MEMÓRIA NA WEB: A PRESENÇA DA MEMÓRIA NA REDE INTERNACIONAL DE
COMPUTADORES ATRAVÉS DE FERRAMENTAS DA WEB 2.0
Jônatas Souza de ABREU
Graduado em Biblioteconomia pela UFRN. Mestrando em Ciência da Informação pela UFPE
E-mail: [email protected]
RESUMO
Aborda a questão da memória como mecanismo humano de comunicação de fatos e da sua própria
vivência, bem como experiências. Analisa as várias concepções me memória nas ciências humanas e
na tecnologia da informação, estabelecendo pontes entre elas. Problematiza a questão dos blogs
como meios de inserção e inscrição da memória no contexto da internet. Enfatiza também estaelecer
nexos com a concepção da palavra como instrumento de expressão da memória do quotidiano,
anializando também as motivações e o surgimento desse meio de comunicação popular no meio web.
Objetiva trazer à lume discussões sobre a memória nesse contexto de cibercomunicação, buscando
elucidar possibilidades de interação entre o bibliotecário como agente disseminador de informações
tratadas e as hipermídias no tocante aos blogs. Encerra o texto uma série de questionamentos às
ciências sobre a legitimidade da ferrammenta como detentora de memória e propõe o fim do
preconceito de tantos ainda contra a internet como meio de veiculação da memória humana.
Palavras-Chave: Blogs. Memória. Biblioteconomia. Web 2.0. Sociedade da Informação
Grupo Temático 8: Informação e Tecnologia.
1
MEMÓRIA: UM CONCEITO
Dada a infinidade de enunciados ou pelo menos a grande quantidade deles e
até mesmo justaposição entre muitos conceitos e opiniões, o significado atribuído a
memória torna-se bastante vasto. Para comprovar tal fato, basta procurar o verbete
em qualquer dicionário de língua portuguesa e observar a enorme gama de
significados atribuídos à esta palavra; de fenômeno biológico à unidade de acesso
aleatório, neste capítulo, tentaremos elucidar um pouco deste fenômeno presente na
vida humana apesar de, parafraseando Le Goff (2003), termos em mente tratar a
memória tal como ela é vista nas ciências humanas e estudar um pouco de sua
implicação e importância na vida humana, como já dito anteriormente.
Perquirindo rapidamente algumas definições para podermos partir à uma
compreensão mais abalizada do nosso objeto de análise, a memória, de um modo
mais biológico, Tait (2004, não paginado) afirma que ela consiste em “um conjunto
de procedimentos que permite manipular e compreender o mundo, levando em
conta o contexto atual e as experiências individuais, recriando esse mundo por meio
de ações da imaginação”. Observando a partir desse ângulo, temos que esta
definição é complementada pelo fato de esse elemento, a memória, “abarca a
psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia e, quanto às perturbações
1
da memória, das quais a amnésia é a principal, a psiquiatria” (MEUDLERS; BRION;
LIEURY, apud LE GOFF, 2003, p.420).
Nesse sentido, ainda sob óptica biológica, podemos inferir que a memória é
uma estrutura prescrita não somente aos humanos, de forma que pesquisas
científicas comprovam a utilização de mecanismos mnemônicos por chimpanzés e
pombos, o que em essência não comprova nenhuma relação direta com o fenômeno
mnésico em seres humanos, o que entretanto, para Bueno, não deve ser ignorado.
Segundo do estudioso:
Há semelhanças que não podem ser ignoradas, mas não se sabe
exatamente quais os limites da capacidade de processamento dos animais.
Sabe-se, por exemplo, que chimpanzés e babuínos podem ser capazes de
usar mapas espaciais; o que se investiga, ainda, é até onde vai a
capacidade desses animais de processamento de imagens mais abstratas,
simbólicas e não icônicas". (TAIT, 2004, não paginado)
Historiograficamente, o interesse pela memória não é novo, do contrário, é
parte do construto prático da história, quiçá uma das motivações desta, ao longo do
tempo, sempre incitando novas discussões acerca do tema, repensando as suas
formas e manifestações na sociedade. Uma destas formas de análise do elemento
memória se constitui no estudo da memória como fato social, a memória coletiva.
