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Tantas léguas a nos separar…
A canção Tanto Mar de Chico Buarque
Cristina Duarte-Simões
Maître de Conférences
Université Paul Valéry-Montpellier
LLACS
Resumo
Inspirado pela Revolução dos Cravos, o compositor brasileiro Chico Buarque compôs duas versões da canção
Tanto Mar. Como a primeira letra foi interditada integralmente pelo regime ditatorial brasileiro, o artista
reescreveu inteiramente a canção alguns anos mais tarde pois, nesse meio tempo, a euforia da revolução
portuguesa já tinha se esvanecido.
Palavras-chave
Chico Buarque, Tanto mar, Revolução dos Cravos, ditadura.
Quando o compositor brasileiro Chico Buarque de Hollanda compôs Tanto Mar, em 1975, inspirado
pela Revolução dos Cravos, ele já era bem conhecido do público brasileiro, tendo até mesmo se tornado uma
reconhecida « paixão nacional »1, ou uma confessada e única « unanimidade nacional »2. Naqueles tempos
difíceis de ditadura militar, o compositor carioca era visado pela Censura e após ter deixado o país natal para
exilar-se na Itália, em 1969, regressou no ano seguinte ao Brasil, onde suas obras passaram a sofrer arbitrárias e
sistemáticas proibições decididas pelo sistema totalitário: Chico passa a ser um dos artistas mais perseguidos
pela Censura. Na primeira metade da década de 70, é várias vezes intimado a comparecer ao Exército e à
Polícia Federal3.
Naquele momento, ao longo de sua já conceituada carreira musical, o compositor mostrara interesse
pela terra lusitana pois em 1973, em parceria com o moçambicano Ruy Guerra, havia composto a canção Fado
Tropical4, uma das músicas da peça Calabar: o elogio da traição5. Num caso de censura extrema, não somente a
canção e a peça foram interditadas: também a imprensa ficou impedida de mencionar a severa proibição6.
Apesar de Calabar tratar de um assunto histórico — a traição do senhor de engenho português
Domingos Fernandes Calabar, que durante a ocupação holandesa de Pernambuco (1624-1654), passou para o
lado dos invasores7 — as instâncias ditatoriais bem viram nela uma referência ao guerrilheiro Lamarca, militar
que havia desertado o exército brasileiro e adotado a luta contra o regime autoritário, estando bastante ativo
naquele momento difícil que o país atravessava. No que toca mais especificamente à canção Fado Tropical,
certos versos soavam de maneira « provocante » aos ouvidos dos ditadores, tais como: « Esta terra ainda vai
cumprir seu ideal / ainda vai tornar-se um imenso Portugal ». Com efeito, o músico tecia um paralelo entre os
1
Albin, Ricardo Cravo, O Livro de ouro da MPB – a história de nossa música popular de sua origem até hoje,
Rio de Janeiro, Ediouro, 2003, p. 339.
2
Expressão de Millôr Fernandes, apud Meneses, Adélia Bezerra, Desenho mágico. Poesia e política em Chico
Buarque, São Paulo, Ateliê Editorial, 2000, p. 24.
3
Fernandes, Rinaldo de (org.), Chico Buarque do Brasil, Rio de Janeiro, Garamond/Fundação Biblioteca
Nacional, 2004, p. 33.
4
Disco « Chico », Philips, 1973.
5
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1974.
6
Meneses, op. cit., p.36.
7
Calabar foi condenado e enforcado pelos portugueses em 1635, após ter sido submetido à tortura do garrote.
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dois países e principalmente entre as duas ditaduras, insistindo sobre o destino funesto de ambas. A proibição da
peça data de janeiro de 19748, alguns meses somente antes do revolucionário 25 de abril português 9.
Foi, porém, no ano seguinte, com a canção Tanto Mar, inspirada pela já ocorrida Revolução dos Cravos,
que Chico Buarque homenageou a vitória da luta portuguesa contra a ditadura militar. Existem duas versões
dessa obra, uma de 1975 e outra de 1978. A primeira delas foi censurada rapidamente, e no disco gravado ao
vivo com Maria Bethânia, no mesmo ano10, a versão apresentada é somente instrumental. A letra completa dessa
canção interditada era a seguinte:
Tanto Mar
Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim.
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim.
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar.
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim.
Como se pode observar, fala-se de um país em festa que contrasta com a tristeza do narrador brasileiro
(« Lá faz primavera, pá / cá estou doente »), deixando entender que há uma grande distância (« léguas a nos
separar », « tanto mar ») entre os dois países e que para se aproximar de Portugal — e de sua nova situação
política de liberdade —, é necessário navegar bastante, ou seja, lutar. Para uma maior cumplicidade entre o
narrador e o povo português, Chico Buarque emprega a palavra « pá », bem como elementos que, no Brasil,
lembram a terra portuguesa: cravo, alecrim, verbo na segunda pessoa do singular; sem contar diversos outros
termos ligados culturalmente à antiga metrópole e às Grandes Navegações : mar, léguas, navegar.
Chico Buarque transmitia nesses versos a grande tristeza com que assistia a posse de mais um militar
enquanto presidente do Brasil — o quarto —, na época o general Ernesto Geisel, que governou o país de 1974 a
1979. Comparava essa tragédia com a festa que viviam então os portugueses por terem conseguido derrubar a
ditadura, uma das mais longas da Europa.
