Revista Eletrônica Novo Enfoque, ano 2013, v. 17, n. 17, p. 173 –177
NO CAMPO DO ADVERSÁRIO: FUTEBOL E IDENTIDADE NACIONAL NOS
ANOS 1960.
Raphael Graciano Barroso1
Renato Soares Coutinho2
Palavras-chave: História política, futebol, propaganda política.
Introdução
Práticas culturais populares como o futebol, capazes de atrair a atenção de tantas
pessoas com tanta frequência, não costumam passar despercebidas aos olhos dos atores
políticos e gestores estatais. Desde os primeiros anos do século anterior, o futebol
desperta o interesse e a preocupação do Estado. Porém, ao longo das últimas décadas,
essa relação, marcada às vezes por um alto grau de interferência estatal, nem sempre
apresentou as mesmas características. No “país do futebol”, não foram todos os atores
políticos que buscaram legitimar e estreitar a relação entre o esporte e os agentes
estatais.
Trabalhos publicados recentemente mostraram como a década de 1930 marcou o
processo de institucionalização da prática desportiva no país. A cisão política dos clubes
por conta da polêmica em torno da profissionalização dos atletas, que prejudicava a
convocação dos selecionados nacionais, foi resolvida através de intervenções diretas do
presidente Getúlio Vargas no campo esportivo (SOUZA, 2008). Nas décadas de 1940 e
1950, com os preparativos para a realização da Copa do Mundo no Brasil, o grau de
centralização estatal das políticas desportivas foi ainda acentuado.
Nesse sentido, é certo que em dois casos exemplares, as Copas do Mundo de
1938 e 1950, a relação entre a seleção de futebol e o Estado brasileiro foi bastante
íntima. A interferência na administração da equipe e a propaganda política elaborada em
torno do selecionado de futebol foram comuns nesses torneios. Porém, esses dois casos
1
Acadêmico Bolsista PIBIC&T/UCB (Vigência: Out/2012 a Out/2013). Grupo de Pesquisa da
Universidade Castelo Branco. Curso de História da Universidade Castelo Branco (UCB), Campus
Realengo Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2
Orientador. Curso de História da Universidade Castelo Branco (UCB), Campus Realengo, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil.
não bastam para que seja estabelecido um path-dependence nas políticas desportivas
brasileiras. Ou seja, a intensa estatização da seleção de futebol nesses eventos não
implicou na construção de uma tendência de reprodução desse perfil de atuação estatal
em momentos subsequentes. Quando analisamos diferentes governos, percebemos que o
binômio Estado/futebol, que parece indicar uma relação indissociável no Brasil, nem
sempre manteve relações harmônicas. Um exemplo que pode ilustrar o distanciamento
entre as políticas estatais e as instituições desportivas ocorreu nos anos 1960,
especialmente nos meses que antecederam a Copa do Mundo de 1966.
Analise de fontes
Em 1966, o futebol brasileiro já havia se libertado do complexo de vira-lata que
tanto incomodava o jornalista Nelson Rodrigues. Pelé e Garrincha já haviam
assombrado o mundo com o jeito imprevisível e eficiente de jogar futebol. A seleção
brasileira era bicampeã mundial e até mesmo os clubes brasileiros, como o Santos
Futebol Clube, já haviam mostrado aos europeus o poder do estilo de jogo brasileiro.
Mesmo contando com Pelé, já reconhecido como o melhor jogador do mundo, a
seleção brasileira enfrentava problemas para a organização da equipe. A base montada
para as Copas de 1958 e 1962 já estava envelhecida. Era preciso rejuvenescer o grupo
de jogadores para o torneio que seria marcado pelo vigor físico dos europeus. Até
mesmo Garrincha, que na edição anterior foi eleito o melhor jogador da Copa, já não
apresentava condições físicas adequadas para disputar jogos intensos contra as seleções
europeias. Para remontar o grupo, o técnico Vicente Feola recorreu a uma experiência
arriscada. Quarenta e cinco jogadores foram convocados, formando um total de quatro
equipes que participaram de todo o período de preparação. Somente após o período de
preparação, foi escolhido o grupo de jogadores definitivo.