Em matéria de função social, Pierre Janet (LE GOFF, 1990, p.421) exprime
que o comportamento mnemônico fundamental é o comportamento narrativo,
caracterizando-se este pela sua função social, porque trata da comunicação a outra
pessoa de algum fato visto ou vivido anteriormente; nessa perspectiva, Carvalho
(2005,p. 58 citando Halbwachs, 2004), afirma que:
A memória é construída pela soma de nossas experiências em relação à
percepção de tempo. Desse modo, quando ativamos nossas lembranças, é
comum que façamos uma visita a este determinado período que se
encontra impregnado de vários elementos (cheiros, sons e outros). É a
memória individual agindo para nos remeter a um tempo só nosso.
A esse composto, Atlan (apud LE GOFF, 1990, p.421) por sua vez, adiciona
com propriedade a utilização da linguagem com relação a memória:
A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma
extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa
memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo
para estar interposta quer nos outros quer nas bibliotecas. Isto significa que,
antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de
armazenamento de informações na nossa memória.
2
Sendo assim, deduzimos que o construto de memória, em específico a
memória social, perpassa pela relação linguagem falada/escrita e nesse sentido,
pode passar a residir fora do ser, fora do plano corpóreo, convindo ressaltar que é
em parte através da escrita de signos, parte através do processo de comunicação
oral que se pode passar à posteridade; nesse sentido, o estudo da memória social
torna-se muito importante, devido se constituir num dos meios fundamentais de
abordar os problemas do tempo e da história, em relação aos quais a memória se
encontra às vezes em fase de retração outras em transbordamento (LE GOFF,
1990, p.422).
Abordando um pouco da temática de memória, analisaremos o seu lado mais
subjetivo, de modo que possamos construir alguma identidade personal deste ser
que se utiliza de artifícios mnemônicos para transmitir conhecimento a gerações
posteriores. Sendo assim, o próximo tópico terá enfoque sobre a sede de
imortalidade manifestada na construção da memória.
1.1
A MEMÓRIA E A IMORTALIDADE - BREVES PALAVRAS
A necessidade de se comunicar, bem como transmitir modos de vida e
tradições sempre foi uma características dos seres humanos. Preservar costumes
através de atos mnemônicos sempre forma um ponto “a mais” que caracteriza a raça
humana pelo titulo de homo sapiens. Trabalhar com memória pode ser uma das
tarefas mais interessantes e também uma das mais complicadas, pois ao
trabalharmos a memória, ou melhor com conceitos de memória, nos perguntamos “O
que é memória? Para quê preservar? Para quem preservar?”
Partindo dessas inquirições, observamos que as respostas para essas
perguntas são cada vez mais buscadas, principalmente, porque cada vez mais há
preocupação de se preservar a própria história. Na realidade a preocupação em
preservar, conservar entre outras ações semelhantes revela algo mais profundo na
existência humana, o desejo oculto mais presente na vida humana; aquilo que
sempre foi anseio do ser humano: se imortalizar, fenômeno que Arendt (2007) citará
como sendo uma espécie de marca divisora de personalidades1, nesse caso como
sendo aspiração natural dos seres humanos.
1
Resolvi definir a fala de Arendt nesses termos porque ela mesma trata o exemplo como dualidade de anseios dos seres e os
contrapõe (imortalidade e eternidade). Os seres humanos anseiam por gozar da continuidade no tempo, vida sem morte nesta
terra/mundo, enquanto os deuses gozam da eternidade, a ausência da morte e da senescência.
