MAR . 1993 . ANO XXVIII . N~ 260 - • A MORADIA E OS CRISTAOS Pc Jos .. Comblll1 - página 67 • JESUS CRISTO ONTEM, HOJE E SEMPRE Pe. J B. l ibânio, SJ - págllla 77 CONVERGÊNCIA Revista Mensal da Conferência dos Religiosos do Brasil : e RB Diretor-Responsável : Pe. EdênioVa lle, SVD Redator-Responsável : . Padre Marcos de Lima, SDS IReg. 12.679/78) Equipe de Programação: Coordenador: Pe. Spencer Custódio Filho, SJ Membros: Pe. Atico Fassini. MS Ir. Una Bolf, SMR Fr. Luiz Fernando Peixoto, OFM Direção, Rédação, Administração: Rua Alcíndo Guanabara. 24 - 4~ andar . Cinelândia / Tel.: (021) 240-7299 . 20038-900 RIO DE. JANEIRO - RJ. Assinaturas para 1993: Brasíl, taxa única : .. terrestre·ou aérea ...... , ......... ,. Cr$ 283.700.00 Exterior: marrtima ...... ........... ... US$ 45,00 . aérea .... ..................... US$ 60,00 Número avulso ...;.................... Cr$ 28.370,00 Os artigos assinados são da responsabilidade pes- soa! de seus autores e não refletem necessariamente o pensamento da e RB como tal. Composição: Unolivro S/C ltda., Rua Dr. Odilon Benévolo; 189 - Benfica - 20911-230 Rio deJaneiro, RJ. as folias de re is. as irmandades (do Sa ntfssimo, dos negros ...) e a devoção das cinco chagas r~ presentadas pelo homem d as dores. O barroco desta época foi caracte rizado pela arquitetura e pela liturgia (Sé de São João dei Rey e o candelabrol. e pela música sacra com o Pe, José Mauricio. mulato e m inei ro. O Mural entra numa fase escura quando chega a data de 1759: expulsão de mais de 450 jesurtas d o Brasil por parte do MarQuês de Pombal . O Artista quis fazer uma "Guernica" brasileira . tamanhas fora m a injustiça e as conseqOências nefastas para a vida social. cultural e relig iosa do Brasil, com a expulsão violenta destes religiosos. Uma mão de ferro simboliza Pom. bal e a manipulação da maçonaria e m todo esse assunto. A seguir uma m ulher chora d esconsolada diante da saída dos jesuítas. Uma pomba morta simboliza toda liberdade e doação extin tas. Uma m ãe se debruça chorando a sua filha assassinada. lembrando aquela frase de Voltaire : "acabemos éom a filha (a Companhia de Jesus) e logo acabaremos com a mãe (a Igrejal". A se· guir aparecem rostos macerados e famintos dos exilados. Um anima l grita. abrindo aterrorizado a s ua boca , diante de tamanha injustiça. A pata do cavalo s imboliza o abuso do poder. Por fim . um jesufta agoniado arranha a terra como para se esconder dentro dela ou para enterrar seu. companheiro morto. A expulsão dos jesultas marca uma fase obscura na história da Ig reja no Brasil (Pe. Marcos de lima, SOB1Reg istro n a Divisão de Censu ra e Diversõe s Públicas do D.P.F. sob o n? P-209/73. SUMARIO Oficinas Gráficas da Editora Vozes Fre i Lufs, 100 - Centro RJ. Nossa Capa D etalhe do mural d e Cla udio Pastro '500 Anos de Eva.ngelização do Brasil'. em Vila Kostka, Itaici, SP. Eiscomoodescreve o Pe. J. Ramón de la Cigana e m seu livro 'Arte em Itaid', à página 16: "Na extremidade esquerda da rede temos a presença de três ordens que também influenciaram profundamente'a evangelização do pais : um beneditin o, um carmelita' e um capuchi nho. O beneditino é Frei MatElus da Encarnação Pinna, Que se desta cou em sua luta contra o jansenismo e traz em sua m ãoa " Defensio Purissimae etlntegerrimae Doetrinae Sanctae Matris Ecc/esiae" . Em 1750 t emos a fundâção do seminário de Mariana, orga nizado e regido pelos jesurtas. Estes foram expulsos do Brasil em 1759 e não pud eram m ais influenciar a religiosidade mineira. A re ligiosidade popular traduziu-se em fo rmas mais folclóricas e intimi stas s imbolizadas p e lo barroco. as "beatas", EDITORIAL ....... .. ... ....... .. ....... ...... ...... .. ........ 65 A MORADIA E OS CRISTÃOS Pe. José Comblin ................ .................... ..... 67 JESUS CRISTO ONTEM, HOJE E SEMPRE Pe. J. B. Libênio, SJ .... .................................. 77 A VIDA RELIGIOSA NO DOCUMENTO DE SANTO DOMINGO. LEITURA A LUZ DE HB 13, 8 E LC 24, 13-35 Pe. Francisc o Taborda, SJ .... .......... ......... .... . 92 UM ESTILO DE EDUCAÇÃO: AS IRMÃS SALESIANAS E A PRAxlS EDUCATIVA NAS ESCOLAS Irmã Olga de Sá, FMA ........ .......... .............. . 120 • EDITORIAL Por que o tema da moradia em peração da cr·ise, que é secular uma CAMPANHA DA FRATERNI- e não culpa de pessoas ou goDADE tal como a Igreja no-lo vernos determinados, recentes ou propõe na quaresma deste ano? não, como pretendem fazer crer A respo~ta encontra-se nos jor- certos analistas . apressados ou nais de ··c ada dia, na inevitável com dúbias intenções, parece "visão da · realidade" que tantas passar · pela abertura da ééonovezes nos é proposta em cursos mia, pela interação no lugar da . e encontros. Todos nos anunciam exclusão social, ênfase na eduque o pa:rs entrou na década de cação, retirada do Estado da área 1990 com um terço da população empresarial e sobretudo o combate a uma inflação que multipli~ 45 milhões de pessoas ou 11 mnhões de famflias abaixo da ca as desigualdades. linha da pobreza, o que significa uma renda mensal de até 1/ 4 do Por este quadro, aqueles que . salá~io mlnlmo. A miséria deixou proclamam o nome de Jesus com de ser uma condição Ifpica das o titulo de cristãos precisam ináreas rurais. De cada 10 brasilei- teres,sar-se, envolver-se, e este é ros pobres, cinco moram em ci- um dos Objetivos da CAMPANHA dades, o que explica porque seja DA FRATERNIDADE. Nós da vida nas aglomerações urbanas que religiosa, Independente da rica comecem a eclodir os sintomas diversidade de carismas que nos de uma perigosa desintegração constitui, não podemos ficar social. Os riscos são potencial i- . alhe·ios à participação neste prlzados por uma inflação de dois vilegiado tempo penitenciai quer dlgitos. Tudo Isto · é produto · de para nós mesmos, enquanto enum modelo de desenvolvimento volvidos sócio-economicamente que herdou um pas,sado colonial nesta sociedade de tanta injulsti~ escravocrata e forrnou uma indus- ça, quer para com aqueles com trianzação baseada na liderança quem trabalhamos em nossas do Estado; na substituição das missões. p. JOS':: COMBLlN, importações e na exclusão social. com a lucidez que lhe é habitual, Ao transferir o ml.lndo rural para nos lembra que podemos e deve_ o urbano, perpetuaram-se as de- mos levantar uma voz profética sigualdades, algo tapeadas por no tema da moradia. Para que uma formidável mobilidade so- . tenhamos credibilidade é necescial, não só eie uma geração para sár·io, entretanto, que façamos .. a outra como dentro de uma caminho começando nós mesmos mesma geração. A estas pessoas a fazer os sacriffoios necessários a sociedade em seu conjunto e a. experimentar uma nova fornão ofereceu moradia, educação, ma de convivênci.a humàna que salário digno. O caminho de su- torne posslvel a solução do ·pro65 blema urbano da moradia. Chega mesmo a perguntar ousadamente se não deverão 05 evangelizadores deixar suas casas e aceitar viver em condições precárias ... Retomando o tema de SANTO DOMINGO, dois jesultas nos ajudam a refletir: p. LIBANIO sob.re a centralidade cristológica reafir_ mada no documento, e que parece tornar-se hoje uma exigência muito maior diante da crescente onda de pós-modernidade. Em meio ao esfacelamento de valoores, dos sentidos, das "grandes narrativas", dos pó~os fundamentals de referência, reapresentar a " Jesus Cristo, não como doutrina, mas como pessoa, testemunho de vida, " evangelizador primeiro e maior, representa um esforço de resposta nesta retomada cristológica. Já o p. TABORDA; num alentado artigo, apresenta duas chaves de leitura que possibilitem uma abordagem mais "costurada" do documento de Santo Domingo, e as aplica em relação à Vida Religiosa. "" Ir. OLGA DE SÁ, salesiana, a partir da memória da experiência carismática de D. Bosco, no seu