Anos depois, a memória construída em torno da decisão de Feola consagrou
algumas explicações. A mais recorrente, presente em quase todos os discursos
referentes ao que ocorreu em 1966, destaca a bagunça da CBD naquela época. A saída
de Paulo Machado de Carvalho, dirigente vencedor nas edições anteriores, teria criado
um vazio de poder não suprido por João Havelange, presidente da Confederação
Brasileira de Desportos. O número excessivo de jogadores, a alta rotatividade dos
titulares e as viagens que antecederam o embarque para o torneio são elementos comuns
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nas falas dos sujeitos que endossam a falta de organização como fator explicativo para o
fracasso da equipe.
A última vez que a seleção de futebol brasileira havia se preparado de maneira
inadequada havia sido em 1934, quando o dilema entre amadores e profissionais
inviabilizou a preparação do time. Entre 1938 e 1966, o Brasil atingiu sempre
colocações honrosas depois de preparações minuciosas para os jogos. Em 1938, a
equipe ficou em terceiro lugar. Em 1950, encantou o mundo e perdeu inesperadamente a
final. Em 1954, foi superada pela melhor seleção da época, a Hungria, em um jogo com
muitas confusões. Em 1958 e 1962, sagrou-se campeã.
O que pode explicar essa mudança de perfil administrativo do futebol brasileiro
na Copa de 1966? Por que a seleção nacional de futebol, tratada até então como assunto
de interesse nacional, foi para a Inglaterra tão mal preparada?
João Havelange, presidente da CBD, na ocasião dos preparativos para a Copa da
Inglaterra, optou por adotar uma política de captação de recursos a partir de acordos
com lideranças políticas regionais. Mais do que um problema de desorganização, os
amistosos que prejudicaram a preparação da seleção resultaram de um novo perfil
institucional da CBD. Ao contrário de presidentes anteriores, como Luis Aranha, que
mantinha estreitos vínculos com o Estado, João Havelange encontrou em 1966 uma
grande margem para manobrar os rumos da CBD sem contar com a interferência estatal.
Por conta disso, Havelange alterou a comissão técnica, excluiu dirigentes antigos e
articulou acordos políticos que não passavam pelo âmbito estatal. A bagunça por si só
não explica o fracasso de 1966. Ao contrário, a seleção nessa Copa foi organizada para
atender a interesses próprios dos dirigentes da CBD, em especial Havelange, naquela
conjuntura específica de grande autonomia.
O historiador Carlos Eduardo Sarmento ressalta que “desde o momento em que
chegou ao país de volta da Inglaterra, João Havelange e alguns membros da comissão
técnica passaram a ser acompanhados por agentes do Serviço Nacional de
Informações, o temido SNI criado pelos militares” (SARMENTO, 2006, p. 123). Ou
seja, apenas após o fracasso na Europa, o governo federal passou a investigar o que
estava acontecendo na Confederação Brasileira de Desportos.
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O distanciamento entre Estado e CBD nos primeiros anos do regime civilmilitar pode ser entendido pela disputa interna entre setores das forças armadas
brasileiras. O historiador Carlos Fico argumenta que Castelo Branco e os seus
correligionários temiam a associação do governo militar à ditadura estadonovista e aos
órgãos de propaganda getulista. O receio de se criar um novo Departamento de
Imprensa e Propaganda – DIP – fazia com que Castelo Branco repelisse as propostas de
criação de órgãos especializados da imprensa oficial (FICO, 2009, p. 195). Em 1966, no
momento em que os órgãos de propaganda estatal ainda estavam desarticulados, o
selecionado nacional de futebol não despertou o interesse dos agentes estatais centrais.
Se nos anos 1940 e 1950, com a criação do Conselho Nacional de Desporto, a CBD
submeteu-se ao controle do Ministério da Educação e Saúde, na Copa de 1966 a CBD
experimentou um grau de autonomia nunca antes visto. E esse grau de autonomia
ocorreu por conta da mudança do perfil de propaganda estatal promovido pelo governo
Castelo Branco.