3
Miguel de Unamuno (1864-1936), Filósofo espanhol nascido em Salamanca,
traz essa concepção, a da imortalidade, a partir de questionamentos quotidianos,
como “de onde venho, para onde vou”, mostrando que o fim real desta pergunta não
é exatamente obter as respostas concisas que elas buscam, mas ponderar sobre o
fato de que se morremos, como morremos, em parte ou de tudo.
Zampieri, (2005, p. 7) ao discorrer sobre a questão do anseio pela
imortalidade na obra de Unamuno, corrobora a afirmação acima nos seguintes
termos:
O homem se coloca na pergunta pela origem e destino das coisas não no
sentido de querer aplacar o seu desejo de conhecer, mas porque essas
perguntas cumprem uma finalidade existencial. Nas perguntas: de onde vim
e de onde vem o universo e para onde vou e onde vai todas as coisas, não
está primeiramente uma preocupação com o porquê mas com um para quê.
E o para quê indica uma finalidade, mais do que causa, e a finalidade última
é saber se eu vou morrer de todo ou não. Diz Unamuno sobre isso: ‘Por que
quero saber de onde venho e para onde vou, de onde vem e para onde vai
o que me rodeia, e que significa tudo isso? Porque não quero morrer de
todo, e quero saber se morrerei ou não definitivamente. Se não morro, que
será de mim? E, se morro, já nada tem sentido’”.
Arendt (2007), ao distinguir seres humanos que são engajados politicamente
dos que se comportam de forma contemplativa, ilustra de maneira significativa,
ainda que superficial segundo ela mesma, o amplo desejo do ser humano pela
imortalidade e o seu significado. Segundo ela:
Imortalidade significa continuidade no tempo, vida sem morte nesta terra e
neste mundo, tal como foi dada, segundo o consenso grego, à natureza e
aos deuses do Olimpo. [...] A mortalidade dos homens reside no fato de que
a vida individual, com uma história vital identificável desde o nascimento até
a morte, advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as
outras coisas pelo curso retilíneo do seu movimento que, por assim dizer,
intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a mortalidade:
mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se
move o faz num sentido cíclico. (ARENDT, 2007, p. 26-27)
Ao advogar a condição de busca pela imortalidade através da contemplação ,
ou pelo menos traduzir um pouco desse desejo, Arendt mostra ainda uma outra
faceta da criação humana: sua transitoriedade sob os auspícios do tempo; a
impossibilidade da imortalidade através de artifícios humanamente faltos, em
contraposição a valores que de fato possam ser eternos, esses advindos da
contemplação por exemplo. Nesse sentido, exemplifica de forma didática que :
4
A queda do Império Romano demonstrou claramente que nenhuma obra de
mãos mortais pode ser imortal, e foi acompanhada pela promoção do
evangelho cristão, que pregava uma vida individual eterna, à posição de
religião exclusiva da humanidade ocidental. Juntas, ambas tornavam fútil e
desnecessária qualquer busca de imortalidade terrena; e conseguiram tão
bem transformar a vita activa e o bios politikos em servos da contemplação
que nem mesmo a ascendência do secular na era moderna e a
concomitante inversão da hierarquia tradicional entre ação e contemplação
foram suficientes para fazer sair do oblívio a procura da imortalidade que,
originalmente, fora a fonte e o centro da vita activa. (ARENDT, 2007, p. 28)
A exemplo do que Arendt defende, podemos abstrair que o valor da
imortalidade reside num fator “a mais” que não depende somente da vontade de se
permanecer, mas também dos reais motivos para se permanecer, isso faz-nos supor
que todo o esforço pela imortalidade do ser humano pode estar fadado ao fracasso,
se de fato não levar em conta as condições necessárias para o desenvolvimento
social, o desenvolvimento conjunto,
dos seres em seu processo de evolução
comportamental. Nesse sentido, a sede pela imortalidade atravessa o âmbito
individual para infundir conseqüências na vivencia interpessoal, marcando a busca
pela transcendência de forma racional. Olhando através dessa perspectiva,
encontramos indícios de respostas, ou o “caminho das pedras”2, às perguntas que
abordam a necessidade de preservação e o público final, a quem se destina a
preservação da memória; dessa forma podemos passar ao tópico de análise da
tradição escrita da memória.
