Nós, Ocilene Fernandes Barreto e Paulo Roberto Ceccarelli, autores do trabalho
intitulado “Ideal materno e morte na transmissão vertical do HIV”, o qual submetemos à
apreciação da Comissão Executiva do V Congresso Internacional de Psicopatologia
Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, concordamos
que os direitos autorais a eles referentes se tornem propriedade exclusiva da Associação
Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental - AUPPF, sendo vedada
qualquer reprodução total ou parcial, em qualquer outra parte ou meio de divulgação
impressa ou virtual sem que a prévia e necessária autorização seja solicitada por escrito
e obtida junto à AUPPF”.
Data: 13/10/2010
Ocilene Fernandes Barreto
Paulo Roberto Ceccarelli
Resumo:
O diagnóstico do HIV-aids causa sérias perdas narcísicas no paciente. Quando o
contágio se dá através da transmissão vertical - da mãe para o bebê durante a gravidez,
parto e amamentação - nota-se também, além das implicações narcísicas, o confronto
entre os ideais adversos presentes nessa dinâmica psíquica. O imaginário social
compreende a figura materna como um amor incondicional, e a metáfora “dar a luz”
ultrapassa a função biológica. Diante à feminização da epidemia no Brasil, outro ideal
se introduz: o componente mortífero do HIV-aids que delineia no corpo seus efeitos.
Através de uma pesquisa teórica busca-se compreender o confronto entre esses ideais,
quando o amor de mãe se depara com uma doença cujo ideal é indissociável da morte.
Sendo a identificação o laço mais remoto entre Eu e o outro, os ideais de amor materno
e da mortalidade do HIV-aids se intercalam em uma convivência capaz de produzir
extremo sofrimento psíquico nos atores que protagonizam essa cena.
Palavras-chaves: perdas narcísicas, alteridade, ideal de eu, identificação, transmissão
vertical.
Título: Ideal materno e morte na transmissão vertical do HIV
“As mulheres interiorizaram a ideia de que o sofrimento é intrinsicamente
nobre a ponto de a dor e o desconforto que emanam de seus papéis sexual e
1
reprodutivo serem aceitos como se constituíssem a própria essência da
condição feminina [...]” Mere Kisekka, feminista nigeriana.
O diagnóstico do HIV-aids causa sérias perdas narcísicas no paciente
soropositivo. A perda de peso, a diarreia, a lipodistrofia, os cânceres e outros sintomas
debilitam o corpo antes saudável e belo, agora acometido gravemente por doenças
oportunistas, convertendo-o em um corpo frágil e doente, moribundo; impondo
rearranjos sofridos e árduos, nem sempre possíveis. O Eu ideal sofre ataques que nem
mesmo Narciso é capaz de suportar.
E apesar dos eficazes antirretrovirais e do elogiado modelo de distribuição
gratuita destes pelo SUS - Sistema Único de Saúde, a aids prossegue como uma doença
sem cura. Uma síndrome clínica que destrói as células imunológicas, deixando o
paciente vulnerável a infecções oportunistas. São estas doenças que transfiguram o
corpo, num padecimento tão voraz que amparado em reedições das tramas psíquicas
infantis (LINDERNMEYER, 2012), reencontra personagens que, ou motivam a recusa
ao tratamento, ou causam uma morte pós-diagnóstico; pela melancolia que esta encerra
(MOREIRA, 2002).
Para Freud (1921), a identificação é a mais remota expressão do laço emocional
entre os indivíduos, a ponto de a escolha do objeto regredir para a escolha do Eu. Ora,
os pacientes com aids recolhem para si a culpa pelo contágio da doença. A moral sexual
crítica o doente por que este adquiriu o HIV através de uma conduta sexual
“desvirtuante”, e o doente assimila a culpa por que se identifica com acusação que lhe é
imposta, reconhecendo-se no estigma depreciativo da doença.
[...] é preciso uma escuta atenta para as representações possíveis do conflito
entre os desejos de viver e morrer, as fantasias de estar sendo atacado de
dentro pelas pressões pulsionais que compelem todo ser humano a
permanecer vivo e a retornar ao inorgânico. Assim, também é preciso
oferecer uma escuta às ansiedades de estar sendo atacado por um
microorganismo que, na fantasia, quase parece fazer parte do ego, na medida
em que tem se constituído um imaginário que imobiliza os sujeitos em novas
figuras identidárias de “soropositivo” e “aidético” [...] (MOREIRA, 2002, p.
