O FIM DA PLENA EDUCAÇÃO SUPERIOR: QUESTÕES TEÓRICAS A PARTIR DA COMPARAÇÃO DOS QUADROS DE POLÍTICAS PÚBLICAS DO BRASIL E BOLÍVIA Luiz Ismael Pereira* Resumo Este artigo tem como objetivo investigar o papel das políticas públicas de educação superior em dois países latino-americanos de proximidade regional e histórica: Bolívia e Brasil. Pretende-se analisar a atuação dos Estados em questão entre os anos 2002-2014, no Brasil, e 2006-2014, na Bolívia (Pós-Consenso de Washington), pois nos períodos destacados há uma profunda alteração no modo de concretização de direitos e tentativas de superação da miséria. Verifica-se que há, na década de 2010 um esforço internacional de apoio mútuo entre os países no campo da educação superior, capitaneado pelo Brasil. Para tanto, pretende-se: 1) conhecer a teoria política envolvida na intervenção do Estado em ambos os casos, com delimitação metodológica ao PROUNI, no caso brasileiro; 2) compreender o modo de atuação da estrutura institucional; e, por fim, 3) os objetivos propostos e até então atingidos. Isso possibilitará pensar na previsibilidade das políticas públicas e na avaliação dos programas e apoios internacionais. Palavras-chave: educação superior; pós-Consenso de Washington; Bolívia; Brasil; políticas públicas. *Doutorando e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/SP. Bolsista Capes. Abstract This article aims to investigate the role of public policies in higher education in two Latin American countries and regional historical proximity: Bolivia and Brazil. We intend to analyze the performance of the States concerned between the years 2002-2014, in Brazil, and 2006-2014, Bolivia (Post-Washington Consensus), as highlighted in periods there is a profound change in the way of realization of rights and attempts to overcome poverty. It appears that there is, in the 2010s an international effort of mutual support between countries in the field of higher education, spearheaded by Brazil. To this end, we intend to: 1) know the political theory involved in state intervention in both cases, with the methodological delimitation PROUNI, in Brazil; 2) understand the mode of action of the institutional structure; and finally 3) the proposed objectives, hitherto achieved. This will enable thinking about policy predictability and evaluation of programs and international support. Keywords: higher education; post-Washington Consensus; Bolivia; Brazil; public policies. // Revista da Faculdade de Direito // número 3 // primeiro semestre de 2015 144 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira Reformas pedagógicas isoladas, indispensáveis, não trazem contribuições substanciais. Poderiam até, em certas ocasiões, reforçar a crise, porque abrandam as necessárias exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam uma inocente despreocupação frente ao poder que a realidade extrapedagógica exerce sobre eles. 1. Introdução Theodor Adorno, Teoria da semicultura. N a formação social do capitalism, há duas formas de dominação determinantes: uma primeira, objetiva, exercida pela tensão provocada pelas relações de produção; outra, subjetiva, pela indústria cultural. Theodor Adorno, reconhecendo essa situação, compreendeu o papel da educação para a formação plena do indivíduo. Em oposição à formação plena, propôs o conceito de Halbbildung, semiformação, ou semicultura. Seu estatuto teórico estabelece, como perspectiva política de transposição do quadro de minoridade da modernidade, a autorreflexão crítica, mas não por meio do acesso à ratio – a modernidade a conheceu, mas não atingiu os objetivos propostos – anseio do projeto kantiano: “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 26). a atuar de forma mais presente na realização dos direitos sociais como direitos fundamentais dos cidadãos. Isso é marcante nos casos da Bolívia, que em 2005 elege Evo Morales, proveniente da população indígena, e do Brasil, que em 2002 elege Lula, da classe operária. Os partidos no poder passam a atuar no empoderamento da classe pobre, o que redundou em repensar as políticas públicas de ingresso e permanência no ensino superior, meios de concretização de outros direitos fundamentais, como o desenvolvimento. O projeto, embora perdido, tentou encontrar lugar nos horizontes políticos do Estado Democrático e Social de Direito. No período chamado pós-Consenso de Washington, iniciado com o fracasso do neoliberalismo, os Estados passaram Notadamente, o Programa Universidade para Todos – PROUNI do governo federal brasileiro foi tomado como meio de introduzir os pobres na Universidade Privada. Cabe compreender como os mecanismos de avaliação de tal po- Neste trabalho, pretende-se compreender o papel teórico interligado com a ampliação dos