1.2
INFORMAÇÃO E MEMÓRIA – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Transcender. Talvez essa seja a melhor resposta para a questão entreposta
da preservação da memória (por que preservar, para quem preservar), dado fato
que pode-se notar essa ambição desde muito tempo, entre os antigos habitantes
das cidades da região do entre-rios3 e suas tabuletas de argila, sem mencionar
ainda diretamente a invenção da própria escrita pelos sumérios, por volta de 4.000
a.C., e a evolução dos suportes físicos ao momento virtual, atravessando a invenção
do papiro e posteriormente do papel.
. Desse modo, ao discorrer sobre esse assunto, sobre a memória em si,
notamos então a necessidade que o ser humano sempre teve de retratar seus
2
O meio mais rápido e eficiente de se atingir um objetivo.
Fonte: http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&palavra=caminho.
3
Cidades da mesopotâmia. A nomenclatura da cidade deriva das palavras gregas meso póthamos que significam “entre-rios”.
5
costumes, suas crenças, suas tradições, o que traz à tona a necessidade do
desenvolvimento das mnemotécnicas pelo homem ao longo do tempo, sendo o fruto
desta necessidade aquilo que Pierre Janet 4 chama de comportamento narrativo, ato
mnemônico fundamental (LE GOFF, 1990, p.424).
Notamos isso quando atentamos para a história oral, que possui a função de
preservar a história social em comunidades tribais onde o método de escrita, por
exemplo, não foi/não é totalmente utilizado ou mesmo dominado. Nesse sentido,
com a cultura oral, são preservados sinais dos antepassados, que por sua vez,
emergem a cada lembrança pelos seus descendentes.
Qual foi o objetivo do ser humano ao criar meios de registro através de sinais
que se propusessem a estabelecer alguma passagem para a imortalidade nas
mentes daqueles que os lessem? Não seria o propósito de “ressurgir”, tomando
“forma corpórea” no tempo presente com suas idiossincrasias passadas? Ora, não é
isso que a que se propôs a escrita?
Neste trabalho, ao conceituarmos a memória nos proporemos a analisá-la na
tradição escrita, diferenciando-a da tradição oral, por exemplo, a fim de embasar
melhor a tese do conteúdo a que nos alvitramos tratar.
2
A TRADIÇÃO ESCRITA DA MEMÓRIA
O ser humano sempre buscou se expressar das mais diversas formas para
guardar suas memórias para a posteridade. Nesse sentido, não nos é estranho o
fato de observarmos hoje marcas nas pedras, as pinturas rupestres da pré-história,
feitas por nossos antepassados, registrando o que lhes acontecia durante o dia-dia.
Caça, pesca ou mesmo o nomadismo a que se submetiam para sobreviver às
condições climáticas a que eram expostos comumente.
A evolução da escrita, não ocorreu com tanta naturalidade quanto se pensa,
ou mesmo de um instante para outro; a princípio, as gravuras em pedras e outros
suportes expunham as intenções comunicativas do homem primitivo, seus anseios,
seus registros de caça e/ou cerimônias religiosas, o contato do imanente com o
transcendente.
4
Pierre Janet, ou Pierre-Marie-Fèlix Janet, (1859-1947), foi um psicólogo e neurologista reconhecido tanto na França quanto
nos Estados Unidos, por desenvolver o tratamento clinico de doenças mentais com apoio da psicologia acadêmica.
