sem a democratização radical do poder político, era impossível a resolução dos problemas essenciais [...]. A questão básica de qualquer revolução é a questão do poder. A revolução significa uma mudança brusca do rumo e a inauguração de uma etapa essencialmente nova de desenvolvimento da sociedade (ZASLAVSKAIA, 1990, p. 141). Para alcançar tais objetivos90, Gorbachev tomaria medidas de longo alcance, rápidas e inflexíveis para acelerar o desenvolvimento sócio-econômico e cultural da sociedade soviética, e que afetariam toda a sociedade soviética. As transformações começaram com o partido e sua liderança, entretanto, foi preciso o apoio da população soviética, a iniciativa do alto com o movimento das bases, os interesses fundamentais e de longo prazo de todos os trabalhadores, como resposta a suas exigências. A essência social da perestroika consistiu no retorno da sociedade às necessidades do homem, à renovação e depuração das relações sociais e das deturpações e deformações que nela surgiram. Renasceriam os traços do sistema socialista que o tornavam mais atraente do que o capitalismo, isto é, o maior valor do socialismo é o homem: Chegamos à conclusão de que sem acionar o fator humano, isto é, sem levar em consideração os diversos interesses das pessoas, tanto as unidades de trabalho (os “coletivos”) como os órgãos públicos e os vários grupos sociais, sem contar com eles e sem atraí-los para se empenharem ativa e construtivamente, será impossível completar qualquer das tarefas fixadas ou mudar a situação [...]. O povo, os seres 90 Elevar o nível de vida da população, fim do desabastecimento de produtos alimentícios, desenvolvimento rápido de diversas formas de assistência social à população, superação da alienação dos indivíduos com relação aos objetivos e valores sociais, desenvolvimento das garantias sociais, ampliação dos direitos e liberdades do homem, entre outros (ZASLAVSKAIA, 1990). 83 humanos, com toda a sua diversidade criativa, é quem faz a História. Logo, a primeira tarefa da reestruturação, a condição indispensável para garantir o sucesso, é acordar aqueles que adormeceram, fazendo com que fiquem ativos e atentos; é assegurar que cada um se sinta como dono do país, de sua empresa, escritório ou instituição. Isto é o principal (GORBACHEV, 1987, p. 29). Perestroika também deveria ser entendida como a iniciativa das massas, o que implicava o total desenvolvimento da democracia, autogestão socialista, encorajamento da iniciativa e empenho criativo, críticas e autocríticas em todos os campos da sociedade soviética. A essência desta “revolução” estava no fato de que uniria o socialismo com a democracia e reviveria o conceito leninista de construção socialista na teoria e na prática. Para isso foi necessária a Glasnost (transparência) que representava a abertura democrática e que complementava a Perestroika: A glasnost (transparência), como abertura democrática, abriu caminho para a reforma do Estado e para as discussões ideológicas, nas quais a reconstituição da história e a crítica da burocracia e das deficiências da organização social, assim como da formação do homem soviético, substituindo a versão formal da realidade, identificam as questões reais que hoje se põem no país (POMERANZ, 1990, p.11). O grande desafio da Perestroika foi como reativar a população que durante décadas foi educada em obediência incondicional e temor, onde quaisquer formas de autonomia e iniciativa eram esmagadas e punidas severamente. Nos tempos de Perestroika, a sociedade soviética pagou por ter tolerado por tanto tempo a hipocrisia moral do partido. Por esse motivo, Gorbachev lançou a Glasnost que implicava a transparência da vida social, garantia do acesso livre dos cidadãos a todos os tipos de informação, discussão dos problemas sociais na ampla imprensa e o lema “mais socialismo, mais democracia”91; o que remontava ao período de Kruschev, quando se tentou um sistema mais democrático, esquecendo-se de que o sistema soviético não suportava tal função: No processo de tentar, ele conseguiu um avanço marcante ao subscrever a glasnost como um meio para a eliminação de todas as mentiras. O sistema leninista, independentemente do desejo de todos os seus funcionários, se fundamentava em falsidade, segredo, controle de informação e manipulação da consciência pública e privada. Tão logo o povo começou a entender a verdade sobre o regime e seus incontáveis mitos, os alicerces do sistema começaram a rachar. A verdade foi uma arma contra a qual o sistema leninista se revelou impotente (VOLKOGONOV, 2008, p. 417). 91 Mais socialismo significava mais democracia, abertura e coletivismo na vida diária, mais cultura e humanismo na produção, relações sociais, respeito próprio, mais patriotismo, mais preocupação da população com relação aos assuntos internos do país (GORBACHEV, 1987). 84 De acordo com Gorbachev (1987), as dificuldades e problemas dos anos 70 e 80 não significaram nenhum tipo de crise do socialismo como sistema político e social, mas era o resultado de inconsistência na aplicação de seus princípios, de afastamento e até de distorções, somados à adoção continua de métodos e formas de condução da população que surgiram sob condições históricas particulares nos primeiros estágios de desenvolvimento socialista. De acordo com Volkogonov (2008), qualquer ato democrático do sétimo Secretário-Geral era notado pela maioria da população como revelação inesperada, como qualquer “revolução” e nem todos apoiariam tais reformas: Os verdadeiros problemas aparecem quando examinamos os objetivos e projetos de Gorbachev no domínio político, não apenas à luz das necessidades objetivas da sociedade soviética, de seus cidadãos e cidadãs trabalhadoras - antes de tudo do proletariado soviético que constitui a grande maioria da população -, mas ainda em função dos interesses específicos da burocracia, isto é, dos governantes e dos abastados do país [...]