direitos de cidadania para além da educação básica, tomando, em ambos os casos, medidas de capacitação técnica e acadêmica nas áreas de ciência, tecnologia e inovação. // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 145 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira lítica pública podem contribuir para avaliar as distorções da qualidade de ensino no pais. Em comparação com o caso boliviano, pretendemos compreender como a cooperação internacional possibilitaria a consecução dos objetivos sociais encampados pelo governo popular. A comparação se justifica tendo em vista as parcerias recentes dos países no campo da educação superior. Na primeira parte, embora já amplamente debatido, apresentamos os objetivos do ensino superior diante da importância na formação dos direitos sociais no século XX. Qualificar seu objeto é importante para compreender o papel do Estado na fiscalização do serviço prestado, tanto no setor público, quanto no privado. Após isso, apresentamos as diferenças e semelhanças dos programas de ensino superior boliviano e brasileiro a partir de um aspecto comum a justificar tal corte metodológico: a virada social de preocupação com a efetivação de acesso à educação formal, tanto no combate ao analfabetismo, como no ingresso no ensino superior. Em ambos os casos, tem-se olhos no desenvolvimento da nação e do ideário de superação da miséria, característicos dos governos dos anos 2000. Por fim, na terceira parte, apresentamos um balanço diante das teorias e experiências anteriormente lançadas, após a comparação das estruturas de ambos os países. Tomamos, assim, como hipótese a ser analisada, que as políticas públicas brasileiras de acesso ao ensino superior privado podem ter contribuído economicamente à iniciativa privada, mas podem ter apresentado um desserviço á construção de uma sociedade que se volta para o objetivo central da educação superior, em especial o PROUNI. Para tanto, foram colhidos dados estatísticos fornecidos pelos órgãos oficiais dos Estados da Bolívia e do Brasil, a partir das prestações de contas anuais, tanto no gasto, quanto no número de ingressantes e titulados nas IES. A análise dos dados apresentados se deu a partir de um referencial teórico dialético-materialista, recolocando historicamente a função da Universidade nos anos pós-Consenso de Washington. Retomar o tema da educação superior em tempos de crise do Estado neoliberal e da estrutura pós-fordista tem relevância imediata. Filosoficamente, é possível compreender os mecanismos de atuação da forma jurídica, bem como suas limitações diante das estruturas políticas maiores. Sociologicamente, por meio da potência de mudança a partir dos trabalhos por eles oferecidos. E, por fim, juridicamente, será possível compreender a extensão da obrigatoriedade do Estado com a concretização de direitos. 2. Educação superior: qualificando o objeto Os marcos para a atuação do Estado na realização dos direitos sociais podem variar na literatura especializada, o que não gera maiores implicações teóricas. Não se deve menosprezar o papel do desenvolvimento da cidadania no século XX, pois este possui íntima relação com as alterações estruturais do Estado pari passu com a regulação econômico-social: 1) seja por considerar a cidadania como “um status concedido àqueles que são membros de uma comunidade”, por entender que “o dever do Estado é para com a sociedade como um todo” (MARSHALL, 2002, pp. 76 e 96-97); // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 146 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira 2) seja pela correlação com a Alfhebung hegeliana, sendo que “a ideia-mestra da nova cidadania consiste em fazer com que o povo se torne parte principal do processo de seu desenvolvimento e promoção social”, protagonizando juntamente com o Estado a realização de tais direitos (COMPARATO, 1993); ou mesmo 3) por reconhecer neles “uma faceta própria pelo desenvolvimento”, com o objetivo de “estimular e organizar a atividade econômica, em escala nacional, de onde provêm os recursos para o provimento” (BUCCI, 2013, pp. 25-26). Nesse sentido, merece destaque o novo constitucionalismo e a força normativa dos objetivos sociais a que o Estado se impõe, a ampliação do conceito de cidadania. Em especial, no campo proposto, a qualificação do objeto do ensino superior como meio de redução das desigualdades sociais por meio do ingresso e permanência dos pobres em terras que possibilitariam a reforma do próprio pensamento acadêmico. A educação superior foi filha de seu tempo. Com os programas econômicos neoliberais introduzidos a partir dos anos 1980, houve um crescimento vertiginoso de instituições privadas por todo o Brasil.1 O impacto imediato foi a maior concorrência, diminuição