17).
A transmissão vertical - quando a mãe HIV+ contamina o bebê durante a
gravidez, parto e amamentação - além das implicações narcísicas devido ao
comprometimento clínico-físico materno, nota-se o confronto entre os ideais adversos
envolvidos nessa trama psíquica, impondo desarranjos narcísicos severos. O ideal de Eu
ataca ferozmente o Eu e suas delicadezas.
O risco da transmissão vertical do vírus HIV da mãe para o filho mostra a face
mais perversa da aids, pois converte a mãe, quem gera a vida, em alguém que também
pode disseminar uma doença incurável. A transmissão vertical aproxima os opostos
vida-morte, pois enlaça o amor materno, abnegado e sublime, com a mortalidade aqui
representada pela aids, este confronto impõem à mãe novos conflitos narcísicos.
2
A maternidade é um ideal sublime na sociedade ocidental. Um ideal supra
imaculado, mas que diante à aids, à ascese moral sexual e à culpa, cria nódoas
dolorosas. Segundo Badinter (1985):
[...] A maternidade é, ainda hoje, um tema sagrado. Continua difícil
questionar o amor materno, e a mãe permanece em nosso inconsciente
coletivo, identificada a Maria, símbolo do indefectível amor oblativo [...] Aos
nossos olhos, toda mulher, ao se tornar mãe, encontra em si mesma todas as
respostas à sua nova condição (BADINTER, 1985, p. 9 e 20).
É importante ressaltar que a construção do ideal de amor materno é circunscrito
por componentes sócio-históricos como discorre Elisabeth Badinter no livro “Um amor
conquistado: o mito do amor materno” (1985), contudo, toda essa discussão não se
adequa ao escopo deste trabalho. Basta aqui compreender como a maternidade significa
a ‘redenção’ da mulher, a sua ‘valorização’ em uma cultura com fortes traços
misóginos, como é a nossa, configurando-se como um dos maiores mitos da sociedade
ocidental, ainda que tenha surgindo como um castigo.
Segundo as escrituras sagradas foi Eva, a primeira mulher, criada a partir da
costela de Adão, que promoveu a expulsão do paraíso ao lhe oferecer o fruto proibido.
A metáfora do Éden deixa bem claro que enquanto Adão foi vítima, Eva foi diabólica.
A sedução de Eva levou Adão a desobedecer a Deus.
Ao colocar a origem do mal na sexualidade, ou seja, "sexualizar" o pecado
original, Agostinho deixou seu maior legado à moral cristã: a concupiscência
foi o pecado original; o homem é fruto do pecado. Esta concepção fez do
mundo algo entravado pelas exigências do corpo que impediam a acesse da
alma; o ser humano tornou-se fragilizado e culpabilizado pelo desejo, o que
levou a uma exaltação sem precedentes da virgindade. Mais ainda, a visão
sexualizada do pecado original, faz do homem uma vítima indefesa de uma
mulher inescrupulosa e sem princípios que o seduz, levando-o a pecar;
pecado este, que é sempre sexual. Surge dai a imagem negativa da mulher
[...] (CECCARELLI & SALLES, 2010, p. 3).
Adão e Eva foram expulsos do paraíso. Para Adão, o castigo foi garantir sua
sobrevivência através do esforço árduo de seu trabalho, para a demoníaca Eva, o castigo
foi à altura do mal que ela produziu. Foi punida não apenas com a expulsão, mas
também a subserviência ao marido, e principalmente “... multiplicarei os teus trabalhos,
e (especialmente os de) teus partos. Darás à luz com dor aos teus filhos...” (Gênesis,
cap. 3, versículo 16).
O falocentrismo ocidental elevou Eva à condição de diabólica, por isso
merecedora de todo sofrimento. Mas, se Eva empreendeu a culpa à mulher pela
sedução, Maria, a mãe do filho de Deus na terra, aquela que supostamente concebeu
sem pecar, lhe concedeu a redenção.
De acordo com Flandrin (1985), os prazeres carnais aprisionavam o espírito ao
corpo, afastando-o de Deus. Assemelhando-se ao ato de comer, o sexo também é uma
necessidade física, cujo excesso traz danos morais irremediáveis, aproximando o
3
homem da danação do fogo do inferno. Para a moral cristã, a sexualidade tornou-se
sinônimo do sexo.