. A questão para eles é consertar a situação econômica sem por em risco o essencial de seu poder e de seus privilégios. É assim que as classes e camadas dominantes sempre agiram na história. A burocracia soviética não constitui uma exceção a esta regra (MANDEL, 1989, p. 125-126). O sistema burocrático que se formou na URSS, ao longo de décadas, tinha possibilidades ilimitadas de subordinar, sem exceção, todas as esferas da vida social (nos âmbitos político, econômico, cultural e ideológico), sem encontrar quaisquer forças contrárias ou restrições reais. Durante décadas predominou, na URSS, um sistema único de “absolutismo burocrático”, isto é, uma burocracia que pretendia o domínio absoluto da sociedade e que teve como consequências principais a alienação entre o mecanismo do poder e as massas, a corrupção e a estagnação econômica: O domínio do sistema burocrático levou a sociedade à estagnação, suas instituições à profunda degradação e a própria burocracia triunfante à corrupção em escala nunca vista. Tal degradação não foi acidental nem inesperada [...]. Há muito se sabe que o poder absoluto, ilimitado e incontrolável corrompe por completo, inclusive a si próprio. Em regime de poder irrestrito nenhuma organização de revolucionários pode estar garantida contra a degradação burocrática (GUDKOV et al, 1990, p.198199). Com a Perestroika, Gorbachev procurava renovar um sistema que não tinha mais solução devido à amplitude da crise, à gravidade da situação econômica, às contradições políticas que as medidas92 apresentavam, além do descontentamento de grande parte da 92 Gorbachev e sua equipe propunham a democratização da sociedade com os seguintes objetivos: afastar os representantes mais tenazes do imobilismo em todos os escalões do aparelho; engrenar esse processo como o despertar, a fim de liberar energias criadoras e permitir iniciativas indispensáveis para o sucesso da Perestroika; e manter o controle do partido sobre o conjunto da renovação (MANDEL, 1989). 85 população (inclusive o descontentamento dos burocratas e da KGB). De acordo com Mandel (1989), Gorbachev e seus aliados sentiam-se assentados sobre uma bomba relógio e pensando na Perestroika como imperativo categórico e na Glasnost como complemento para o conjunto de transformações, o sistema não poderia e nem deveria durar muito tempo: “Hoje a tarefa é quebrar esse sistema. Não “limpar” as impurezas, não corrigir as “deformações”, mas sim quebrar o sistema de dominação burocrática, lançando bases completamente novas de desenvolvimento social e político do país” (GUDKOV et al, p. 199-200). De acordo com Ferreira (1990), foi por pretender reformar uma sociedade em que a burocracia tinha privilégios e poderes, que a proposição de Gorbachev foi dificultada na moldura do Estado conhecido como URSS e sob o domínio do PCUS. Segundo Gorbachev (1987), o processo iniciado com a Perestroika era de interesse de todo o povo soviético, pois reforçaria o socialismo por essa reestruturação, que tem como objetivo elevar o nível da sociedade soviética para um patamar novo com a volta do elemento mais importante deste regime, o homem. Em seu livro Perestroika, ele também destaca que a comunidade socialista só seria bem sucedida se partidos e nações conseguissem manter, ao mesmo tempo, estreita ligação com seus interesses particulares e com o interesse geral, mas não notou a contradição constante entre o sistema de partido único e suas propostas: Isso confirma mais uma vez a tese difundida pelos marxistas revolucionários, segundo a qual a verdadeira democracia socialista, o exercício real do poder político pelas massas trabalhadoras, um verdadeiro poder dos sovietes, são incompatíveis com o regime de partido único. Os sovietes só serão realmente soberanos e reais órgãos de “governo popular” se forem livremente eleitos: se elegerem livremente os responsáveis pela administração da economia; se votarem livremente com base em linhas estratégicas e políticas alternativas (MANDEL, 1989, p. 144). Isso pressupõe a existência de oposições reconhecidas como legais, o direito de os operários e camponeses elegerem livremente todos aqueles e aquelas que quiserem eleger, independentemente de sua filiação política ou ideológica, e sem o direito de veto prévio pelo PCUS e KGB, levando a sociedade soviética à pluralidade das tendências e partidos políticos: O que tornava a situação pior era que, na mente dos reformadores, glasnost era um programa muito mais específico que perestroika. Significava a introdução, ou reintrodução, de um Estado constitucional e democrático baseado no império da lei e no gozo das liberdades civis como comumente entendidos. Isso implicava a separação de partido e Estado, e (ao contrário de todo acontecimento desde a ascensão de Stalin) a mudança do locus do governo efetivo de partido para Estado. Isso, por sua vez, implicaria o fim do sistema unipartidário e do „papel condutor‟ do partido. Também, obviamente, significaria revivescência dos sovietes em todos os níveis, em forma de assembleias eleitas genuinamente representativas, que culminariam num Soviete Supremo, uma assembleia legislativa genuinamente 86 soberana, que concederia poder a um Executivo forte, mas seria capaz de