de custos, pressão sobre o setor público e necessidade de medidas governamentais para o aproveitamento e incentivo de tais conglomerados. Tal fenômeno não é exclusivo do Brasil. Em toda a América Latina, “o resultado [da abertura da concorrência no ensino superior] foi o surgimento de instituições privadas de ensino com esquemas de controles frouxos e distantemente e com ligada ofertas curriculares ligadas ao mercado e distanciadas das necessidades sociais” (WEISE; LAGUNA, 2008, p. 426). Diante disso, é necessário compreender a educação superior a partir de dois pontos de vista: o primeiro, como direito social que decorrer necessariamente da forma estatal intervencionista, que deve produzir políticas públicas para a efetivação de um bem comum; o segundo, contrapartida econômica para aquecimento da economia com o aproveitamento do débito histórico da região latino-americana, indubitavelmente censitário e racista. 3. Estrutura de comparação: Bolívia e Brasil A Universidade boliviana, desde a publicação do Decreto-Lei de 23 de fevereiro de 1931, incorporou o espírito da autonomia universitária na construção do ensino superior. Isso se deu devido à influência do acontecimento de Córdoba, a revolta estudantil de 1918 que influenciou todo o continente: “El ‘Manifesto Liminar de la Juventud Argentina de Cordonba a los Hombres Libres de Sudamérica’, que ciruculó profundamente por todas la universidade americanas”, espírito esse incorporado desde cedo ao art. 159, da Constituição de 1938, sob o epíteto da Universidade Única (ORMACHEA, 2006, p. 50).2 Logo com essa autonomia não seria respeitada. Com a época das ditaduras militares que caiu sob a América Latina, na Bolívia também sentiu-se a forte mão que impedia a livre administração da Universidade boliviana, o que só seria retomado em 1982. Após a aprovação da atual Constituição Boliviana de 2009, o ensino superior retoma uma importante função: desenvolver “procesos de formação professional, de generación y divulgación de conocimientos orientados al desarollo integral de la sociedad”, conforme seu o art. 91, I. Embora haja uma // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 147 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira evidente participação da iniciativa privada também na formação da estrutura do ensino superior, fica evidente o protagonismo do Estado par a manutenção de um programa de desenvolvimento nacional com vistas à estrutura universitária. É de destaque que Álvaro Garcia Linera, cientista político e atual vice-Presidente boliviano, destacou em 2005 que o grande analfabetismo existente na Bolívia, o que impedia qualquer acesso ao ensino superior, se concentrou historicamente na população indígena. A explicação disso está na estrutura de dominação espanhola: a língua oficial castelhana não era dada a conhecer ao indígena que tinha o quéchua e o aimará, o que impacta em uma diversidade cultural e simbólica. Continuando, Linera faz o seguinte diagnóstico da Universidade boliviana de então: Já no ano de 2008, o quadro da estrutura do ensino superior na Bolívia passou a se alterar. Com a inclusão das políticas públicas inspiradas nos planos cubanos e venezuelanos de ensino, foi possível a educação formal da população indígena do país. Com isso, no ano de 2014, a UNESCO chegou a declarar a Bolivia, em menos de 10 anos do governo de Evo, livre o analfabetismo. No ensino superior o impacto não foi menor. O acesso aumentou, permitindo que um maior número de bolivianos pudessem ascender culturalmente: conforme se observa nos Gráficos 1 e 2 abaixo, o ingresso do boliviano ultrapassa a faixa dos 300 mil anualmente após o ano de 2009 no ensino público. Esse protagonismo fica evidente quando se percebe um pico no número total de ingressantes no ano de 2011 no ensino privado, com certo decrescimento de matriculados no ano de 2010. Entretanto, e apesar disso, o Estado é monoético e monocultural; nele predomina a identidade cultural boliviana de fala castelhana. Isso pressupõe que a população obtém prerrogativas e possibilidades de ascensão nas diferentes estruturas de poder – tanto econômico, político, judicial e militar como cultural – apenas por meio do idioma espanhol (LINERA, 2010, p. 303). A via única do exercício da cidadania no idioma adquirido, o castelhano, impactou na exclusão histórica de cerca de 60% a 65% da população indígena do ensino básico, quanto mais do ensino superior. Com a ascensão de Evo Morales ao poder, no ano de 2006, muitas estruturas sociais e políticas bolivianas foram abaladas. Ele representou, como ainda representa, a recolocação do indígena no centro das atenções do Estado. 