envolvimento com 05 meninos de Turim no século passado, apresenta a práxis educativa nas escolas de sua congregação, particularmente quando de sua instalação no Brasil. Se lembrarmos que visavam enfrentar uma situação onde, em 1864, já se falava em 200 mil menores abandonados no pars, perceberemos a atualidade do tema e as percepções possíveis para uma retomada desses processos educativos. P. Spencer Custócllo Filho sj Dom precioso, rico, oportuno, verídico "" o Catecismo da Igreja Católica é um instrumento qualificado e auto"rizado que os Pastores da Igreja quiseram primeiro para eles mesmos, como válido auxílio no cumprimento da missão, recebida de Cristo, de anunciar e testemunhar a Boa Nova a todos os homens. Constitui um dom precioso porque repropõe fielmente a doutrina cristã de" sempre; um dom rico pelos assuntos tratados com cuidado e profundidade; um dom oportuno atendendo às exigências e necessidades da época moderna. Sobretudo, ele é um dom verídico, ou seja, um dom que apresenta a Verdade revelada por Deus em Cristo e por ele confiada à sua Igreja. O Catecismo expõe esta Verdade, à luz do Concílio Vaticano 11, tal como ela é acreditada, celebrada, vivida e pregada pela Igreja e fá'lo no intento de " favorecer a adesão indefectível à Pessoa de Cristo. João Paulo II ao apre~ sentar o Catecismo da Igreja Cat6lica, no dia 7 de dezembro de 1992. 66 A MORADIA E OS CRISTAos A mensagem cristã não despreza a moradia . como se fosse uma realidade puramente material, indigna das preocupações humanas. Mas ela sabe que só o Reino é uma cidade em que há morada para todos. .. • . Pe. José Comblin Serra Redonda, PB . 1. Introdução A moradia, como todas as realidades humanas, precisa ser enten. dida dentro de uma concepção escatológica do mundo. A vida humana é caminhada e peregrinação. No cristianismo esse caráter de movimento, caminhada, provisoriedade, foi muito desenvolvido. Na Bíblia, por um lado, há uma insistência muito forte na aspiração do povo de Deus para conquistar uma residência pelmanente. Mas, ao mesmo tempo, esse mesmo povo é chamado a deixar a sua residência. Toda residência é provisória ·e o povo de Deus é chamado a retomar seu caminho e, sempre de novo, voltar a andar. Abraão foi forçado a deixar a sua casa. Deus prometeu-lhe uma terra onde morar. De fato, Deus deu a seus descendentes a terra de Canaã. Mesmo assim, o povo teve que recomeçar a caminhada. Teve que voltar para o deserto: foi para o cativeiro e se dispersou na diáspora. Sempre se renovam as promessas de uma morada fixa e definitiva, mas sempre volta a necessidade de deixar a sua casa, de não se incrustar e não se apegar a ela. lesus renova as promessas de uma morada definitiva junto com ele na casa do seu Pai, onde há muitas moradas 00 14,2r. Mas antes de chegar lá, os discípulos terão que andar muito: "Caminhai enquanto tendes luz" 00 12,35). O próprio Jesus aparece como um profeta que vai andando e não pára nunca. Os evangelhos mostram-no caminhando sem cessar. 67 Ele próprio expressou a sua condiOs escritos mais antigos mosção num dito muito radical: "As . tram, como na Didaqué, que houve raposas têm tocas e as aves do céu, muitos profetas itinerantes nos prininhos; mas o Filho do Homem meiros tempos, sobretudo nas renão tem onde reclinar a cabeça" giões da Palestina e da Síria. For(Mt 8,20) . maram e animaram o que ·alguns chamaram · "movimento de Jesus" Por isso não é de estranhar que (2) . ele peça aos discípulos que deixem . Cada vez que se renovou na Igre"casa, irmãos e irmãs, mãe, filhos e terras" por sua causa (Me 10,29). ja . o espírito missionário, reapareEle não pediu nada mais .do que ceu o modelo de homens e às veaquilo mesmo que exigiu de si pró- zes mulheres percorrendo estradas • pno. e rios, cruzando montanhas e desertos à procura das ovelhas disperOs primeiros cristãos foram es- sas. Houve os missionários irIancolhidos entre os peregrinos, aque- . deses e ingleses que evangelizaram les que não têm morada permanen- os povos bárbaros. Vieram os miste, que são migrantes. A primeira sionários franciscanos e dominicaepístola de São Pedro exalta essa nos que penetraram em todos os condição de .pessoas sem residência continentes quando os meios de permanente nesta terra. Nessa car- viagem ainda eram muito precá• ta não se trata de uma condição· de rIOs. itinerante puramente espiritual, de O próprio São Francisco não pessoas que vivem caminhando espiritualmente para o céu, porque de aceitava que os irmãos tivessem caalguma maneira já não se sentiram sas . Ele viveu pelas estradas e mais desta terra. Mostra que se campos, indo ao encontro das pestrata de pessoas expulsas de sua soas· que esperavam sua palavra e, pátria por qualquer tipo de neces- sobretudo, sua presença. sidade e que estão de certo modo . Mesmo quando monges ou ermiacampando nas cidades romanas. Naquela épOCíl as cidades estavam tãos construíram para si humildes cheias de tais refugiados que pro- casas, quiseram que fossem as mais cediam do campo ou de regiões po.bres possíveis. Suas moradias afastadas e não tinham os direitos eram extremamente frágeis (3). Tinham moradias, mas era quase code cidadania (1). mo se não as tivessem. Esses primeiros cristãos realizavam o modelo itinerante, provisó- 2. Na cid;tde nova haverá casa para todos rio e precário de viver que Jesus tinha escolhido por vocação e tinha Dessa rápida retrospectiva históproposto aos discípulos, impondo-o rica não se pode concluir que a de certo modo aos apóstolos. 68 mensagem cristã não atribui valor à moradia, procurando desestimular os cristãos que quisessem trabalhar para construir ou melhorar sua habitação. Com muitQ menos razão poderíamos usar o argumento da Bíblia e da história cristã para consolar os desabrigados, ou pregar a ." . e a reslgnaçao . paclencla aos. que . não têm casa, como se essa condição fosse um bem, uma imitação de Jesus, uma melhor participação no Reino de Deus. Muito pelo contrário. Com efeito, os patriarcas e profetas desde Abraão ,até João Batista; Jesus e os apóstolos, desde. os 'primeiros seguidores de Jesus até São Francisco; e os apóstolos modernos dos favelados e dos semteto, deixam suas casas partindo para a luta em vista da construção de uma' sociedade melhor, na qual todos possam ter casa. Eles caminharam em direção à terra habitável para todos. Caminharam para a cidade de Deus, onde Jesus preparou uma morada para ,todos. Não se trata apenas da cidade celestial, mas aqui mesmo , os discípulos vão construindo cidades terrestres , em que todas as pessoas tenham onde morar. , , , , Jesus e os '''seus precursores e seguidores deixaram suas casas para preparar uma casa para todos; não para que doravante todos vivessem sem casa, como se esta condição fosse condição superior. , Deixar é um ato escatológico, isto é, um ato em vista de anunciar e preparar \lma cidade nova em que . haverá casa para todos. Eles não desprezam a casa, mas querem casa para todos. Deixam esta cas a como sinal dé denúncia e rejeição da sociedade no seu' estado 'presen' te, em vista da preparação de outra sociedade em que a casa não ' seja sinal de discriminação e sim de fraternidade. 