controlá-lo (HOBSBAWM, 1994, p. 466). Na política externa Gorbachev também teve um papel renovador. Diferentemente dos outros seis chefes soviéticos, optou por uma coexistência pacífica93, isto é, declarou o fim da corrida armamentista e da “guerra” nuclear. Com esta declaração, estava definitivamente extinta a possibilidade de uma terceira guerra mundial: A corrida armamentista, como a guerra nuclear, não terá vencedores. A continuação dessa corrida no planeta, extensiva também ao espaço, fará com que se acelerem a acumulação e modernização do arsenal nuclear a níveis ainda inimagináveis. A situação mundial poderá, de um momento para outro, deixar de depender de decisões políticas para submeter-se, exclusivamente, à sorte. Todos nós nos vemos frente a frente com a necessidade de viver em paz, de encontrar outro modo de pensar e analisar a realidade, pois as atuais condições de vida que enfrentamos são muito diferentes das que existiam há três ou quatro décadas (GORBACHEV, 1987, p. 159). A catástrofe de Chernobyl (1986) e a guerra do Afeganistão exacerbaram materialmente os aspectos da crise política e econômica vivida pelo país, assim como a posição do Secretário-Geral diante da população. A URSS já não tinha mais o mesmo poder de antes e, assim, no último semestre de 1989 o poder comunista deixou de existir em seus “estados-satélites”: Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia, Albânia, além da reunificação da Alemanha (República Democrática Alemã) – sem o uso da força (exceto na Romênia). Isso indicava a perda da hegemonia soviética nesses países e estimularia a dissolução do império: Os últimos anos da União Soviética foram uma catástrofe em câmara lenta. A queda dos satélites europeus em 1989 e a relutante aceitação por Moscou da reunificação alemã demonstraram o colapso da União Soviética como potência internacional, mais ainda como superpotência [...]. Em termos internacionais, a URSS era como um país abrangentemente derrotado, como após uma grande guerra – só que sem guerra. Apesar disso, manteve as Forças Armadas e o complexo industrial militar da ex-superpotência, uma situação que impunha severos limites à sua política (HOBSBAWM, p. 476, 1994). A transição para as novas condições de gestão da economia foi acompanhada por erros graves em todas as linhas, e, por essa razão, não se conseguiu o efeito econômico esperado. A URSS teria de enfrentar a necessidade de sanear a economia e de retornar aos princípios proclamados, de continuar a desenvolver e aprofundar a reforma econômica: 93 Gorbachev frisou que os países eram interdependentes e destacou a responsabilidade de todos para manter a integridade do planeta, como o papel fundamental da ONU para garantir a estabilidade e paz mundial. 87 O problema crucial da concepção do mecanismo econômico do futuro é a formação de um mercado desenvolvido. Só com a sua ajuda é que se pode realmente subordinar a produção às necessidades dos consumidores e orientá-la pela satisfação das necessidades sociais. Nas condições de distribuição centralizada dos recursos, as desproporções são inevitáveis, pois é conservada a ditadura dos produtores sobre os consumidores. Neste caso, a produção se afasta cada vez mais das necessidades sociais, torna-se auto-suficiente e trabalha apenas em prol da sua própria ampliação (AGANBEGUIAN, 1990, p. 61). Uma economia deficitária não pode ser eficiente por princípio. A situação se agrava pelo critério da eficiência de uma economia socialista ser a plenitude das necessidades sociais (não atendidas). A fome e a escassez permaneciam na URSS, a economia estava em ruínas, os estados satélites abandonaram os regimes comunistas, os países que formavam a URSS davam sinais de manifestações nacionalistas, a Perestroika havia fracassado94 e a Glasnost depunha contra o Estado soviético; era nítida a rejeição de Gorbachev pela população soviética. Para alguns analistas, estava claro que o império deslizaria em breve: O que ninguém conseguia compreender, no começo de 1989, é que a União Soviética, seu império, sua ideologia – e, portanto, a própria Guerra Fria – eram um monte de areia prestes a deslizar. Tudo de que precisou para que isso acontecesse foi de mais alguns grãos de areia (GADDIS, 2007, p. 230). Em meados da década de 1990, a situação saiu do controle do partido95. O ano de 1991 marcou a URSS por dois acontecimentos: o primeiro relacionado às eleições por voto popular direto, sendo Boris Yeltsin eleito o presidente da Rússia; e o segundo relacionado ao Golpe de Agosto96 para retirada de Gorbachev do cargo de Secretário-Geral do PCUS. Em decorrência do golpe e de um regime falido, era inevitável que ocorresse a desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Em dezembro de 1991, a URSS é formalmente dissolvida: No comovente discurso, transmitido pela televisão central, em 25 de dezembro de 1991, no qual anunciou que deixava o cargo de presidente da URSS, Gorbachev expressou aquilo que a história seguramente decidirá a respeito de seu turbulento período como sétimo chefe da URSS: „A sociedade possui agora liberdade, foi 94 De acordo com Aganbeguian (1990), uma das lições mais importantes da perestroika era a necessidade de criar um mercado desenvolvido, sem o qual era impossível a resolução dos prementes problemas econômicos. 95 Gorbachev foi pressionado pela população em nome do fim do monopartidarismo, e com isso, o Soviete Supremo criou o cargo de presidente da URSS, que Gorbachev ocuparia. 