148 Gráfico 1: Matriculados nas Universidades Públicas Fonte: Registro de Universidades do Sistema Boliviano - Instituto Nacional de Estadística (criação do gráfico a partir dos dados fornecidos pelo site do INE: www.ine.gob.bo). // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira Gráfico 2: Matriculados nas Universidades Privadas Fonte: Registro de Universidades do Sistema Boliviano - Instituto Nacional de Estadística (criação do gráfico a partir dos dados fornecidos pelo site do INE: www.ine.gob.bo). Gráfico 3: Egressos de Universidades Públicas Fonte: Registro de Universidades do Sistema Boliviano - Instituto Nacional de Estadística (criação do gráfico a partir dos dados fornecidos pelo site do INE: www.ine.gob.bo). O impacto do protagonismo do ensino público na sociedade boliviana, sob o dirigismo de um Estado comprometido com a inclusão dos indígenas na educação formal, tem levado a uma maior procura e titulação nas Universidade Públicas e diminuição no mesmo sentido nas Universidades do ensino privado, conforme os gráficos a seguir: Gráfico 4: Egressos de Universidades Privadas Fonte: Registro de Universidades do Sistema Boliviano - Instituto Nacional de Estadística (criação do gráfico a partir dos dados fornecidos pelo site do INE: www.ine.gob.bo). // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 149 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira No Brasil, a relação entre setores público e privado não passa despercebida. O PROUNI se trata de medida, inicialmente, de Governo, que é Institucionalizada pelo Presidente Lula e reforçada pela Presidenta Dilma (2003-2010 e 2011-2014), bem como pelo então Ministro da Educação, Fernando Haddad. Há uma destacada articulação institucional entre os seguintes órgãos: a) Ministério da Educação/MEC – Secretaria de Educação Superior; b) Ministério da Fazenda/MF – Secretaria da Receita Federal/SRF; c) Ministério da Previdência Social/MPAS; d) Conselho Nacional de Assistência Social/CNAS. Além disso, por óbvio, há a participação das IES – Privadas e amplo processo deliberativo popular com a formação de comissões internas na maioria das IES com vistas à colocação dos egressos do ensino secundário gratuito na iniciativa privada. A base jurídica formal possui, basicamente a seguinte estrutura: a) MP nº 213/2004, convertida na lei federal ordinária nº 11. 096, de 13 de janeiro de 2005; b) Decreto nº 5.493, de 18 de julho de 2005; c) IN SRF nº 456, de 05 de outubro de 2004; Portaria MEC nº 3.268, de 18 de outubro de 2004. O PROUNI tem como finalidade o financiamento de bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições de ensino superior privadas. Conforme previsto na legisla- ção, são candidatos ao PROUNI, após seleção por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (reformulado pelo Ministério da Educação): a) bolsa de estudo integral: será concedida a brasileiros não portadores de diploma de curso superior, cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até 1 (um) salário-mínimo e 1/2 (meio); b) bolsas de estudos parciais de 50% (cinquenta por cento) ou de 25% (vinte e cinco por cento), cujos critérios de distribuição serão definidos em regulamento pelo Ministério da Educação: serão concedidas a brasileiros não-portadores de diploma de curso superior, cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até 3 (três) salários-mínimos, mediante critérios definidos pelo Ministério da Educação. O financiamento das bolsas se dá por meio de uma articulação Ministerial, pois envolve a renúncia de receitas que deveriam ser recolhidas a títulos de tributos aos cofres públicos federais. É digno de nota que, conforme a Tabela 1 e Gráfico 5 abaixo, o destaque de tributos federais para o PROUNI tem aumentado para além da casa dos 500 milhões de reais nos últimos anos, sendo que a diminuição no último ano analisado se deu por uma política de fiscalização mais acirrada que levou ao descredenciamento de alunos fantasmas nas IES: // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 150 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira Tabela 1: Valor alocado previsto (em milhões de reais). Fontes: (1) Receita Federal do Brasil: www.receita.fazenda.org.br. Demonstrativo dos Gastos Governamentais Indiretos de Natureza Tributária (Gastos Tributários). (2) Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA: www.ipea.gov.br. Boletim de Políticas Sociais nº 16, 2008. artigo, seria o modo de repensar a regulação econômica dos meios de comunicação como forma de educação política. Mais do que isso, a fiscalização econômica e de qualidade das IES, tanto privadas quanto públicas, a partir dos resultados práticos para os objetivos de encontro do povo brasileiro com os objetivos de superação da miséria. Por fim, como a participação popular nos órgãos de decisão e avaliação das políticas públicas implementadas pelo Estado são de importâncias imediata e urgente para que a educação superior possa caminhar para um salto de qualidade.3 Cabe-nos, porém, como forma de contribuir com o debate, sem retornar a pontos vencidos, bem como progredir, não sem apontamentos de críticas, efetivar um balanço entre as relações até então expostas, efetivar um balanço prático após a exposição dos dados acima expostos e de grande importância para o debate. 