Vale destacar que setores civis que apoiaram o Golpe também se encontravam
na mesma posição do governo Castelo Branco. Jornais como a Tribuna da Imprensa e o
Globo não hesitavam em condenar o caráter fascista dos eventos esportivos que se
associavam aos festejos cívicos nos anos 1950. Ao apoiar a deposição do presidente
eleito João Goulart, esses mesmos órgãos de imprensa precisaram reafirmar a posição
ideológica da época em que faziam oposição. Na derrota da seleção para Portugal, que
resultou na eliminação da equipe, o editorial do Jornal o Globo destacou o simples
caráter desportivo daquele acontecimento.
Sendo o futebol o esporte que mais polariza o entusiasmo popular, o esporte
fundamentalmente nacional, a criação de um tal clima, tendo o como
ingrediente, pode possibilitar a emergência de um contagiante quadro de paixão
coletiva capaz de ferir a própria generosidade dos sentimentos brasileiros. Há
que evitá-lo... Além disso, uma disputa esportiva não pode ser colocada em nível
que autorize que se tome uma derrota por ofensa ou ultraje aos brios nacionais.
Nosso senso de medida evitará essa confusão até porque ela desmentirá o alto
grau da nossa mentalidade esportiva. E é esta que precisamos acima de tudo
preservar... Não façamos tempestade em copo d´água. (O GLOBO, 20 de julho
de 1966).
Para os órgãos da imprensa situacionista, era preciso destacar que o futebol era
apenas um desporto, e não a manifestação cultural genuinamente nacional-popular.
176
Seguindo as diretrizes do novo regime que apoiava, o editorial de O Globo visou a
reprimir os ânimos nacionalistas que foram despertados pela derrota da seleção. E fez
isso deixando claro qual era o significado social do futebol para a imprensa alinhada ao
regime naquele momento: “um problema esportivo”.
Considerações finais
Para os líderes do regime civil-militar recém-empossado, a utilização do futebol
como um evento cívico podia representar, assim como qualquer propaganda oficial, o
apelo nacionalista forjado nos tempos da propaganda nacionalista getulista. Mesmo Pelé
e Garrincha, ídolos incontestáveis, estavam associados aos símbolos nacionalistas
exaltados por intelectuais como Gilberto Freyre e Mario Filho, que contribuíram para
construção das bases ideológicas do projeto de integração nacional na Era Vargas. Pelé
e Garrincha eram as expressões máximas da genialidade mestiça brasileira, fundada na
vocação para o improviso e na espontaneidade artística do brasileiro. Esses elementos
compuseram o material simbólico que estabeleceu a comunidade de sentido construída
entre
Estado
e
camadas
populares
nos
governos
de
orientação
nacional-
desenvolvimentista, como os de Getúlio Vargas e João Goulart. Os atores políticos que
promoveram o Golpe de 1964 estavam cientes de que as bases do nacionalismo que se
forjava a partir de 1964 não podiam estar assentadas sobre as mesmas representações de
nação do regime deposto. Atentos aos novos significados do discurso nacionalista que
se construía, os agentes estatais mantiveram distância dos rumos administrativos da
CBD, instituição historicamente associada ao regime deposto em 1964. Em outros
termos, podemos dizer que em 1966 o Estado não entrou em campo.
Referências
FICO, Carlos. “Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos
da repressão”. In.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. (orgs.)
O Brasil Republicano: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
JORNAL O GLOBO.
JORNAL DO BRASIL.
SARMENTO, Carlos Eduardo. A regra do jogo: uma história institucional da CBF.
Rio de Janeiro. CPDOC, 2006.
SOUZA, Denaldo Alchorne de. O Brasil entra em campo: construções e reconstruções
da identidade nacional (1930-1947). São Paulo: Annablume, 2008.
TRIBUNA DA IMPRENSA
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