96 Na manha de 19 de agosto de 1991, os meios de comunicação anunciaram que um autodenominado Comitê Estatal de Emergência havia assumido o poder, por motivo de suposta enfermidade do presidente Gorbachev, que o impossibilitava de exercer as funções de chefe de Estado da URSS. Com exceção do presidente do Azerbaijão, nenhum presidente das demais repúblicas deu apoio ao Comitê de Emergência. O golpe de agosto teve como principal consequência a adoção de medidas iniciadas por Yeltsin e seguidas por Gorbachev que determinaram o fim do PCUS (fechou a sede do PCUS, dissolveu o comitê central e determinou o confisco dos bens e a cessação da sua existência legal) (GORENDER, 1992, p. 93-95). 88 emancipada política e espiritualmente. E esta é a principal conquista que não entendemos completamente porque ainda não aprendemos como usar tal liberdade‟ (VOLKOGONOV, p. 472, 2008). Volkogonov (2008) destaca os motivos pelos quais houve a desintegração: insana corrida armamentista, na qual a paridade foi atingida há um custo financeiro exorbitante (um terço de todos os recursos do país estava comprometido por despesas militares); estagnação econômica que se transformou em característica permanente; natureza unitária da União que não conseguiria manter por muito tempo o nacionalismo dos países que a compunham; o sistema que deveria representar em nome do “coletivo” e da “sociedade”, porém, privou o cidadão de importantes direitos e liberdades; a insensata guerra no Afeganistão que gerou baixas financeiras, populacionais e agravou o índice de alcoolismo no país; e o monopólio do poder político. É preciso frisar o papel do monopólio do poder político como fator fundamental para a dissolução da URSS, pelas seguintes características: ineficiência na satisfação das necessidades da população, a ausência de liberdade e direitos, a manipulação dos cidadãos e dos ideais comunistas (retorno às raízes do leninismo), eleições forjadas e líderes préselecionados, corrupção, incansável “luta” entre o socialismo e o capitalismo e o auxílio econômico e militar aos países “satélites” da URSS ou aos simpatizantes do regime. Após a dissolução da URSS, formaram-se ou ressuscitaram os seguintes países: Estônia, Letônia, Lituânia, Bielo-Rússia, Ucrânia, Moldávia, Geórgia, Azerbaijão, Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão, Armênia, Cazaquistão, Turcomenistão e Rússia. De acordo com Hobsbawm (1994), o paradoxo da URSS é que, em sua morte, ofereceu um dos mais fortes argumentos para a análise de Karl Marx: Na produção social de seus meios de existência, os seres humanos entram em relações definidas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um estágio definido no desenvolvimento de suas forças produtivas materiais [...]. Em determinado estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão legal destas, com as relações de propriedade dentro das quais antes se movimentavam. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações se transformam em seus grilhões. Entramos então numa era de revolução social (MARX, 1859, apud HOBSBAWM, 1994, p. 481). O resultado da “era da revolução social” foi a destruição do velho sistema. Com o colapso da URSS, a experiência do socialismo realmente existente chegou ao fim. A experiência soviética foi tentada como um conjunto específico de respostas à situação 89 particular de um país imenso e atrasado e o fracasso da revolução em outros países deixou a URSS isolada e cercada por países capitalistas e comprometida em construir o socialismo em um país onde não havia pleno desenvolvimento do processo produtivo, combate à pobreza e a desigualdade social. 3.6 O Legado de um Império: A Nova Rússia O ponto vital, é claro, era a própria Rússia – nitidamente a república que dominava a União, com a metade da população do país, três quintos do Produto Interno Bruto e três quartos da massa territorial. Em certo sentido, o país „Rússia‟, como tal, não existia: tratava-se de um império havia séculos, fosse em realidade ou em aspiração. Abrangendo 11 fusos horários e 12 povos diferentes, a „Rússia‟ sempre fora grande demais para ser reduzida a uma única identidade ou a um propósito comum [...]. Ser russo era ser soviético. Os dois conceitos apresentavam uma complementaridade natural: na era pós-imperial, a União Soviética protegia o Estado imperial russo, enquanto a „Rússia‟ emprestava à União Soviética legitimidade histórica e territorial. Os limites entre „Rússia‟ e „União Soviética‟ eram, portanto, mantidos (propositadamente) indistintos (JUDT, 2008, p. 646). Com o desaparecimento da URSS surgiram 15 novos Estados. Neste grupo estava a Federação russa, superpotência que disputou durante décadas com os Estados Unidos o predomínio mundial, e por isso, sua herdeira natural. Como herdeira principal do antigo sistema soviético, a Rússia eliminou as consequências do colapso de um Estado e de um sistema econômico unificados. Como essas transformações ocorreram ao mesmo tempo, houve um profundo retrocesso econômico e reformas políticas e econômico-sociais inconsequentes, levando a uma persistente crise do sistema. As expectativas com relação ao desmembramento da URSS eram grandes. A população russa, em geral, considerava que o país avançaria ao se separar das demais repúblicas socialistas soviéticas, pois estaria livre da responsabilidade de subsidiar economias atrasadas (ADAM, 2011). Dentre os impactos do comunismo na Rússia no âmbito econômico, destacam-se não só a estagnação econômica soviética, como a debilidade do sistema econômico e índices negativos do PIB em quase todos os anos. Este decréscimo, em grande parte, é decorrente da perda de laços e comunicação