4. Balanço prático e teórico da atuação dos casos boliviano e brasileiro Gráfico 5: Alocação de recursos do PROUNI. Fontes: as mesmas da Tabela 1. Muito já se escreveu sobre o direito à educação superior e o PROUNI. Talvez, o ponto que mais seja importante, mas que foge à estreita metodologia a que nos propomos no presente Como destaque para a importância do ensino superior para a superação da pobreza e reencontro do povo latino-americano com sua histórica, nos últimos anos, os países integrantes do Mercosul tendem a colaborar pelo desenvolvimento do ensino superior entre seus membros. Trata-se do Programa de Mobilidade Acadêmica Regional – MARCA, com destaque de verbas, tendo como objetivo central a “a melhoria da qualidade acadêmica, por meio de sistemas de avaliação e acreditação, e a mobilidade de estudantes, docentes e pesquisadores entre instituições e países”, conforme o site de informações do Ministério da Educação. // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 151 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira Justificado exaustivamente o corte metodológico, cabe comentar que diante do quadro teórico delimitado na Introdução e na primeira parte do presente artigo, bem como diante dos dados comparativos utilizados na segunda parte, o balanço entre as políticas de ensino superior entre os países tende a ser desigual. Enquanto a Bolívia tem privilegiado a maior regulação dos instrumentos de ensino superior, tendo em vista os objetivos da República, isto é, a inclusão do povo historicamente excluído, o Brasil o faz com certa medida de timidez. Não se desconsidera que o PROUNI tenha uma característica popular importantíssima, em especial o importante sistema de cotas de corte racial, que, ao lado do sistema implementado nas Universidades Públicas Federais, tende a permitir o acesso à população mais carente do país: os negros e indígenas, geralmente o retrato do pobre. Também não se esquece que, num país historicamente construído sobre o patriarcalismo e clientelismo dos primeiros anos da República, ditaduras militares mergulhadas na corrupção dos agentes políticos, bem como sob o Estado de Exceção Econômica, para usar expressão de Gilberto Bercovici, os pobres que adentram as IES Privadas devem ser parabenizados. Isso não está em questão. O que deve ser objeto de preocupação é a qualidade do ensino ofertado nos cursos de educação superior. No exemplo boliviano, sendo o ensino superior gratuito o mais procurado e com maior número de egressos, as políticas públicas devem se concentrar na valorização de tal parcela. No caso brasileiro, pelo contrário, sob os grandes conglomerados educacionais, tem-se realizado o próprio fi- nanciamento público do ensino superior privado sem a garantia de qualidade. Além disso, e o objetivo central da própria Constituição Federal Brasileira em destacar o papel do ensino superior é o ingresso e a permanência do discente, não é congruente que o PROUNI mantém a política de acesso nas IES Privadas sem uma efetiva política de permanência que envolva transporte, alimentação e moradia. A permanência na Universidade deve se focar em programas que dialoguem com as dificuldades enfrentadas pelos estudantes nas mais diversas áreas. De tal sorte que falta uma política de avaliação para identificar tais dificuldades por área e região do país. O ciclo das políticas públicas envolve, necessariamente, uma avaliação do atingimento dos objetivos propostos, bem como das reais necessidades de mudança, mas não se observa uma efetiva análise do público atingido, dos cursos mais procurados e regiões de maior necessidade, bem como das áreas estratégicas para a superação da pobreza. 