É o apostolo Paulo quem estabelece o casamento como um mal necessário “Digo
aos não casados e às viúvas que lhe é bom se permanecerem assim, como também eu.
Mas, se não se contém, casem-se. Por que é melhor casar-se, do que abrasar-se.” (I
Coríntios, cap. 7, versículos 8 e 9).
Para corroborar isso, teólogos com Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e
São Jerônimo se apropriaram da moral estoica e, a partir de seus interesses a
converteram no baluarte da moral cristã, distinguindo até o século XVIII, o amor dentro
do casamento do amor fora do casamento. Para o homem, a ascese moral advém do
controle do próprio desejo, na mulher a ascese significa a interdição do desejo.
[...] a questão essencial não é tanto a origem da prescrição, mas sim o como e
o porquê do êxito alcançado; e nesse domínio, as experiências pagãs de
retenção sexual, as condições nas quais as mulheres eram afastadas da livre
expressão de sua sexualidade, formam não apenas a preparação para o
ascetismo cristão, mas de certo modo o solicitam como alternativa para a
histeria (ROUSSELLE, 1984, p.156).
Ao assumir o domínio do corpo, o saber médico prossegue com o discurso
falocêntrico. Foi Aristóteles quem eliminou o prazer feminino da reprodução e
circunscreveu a mulher à maternidade, o dom concedido por Deus tornou-se uma
função inata legítima. Doravante, portanto, que todos os males femininos ocorreriam
pelo comprometimento da função reprodutora, ora um castigo divino, ora uma
imperfeição física. É este ambiente de repressão sexual, altamente misógino e sexista
que ‘produz’ as histéricas e suas doenças nervosas.
E a contribuição mariana foi conceber o filho de Deus sem a mácula da
concupiscência, personificando simultaneamente o espírito nobre e o corpo puro, pois
ao gerar o filho de Deus ainda virgem, Maria não sucumbiu ao pecado da carne.
Contudo, não é certo desprezar os componentes políticos e sócio-históricos que
legitimaram o ideal de amor materno. Apesar de Maria ser referência a algumas
mulheres das classes menos abastada, em geral, desde a Grécia e Roma Antiga até a
Aristocracia Europeia, a maternidade não se apresentava como uma dádiva, um dom
divino, mas como uma necessidade econômica, política e social para a mulher, porém
ausente do afeto que coroará o amor materno contemporâneo.
O mito do amor materno como conhecemos hoje é constituído somente a partir
da segunda metade do século XVIII, quando a maternidade é senão a única
oportunidade da valorização da mulher na sociedade patriarcal (BATINDER, 1985),
articulada a partir de três discursos que constituíram o ideal de mãe.
O discurso econômico, quando a criança amada pela mãe afetuosa tornar-se-á
um adulto saudável e então útil à expansão mercantilista europeia e suas guerras. O
discurso político e social, graças às contribuições iluministas e os ideais de ‘Liberté,
4
Egalité, Fraternité’, essenciais para abolir o regime feudal indispensável à
sobrevivência da aristocracia europeia; e principalmente a família burguesa originada a
partir da revolução industrial. São estes componentes que forjarão os amorosos e
abnegados predicados maternos, a mãe deixa de ser apenas aquela que dá a vida e
passara a ser o núcleo moral e afetivo da família.
Todavia, a exaltação da maternidade não desprendeu a culpa do feminino, pois a
culpa pela sexualidade é agora acrescida da culpa em não ser a boa mãe. Aliás, na
contemporaneidade persiste a culpa quando a mulher não consegue ser uma boa mãe,
uma boa esposa ou uma boa dona de casa, incrementadas com a culpa em não conciliar
estas funções com a de uma profissional bem sucedida. O acumulo de funções, outorgou
um aumento de expectativas e, consequentemente, uma maior culpabilidade diante ao
fracasso de algum desses ideais. E com a feminização da epidemia novas acusações
surgiram.
Em mais de 30 anos de epidemia, a qualidade da terapia antirretroviral aumentou
a expectativa de vida dos pacientes soropositivos, mas houve uma séria alteração no
perfil epidemiológico da doença, das 34, 2 milhões de pessoas vivendo com HIV-aids
no mundo, atualmente, 16,7 milhões são mulheres (BRASIL, 2012).
A razão atual entre os sexos na epidemia indica que para cada 1,4 homem há 1
mulher contaminada. Em 1990 a proporção era de 37 homens para cada 10 mulheres,
em 1998 passou de 11 homens para cada 10 mulheres, e em 2000 houve uma inversão
estatística, passando de 10 mulheres para cada 9 homens (BRASIL, 2010 a, p. 8 e 10).