na cadeia produtiva entre as diferentes repúblicas que estavam se separando: 90 Como se observou com o desmembramento da URSS, houve a desintegração das cadeias produtivas, em particular com a localização na Ucrânia de segmentos importantes da indústria pesada e da agricultura moderna. Com isso, os desequilíbrios estruturais da URSS – baixa produtividade da agricultura em relação à indústria, baixa produtividade da indústria em relação ao setor exportador – foram ampliados (MEDEIROS, 2011, p. 29). Para amenizar o problema, o país passou por uma “terapia de choque” (prezando a rápida transformação do antigo modelo socialista para uma economia capitalista) por meio de programas de reformas estruturais (centrados em privatizações97) e de ajustamento econômico (visando a correção dos desequilíbrios existentes no funcionamento da economia russa). Este processo de transformação econômica não fortaleceu o sistema, e, por estar debilitado, não protegeu o país da grave crise econômica em 1998 (POMERANZ, 2000). Decorrente das privatizações98, no âmbito social, houve o enriquecimento da camada superior, isto é, de banqueiros e empresários (chamados “oligarcas”99 ou novos russos) e a redução de renda da grande massa da população, gerando uma desestabilização social: As reformas ultrarradicais lideradas por Anatoly Chubais e Yegor Gaidar no governo Yeltsin, centradas na liberalização dos preços, dos mecanismos de controle e na privatização, resultaram em drástica contração dos setores e das atividades não exportadoras e na formação de uma nova classe dominante, a dos oligarcas. Esta era constituída por três grupos: os gerentes das grandes empresas estatais que, na desmontagem dos grandes órgãos de planejamento e no processo de privatização em massa, assumiram o seu controle patrimonial; os banqueiros privados, que serviram de intermediários dos grandes empréstimos internacionais dos anos 1990; os gângsteres que prosperaram com o colapso das instituições soviéticas. Esses três grupos tinham duas semelhanças: a sua dependência aos recursos do Estado russo e a sua recusa em investir a nova riqueza na Rússia (MEDEIROS, 2011, p. 24). De acordo com Bossen (2000), em amplas regiões da Rússia podia-se constatar a existência de corrupção, nepotismo, repressão à mídia regional, influência sobre os tribunais, obstrução à autonomia administrativa municipal e manipulação das eleições. No âmbito político-social, o governo teria problemas com as mais de 80 unidades da Federação Russa. A 97 A honestidade e lisura dos leilões foram colocadas em dúvida, pois os mesmos foram marcados por irregularidades, isto é, o valor das empresas e das participações a serem leiloadas foi subavaliado e os bancos que organizaram os leilões também puderam participar. Assim, grandes empresas foram entregues a um grupo reduzido de banqueiros, vinculado ao governo (devido ao financiamento da campanha de reeleição de Boris Yeltsin à Presidência da República) (POMERANZ, 2000). 98 De acordo com Medeiros (2011), a expansão do poder econômico privado se deu em duas ondas de privatizações. Os “vencedores” da primeira e da segunda onda foram os gerentes, que, com o capital financeiro privado, se beneficiaram das lucrativas operações de financiamento da dívida do Estado russo, em geral via empréstimos externos, garantidos por ações de grandes empresas estatais. 99 Os oligarcas são os que se beneficiaram com as privatizações na Rússia. Cada oligarca dominava seu grupo de empresas associadas; foi em cima dos recursos minerais do país que essa classe se enriqueceu (SEGRILLO, 2000). 91 Rússia, como a antiga URSS, tinha “repúblicas”, “regiões” e “áreas autônomas”, onde a população tinha um „autogoverno‟, principalmente na área cultural e linguística: Neste contexto, um enfraquecimento decisivo do Estado central, avantajando-se as margens de arbítrio dos governos locais e regionais, gerando, mesmo nos grandes centros urbanos, a formação de verdadeiras milícias privadas no quadro de ascensão das chamadas máfias e fazendo também emergir o fantasma de um novo processo de desagregação política (conflitos armados e guerras no Cáucaso, na esteira da proclamada independência da Tchetchênia, ameaças de secessão de regiões orientais) (REIS FILHO, 2007, p. 204). A Rússia também enfrentaria problemas relacionados à nacionalidade, pois a antiga URSS era um mosaico de nacionalidades, com mais de cem oficialmente registradas e quando foi dissolvida, nem todos os problemas foram resolvidos. De acordo com Cervo (2001), a dissolução do império soviético desencadeou na Rússia um debate sobre sua identidade e papel no “novo” mundo100. A Rússia emergia com autonomia, sem abandonar os desígnios do império czarista e a influência sobre a Europa Oriental. Por essa razão formou a Comunidade dos Estados Independentes (CEI) 101, organização multilateral que poderia representar um meio institucional legítimo como alternativa aos países que compunham o Estado soviético. Contudo, a Rússia não seria mais tratada pelos Estados Unidos e Europa como grande potência (como se imaginava), mas sim como uma parceira bem menor. O fato de a Rússia estar enfraquecida favorece os Estados Unidos, que fizeram parcerias com os antigos estados-membros da URSS, pela importância da região. De acordo com Adam (2011), a região formada pelo espaço pós-soviético é importante para os Estados 100 Desde o período czarista é possível identificar uma divisão na política russa entre ocidentalistas, eslavófilos e eurasianistas. Os primeiros consideram a Rússia um país europeu, razão pela qual deve se aproximar do ocidente e seguir seus exemplos políticos, econômicos e sociais. Os eslavófilos argumentam que sua origem eslava, seu passado camponês e seu catolicismo ortodoxo tornam a Rússia um país único no mundo, que deve ser o líder dos povos eslavos. E os eurasianos, entendem que pela sua história e posição geográfica, a Rússia é um país eurasiano e por isso, deve estreitar laços com os países do oriente e desconfiar dos países do ocidente, tradicionalmente, causadores de instabilidade e invasões no território russo; tais divisões políticas influenciaram e divergiram na atuação dos governos de Boris Yeltsin, Vladimir Putin e Dmitri Medvedev (ADAM, 2011, p. 41). 