3. Testemunhar que a moradia é direito humano para todos o problema da moradia nunca se colocou com tanta urgência como , na época atual. A população atual é' uma população migrante: bilhões de pessoas, a metade da humanida- ' de, estão migrando do campo para li cidade numa geração. Na América Latina, a metade da população emigrou nos últimos 30 anos e outra grande parte do resto dos camponeses também se prepara pa, ra ' emigrar. Ora, nas cidades, nada ou quase nada se faz para recebê-los. Os programas de construção de casas populares são irrisórios, praticamente nulos. Os novos moradores têm que resolver o problema da moradia por conta própria, sem ajuda, sem apoio, sem legalidade. Calcula-se que no Terceiro Mundo entre 70% e 95% das habitações construídas são ilegais, feitas sem autorização, por ocupação ilegal de terrenos e construção sem licença (4). A sociedade mostra-se tão in- 69 diferente que os condena a viver fora da lei. A sociedade ignora-os_ , , No entanto a moradia é um direito humano, proclamou João XXIII na Pacem in Terris (n'-' 4) _ A moradia é uma tarefa gigantesca. Ela questiona em primeiro lugar toda a política urbana das sociedades e os princípios que constituem o modelo de sociedade da , humanidade contemporânea. Medellín já tinha ,dito algo semelhante. Depois de Medellín vários agentes de pastoral, mais religiosas ,do que religiosos ou sacerdotes, deixaram condições mais confortáveis de moradia para mo~ rar no meio das massas marginalizadas e abandonadas que vivem em condições precárias e realmente desumanas. ' A mensagem cristã não despreza a moradia como se fOsse uma reali, A Igreja pode e deve levantar dade puramente material, indigna uma voz profética. Ela não terá das preocupações humanas. Muito credibilidade se os pr6prios cris- ao contrário, ela sabe quanto a motãos não abrem o caminho, come- radia está ligada à vivência espiriçando eles pr6prios a fazer os sa- tual. Segue breve resumo dos sencrifícios necessários e a experimen- , tidos da moradia ' que se manifestar uma nova forma de convivên- ,tam à consciência humana e que o cia humana que tome ' possível a cristianismo reconhece, valoriza, solução do problema urbimo da promove e pretende realizar juntamoradia. mente com todos os seres humanos de boa vontade, estimulada pela De modo geral as pessoas que re- sua caminhada rumo ao Reino de presentam a Igreja' gozam de condi- Deus, que é uma cidade em que ções privilegiadas de moradia. Di- há morada para todos (To 14,2). ficilmente podem pedir sacrifícios ou poderiam con testar o modelo ' de 4_ As funções da casa sociedade que lhes é tão favorável. Aqui também o grande problema da evangelização e a falta de cre- 4.1. Os seres vivos precisam ' de abrigo , dibilidade. A doutrina social da Igreja será sem efeito se a Igreja A primeira função é a mais simnão tem credibilidade. Para adquirir credibilidade, ela deve primeiro pIes. Ela é compartilhada poi- topraticar o que ensina, e viver o dos os animais que vivem na superevangelho que pretende anunciar. fície da terra. Todos os animais, 'e os seres humanos com eles, preciHoje em dia também, para que sam de um abrigo para se proteger um dia todos tenham uma habita- contra o calor e o frio, a chuva, a ção digna, será necessário que os neve e o vento, e também contra evangelizadores deixem a sua casa as depredações de outros animais e aceitem viver em condições pre- ou de outros seres humanos. Nas . carlas. origens parece que a espécie huma- - 70 na encontrou refúgio em grutas e cavernas. As puras mãos humanas . não ofereciam ferramentas necessárias · para construfr moradias. No entanto essas moradias preparadas pela natureza geralmente ofereciam poucas vantagens. Houve e ainda há exceções. Em algumas regiões ainda há habitantes de cavernas e grutas, mas se trata de condições excepcionais. Na medida em que os seres humanos descobriram na naturezâ objetos que podiam fornecer instrumentos de ação, procuraram melhorar as suas habitações. procuraram melhorar em dois sentidos: mais conforto e mais segurança. Melhor defesa contra invasores animais ou humanos, e me. lhor proteção .contra as ameaças do clima. Os melhoramentos acompanham a evolução da cultura. Ora, a moradia é um dos setores em que, desde as primeiras civiliza. ções neolíticas, mais se diferenciou a condição dos ricos e dos pobres, dos poderosos e dos dominados. A arqueologia quase nada nos diz das habitações dos pobres, porque estas eram tão frágeis que não resistiram às condições climáticas ou às destruições feitas pelos homens. Os estudos arqueológicos, ao invés, nos mostram muitos palácios antigos e residências dos reis ou das castas dominantes. Com o decorrer dos tempos a distância vai crescendo entre · as vantagens que oferecem as residências dos grandes. e o atraso das casas dos pequenos. Hoje, novas tecnologias permitem aumentar quase sem limite o conforto e a segurança das residências dos privilegiados. Ora, essas . tecnologias, como todas as tecnologias pós-modernas, são cada vez mais ·caras. As classes dominantes precisam reservar para as suas habitações uma porção cada vez mais importante dos recursos da nação. No Terceiro Mundo essa situação é ainda mais grave. Muitos, recursos que deveriam ser orientados para o desenvolvimento de todos, são desviados para o consumo luxuoso das residências das castas superio-. res . Aí o escândalo é maior: A presença lado a lado, na mesma cidade; de bairros luxuosos e de zonas de favelas, cortiços, habitações populares precárias, constitui um contraste que clama ao céu . Ora, a miséria das ' áreas de fave'. las e cortiços deve-se justamente à existência dos bairros residenciais. Se estes não monopolizassem todos os recursos disponíveis da nação, seria possível realizar uma política de habitação para todos. 4.2. Guardar objetos A segunda função da casa é guardar objetos. Os seres humanos necessitam de objetos e precisam guardá-los. O conselho dado por Jesus para viver como os lírios do campo e os passarinhos do céu que não guardam nada ' e vivem daquilo que Deus lhes dá cada dia, tem também um sentido escatológico. Para que um dia todos tenham o necessário é preciso que os profetas e apóstolos, anunciadores do 71 Reino de Deus, deixem as suas seguranças, os seus celeiros, as suas reservas e arrisquem uma condição de insegurança. Não porque a insegurança seja melhor do que ' a segurança, inas porque é o preço da liberdade da Pálavra para denunciar e anunciar. Quem levanta a ' voz, vê que outros lhe cortam todos os recursos, achando-se sem outra proteção a não ser aquela que Jesus dá aos seus apóstolos (mediante a ajuda dos outros discípulos também) . Os seres. humanos precisam conservar . primeiro o fogo. Durante milênios o fogo foi o objeto mais precioso, porque era difícil acender o fogo. Durante séculos, casa foi sinônimo de fogo. Na idade média contavam o número ' de fogos em cada povoadociu cidade. Hoje há novas técnicas que permitem dispensar essa função. . preciso guardar também as ferramentas, as sementes, a produção a ser consumida mais tarde. Tudo isso antigainente se guardava nas casas. Hoje há outras maneiras de guardar as ferramentas e os alimentos. No · entanto, àqueles objetos, outros mais sofisticados vieram juntar-se, ocupando lugares mais específicos em residências mais sofisticadas: objetos para cozinha, quarto de dormir, refeitório, banheiro etc. Aqui também a dis. tância vai crescendo entre os objetos que se acham nas casas dos ricos e nas dos pobres. Com o desenvolvimento da' cultura, os objetos possíveis aumentam sem cessar É 72 e os ricos precisam de ' muifo espaço para colocar lodos os objetos que acham necessários. Qualitativamente também o custo dos objetos dos ricos vai ficando cada vez mais distante do custo dos objetos dos pobres. O valor dos objetos que se acham numa casa burguesa pode ser mil, dez mil ou até cem mil vezes superior ao valor dos ohjetosque se acham nas casas dos favelados. A função ' de guardar pode ter realizações muito diferentes. 