5. Conclusão Inicialmente, cabe aqui mais uma vez a pergunta: existe um modelo? O questionamento sempre foi válido no campo do desenvolvimentismo, sendo negativa a resposta. “O desenvolvimento não tem modelo. Alemanha, Estados Unidos da América (do Norte), França etc. não passaram por estágios de subdesenvolvimento. Não há como seguir passos para encontrar os meios de autonomia” (PEREIRA, 2013, p. 584). Se no campo do desenvolvimento econômico não é possível falar que há um caminho de tijolos amarelos para o // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 152 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira encontro da autonomia, tampouco será diferente para o desenvolvimento social, em especial a educação superior que tem como objetivo o estímulo da autorreflexão crítica e superação da semicultura. Assim, vale lembrar que as críticas construídas por Adorno ao modelo Universitário que contribui para bloquear o desenvolvimento pleno servem para compreender o ensino superior latino-americano ao menos em parte. Inserida no campo teórico que traça um diagnóstico de época inaugurado pela Dialética do Esclarecimento, onde a dominação objetiva (relações de produção) e subjetiva (Industria Cultural) contribuem com o fim do projeto iluminista de autonomia, sua Teoria da Semicultura auxilia a avaliar o fim da plena educação superior. Ao utilizarmos o termo “fim”, optamos pelo duplo sentido que o constitui: primeiro como finalidade, depois como ponto final. No primeiro caso, o ensino superior deve caminhar com os objetivos do encontro de uma nação consigo, em especial diante da histórica colonização exploratória, escravagista e de dominação do imaginário latino-americano. Como já dissemos em outra oportunidade, tal invasão do Continente “criará os valores já existentes na Europa, no entanto, com a implicação de totalização colonialista dos valores eurocentristas, genocídio, exploração” de ameríndios, africanos e das mulheres a partir das relações sociais patriarcais (PEREIRA, 2013, pp. 562-563). A consciência de tal situação abre as portas para a redescoberta de mecanismos de superação de relações sociais institucionalizadas segundo a vontade de uma pequena parcela privilegiada historicamente. No segundo caso, há a contradição de diminuição de exigências para a educação superior que prejudicam o próprio sentido de censo crítico capaz de desenvolver o interesse da população. Se a iniciativa privada toma a população segundo a vontade do mercado, e mais uma vez as classes pobres adentram a um ensino superior não fiscalizado quanto ao conteúdo, se representam o aumento da mão de obra qualificada e barata, se não há medidas de avaliação para cobrar a retomada do eixo, haverá uma crescente decadência das políticas públicas. Existindo semelhanças de objetivos e diferenças na forma de implementação e financiamento da educação superior, justifica-se que Bolívia e Brasil possuem formações históricas semelhantes, mas não idênticas. O Brasil, compromissado com seu protagonismo regional, tem se lançado em políticas de imediata ação, ainda que arriscando uma formação não plena do corpo discente nacional. Embora o quadro não seja apocalíptico, pois há diversas IES Privadas sérias que correspondem aos anseios do Programa, a fiscalização mais efetiva, não formal, só tenderia a melhor efetivar os objetivos politicos e sociais do PROUNI pelo país. Dessa forma, com os ajustes de autoavaliação, sevirá como inspiração para a criação de modelos semelhantes nos países da região, respeitada a devida preocupação também com o Ensino Público de qualidade, caso realmente se pretenda superar a desigualdade estrutural da formação econômica. Referências BENEVIDES, Maria Vitória de M. Cidadania e Democracia. Lua Nova, v. 33, p. 5, 1994. 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Sâo Paulo: Páginas & Letras, 2015, pp. 7-11). d) Conselho Nacional de Assistência Social/CNAS; 6) Agentes não governamentais: Instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos; 7) Inserção na legislação orçamentária anual, valor alocado: renúncia de tributos 1) Programa: Programa Universidade para Todos – PROUNI 2) Direito em questão: educação superior, CF/88 art. 6º e 206 3) Gestão governamental que criou ou implementou o programa: Presidente Lula – PT (2002-2009); Ministro da Educação Fernando Haddad – PT (2004). Tabela 1: Valor alocado previsto (em milhões de reais). Fontes: (1) Receita Federal do Brasil: www.receita.fazenda.org.br. Demonstrativo dos Gastos Governamentais Indiretos de Natureza Tributária (Gastos Tributários) – vários anos. (2) Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA: www.ipea.gov.br. Boletim de Políticas Sociais 16, 2008. 4) Base jurídica formal (lei, decretos, portarias): a) MP nº 213/2004, convertida na lei federal ordinária nº 11. 096, de 13 de janeiro de 2005; b) Decreto nº 5.493, de 18 de julho de 2005; c) IN SRF nº 456, de 05 de outubro de 2004; d) Portaria MEC nº 3.268, de 18 de outubro de 2004. 