101 Em um primeiro momento, a CEI foi projetada em 8 de dezembro de 1991, tendo como membros a Rússia, a Ucrânia e Bielo-Rússia para ser a comunidade dos estados eslavos. Contudo, a pedidos de outras repúblicas soviéticas que tinham declarado suas independências, ela aumentou o quadro e modificou seu nome. Sua fundação foi no dia 25 de dezembro de 1991, com os signatários: Rússia, Ucrânia, Bielo-Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão, Moldávia, Azerbaijão e Armênia (ADAM, 2011). 92 Unidos principalmente por ser o elo que une geograficamente e comercialmente a Europa, o Leste Asiático e o Oriente Médio: Em seu livro The Grand Chessboard, Brzezinski argumentou que o controle sobre a Eurásia continuava a ser geopoliticamente fundamental para os Estados Unidos, pois a grande extensão de terras que, segundo o autor, vai de Lisboa até Vladvostok (Rússia), concentraria: 75% da população mundial; a maior parte das riquezas (naturais e em forma de empreendimentos) do planeta; três quartos das reservas provadas de recursos energéticos; além das seis maiores economias, depois da norteamericana; e dos seis exércitos maiores do mundo, também depois do norteamericano (BRZEZINSKI, 1997, apud ADAM, 2011, p. 44). Os novos governantes não se contentariam com o status de potência média, pois a Rússia por décadas foi caracterizada como grande potência. Dessa forma, os líderes passaram a ter como objetivo a retomada da Rússia como grande potência no sistema internacional e, como tal, precisaria continuar com sua zona de influência: Devido ao seu passado de guerras e invasões provenientes de praticamente todos os pontos cardeais, sedimentou-se na Rússia a necessidade de contar com uma esfera de proteção que ultrapasse as suas fronteiras, a fim de manter a segurança do país e, especialmente, do seu núcleo, Moscou. No período soviético, por exemplo, as demais repúblicas socialistas soviéticas cumpriam esta função, pois mesmo que fizessem parte de único Estado, a principal república, sem dúvida, era a russa (TRENIN, 2001, apud ADAM, 2011, p. 47). Quanto mais extenso for o espaço sob o domínio ou influência de Moscou, maior será a estabilidade social russa, devido à sensação de que o país está cumprindo com o seu destino de grande potência. De acordo com a visão do Kremlin, o espaço pós-soviético é a zona de influência natural da Rússia, conservando o antigo status de “Mãe Rússia”102. O fato é que após a dissolução do espaço soviético, a Rússia como principal paísmembro, recebe seu legado. Isso gerou uma Rússia instável nos âmbitos político, econômico e social, que teria de buscar alternativas para seu desenvolvimento e transformação de um regime socialista para capitalista, além dos problemas com as nacionalidades, os países da CEI, a corrupção arraigada, o domínio dos oligarcas e os novos governantes. 102 De acordo com Adam (2011), outro aspecto de extrema relevância para Moscou é o fato de que aproximadamente 73% do gás natural exportado pela Rússia para os consumidores europeus ainda passam por gasodutos existentes em solos das ex-repúblicas soviéticas (como é o caso da Ucrânia). 93 CONCLUSÃO A Rússia nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial apresentava debilidades relacionadas às condições básicas de vida. A população era em sua maioria camponesa e enfrentava problemas como fome e miséria, o que sustentava o descontentamento com o Czar Nicolau II. A Primeira Guerra Mundial acentuou no mundo e, em particular, na Rússia, uma crise político-social que evidenciou as falhas do sistema capitalista. As revoltas e levantes que surgiram depois da Primeira Guerra Mundial refletiam a insatisfação da população mundial sobre o sistema econômico vigente e sobre a dominação de classes que estava subentendida. Por essa razão, a parte da população que se viu excluída do sistema capitalista, em meio à miséria e a pobreza, uniu-se e começou a defender o fim do capitalismo. Foi nesse período que a Revolução de Outubro liderada por Lênin e Trotski tomou força. Cabe ressaltar que a Rússia era pobre, semifeudal e economicamente atrasada e, portanto, não tinha o pleno desenvolvimento do processo produtivo, isto é, não possuía as condições objetivas para uma revolução socialista como previam Marx e Engels. Além disso, a Revolução Russa não foi liderada pelo proletariado, mas principalmente pelos camponeses que queriam apenas um pedaço de terra ou pelos grandes proprietários que estavam descontentes com o governo, sendo que eles não conheciam as características do sistema socialista. Em decorrência da Primeira Guerra Mundial e da Guerra Civil, os problemas políticos, econômicos e sociais foram acentuados na Rússia. Diante da deterioração econômica, o primeiro governo soviético foi obrigado a implantar o comunismo de guerra, baseado nas ideias de Marx, entretanto, ocorreu o oposto, isto é, o governo tentou abolir