4.3. Localização da pessoa no espaço A terceira função da casa consis• te em SItuar a pessoa no espaço. Trata-se de uma segurança psicológica. Todo ser humano precisa situar-se no mundo. Esse mundo deve ter um centro a partir do qual o resto se organiza. Para cada pessoa, a sua casa é o centro geográfico do mundo. A partir da casa tudo recebe colocação e lugar: escola, fábrica, escritório, edifícios públicos, comércio, bancos, espaços de lazer, campos de esporte, e assim por diante. Da casa saem vários caminhos . que levam a esses diferentes lugares. As distâncias são apreciadas a partir da casa. Um lugar fica perto ou longe, um bairro é distante ou vizinho, conforme a referência à casa. Claro está ·que nada fica perto ou longe no absoluto. No entanto,· todos os lugares são vividos como estando perto ou longe. Cada um vai definindo dessa maneira um mundo fa• milia" conhecido. As crianças, sobretudo, precisam sentir-se no meio de um mundo bem . organizado, em que cada coisa tem o .seu lugar. Mas os adultos nunca se emancipam totalmente da criança. A casa define também um espaço social: a partir da casa sabe-se quais são os vizinhos, as pessoas habitualmente situadas no mundo: comerciantes, <iistribuidores, carteiro. .. Hoje o .espaço é muito menos definido porque o bairro se tornou mais impessoal: menos comércio local, serviços públicos mais afastados (policiais de carro); a mecanização afasta as pessoas e torna o espaço mais despersonalizado. O espaço burguês é mais des. personalizado ainda. A casa está no meio de outras casas: (lIa define os vizinhos e abre contatos com os vizinhos. A casa pertence a .um conjunto social típico, selecionando as relações sociais. Por conseguinte, a sua localização define uma certa cultura; A casa desenha também um espaço social. A casa vai formar os jovens porque ela estabelece · muitas relações sociais. Ora, a casa que pode abrir para os vizinhos, pode também fechar. No mundo cultural burguês, ·a · casa serVe mais para fechar do que para abrir. Os burgueses situam a sua residênCia de tal modo que possam . evitar toda vizinhança. Nos grandes conjuntos, os habitantes dos apartamentos desconhecem os seus vizinhos. Os .vizinhos nunca se visitam. A moradia - consolida as classes sociais. Por isso mesmo Jesus c.onvida a deixar a casa . quando esta cria apego a uma classe social, sobretudo a uma classe acomodada, porque ninguém se apega à pobreza. As vezes é preciso livrar-se de um espaço que prende, para conquistar a liberdade indo ao encontro de outros e encontrando-os no seu espaço. , • 4.4. Vida privada A quarJa função .da casa é a vida privada. A vida privada é uma conquista da cultura moderna ocidental. Ela tem aspectos positivos e negativos, mlls há uma tendência universal para criar um espaço de vida privada, um espaço em que a pessoa pode estar livre dos olhares, da observação de outros, da intromissão de outras pessoas. A vida privada é a parte da vida em que a pessoa se recolhe na solidã.o ou . na conversa com pessoas selecionadas. A vida piivada tem por primeiro objeto a sexualidade. Os casais tendem a um certo isolamento. Outrora havia pouca conversa entre os . casais, mas com a civilização moderna o intercâmbio entre os casais aumentou e estes procuraram cada vez mais tempos de isolamento. A cása é o lugar em que o casal se encontra a sós. E, na casa, o quarto ocupa lugar especial na vida do casal. O quarto do casal era novidade reservada à aristocracia a té o século XVIII e à burguesia até o presente século, mas é o 73 · locaI cada vez mais buscado por todos hoje. Os casais sofrem quando não dispõem de um quarto somente para eles. A medida que a cultura se desenvolve, cria novas exigências de privacidade: . ela cria o desejo de um espaço isolado para pensar, refletir, ler, escrever, dedicar-se à arte, e também para conversar, informar-se, trocar impressões e ex- · penenclas. 'A • A vida privada tem também uma extensão religiosa. Durante milênios a vida religiosa dos povos foi antes de mais nada pública e coletiva. Sempre houve almas · místicas que viviam uma vida religiosa íntima e pessoal. Todavia, foram exceções até a Idade Moderna, quando começou a aparecer um número miaor de pessoas alfabetizadas. Então estas quiseram fazer uma leitura pessoal da Bíblia, fazer leituras espirituais, exercícios de meditação ou oração pessoal. Tudo isso exige silêncio e solidão. Essas pessoas procuraram também nas suas casas um lugar de silêncio e recolhimento. Na prática, poucas pessoas dispõem nas suas casas de um espaço de silêncio e de recolhimento. No entanto, há uma grande aspiração para uma religião mais personalizada, e este ponto de vista precisa ser também levado em conta na previsão das casas, Jesus recomendou a oração feita no segredo da casa. No tempo de Jesus, embora as casas fossem mui· 74 to simples, prestavam-se mais ao silêncio do que as casas dos bairros populares das cidades atuais. Ainda antes do cristianismo, a casa já era também santuário da família. O cristianismo construiu sobre o fundamento das antigas religiões e criou a igreja da casa ou doméstica. A casa virou santuário da Santíssima Trindade. Como sinais visíveis desse santuário, as famílias tinham nas suas casas oratórios, imagens de santos, imagens de Jesus crucificado ou o Sagrado Coração. As imagens e os oratórios eram o centro das orações da família. A tradição da oração em família é muito mais antiga do que a oração personalizada. 5. Construir a própria casa O direito à moradia não quer dizer que todos tenham o direito de receber da sociedade, isto é, dos outros, uma moradia já feita e acabada. Tal direito seria uma imposição insuportável para os cidadãos que "recebem a oferta". Aliás, tradicionalmente sempre foi conside,rado uma honra o jovem casal construir a sua própria casa. Quando as · casas eram muito simples, não era difícil aos jovens reunir ' o material necessário e com a ajuda de parentes e amigos levantar as paredes e cobrir a moradia com palha ou folhas. Uma vez que as casas se tornaralJl. mais elaboradas; exigiram maior variedade de materiais. No entanto até hoje. no mundo popu- lar, se os jovens tivessem acesso a um terreno, poderiam construir a sua casa partindo dos próprios recursos e de seus familiares. Pouco • a · pouco, no entanto, os Jovens também precisam, e vão precisar cada vez mais, da ajuda de toda a coletividade. Esta pode emprestar o que for necessário para comprar ou construir uma moradia simples. Somando-se a isso, uma legislação realmente social pode prever um reembolso a longo prazo, entre 20 e 30 anos. Com o decorrer dos tempos, os casais vão melhorando a sua "moradia". . A sociedade não pode comprometer-se . a ajudar na construção de mansões luxuosas. Todavia, hoje acontece exatamente isso. Os ricos encontram grandes facilidades de financiamento a prazo para a construção de .residências caras e sofisticadas, enquanto os pobres não ·encontram ajuda nenhuma. 6_ Politiea urbana residia nela I Na realidade a construção de moradias é um problema de modelo de sociedade. Na América Latina prevalece realmente um capitalismo selvagem e .exorbitante. Permite-se a especulação quase sem limites de terrenos e imóveis. A valorização rápida dos terrenos e edifícios pennite acumular fortunas '. que são pUros roubos, pois a valo. í:ização é pór justiça devida a toda a coletividade. Todos contribuíram para essa valorização e é injusto que ela caia nas mãos ·de alguns especuladores. Dessa maneira, por causa da especulação, as municipalidades. são paupérrimas e não -podem assumir as tarefas mínimas . de urbanização, muito menos de construção. Os seus limitados recursos são reservados de antemão para a urbanização dos bairros burgueses. A injustiça qa atual política habitacional urbana clama ao ·céu e pede vingança a Deus, pois deixa milhões de famílias pobres apodrecendo em condições infra-humanas. Defende-se um pseudo-direito de propriedade que ·é um direito não de possuir e sim de confiscar a valorização, isto é, o fru(o do trabalho de todos. Infelizmente os· que cometem essa clamorosa injustiça enganam o povo, deixando-o na ignorância dos seus direitos, c conseguem manipular as forças. políticas para que estas