A alta incidência do HIV-aids entre mulheres ocorre devido a transmissão
horizontal pela prostituição ou por seus parceiros, fixo ou não, usuários de drogas
injetáveis, hemofílicos, heterossexuais ou bissexuais clandestinos; ratificando a
desigualdade entre gêneros (BRASIL, 2007).
Os maiores índices de contaminação feminina estão no intervalo de 13-19 anos
(BRASIL, 2010b, p.9). E quanto mais jovem, maior a vida reprodutiva da mulher,
aumentando o risco de transmissão vertical, principalmente por que os parceiros dessas
jovens são homens mais velhos e com vida sexual pregressa.
A vulnerabilidade da mulher na epidemia do HIV-aids não pode ser restringida a
aspectos físicos – devido à constituição anatômica da vagina, o esperma permanece
mais tempo em contato com a mucosa vaginal - mas ocorre principalmente por uma
complexa associação de fatores, cuja desigualdade entre gêneros é o mais incisivo de
todos (LEBREGO, 2008). É a partir desta que outros fenômenos sociais como a
violência doméstica e sexual, desigualdades étnico-raciais e as desigualdades
socioeconômicas vulnerabilizam a mulher ao HIV.
[...] A aids tem valor de “crise”, não apenas por ser uma “pandemia” e o
“flagelo do século”, mas por que agudiza e põe em cheque os valores, as
normas e algumas relações estruturais de nossa sociedade, tais como as de
gênero [...] As representações sobre a percepção de risco, prevenção e
5
controle da epidemia são sem dúvida o lugar que a epidemiologia da aids
entrecruza-se com a complexidade das relações sociais, suas categorias e seus
valores (GUIMARÃES, 2001, p.38 e 39).
Curiosamente, e perigosamente, mesmo os dados epidemiológicos afirmando o
contrário, o imaginário social ainda fantasia a aids como uma doença restrita aos
homossexuais e às práticas promíscuas, reincidindo no discurso defasado e midiático da
primeira década da epidemia, a aids como a “peste gay”.
Desde o começo da epidemia, a aids esteve associada a grupos que carregam
consigo o peso do estigma social atrelado à doença. Mesmo com a ampliação
dos estudos sobre a aids, parece que a via sexual de contágio foi a que mais
se fez presente no imaginário da população brasileira sobre a epidemia [...]
(FRANCÊS, MOREIRA, VILHENA, 2012, p. 413).
Não obstante, a eficiência dos antirretrovirais não é suficiente para amenizar o
impacto diagnóstico da doença, ainda compreendida como uma doença fatal. Para tanto,
a ‘cara’ da aids no Brasil ainda remete à imagem de um Cazuza extremamente
debilitado.
A vulnerabilidade programática - falhas nos serviços especializados - ocasiona o
diagnóstico tardio em 65% das parturientes HIV+, também incide no aumento do risco
de contágio do bebê (BRASIL, 2001b). A mãe descobre sua positividade na sala do
parto e, em alguns casos, a informação é tão tardia que não impede a amamentação,
severamente contra-indicada. Isto posto, como não admitir ou reconhecer que o ideal de
amor materno é maculado pela aids?
A aids sempre confronta a nossa fantasia narcísica mais onipotente: a
imortalidade. Parafraseando Freud (1915), nosso inconsciente é deveras inacessível à
ideia da nossa própria morte, porém, há outras ameaças narcísicas diante ao drama que
se que se instala na transmissão materno infantil.
A mãe é culpabilizada pelo adoecimento do filho que carrega no ventre, pois a
maternidade, nesse caso, realmente implica no risco de contaminação da criança, de tal
forma que a periculosidade da aids não ameaça apenas à mulher, mas ao seu maior
refúgio narcísico: o filho que ela espera.
[...] A morte, ou risco de morte de alguém que amamos que amamos, o pai ou
a mãe, esposo ou esposa, irmão ou irmã, filho ou amigo dileto. Esses seres
amados constituem, por um lado, uma posse interna, componentes de nosso
próprio ego; por outro, contudo, são parcialmente estranhos, até mesmo
inimigos (FREUD, 1915, p.308).