6
O próprio aparecimento da escrita, conforme Le Goff (1990) está ligado a uma
profunda transformação da memória coletiva, uma espécie de paralelismo, entre o
mitograma e a mitologia sob a forma de figuras, desde o Paleolítico Médio, que se
desenvolve na ordem verbal. Com efeito,
Desenvolve-se duas formas de memória. A primeira é a comemoração,
celebração através de monumento comemorativo a um acontecimento
memorável [...] A outra forma de memória ligada à escrita é o documento
escrito num suporte especialmente destinado à escrita (depois de tentativas
sobre osso, estofo, pele, como na Rússia antiga; folhas de palmeira, como
na Índia; carapaça de tartaruga, como na china; e finalmente, papiro,
pergaminho e papel).(LE GOFF, 1990, p. 427- 428)
Sobre motivações da escrita, Milanesi (2002, p. 21) sintetiza de forma
interessante o objetivo do homem ao registrar sob formas de signos inteligíveis suas
idéias e o inicio de uma idéia de armazenamento desses escritos, a Bibliotekón para
ele:
O homem registra para reter, e o registrado não encontrável, na prática, é
igual ao inexistente. A escrita que existiu antes de Cristo, pacientemente
registrada em argila ou sobre a tabuinha coberta de cera, poderia estar
perdida se houvesse um grande número de escribas produzindo em série
os seus textos sem que, ao lado, um sujeito, talvez menos criativo, mas
engenhoso e paciente, ordenasse as tabuinhas. Aí está a idéia mais
primitiva da biblioteca: o resultado do desejo e da necessidade quase
instintiva de poder utilizar várias vezes uma informação que pudesse ser
significativa.
Diferentemente do que advoga Milanesi, sobre o registrado não encontrável
ser inexistente, temos o posicionamento de Platão, atribuído a Sócrates num dos
diálogos mais conhecidos daquele, o Fedro.
Vemos sinais claros deste fato se
analisarmos a conjuntura temporal estabelecida ao longo das épocas; desde sua
criação, a escrita vem suscitando contradições das mais diversas possíveis pelo fato
d’ela estar associada diretamente à preservação e recuperação da memória. Sobre
o dialogo Fedro, temos a seguinte especificação: de acordo com Fedro, Theuth (que
tinha por símbolo sagrado a ave chamada Íbis) , teria inventado além do cálculo,
geometria, astronomia e o jogo de damas, as letras, [grámmata]. Em certa feita, foi
ele ao rei Thamos para mostrar suas invenções. Já em sua presença, mostrou ao rei
as letras, assim dizendo: ‘Isto, ó Rei [...], é um conhecimento [máthema] que tornará
os egípcios mais sábios [sophotérous] e mais bem dotados de memória
7
[mnemonikotérous]: a droga para memória e sabedoria foi encontrada5.’ Ao que o rei
contrapôs, logo em seguida:
Essa descoberta, na verdade, provocará nas almas o esquecimento de
quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque,
confiados na escrita, recordar-se-ão de fora, graças a sinais estranhos, e
não de dentro, espontaneamente, pelos seus próprios sinais.
Por
conseguinte, não descobriste um remédio para a memória, mas para a
recordação. Aos estudiosos oferece a aparência da sabedoria
[sophías...dóxan] e não a verdade [alétheian], já que, recebendo, graças a
ti, grande quantidade de conhecimentos, sem necessidade de instrução,
considerar-se-ão muito sabedores [polygnómones], quando são, na sua
maior parte ignorantes; são ainda de trato difícil, por terem a aparência de
sábios [doxósophoi] e não o serem verdadeiramente.” (PLATÃO, 2007,
274b)
Para efeito de antítese ao que já foi falado sobre a escrita, destacamos este
último elemento, a escrita, evocado no já citado diálogo Fedro de Platão, tomado
como sendo produto da sabedoria, devendo ser tratado como recurso íntimo não
externalizado: “[...] confiados na escrita, recordar-se-ão de fora, graças a sinais
estranhos, e não de dentro, espontaneamente, pelos seus próprios sinais.”
(PLATÃO, 2007, 274b).
Posto que confunde-se em matéria de predecessão a memória e a escrita,
tomamos somente um desses elementos para análise neste trabalho, talvez o mais
encantador dos dois, não desfazendo da importância de ambos para o
desenvolvimento do homem, a memória tem despertado interesse entre milhares de
pesquisadores através dos séculos.