a desigualdade, mas o fez pela redução dos padrões de vida, tornando universal a pobreza e consequentemente a insatisfação da população. Com o fim da Guerra Civil e o fracasso do Comunismo de Guerra, Lênin instituiu a NEP, que traria uma economia mista e estabeleceria o monopólio político. Essa medida marcou o governo soviético, pois a partir deste momento, teria um centro onipotente no partido russo, com direito ilimitado de controle e de decisão, que restringiria o movimento. Após a Revolução de Outubro e a Guerra Civil, Lênin precisava de estabilidade política para organizar o país e, por essa razão, adotou essa medida como indiscutível e necessária. Ocorreu que tal medida não foi desfeita, seja pelo benefício que traria aos 94 membros do partido, por falta de tempo (Lênin faleceu no início de seu governo) ou por ausência de um líder após o falecimento de Lênin. O sistema monopartidário favoreceu a ascensão de Stalin e a queda de Trotski. Stálin como Secretário-Geral proclamou o “início” do socialismo real em 1922, isto é, a formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Enquanto Lênin estava vivo, Stalin fingiu ser um seguidor pleno dos ideais marxista-leninistas, com algumas exceções que quase o derrubaram de seu cargo (como as questões relacionadas ao seu cargo de Comissariado das Nacionalidades, Geórgia). Com o falecimento de Lênin, Stalin, com auxílio de Kamenev e Zinoviev, ascende ao poder e aos poucos se rebela como um líder autoritário, cruel e manipulador. A máquina partidária ficou em suas mãos, e isto foi fundamental para conseguir seu objetivo principal: vencer Trotski e o debate acerca dos rumos da revolução socialista mundial, através da sua teoria do “socialismo em um só país”, mostrando que a Rússia deveria passar, em um primeiro momento, por uma revolução burguesa para desenvolver-se social e industrialmente, e posteriormente, o proletariado assumiria o poder. O socialismo em um só país não condizia com as ideias de Marx e Engels e a vitória de Stalin foi possível em grande parte porque a URSS estava em um momento que precisava acreditar em sua “autosuficiência” socialista. Cabe destacar que após a Revolução de Outubro, a URSS encarou o capitalismo como inimigo a ser derrubado pela revolução mundial. O fato é que essa revolução não ocorreu e, portanto, a URSS estava cercada por um mundo capitalista, cuja maioria dos governos queria impedir o estabelecimento do sistema socialista, senão eliminá-lo assim que possível. Por essa razão, a URSS foi necessariamente obrigada a um desenvolvimento autossuficiente e isolada do resto da economia mundial. O governo do “czar vermelho” também foi marcado pela incessante fome e miséria da população, que ainda eram justificadas pela Primeira Guerra Mundial e Guerra Civil. Para melhorar as condições de vida da população, utilizou-se dos famosos “Planos Quinquenais” que consistiam em processos de industrialização acelerada e planificação da economia; políticas que tinham sido propostas por Trotski. Com suas “contribuições teóricas”, Stálin arrancou a essência humanística do socialismo, substituindo-a pelo socialismo sacrificial a partir da eliminação de seus opositores, coletivização forçada e implantando a era do terror. Com a morte de Lênin e de Stalin estava claro que os sucessores não teriam destaque. A queda do “czar vermelho” reafirmou a inexistência da liderança coletiva na URSS, ou seja, o sistema monopartidário e o monopólio de poder continuaram sendo uma ameaça à 95 população e à economia soviéticas. Além disso, a chefia do Kremlin ainda acreditava que o sistema se apoiava em três grandes pilares: o partido, a ideologia bolchevique e o grande aparato repressor. Portanto, a disputa pelo cargo de primeiro Secretário- Geral ocorreu de forma antidemocrática, tal como todos os outros chefes soviéticos. Kruschev ascendeu ao poder condenando “o culto à personalidade” de Stalin a partir de um fenômeno que ficou conhecido como desestalinização, anunciando a volta aos ideais leninistas como forma de restaurar a vida interna do partido e reparar o dano causado pela “ilegalidade revolucionária”, auxiliando o país à volta da “democracia socialista soviética”. De acordo com alguns estudiosos, a desestalinização deveria ter sido feita pelos verdadeiros antistalinistas e, por essa razão, a atitude de Kruschev foi julgada como hipócrita. A contribuição de Kruschev se deu pela eliminação dos campos de trabalho forçado (Gulag) e do complexo econômico industrial (MVD). No entanto, fracassou em suas reformas, principalmente com o sistema agrícola soviético que estava debilitado e assim continuou por décadas. O fracasso foi atribuído ao governo anterior (ato que se tornaria constante entre os chefes) e depois da divulgação dos crimes de Stalin e do insucesso em suas medidas, o povo sentiu a debilidade do regime. A debilidade somada à insatisfação dos demais membros do partido contribuiu para a queda de Kruschev, primeiro chefe soviético que não permaneceu em seu cargo até sua morte. Brejnev ficou conhecido como um marionete que era manipulado pelos influentes membros do Politburo. Ademais, seu governo foi marcado por uma profunda estagnação ligada aos abusivos esforços militares para alcançar os Estados Unidos, o que comprometeu as condições básicas de vida da população. Neste período, a apatia do povo cresceu, a corrupção floresceu nos mais diversos níveis, a taxa de crescimento do país era nula e a agricultura estava “morta”. Brejnev proclamava o socialismo, anunciando os ideais leninistas e uma sociedade “sem classes” e