definam leis injustas. A atual situação urbana é um exemplo típico e evidente de "violência institucionalizada", porque se trata de leis que levam a praticar roubos de tamanho colossal. A CNBB já lembrou a esse respeito a doutrina social da Igreja, mas nada .mudou, e a nova· Constituição não mudou nada nas injustiças urbanas. I> provável que a Igreja não tenha levantado ainda com . energia suficiente a sua voz profética. A pastoral urbana está insuficientemente '. articulada, não existindo plano de ação constante e prolongada. O ano de 1987 foi proclamado pelas Nações Unidas o Ano Inter75 nacional das pessoas sem-teto. . A Santa Sé associou-se ' a esse ano com um documento especial da Comissão Justiça e Paz: "Que fizeste do teu irmão sem-teto? A Igreja perante a falta de habitações" (27 de dezembro de 1987). Na encíclica SoUicitudo Rei Socialis (30 de dezembro de 1987),. o Papa João Paulo 11 evocou alguns temas desse documento. Diz o Papa: "A falta de habitações, que é um problema de per si muito grave, deve ser considerada como sinal e síntese de 1Ima série de insuficiências econômicas, sociais, culturais ou simplesmente humanas; e tendo em conta a extensão do fenômeno, não ®veria ser difícil convencermo-nos de ' quanto estamos longe do autên.tico desenvolvimento dos povos" (nQ 17) . . Conclusão . Na realidade, os jovens de hoje são capazes de imensos sacrifícios e de. enorme esforço quando se trata de construir a sua moradia . Sacrificamtodos os seus recursos, limitam ,a comida e a roupa, sacrificam seus dias e suas horas de descanso, trabalham gratuitamente para ajudar parentes ou vizinhos durante ' meses e até anos para levantarem uma' casinha muito simples e pobre. Tiram de um salário, que não permite sequer comer de modo decente, escassos recursos para comprar os materiais, tijolo por tijolo, telha por telha, até que depois de tantos esforços conse- 76 guem finalmente ter seu próprio lar. Ficam felizes quando conseguem conquistar um terreno menos insalubre, distante de todos os serviços. O povo faz grandes sacrifícios para ter uma habitação digna ou menos indigna. A sociedade, porém, ignora-o e permanece indiferente. Até quando? QUESTõES para a leitura individuaI do texto ou para o debate em comunidade: . 1. Não seria . justo concluir, a partir do que diz a Sagrada .Escritura, ·que nao se deve atribuir ·um valor demasiado à moradia? Não é este justamente o exemplo de Jesus, os profetas e os santos? 2. Olhando a situaçao de sua Igreja local, de sua própriacongregação, de sua comunidade, que nível de credibilidade pode ser per'Cebido para testemunhar que a moradia é direito humano para todos? 3. O autor apresenta quatro funções maiores para a moradia. Delas, quais as mais urgentes percebidas na sua realidade local? Que ações existem ou podem ser provocadas pela vida religiosa diante dessas necessidades? (1) Cf. ' Elllol, John H., Um lar para . quem não tem casa. InterpretaçAo 80clol6glca da primeira carta de Pedro, Ed. Paullnas, Silo Paulo, 1985. (2) Cf. Thelssen, G., Sociologia dei movlmlenlo de Jesus, Sal Terrae, Santander, 1979. (3) Cf. RegnaulI, Luclan, la vle quotldlanne des Peres du désert en I!gypte au IVe al/lcle, Hachelte, Paris, 1990, pp. 53-64. (4) Brown, Lester R., L'élat de la Planete. 1992, Econômica, Paris, 1992, p. 182. O ·JESUS CRISTO ONTEM, HOJE E SEMPRE . . A centralidade de Jesus torna-se hoje uma exigência muito maior diante da crescente onda de p6s-modernidade. Pe_ J. B.Libãnio, SJ Belo Horizonte, MG "A figura e missão do Salvador foi certamente o centro da Confe· rêncIa de São Domingos. Os bispos latino1.americanos ali se reuni. ram para celebrar Jesus Cristo: a fé e a mensagem do Senbor difundidas por todo o continente. A cristologia foi o pano de fundo da Assembléia, . de maneira que, como primeiro fruto da mesma, o nome de Jesus Cristo, Salvador e Reden~ tor, esteja n6s lábios e no coração de todos os latino-americanos", assim traçava João Paulo li os caminhos para a IV Assembléia Geral do Episcopado latino-americano (Discurso de João Paulo li à li Assembléia plenária da Pontifícia comissão para a América Latina, 14 de junho de 1991). A Conferência de S. Domingos reafirma esta centralidade cristológica. A decisão 'do Papa de pôr a cris· tologia no centro da Assembléia não é, à' primeira vista, óbvia. Paulo VI, no início da segunda sessão do Concílio Vaticano li, propunha aos padres conciliares a eclesiologia como eixo central do Concílio, ainda que naturalmente .. conexao com a pessoa. em mtJma de Jesus, princípio, caminbo e fim. A teologia das missões prefere colocar a "Deus" no centro de suas reflexões. ~ - A centralidade de Jesus parece tornar-se hoje uma exigência muito maior diante da crescente onda de pós-modernidade. Em meio ao esfacelamento dos valores, dos sentidos, das "grandes narrativas", dos pólos fundamentais de referência, reapresentar a Jesus Cristo, não co- . mo doutrina, mas como pessoa, testemunho de vida, evangelizador primeiro e maior, representa esforço de ' resposta. Não se trata, pois, de elaborar uma cristologia a mais. Há tantas. A questão é seguir a Jesus. Milhões e milhões de pessoas, faz dois mil anos, se referem no mais profundo de seu ser a Jesus Cristo e proclamam-se seus seguidores. E esse acontecimento, ao longo des- 77 ses dois milênios, tem assumido, A via do fundamentalismo préem alguns casos, traços dramáticos moderno foi trilhada com tranqüia ponto de milhões desses seguido- lidade ingênua até recentemente. res terem dado sua vida por Jesus, Consiste na imitação de Cristo atraquer sob a forma cruenta do mar- vés de leitura dos evangelhos. Com tírio, quer através do desgaste diá- facilidade se destaca deles um Crisrio de uma vida inteira de consa- . to moralista que transmite uma dougração a Ele no herofsmo da san- : trina moral-religiosa, feita de virtidade. tudes, a serem imitadas por seus seguidores. O pressuposto equivoo número dos que se dizem cris- cado de tal caminho consiste em tãos, por mais que tenha havido julgar os evangelhos como um traprofetas. da morte do Cristianismo, balho historio gráfico de Jesus de permanece estável em números re- modo que os fatos aí narrados tra. lativos e cresce em números ;,abso- duzem literalmente as ações nonílalutos, de modo que para c/ ano tivas de Jesus para todos os seus 2000 as estatísticas prevêem · é){isti- seguidores. Além disso, desconherem 2 bilhões de cristãos. ce-se a distância cultural entre Jesus e nós, de modo que toda cóEssas pessoas, em maior ou mepia se transforma em caricatura. E nor grau, constituíram a Jesus Crisé dado inconcusso da exegese hoje to como norma e modelo· absolutos e da hermenêutica moderna que os de suas vidas e por isso levantam a intrigante pergunta: qual é o evangelhos são uma leitura do Jefundamento de tal fato? que pre- sus .histórico à luz do fato pascal tensão é esta de tão grande monta e em vista dos problemas concreque este homem Jesus se arrogou, · tos de uma comunidade. E somenconstituindo-se norma absoluta pa- te através de um correto exercício ra tantas pessoas? ou, pelo menos, hermenêutica podemos ter acesso a por que tantas pessoas tiveram essa dados fundamentais do Jesus histócoragem de atribuir-lhe tamanha rico e assim encontrar o sentido deles para o nosso contexto. autoridade? I. Perspectivas inviáveis A perspectiva teológica moderna leva-nos, logo de início, a abandonar duas vias através das quais não teríamos conhecimento correto, nem acesso seguro, ao Jesus que, historicamente, está no início desse gigantesco movimento de seus seguidores. 