O fenômeno mnemônico, tornado encantado mediante sua externalização
através da palavra escrita e da tradição oral, mostra ao mesmo tempo o caráter
mítico e misterioso, bem como o caráter explicitativo envolvido nos mecanismos de
cognição e transmissão de informação, sendo por isso mesmo objeto de estudo da
ciência em suas diversas ramificações.
Schonen (apud LE GOFF, 1990, p. 420), bem exprime a anterior afirmação da
seguinte forma:
Podemos, pois, concluir que se desenvolveram ulteriores investigações que
tratam do problema das atividades mnésicas, integradas ao conjunto das
atividades perceptivo-cognitivas, no âmbito das atividades que visam
organizar-se da mesma maneira, na mesma situação, ou adaptarem-se a
novas situações. E talvez só pagando este preço compreenderemos um dia
5
em 274 e versos 5-7
8
a natureza da recordação humana, que impede tão prodigiosamente as
nossas problemáticas.
Nas ciências humanas, a aproximação do fenômeno da memória tem se dado
através da concepção do ato mnemônico fundamental o “comportamento narrativo”,
como afirma Pierre Janet (apud LE GOFF, p. 421).
Arrematando o fio último desse grande tapete, temos em matéria de escrita
na atualidade, o exemplo da escrita em hipertexto ou a escrita na internet.
Vimos ao longo desse curto capítulo a evolução da escrita, sob os aspectos
de preservação cultural, representação de transcendência e como artifício mnésico
criado para “posterizar” a memória coletiva; é nesse ínterim que o suporte de escrita
evolui numa linha cronológica, talvez tecnológica, de modo que a sua máxima
expressão numa atualidade anterior ao computador, se dá numa lâmina
embranquecida criada à base de celulose, conhecida como papel.
3
A INFORMAÇÃO ESCRITA E O BIBLIOTECÁRIO
Num cenário de evolução e caos, no fim da segunda guerra mundial, por volta
de 1945, a literatura cinzenta multiplica-se de forma exponencial,dando inicio ao que
é conhecido como explosão informacional. Essa explosão foi um aumento na
produção científica de várias áreas do conhecimento, disponibilizadas por diferentes
atividades sociais; essa
grande difusão, sem organização conseqüentemente,
dificultava a identificação, minimizando o acesso, bem como a utilização.
Sobre essa época, Ribeiro (200-?) afirma que a explosão documental do pósguerra se aliou à vulgarização dos suportes; essa vulgarizaçao foi acompanhada
pela concepção e popularização de registros em formato eletrônico.
Num cenário de recuperação econômico-social global, para organizar e
preservar essa informação enorme e com potencial de crescimento abissal, é que se
desenvolve o primeiro projeto de equipamento capaz de armazenar dados, ulterior
ao projeto MEMEX, na mesma filosofia de trabalho; um contraponto entre a
preservação em registro físico e a preservação de registros virtual. Nessa idéia,
temos o surgimento do Computador; inicialmente de uso restrito a pesquisadores
universitários, a biblioteconomia passou a utilizar-se dele na medida em que a
arquitetura do mesmo se modificava, expandindo sua capacidade de trabalho e
linguagens de programação, ainda na década de 1960.
9
A apropriação desses meios pelo bibliotecário não é algo novo, tanto que,
nesse sentido, formatos padrões de catalogação foram criados ainda na mesma
década pela Library of Congress, o conhecido formato MARC6 que teve a sua última
versão adotada pela ISO7 , como padrão internacional de serviços de catalogação.
Todo esse percurso, tanto de evolução dos computadores, quanto de formatos de
catalogação, mudaram o modus operandi do bibliotecário em face de sua própria
rotina, destarte, o serviço deixa de ser individual e solitário para aderir ao estilo
cooperativo de trabalho, o que de certa forma proporcionou ao bibliotecário repensar
sua função e sua cultura de tratamento da informação.