igualitária, no entanto, havia nítidas distorções quanto às condições de vida da população e quanto aos privilégios dos membros do partido, forjando uma situação razoável inexistente. Com a morte de Brejnev, Andropov assumiu o governo graças à influência que possuía junto aos demais membros do partido. Procurou estabelecer reformas, entretanto, os erros permaneciam: o primeiro relacionado ao aparato partidário (centralismo democrático), o segundo relacionado aos pressupostos do marxismo-leninismo e o terceiro relacionado à necessidade de reformas abrangentes e radicais (que poderiam prejudicar ou colocar em risco o partido). O governo de Chernenko e os últimos anos do Império Soviético marcaram o distanciamento da política, da moralidade e dos fundamentos do marxismo-leninismo, isto é, 96 tudo o que servia à causa do “socialismo” era considerado justo. Ademais, seu governo refletiu-se no aprofundamento da crise econômica, no anacronismo do sistema político e no descontentamento da população, o que refletia a nítida degeneração do sistema. Gorbachev assumiu o poder com uma situação bem delicada na URSS. O último líder soviético era um personagem totalmente diferente dos antigos chefes soviéticos, por representar a “nova classe média”, por ser o mais novo entre os antigos líderes ou por não ter sua carreira marcada pelos anos stalinistas. O momento em que Gorbachev governou não tinha mais como forjar a realidade; a deterioração da economia começou a afetar o Estado, sua capacidade militar e principalmente, o domínio do partido sobre a população. Diante desta situação, Gorbachev tentou reformar o sistema a partir da Perestroika (reconstrução) e da Glasnost (transparência). Ocorre que o sistema em sua base, não suportaria reformas econômicas e sociais profundas e, portanto, deslizaria. Cabe destacar a “semelhança” em uma ação de Lênin e Gorbachev. De acordo com o último líder da URSS, as dificuldades e problemas dos anos 1970 e 1980 não significaram nenhum tipo de crise do socialismo como sistema político e social, mas era o resultado da inconsistência na aplicação de seus princípios, de afastamento e até de distorções. Isto é, para os líderes, o sistema nunca esteve em crise na URSS, a culpa sempre foi atribuída aos imperialistas ou aos antigos líderes soviéticos que eram selecionados pelos membros do partido. E os mesmos membros que selecionavam, excluíam e, por isso, Gorbachev foi “deposto” de seu cargo. A dissolução da URSS teve, como fator fundamental, o monopólio do poder político. O partido mostrou-se incapaz de cumprir o que tinha prometido na Revolução de Outubro, isto é, satisfazer as necessidades da população, garantir a liberdade e os direitos de sua população. Manipulou o povo soviético, fraudou os verdadeiros ideais socialistas (retorno às raízes do leninismo), manteve-se por eleições antidemocráticas e corruptas (com líderes préselecionados) e auxiliou economicamente e militarmente os países “satélites” da URSS e os simpatizantes do regime, enquanto o povo “pagava a conta”. Há grande dificuldade em perceber o que as sete décadas do Império Soviético tiveram de socialismo e o quanto isso “beneficiou” os países membros. A queda do “gigante dos pés de barro” abalou todos os países que faziam parte do bloco, mas, sem dúvida, a Rússia foi a principal herdeira do Império. O modelo soviético foi uma alternativa ao modelo ultrapassado, o capitalismo, mas não seguiu os verdadeiros ideais marxista-leninistas e de certa forma, isso também contribuiu para a derrocada do sistema soviético. Portanto, minha hipótese não foi refutada, o que não quer dizer que o assunto esteja esgotado. 97 O objetivo do trabalho foi demonstrar como a dissolução da URSS alterou o ressurgimento da Federação Russa, isto é, como o passado influenciou o presente e o futuro. Como herdeira principal do antigo sistema soviético, a Rússia teve de eliminar as consequências do colapso de um Estado e de um sistema econômico unificados. Logo em seu ressurgimento, a população acreditava que a Rússia avançaria ao se separar das demais repúblicas, pois deixaria de subsidiar as demais repúblicas socialistas, entretanto, ocorreu o inverso. O fato é que a Rússia nos anos soviéticos era cercada pelos demais países que compunham a URSS e, de algum modo, aspira continuar com esse “espaço vital”. Quanto mais extenso for o espaço sob o domínio ou a influência de Moscou, maior será a estabilidade social russa. O espaço pós-soviético é a zona de influência natural da “Mãe Rússia”. O ressurgimento da Rússia representa a nova ordem do sistema internacional, em que os Estados Unidos ascendem como única superpotência. O “novo” mundo traz novos desafios aos países tanto internamente quanto externamente, e prova que os países precisam unir-se em determinados assuntos ou problemas que têm em comum. Ao mesmo tempo, a Rússia encara um debate interno a respeito de sua identidade e seu papel no novo mundo, isto é, a respeito destas alianças fundamentais. O colapso da URSS levou a Rússia de superpotência à potência emergente, de um Império soviético a um governo parlamentar, mas sem dúvida, por bastante tempo será vista, principalmente pelos países do Leste Europeu, como a continuação do antigo ou como um “novo Império”. 98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAM, Gabriel P. A Rússia e os Países da Comunidade dos Estados Independentes no início do século XXI. In: ALVES, Gustavo Miranda Pineli (Org.). Uma longa transição: vinte anos de transformações na Rússia. 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