78 o caminho oposto da querigmatização total peca por outro excesso. Desconhece o Jesus histórico e considera os evangelhos como uma criação pura e simples da comunidade de modo que nos fica somente um apelo de certo modo vago de um Deus eniregando seu filho na cruz e deixando a cada um, ou no máximo a cada comunidade, criar seu seguimento sem real ligação com o Jesus palestinense. Passa-se do literalismo fundamentalista a um subjetivismo cristológico, como aliás certos movimentos ligados a . "Jesus revolution" têm mostrado. Jesus constitui-se caminho até mesmo para expenenclas anarqulcas ou psicodélicas, facilmente vinculadas ao mundo das drogas, dos alucinógenos, das "viagens espiritua· listas" . • o • A' , . sencadeou, em seu tempo, um movimento que atraiu multidões; constituindo-se alguns em seguidores mais próximos. A comunidade primitiva, por sua vez, recria com fidelidade e originalidade esse calliÍnho de Jesus, inserindo-se em tal movimento, abrindo-nos .a possibilidade de fazermos o mesmo em nossos dias, a saber, de recriarmos o processo de Jesus para nosso contexto. caminho é, portanto, não imitar . mecanicamente a Jesus, nem 11. O fundamento do seguimento inventá-lo a partir de nossos inteA natureza, a extensão, as exiresses, desejos e projeções afetivas, gências do seguimento de Jesus não mas recriar seu processo, a sua his- se explicam sem uma atitude ativa tória, inserindo-nos no movimento de Jesus de chamar, atrair a si as desencadeado por ele. A expressão pessoas, interpelando-as para segui. "re-criar o processo de Jesus" ex- lo. Por sua vez, tal atitude fundaprime bem a dialética. Ao dizer-se . se em inaudita e incrível pretensão "re-criar o processo de Jesus", quer- de Jesus de colocar ' sua . pessoa, se acentuar a continuidade com o através de gestos, atos, palavras, Jesus da história. A existência de parábolas, em íntima conexão com algo histórico passado é normativo, ci Reino de Deus. E tal pretensão deve ser aceito, impõe-se. Ao dizer- não nasce a não ser de uma prose "re-criar", propõe·se sublinhar a funda consciência de Jesus em re- ' novidade da .forma do seguimento lação a Deus. O seguimento de Jeque não pode ser nenhuma cópia sus funda-se, em última instância, literal, mas deve ter a originalida- em três realidades: fato-apelo de de criativa que cada contexto his- Jesus a segui-lo, sua vinculação tórico novo exige '. Renuncia-se a com o Reino e sua autoconsciência uma reconstrução perfeita historio· filial. gráfica de Jesus para concentrar-se O apelo de Jesus é retratado nos no .conhecimento de seu "processo" histórico e seu significado para nós evangelhos de diversas fonuas, ora hoje, de .modo que ele pode ser mo- a algumas pessoas em particular (Mc 1,17-20; 2,13-1,7; Mt 8,21s; delo e norma para o seguimento. Tal processo' deve ser descoberto Mt 10,1-4) ora dirigindo a todos por uma leitura dos evangelhos tal em forma de mandato do Cristo como .nô-los deixou a comunidade glorioso. (Mt 28,16-20). A força primitiva através do gênero literá- do apelo de Jesus lhe advém da esrio da pregação (Kerygma). E as- treita ligação que ele estabelece . sim a entrada em cena de Jesus de- com o Reino de Deus. 79 Nenhum fato parece tão amplamente afirmado pelos sinóticos que a relação de Jesus com o Reino. Jesus inicia sua vida de ministérios proclamando: "completou-se o tempo. · Chegou o Reino de Deus" (Mcl,15).A fonte Q conserva, pelo menos 10 vezes, a ' expressão "Reino de Deus" (do Pai) a brotar diretamente dos lábios de Jesus. Exceto uma vez (Mc 15,43), a expressão em Marcos é sempre colocada na boca de Jesus (13 vezes). Em Lucas e Mateus a ex. pressão aparece. ainda mais vezes sob diversas formas. Em todo caso, salta aos olhos a relevância absoluta que os sinóticos dão ao anúncio do Reino de Deus por parte de Jesus e isso leva os exegetas a considerarem um · inequívoco dado do Jesus palestinense. A proximidade do ' Reino está vinculada com a presença de Jesus (Me 1,15; 9,1; Lc 4,43; Lc 11,20; 10,18; 7,28; 17,20s). De fato, as ações de . Jesus de expulsar demônios, de acolher pecadores ao · banquete, de anunciar aos pobres e cativos a boa nova, de curar doentes, de ressuscitar mortos estão ' a indicar essa presença do Reino ' através de sua pessoa. o judeu contemporâneo de Jesus, apesar das diversas concepções de Reino, entendia muito bem que se anunciava uma intervenção única, ., histórica, concreta de Deus em fa. vor · do povo de Israel, A profunda vinculação de Jesus com essa ação de Deus pôde en80 contrar diferentes · interpretações entre s'eus coetâneos. Uns diziam que ele realmente estava louco (Me 3,21), outros que estava possuído do demônio (Mt 11,18; Mc 3,30; Jo 7,20; 8,48 . 52; 10,20), outros suspeitavam que tal pretensão devia ' vir de umil autocônsciência única e original em relação .a Deus. Ninguém, de fato, poderia associarse .de maneira tão radical ao Reino de Deus, como Jesus o fez, sem deixar de revelar uma autoconsciência de vinculação profunda à ação de Deus na história e, no fio. nal das contas, ao próprio ser de Deus. . A autoconsciência de Jesus, fundamento último de sua vinculação ' com o Reino, e, portanto·, de sua pretensão de ter seguidores incondicionais, aflora nos evangelhos sobretudo através de uma autoridade - Exousia - soberana e inapelável. Jesus não a escuda nem pretende legitimá-Ia em outras fontes que ele mesmo. . O povo de Israel estruturava sua consciência coletiva em tomo ao tripé sagrado da religião: lei, templo e sábado. Todas suas práticas encontravam aí sua legitimação. Pois na 's ua base estava a vontade absoluta e inquestionável de Javé. Sem precisar explicitamente . dizerse "Filho de Deus", Jesus se com- ' portou em relação a essa tríade sa' grada com tal autonomia e autoridade que só é explicável por uma consciência de igualdade em relaçao ao poder instituidor da religião, Javé. Em relação à lei, é apresentado por Mateus como o grande novo Moisés, que redimensiona todo o Antigo Testamento: "Tendes ouvido o que foi dito aos antepassados. .. mas eu vos digo" (Mt 5,21 passim). Em sua conduta pessoal recolocou as leis e os costumes dentro de outro marco: a justiça e a misericórdia em relação aos homens, afirmando-se assim superior a eles e, de modo especial, ao próprio sábado (Me 2,27s; Le 13,10-16; 14,1-5). Afirma-se também superior ao templo (Mt 12,6) . Esta autoridade manifestou-se em inúmeros outros setores e fatos, expulsando demônios (Mc 1,23ss; 5,1ss; 7,25ss; 1,34ss, etc.), curando enfermos (Me 1,32ss, etc.), tomando refeições com pecadores . (Mc 2,15), perdoando pecados .(Lc 7,485, Mt 9,6), mostrando-se livre diante dos vínculos familiares (Mt 8,215, Lc 9,59; Mc 6;4; Le 2,49; Me 3,31-35), assumindo posição firme e clara na presença das autoridades religiosas (Me 14 ,60ss), políticas (Me 15,2-5; Lc 23,4-12; Jo 18,29-38), mostrando-se soberano diante dos principais grupos religiosos e políticos do seu tempo, sem deixar-se absorver por nenhum deles. Alguns exegetas vão mais longe (J. Jeremias, van 'IerseI) ressaltando como Jesus revela sua autoconsciência de Filho em relação a Deus, quer usando a expressão filial "Abba" ao :~,referir-se a ele, quer traduzindo espontaneamente de passagem sua condição de Filho em textos cuja intenção, principal e'ra outra (Me 13,32; Mc 12,6ss; Mt 11 ,25ss/ / Lc 10,21s). Assim, 'pois, o fundamento do seguimento de Jesus remonta, em última análise," a sua filiação em relação a Deus, que o situava em posição única e original diante do Reino de Deus e que lhe autorizava e legitimava a iniciativa de chamar, no início, algumas pessoas, e depois a 'todos para virem após ele. Que significa segui-lo? 111. Seguimento como recriação do processo de Jesus Jesus é paradigmático. Não no sentido de uma visão moralista, que procura imitar-lhe, sem mais, as virtudes; nem numa perspeeti-• va fundamentalista, que busca copiar-lhe as ações; nem numa dimensão puramente intimista, que reduz o seguimento a mera interiorização de atitudes espirituais. Seguir a Jesus é conhecer-lhe o processo