Com efeito, houve reflexos assombrosos no que diz respeito a relação
bibliotecário/informação com o avanço das Tecnologias de Informação, o que é
clarividente, não só na literatura quanto na vida comum, na lide diária do
profissional. Uma prova disso é a crescente quantidade de periódicos online que se
tem no ambiente chamado internet que por sua vez, só foi possibilitado pelo
desenvolvimento dos computadores e pesquisas militares em transmissão de
dados.8 Cita-se não somente o caso dos periódicos, mas também das bases de
dados que em tempos anteriores tomavam conta das bibliotecas e hoje tem no
ciberespaço um aliado importantíssimo na disseminação da informação, o que
numérica e socialmente comprova que houve mudanças tanto no ambiente das
bibliotecas acadêmicas quanto no perfil dos bibliotecários comparando o estágio
inicial com o atual.
O reforço a esta compreensão é que as fontes de informação clássicas
passaram a se fazerem presentes na web ambient de forma que os suportes
deixaram de estar presos à cognoscibilidade de valor físico para figurar entre os
formadores de opinião virtuais; livros, periódicos, bibliografias, mapas, guias,
multimídia em geral, tudo encontrado na ponta do dedo ou no rastro do mouse
através de uma vinculação invisível que interconecta pessoas de diferentes partes
do mundo desfazendo as barreiras geográficas e até mesmo lingüísticas, de modo
que, definitivamente tudo e todos estão conectados à rede invisível humana ou
wireless de internet.
6
Machine Readable Cataloging.
International Standardization Organization.
8
“A ciência brasileira ganhou mais visibilidade global: o número de revistas científicas nacionais indexadas na base de dados
internacional Web of Science-ISI (WoS) aumentou 205% entre 2002 e 2008.” (UFMG, 2009, não paginado).
7
10
Essa grande movimentação não se restringe à bases de dados. O
bibliotecário está presente no cyberspace de forma representativa, o que denota não
só uma mudança no escopo de trabalho biblioteconômico, mas também um novo
perfil de bibliotecário, que se utiliza de meios diversos como redes sociais (Orkut,
Twitter, Facebook, MSN) para manter contato com o mundo à sua volta, divulgar a
sua profissão e disseminar informação. O espaço do bibliotecário foi modificado e
remodelado ao longo dos anos deixando de estar somente entre as prateleiras de
um local silencioso e soturno para figurar no mundo inteiro, virtualmente através de
uma espécie de second life menos atrelado ao game 3D e mais voltado ao real
trabalho que pode desenvolver na rede, o que inferiu deste, portanto, uma mudança
nas suas variáveis de comportamento com relação à sociedade contemporânea e
consigo mesmo.
No que tange às redes sociais, novas TIC e o ser bibliotecário, é necessário
que se teçam alguns comentários acerca de sua atuação no campo dos diários
virtuais, os blogs, objeto de análise desse trabalho.
Antes de qualquer coisa, é necessário ressaltar que a dimensão de atuação
do bibliotecário na web mostra-se cada vez maior em função da criação de novas
ferramentas que potencialmente aumentam as possibilidades de relacionamento
entre o profissional e o usuário dos serviços de informação.
Segundo Maness (2006, p.48), os “blogs podem com certeza ser até mesmo
uma pedra fundamental na história da publicação, mais importantes que as páginas
web. Eles habilitam a produção e o consumo rápidos de publicações baseadas em
Web”, entretanto, essa afirmação merece um pouco de atenção de nossa parte.
A afirmação de ser o blog a pedra fundamental na história da publicação
confronta a realidade disposta pela história da própria escrita; a própria escrita,
tomando para esse discurso o que foi dito por Chartier (1999), já viu revoluções
maiores, como a criação da prensa por Guttenberg, e esta última revolução ou
“pedra fundamental” se dá no sentido de a publicação (escrito) deixar de estar presa
ao plano material, à exemplo de um suporte conhecido como livro, e passar a figurar
virtualmente nas telas de computador, possibilitando ao leitor o alçar de maiores
vôos proporcionados pela leitura e/ou correlação de dados e leituras anteriores.