O mito do amor materno é ameaçado pela aids porque ao invés de um gesto de
amor, a maternidade é convertida em um gesto egoísta, e à mulher soropositiva é
desaconselhável engravidar - uma reminiscência da emblemática pureza mariana quando ao invés de um amor abnegado, se atribui à mulher uma grande
irresponsabilidade.
6
A amamentação, que é senão um dos maiores símbolos da maternidade, é
totalmente proibida quando a mãe é HIV+, sendo indicado o uso de medicação ou, em
casos mais extremos, o enfaixamento das mamas para inibir a produção do leite
materno. A privação materna do ato de amamentar implica em severo sofrimento à
parturiente (PAIVA& GALVÃO, 2004).
Não obstante, a descoberta da aids durante a gravidez indica outros desarranjos
narcísicos. A mulher não se reconhecia como exposta ao HIV, pois compreendia a aids
como a doença do outro, ainda restrita a grupos ou práticas específicos, portanto
ratificando um ideal alienante; um evidente recurso psíquico para lidar com o medo e a
angústia de adquirir o HIV-aids, negando o risco para si e apontando ao outro, o
promiscuo, o lascivo e o amoral (CECCARELLI, 2012).
De acordo com Araújo, Queiroz, de Melo, da Silveira & da Silva (2008), a
gravidez da mulher soropositiva ainda empreende mais um drama: a acusação de
promiscuidade. Remetendo-se a uma fantasia de que o vírus é adquirido pela
multiplicidade de parceiros, pois em se tratando da aids, a representação social
estigmatiza a doença principalmente pela aquisição desta através da via sexual,
reafirmando a moral sexual de nossa cultura.
Corroborando com esse estigma e o severo sofrimento psíquico das pacientes, as
limitações da própria equipe de saúde agravam mais ainda o desamparo que esta trama
encerra: grávida, soropositiva e com risco de contaminar o bebê. Para o Ministério da
Saúde, a parturiente HIV+ sofre discriminação durante a gravidez e parto nos serviços
de saúde que deveriam acolhê-la (BRASIL, 2001a).
A equipe de saúde ao invés de acolher e proporcionar um atendimento
satisfatório adota uma postura acusadora, culpabilizando à mulher pela doença, e
também a responsabiliza por expor a criança ao HIV-aids ao engravidar
(MONTICELLI, SANTOS&ERDMANN, 2007; PAIVA& GALVÂO, 2004).
Pareado a isto, pesa também a reação dos parceiros ou da própria família de
origem, sendo comum optar por um pacto de silêncio, protelando a comunicação do
diagnóstico pelo máximo de tempo possível, o que lhe causa extremo sofrimento
psíquico. A mulher prefere lidar com esse desconforto a arriscar perder o companheiro
(MARTIN-CHABOT, 2010). Pois comunicar sua sorologia ao companheiro implicará
em questionar sua própria relação afetiva e abordar temas como fidelidade e traição,
sendo a sorodiferença um agravante severo (AZEVEDO&GUILHEM, 2005).
Considerações finais
A aids destrói a nossa onipotência narcísica, quando mostra a fragilidade do
corpo totalmente vulnerável a doenças oportunistas. Entretanto, como a transmissão da
doença também ocorre pela via sexual, a aids acaba inferindo em questões sobres nossos
ideais identificatórios, principalmente os ligados a nossa moral sexual civilizada,
associando o HIV a práticas e grupos específicos.
7
E quando se trata da transmissão vertical, além da sexualidade ascética, o risco
de contágio do bebe com o HIV da mãe desperta e ameaças outros mitos
identificatórios, um dos maiores mitos da cultura ocidental, o ideal do amor materno é
mortalmente ameaçado pela aids.
Os ideais que emergem na tragédia que a transmissão vertical incide são
tributários da nossa cultura misógina e sexista, que celebram a maternidade como a
posição sacrossanta da mulher, formando uma tríade conflituosa entre o ideal de mãe, o
ideal sexual feminino e o estigma mortífero da aids.
Não cabe na escuta dessa mulher reincidir em acusações, apontar culpados ou
prescrever condutas pedagógicas, mas insistir em reflexões sobre as possíveis angústias
originadas a partir de ranços morais e do estigma depreciativo da aids, nos quais esta
mulher está inserida.
Por fim, é importante apontar que o erotismo que atuou de forma a ameaçar a
vida também pode retornar de forma que a idealização de mãe atue como “força” para
que a parturiente decida investir em si e no próprio bebê, não apenas aderindo aos
antirretrovirais, mas principalmente investindo no amor materno.
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