5) Agentes governamentais (com base nas competências informadas na lei e na base jurídica): a) Ministério da Educação/MEC – Secretaria de Educação Superior; b) Ministério da Fazenda/MF – Secretaria da Receita Federal/SRF; c) Ministério da Previdência Social/MPAS; 155 Tabela 1: Valor alocado previsto (em milhões de reais). // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira 8) Público-alvo, escala (preferencialmente, segundo os quadros anexos à lei orçamentária, em cotejo com as estatísticas oficiais do setor e com outras informações externas, que possam fornecer uma perspectiva crítica): a) bolsa de estudo integral: será concedida a brasileiros não portadores de diploma de curso superior, cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até 1 (um) salário-mínimo e 1/2 (meio); b) bolsas de estudo parciais de 50% (cinquenta por cento) ou de 25% (vinte e cinco por cento), cujos critérios de distribuição serão definidos em regulamento pelo Ministério da Educação, serão concedidas a brasileiros não-portadores de diploma de curso superior, cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até 3 (três) salários-mínimos, mediante critérios definidos pelo Ministério da Educação. 9) Estratégia de implantação, distinguindo as fontes oficiais das externas: renúncia fiscal de tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS, COFINS). 10) Funcionamento do programa, segundo o desenho normativo: (QUAIS SÃO AS IES’S QUE RECEBEM AS BOLSAS E COMO SÃO DISTRIBUÍDAS) 11) Funcionamento efetivo do programa: aumento de ingressantes (bolsistas) – ver o Censo da Educação Superior (VER DADOS DE CURSOS MAIS PROCURADOS). 12) Aspectos críticos do desenho jurídico-institucional e do funcionamento do programa: a) financiamento das IES’s privadas sem a garantia de qualidade; b) falta de coordenação e identificação da relação entre prestação do ensino e a permanência dos ingressantes; c) falta de identificação de áreas prioritárias pelos dados de formação; d) permitiu a entrada nas IES’s da população carente e que necessita de trabalhos específicos; D Notas 1. Merece destaque o julgamento realizado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, em 2013, impondo restrições à fusão dos grupos educacionais Kroton e Anhanguera, no Brasil. 2. Constituição Boliviana de 1938: “Artículo 159° - Las Universidades públicas son autónomas e iguales en jerarquía. La autonomía consiste en la libre administración de sus recursos, el nombramiento de sus Rectores, personal docente y administrativo, la facción de sus estatutos y planes de estudio, la aprobación de sus presupuestos anuales, la aceptación de legados y donaciones, la celebración de contratos y obligaciones para realizar sus fines y sostener y perfeccionar sus institutos y facultades. Podrán negociar empréstitos con garantía de sus bienes y recursos, previa aprobación legislativa”. 3. Os pontos enumerados, longe de serem taxativos, representam hipóteses de pesquisa que poderão lançar luz para a recolocação do debate da educação não apenas como direito, mas como meio de construção política. Tais ideias podem ganhar a antipatia de um público que tende, nos tempos pós- Jornadas de Junho (2013), a diminuir o papel da política a mero partidarismo. Pelos que pesquisam a relação dos direitos fundamentais com as // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015 156 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // O fim da plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas do Brasil e Bolívia // Luiz Ismael Pereira políticas públicas de concretização, como no caso do Grupo de Pesquisa liderado por Clarice Seixas Duarte e Maria Paula Dallari Bucci (Mackenzie e USP em convênio com a ASAP – Academics Stand Against Poverty: http://academicsstand.org/chapters/brazil/), destacam-se os seguintes trabalhos: BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. Cidadania e Democracia. Lua Nova, v. 33, p. 5, 1994; BERCOVICI, Gilberto. Estado Intervencionista e Constituição Social no Brasil: O Silêncio Ensurdecedor de um Diálogo de Ausentes. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (orgs.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; ______. Planejamento e políticas públicas: por uma nova compreensão do papel do Estado. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006; BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013; ______.O conceito de políticas públicas em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, pp. 1-49; HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituição e Direitos Sociais. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 102, p. 371395, 2007; LOPES, Ana Maria D’Ávila. A Cidadania na Constituição Federal Brasileira de 1988. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gerson Marques de; BEDÊ, Fayga Silveira. Constituição e democracia: estudos em homenagem ao prof. J. J. Gomes Canotilho. São Paulo, SP: Malheiros, 2006; SANTI ROMANO. O Ordenamento Jurídico. Trad. Arno Dallari Junior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, pp. 59-134. 157 // A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015