Desse modo, temos o que Chartier (1999, p.13), nos instrui sobre a escrita, de
encontro à defesa de Maness sobre o blog (tratado nesse momento como conjunto
11
de postagens feitas por um autor-conteudista na rede) como sendo pedra
fundamental na história da publicação:
O fluxo seqüencial do texto na tela, a continuidade que lhe é dada, o
fato de que suas fronteiras não são mais tão radicalmente visíveis,
como no livro que encerra, no interior de sua encadernação ou de
sua capa, o texto que ele carrega, a possibilidade para o leitor de
embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos na
mesma memória eletrônica: todos esses traços indicam que a
revolução do livro eletrônico é uma revolução nas estruturas do
suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler.
Assim sendo, a evolução proposta por Maness portanto, pode ser avaliada da
seguinte forma: a veiculação da escrita através dos blogs é um ponto relevante na
história da escrita e da publicação, visto que o leitor entra em contato com o produto
final com maior rapidez, do que se fosse esperar se algum livro fosse editado por
alguma casa publicadora, destarte o contato entre autor e leitor pode ser maior, mais
ainda pelo fato de hoje em dia, os blogs apresentarem mecanismos de comentários
para o texto lido, contatando-se portanto, maior feedback do publico em relação ao
texto.
Retornando e rebuscando as origens do nosso objeto de estudo, os blogs
nasceram de uma experiência de relatos na web; a sua denominação inicial foi
“weblog”, e foi criado com objetivo de relatar algo que as pessoas achassem
interessante, notícias por exemplo. O primeiro blog, o robot wisdom weblog, ainda
existe na rede hoje, com o estilo de interface gráfica, talvez para lembrar ao leitornavegador da idéia inicial do seu criador ao “inventar” aquela nova ferramenta de
informação, clippings de notícias interessantes para o blogueiro.
O que era algo experimental foi seguindo um caminho evolutivo muito
peculiar, de modo que rapidamente foi utilizado como um diário de bordo, um diário
virtual. Nessa perspectiva, aproveitando as oportunidades oferecidas pela web 2.0
quanto a interatividade de pessoas com a rede, a interface do blog se modificou
atendendo a novas necessidades ou desejos de personalização. Uma dessas
inovações é conhecida como permalink, que faz com que cada postagem no blog
tenha um endereço próprio, uma espécie de identidade própria advinda da
possibilidade de existir na internet. Essa é somente mais uma inovação perto do
12
mecanismo de pesquisa de textos dentro do blog e pesquisa por tags9 que desatrela
o escrito à datas, o que demanda menos tempo na busca e recuperação de
elementos escritos pelo blogger 10.
4
ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
Todos esses novos elementos fazem com que o blog se popularize cada vez
mais rápido; segundo a Technorati (2005, não paginado), mais ou menos 80 mil
blogs são criados todos os dias na Internet, o que, segundo o site da
Technorati,significa que um novo blog aparece quase a cada segundo na rede, isso
sem salientar que nessa pesquisa, de acordo com o gráfico abaixo, 55% dos novos
bloggers continuam postando após 3 meses de uso, ou seja, é grande o número de
abandono de páginas web depois de sua criação; e somente 13% dessa grande
quantidade são atualizados diariamente.
Nesse sentido, olhando para os percentuais e também para a “nova cara” do
bibliotecário, fica um questionamento: será isso, o blog, também uma fonte de
informação, será ele mais um detentor de memória? A essas e outras perguntas só
serão respondidas com plena certeza, quando mais outros estudos acadêmicos
forem efetuados e quando barreiras como o preconceito com a internet, no sentido
de ela ser uma ferramenta de resguardo da memória, começarem a ser quebrados.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Traduzido por Roberto Raposo. 10.Ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
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1 MEMÓRIA: UM CONCEITO Dada a infinidade de enunciados ou