histórico-espiritual e recriá-lo no nosso contexto. Estabelece-se verdadeiro círculo hermenêutica: só conhece a Jesus, seguindo-o; s6 se segue a Jesus, conhecendo-o. o processo de Jesus Seguir a Jesus é refazer-lhe o caminha. Ele é caminho no sentido de ter-nos precedido, trilhando ele um caminho de tentações_(He 4,15; Mt 4,1-11; Mc 14,36), aprendendo a obediência por meio dos sofrimentos (He 5,8). A estrutura formal do processo de Jesus necessita ser apropriada por nós num outro contexto material. E essa estrutura emerge do conhecimento do caminho , que o próprio Jesus teve de palmilhar. O seguimento de Jesus permite ser entendido didaticamente em três momentos. · 19 momento: o anúncio de um Reino iminente e universal nos valores. O centro da vida de Jesus é o Reino de Deus. Em relação a ele se dá o processo de Jesus. Todas suas energias, toda sua vida, todo seu coração, todo seu ser estavam voltados ao anúncio desse Reino. Entregou-se totalmente a essa missão, conjugando sua experiência única e original de Filho com os elementos que a tradição e a cultura judaica lhe ofereciam. Sua autoconsciência tematizava-se com as mediações culturais presentes 110 momento histórico em que vivia. Assim pôde ele embalar-se na expectativa <;\e uma implantação imediata e gloriosa do Reino em favor de Israel. Para af convergiriam todos · os povos e a ação salvífica (Reino de Deus) de Deus se manifestaria aí em todo o esplendor (Is 60). O seguimento foi, nesse momento, proposto a alguns com a finalidade de associarem-se a ele nessa missão. Vocação particular em· vista de valores universais: a realização plena ' do Reino. O se• • gUlmento tnscreve-se nessa perspectiva do anúncio do Reino, urgente e radical. Não há tempo a perder. Tudo se relativiza diante dessa missão. z9 momento: crise. Com este "antes", fruto combinado de sua consciência filial e me82 . diações culturais religiosas da tradição judaica, Jesus enfrenta a tarefa concreta do anúncio. Deparase com o cotidiano do Reino. E os acontecimentos vão-lhe questionando muitos elementos desse dado prévio sobre o Rejno . . A pregação em Nazaré, que·. começara com esperanças promissoras, termina no mais rotundo fracasso, apenas escapando ele da morte (Me 6,6// ) . As multidões que o seguiam (Me 3,7; 5,24 e passim) começam a afastar-se dele (lo 6,60.69), rejeitam-no diante de Pilatos (Mc 15,13) deixam-no no abandono extremo . do horto (Me 14,50). Jesus começa a perceber que o Reino de Deus . passa por ·sua rejeição, sofrimentos e finalmente · morte. Tal descoberta, que começa a fazer pouco a pouco, coloca-o . num processo de crise e reestruturação de seu pro-. jeto sobre o Reino. Capta no cotidiano dos acontecimentos o absoluto de Deus que o questiona. • Sua idéia de Deus tem de sofrer pro- . funda tr&nsformação para terminar aceitando que Ele não interfere na trama das liberdades humanas que urdiram sua morte. De novo, a epístola aos hebreus interpreta com profundidade essa tentação de Jesus ao referir-se a .. suas petições e súplicas com veementes clamores e lágrimas" a fim de que Deus o libertasse da morte : E Deus o ouviu (He 5,7) de maneira muito estranha, não evitando a morte de Jesus, mas, pelo contrário, movendo-o a aceitá-la em obediência ao Absoluto de Deus no cotidiano dos acontecimentos. De modo teológico, os sinóticos reconciliar a paixão de Jesus com resumem todo esse processo de · cri- . a tradição messiânica. Teologicase, por que passou Jesus, sob a for- mente a transfiguração no Tabor ma de três tentações. Aí se retra- significa tal reconciliação,. quando tam os messianismos vigentes aparecem Moisés (lei) e Elias, (proprofético (tentação da transforma- fetismo) que "falavam de seu êxoção da pedra em pão), sacerdotal do que ele ia cumprir em Jerusa(descer do pináculo do templo) e lém" (Lc 9,31) . Está realizada a polítiCo (posse de todos os reinos), reconciliação da tradição maravique incluem todos um elemento lhosa dos dois· grandes êxodos do maravilhoso e milagroso, enquanto povo de Israel Egito e Babilô' o caminho de Jesus será através de nia ,símbolos da ação de Deus seu abatimento, humilhação e mor- na história - Reino de Deus te. na cruz. De fato, as tentações com o novo "êxodo", a paixão e acompanharão a Jesus até sua mor- morte de Jesus. Esta é a realização te. No horto ainda pede ao Pai do. Reino . E Jesus e a comunidaque o livre do sofrimento, na cruz de só puderam chegar aí através de ainda uma vez mais interpela o verdadeiro processo de recriação. Pai, para finalmente entregar-lhe o Assim Jesus é paradigmático no espírito. Com efeito, Jesus, com o . "antes" das tradições judaicas que seu processo. Inicia-o anunciando tinha, teve de recolocar sempre pa- o Reino dentro da tradição gloriora si a pergunta pela vontade de sa judáica. Confronta esse "antes" (sua autoconsciência filial e a conDeus, de recriar o caminho, defrontando-se com a novidade de cepção de Reino do judaísmo de Deus continuamente a emergir dos e"ntão) como Absoluto de Deus que emerge do cotidiano: o fracasso de acontecimentos. sua pregação, a perseguição, a ameaça de morte, a iminência da 39 momento: aceitaçao de que o Reino passa · pelos seus sofrimentos morte. Recria, reinterpreta continuamente esse _I antes" num proe morte. . cesso conflitivo até a morte, de A crise obrigou Jesus a recriar modo não-previsto, não-predetero caminho. E essa recriação con- minado, mas nascendo do real, até sistiu fundamentalmente em acei- mesmo aleatório, no qual descobre tar que o , Reino se realizaria atra- o Absoluto do Pai, do Deus do Reivés· de sua paixão e morte, reinter- no e da presença do Reino de pretando assim as tradições judai- Deus. Portanto o processo de Jecas. Os evallgelhos mostram tal fa- sus se constrói de um Absoluto (a to buscando" nas tradições judaicas Vontade de Deus, o Reino) e de e ' encontrando na figura do Servo um relativo (o antes até então " sofredor do Segundo Isaías e na do construído). O Absoluto é paraprofeta perseguido elementos para doxalmente experimentado no relaessa releitura. .Assim consegue-se tivo e aleatório do cotidiano de 83 maneira conflitiva, processual, histórica. IV. Elementos estruturais do seguimento A partir da estrutura geral do processo de Jesus, percebem-se elementos constantes no apelo ao se· guimento por parte de Jesus, tal como nô·lo descrevem · as comunidades do Novo Testamento. a. Realismo . O seguimento não era uma expe• riência desconhecida no mundo judaico nem grego, Mais próximo a Jesus, conhecia-se o seguimento a um rabi, como a um mestre, procurando-se imitá-lo, de um lado, e, doutro, aprendendo-se dele os me, andros profundos da Torah, Por isso, nesse seguimento a tarefa principal do mestre era explicar a Torah a seus discípulos, filiando-se a alguma escola de interpretação ou criando outra. O seguimento de Jesus não se deixa compreender dentro desse esquema. Antes, Jesus opõe-se à casuística farisaica e rabínica (Mc 3,1-51/ , etc.), permite a seus discípulos desconhecê-la (Mt 15,2; Lc 6,1). Os evangelhos insistem numa vinculação realista com expressões bem concretas com a pessoa física de Jesus e não tanto com sua doutrina. Seguir a Jesus supõe estarcom-ele, andar com ele, comer e beber com ele, ouvi-lo, acompanhálo por onde passa, freqüentar com 84 ele a~ festas, passar as · mesmas necessidades que ele, observar-lhe os de noite . . Percorgestos de dia rendo os evangelhos salta aos olhos o fato de 11m Jesus ·sempre em movimento, indo de uma cidade a outra; o camínho é sua casa (Mt 8,20). Convoca as pessoas · a segui-lo caminhando. Ao Levi sentado, ordena que se levante e se ponha em movimento (Me 2,14), Seguir a Jesus é entrar literalmente na sua vida nômade, sem casa, de pregador itinerante, vivendo de esmolas e sofrendo a insegurança de ter como teto o firmamento, como casa o pó da estrada, Não se trata de aprender as regras da comunidade de iniciados .