Por outro lado, é interessante notar que a canção foi vetada no Brasil, mas foi editada em Portugal,
como informa o site do compositor11.
Esses acontecimentos portugueses foram recebidos no Brasil com um grande interesse, tanto pelo
governo militar como pelo povo em geral. « A oposição à ditadura militar festejou como se a vitória fosse sua »,
8
Fernandes, op. cit., p. 33.
A peça só pôde ser encenada bem mais tarde, em 1980.
10
Disco « Canecão ao vivo », Universal Music Brasil, 1975.
11
http://www.chicobuarque.com.br
9
3
lembra Francisco Carlos P. Martinho12. Por outro lado, a ditadura militar brasileira agiu quanto a isso de forma
surpreendente:
« Já no dia 27 de abril, o Brasil reconhecia formalmente o novo regime português, tendo sido o
primeiro país a fazê-lo. E ofereceu imediatamente asilo político ao presidente da República
deposto, Américo Tomás, e ao presidente do Conselho de Ministros, sucessor de Salazar, Marcello
Caetano, que veio a falecer no Brasil seis anos depois 13. »
Atitude bastante contraditória. Se por um lado o governo brasileiro apressou-se em reconhecer o novo
regime português, por outro acolheu os que tinham exercido o governo autoritário até aquele momento. No que
diz respeito à primeira parte, a razão não é difícil de ser encontrada: o Brasil estava bastante interessado em
tomar o lugar de Portugal junto às colônias portuguesas da África, como mostrou em seguida por sua atitude
diplomática bastante livre e surpreendente, por exemplo em relação a Angola, a mais rica das colônias
portuguesas africanas: instalação de uma representação oficial brasileira em Luanda, antes do final das
negociatas para a independência de Angola e reconhecimento imediato da independência do país, sendo assim o
Brasil o primeiro a agir desta maneira.
A segunda versão desta canção faz parte do disco « Chico Buarque », lançado no Brasil em 197814. Ora,
quando o compositor conseguiu finalmente o necessário acordo da Censura para gravar a canção composta três
anos antes, a situação portuguesa já não era a mesma, a euforia do 25 de abril já havia passado e Portugal se
debatia numa situação política e social bastante complexa. Chico Buarque « reorganizou » então a letra de Tanto
Mar, fazendo dela uma canção de decepção que pode ser resumida pelo verso: «Já murcharam tua festa, pá ».
Tanto Mar
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E ainda guardo, renitente
Um velho cravo para mim.
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim.
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar.
Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
Compondo essa canção, Chico Buarque prestou uma homenagem à luta do povo português, ao mesmo
tempo em que persistiu na crítica da ditadura brasileira, julgamento que levou ao clímax em duas composições
proibidas totalmente pelo regime autoritário: Apesar de você, em 1970, e Cálice, em 1973.
12
Martinho, Francisco Carlos Palomanes, « Léguas a nos separar »,
www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/leguas-a-nos-separar, 9/9/2007, p. 2, acessado em 22/01/2014.
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Ibidem, p. 2-3. Com efeito, Marcello Caetano foi morar no Rio de Janeiro, mais precisamente em Copacabana,
e exerceu no Brasil o cargo de diretor do Instituto de Direito Comparado da Universidade Gama Filho, um
estabelecimento de ensino particular. Veio a falecer em 1980, vitimado por um ataque cardíaco.
14
Universal Music Brasil.
4
Em seguida, não tendo mais conseguido lançar nenhum disco pois de três canções, uma era proibida
sistematicamente pela censura ditatorial, o compositor passou a adotar o pseudônimo de Julinho da Adelaide, em
1974, para poder continuar a exprimir a dissidência frente ao regime totalitário brasileiro.
Por outro lado, Chico Buarque continuou a se interessar pelo mundo lusófono com a composição
Morena de Angola, em 1980.
No que diz respeito à visão que o autor exprime da Revolução portuguesa, pode-se dizer que ela é, ao
mesmo tempo, eufórica e nostálgica: repleta de esperança na primeira versão de Tanto mar, contaminada, porém,
pela desilusão na reescritura da segunda letra da mesma.
Quanto à ditatura militar brasileira, o compositor fechou com chave de ouro esses longos anos de
dissidência e censura ao compor, em 1984, Vai passar, canção que ficou, para todos os brasileiros, como o
simbolo do retorno do país ao regime democrático.
Bibliografia
ALBIN, Ricardo Cravo, O Livro de ouro da MPB – a história de nossa música popular de sua origem até hoje,
Rio de Janeiro, Ediouro, 2003, p. 339.
BUARQUE, Chico e GUERRA, Ruy, Calabar. O elogio da traição, Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, 1974.
FERNANDES, Rinaldo de (org.), Chico Buarque do Brasil, Rio de Janeiro, Garamond/Fundação Biblioteca
Nacional, 2004.
MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes, « Léguas a nos separar »,
www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/leguas-a-nos-separar, 9/9/2007, acessado em 22/01/2014.
MENESES, Adélia Bezerra, Desenho mágico. Poesia e política em Chico Buarque, São Paulo, Ateliê Editorial,
2000, p. 36.
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