(Qumran), nem de cumprir leis e normas codificadas (fariseus, rabinos), nem de fazer parte de um grupo guerrilheiro (sicários, zelotas), nem de consagrar-se às sagradas funções do templo (sacerdotes), mas de compartilhar a vida e o destino de Jesus. Nenhum rabi exigiu de seus, discípulos este seguimento tão próximo, tão vinculado à sua pessoa, como Jesus. Jesus participa a eles e com eles de uma mesma experiência. Tal seguimento exige deles fé · na sua própria pessoa. Daí que seguir e crer em Jesus faz uma unidade indissolúvel. 'É crendo que se segue a Jesus, e se crê nele, seguindo-o, Toda ulterior interpretação da comunidade, especialmente a de São Paulo, que traduz o seguimento de Cristo em categorias . . . ., mais espaCiaiS que temporaiS, mais ontológicas que históricas, ao usar as expressões "viver para o Se· nhor" (R 14,8), "pertencer ao Se- e nhor" (R 14,8), "viver é Cristo" simplesmente precede com seu ca(Fil 1,21), "Cristo vive em nós" minho,. abre o caminho para seus (Gal ' 2,20) "ter os mesmos senti- seguidores e percorre até o fim o mentos de Cristo" (Fi! 2,5ss) "re- processo que lhes pedirá recriar. vestir-se do Cristo Jesus" (Gal 3,27), "imitar a Cristo" (1 C 11,1; c. 'E xigência de conversão Tes 1,6) e inúmeras outras, não o apelo de Jesus para segui-lo é pode ser entendida fora do horizonte realista dos evangelhos. Do · feito à liberdade das pessoas. O contrário, sucUmbe-se à tendência jovem rico não aceita, co.nfirmangnóstica, viva no tempo de Paulo do essa dimensão do chamado (Mc' 10,22). Judas ' inicia-o e termina e até hoje em ·curso, e aos fanatismos mistéricos e carismáticos, sem- traindo o Mestre _ A liberdade do .. seguidor continua durante todo o pre à espreita. tempo. . b_ Iniciativa de Jesus Não se trata de um chamado vazio, sentimental, de pura ligação Os evangelhos construíram um um amigo. Exige de. quem afetiva a esquema simples mas significativo . para traduzir essa experiência do o acolhe o processo contínuo de seguimento. A iniciativa parte sem- conversão que se manifesta numa mudança radical de vida. E o sipre de Jesus. Ele passa (Mc nal da mudança é a liberdade efe. 1,16.19; 2,14), vê uma pessoa tiva (Mc 1,18.20; 2,14), a dispo(Mc 1,16.19; Jo 1,47), crava nela seu olhar (Mc 10,21) para de ma- nibilidade total, a abertura para o neira firme e sem rodeios dizer a. futuro. Este tipo de exigência . de . palavra-chave: "vem e segue-me" · conversão no sentido de abertura (Mc 1,17; Mc 2,14; Mc 10,21). A ao que virá corresponde bem à trainiciativa aparece também na ma- dição judaica religiosa _ De fato, neira .clara como não aceita algu- Israel conheceu uma religião de nômades nos seus inícios, vivendo da mas ofertas (Lc 8,38; Lc 9,57-62) promessa. Mas mesmo depois que ou impõe logo as condições. o povo se sedentariza, a religião O olhar de Jesus revela a total conserva essa dimensão de espegratuidade de sua escolha. Ao for- rança e confiança nas promessas de mular o chamado, confere à liber- Javé, que sempre está a desinstalalf dade de decisão do interpelado se- o povo. riedade definitiva e fundamenta-lhe As exigências de conversão são a possibilidade do seguimento. Jesus cria com sua iniciativa pessoal concretas, históricas. Jesus assume para as pessoas a oportunidade de a pessoa onde está e impulsiona-a poder segui-lo, não dispensando- para frente. Quem já está avançalhes a decisão, não substituindo- do na virtude como o jovem rico, lhes o risco do seguimento . Ele Jesus exige-lhe um passo à frente: 85 vai, vende o que tens, dá-o aos citação. Jesus não discrimina ninpobres e terás um tesouro no céu guém . . Não é a sitUação de bondadepois, vem, segue-me" (Mc 10,21). de ou justiça das pessoas que lhe A Levi, envolvido no telônio com determina a escolha, mas a sua. abseus negócios, Jesus o arranca daí soluta liberdade. Escolhe seus secom um seco "segue-me" (Mc guidores entre justos e pecadores, 2,14). Aos pescadores, pede-lhes entre letrados e rudes, entre casaque abandonem as redes e barcas dos e solteiros, entre jovens e mais (Mc 1,18.20) .e que o sigam. Ao maduros. Não aceita excusas para que quer cumprir o dever sagrado o chamado (Lc 14,16~24). Usa exde sepultar seu pai, impõe-lhe se- pressões bem duras para expressár gui-lo de preferência ao cumpri- esse caráter absoluto e. incondicio. mento desta obrigação familiar (Lc nal: odiar pai e mãe {Lc 14,26; 9,60). A maneira como Jesus si- .mesmo levando em consideração· o tua a questão da conversão, mesmo hebraísmo) ,perder a vida (Lc 9,24; que dentro de um contexto sócio- 17,33), deixar os mortos sepultar cultural anterior à presente ·dis- os mortos (Mt 8,22), vender os cussão da precedência ·· da . conver- bem~ (Me 10,21), deixar tudo (Lc são individual em relação à trans- 5,11 .28) , abandonar a profissão . formação social ou vice-versa, ofe(Mc 1,18; 2,14), não olhar para rece elementos válidos para ampliar trás (Lc 9,62). No fundo essas exo horizonte do problema. Jesus r~ pressões querem significar que o cria a situação do indivíduo, fazen- chamado de Jesus se propõe como do-o justo pela força de sUa palauma alternativa clara, sem meios vra santificadora conversão in- termos, entre comprometer-se com dividuale, ao mesmo tempo, ele ou contra ele (Mt 12,30), a farompe as barreiras que o desclassivor de Deus ou do dinheiro (Lc ficavam religiosa e ·socialmente, in16,13; Mt 6,24), ganhar ou perder serindo-o entre seus seguidores conversão social ,mudança de a vida (Lc 9,24). Além disso, trainversão dos va. . estrutura. O homem se faz justo . ta-se de verdadeira para recriar a justiça, e recriando lores do meio cultural judeu, ao a justiça se faz justo. E no caso destronar a riqueza de sua condição do seguimento, ele se justifica, se- . de bênção de Deus (2 Cr 32,27ss; guindo a Jesus; e seguir a Jesus, Gn 13,2; 26,12s; 30,43) para mosé entrar no movimento t.ransforma- trar-lhe a face negativa de impedidor da realidade em vista da rea- mento para ·e ntrar no Reino (Mc 10,23), propondo o valor oposto da lização do Reino. pobreza (Mt 5,3; Lc 6,20) e exi_ gindo-a para o seu seguimento (Mc d_ Caráter absoluto 10,21). Propõe a perda de tudo e Incondicional como mediação de salvação (Lc Este aspecto já apareceu sob di; 9,24). O homem novo que . assume versos ângulos, mas merece expli- o seguimento de Jesus não se consM 86 trói a partir das potencialidades imanentes do homem velho, mas é recriado pela graça. Jesus introduz ruptura na vida das pessoas e não uma simples superação dialética, em que se sintetiza o passado do homem velho coni as exigências do homem novo. Por isso, Jesus não se contenta com a boa intenção (Mc 10,17), nem com a justiça dos fariseus (Mt 5,20), nem com a simples jaculatória (Mt 7,21), mas exige a disposição de "arrancar o olho· (Mt 5,29) ,de "cortar a mão· (Mt 5,30) ; O modelo . proposto para esse seguimento é a· própria misericórdia (Lc . 6,36) ou perfeição de Deus (Mt 5,48). Jesus ..presenta-se como caminho . definitivo para o Pai, como sentido absoluto e por isso impõe exi, gências de tal natureza abrangentes que seus seguidores devem reproduzir em si sua própria existência. Chama-os . simplesmente para segui-lo, sem mais, sem propor programas, motivos, projetos. O projeto é sua pessoa (Me 2,14; 10,21), introduzindo as pessoas na sua própria insegurança (Mt 8,20; Lc 9,57). A miséria física ou espiritual das pessoas não é para Jesus nenhuma impossibilidade intransponível. · Os seus milagres revelam e simbolizam a possibilidade de sua superação: a doença para a saúde, a mQ!1e para a vida, o pecado para ó / perdão. O chamamento de Jesus é absolutamente aberto, incondicional e sem limites. Manifesta, em última análise, o próprio mistério de Jesus. Em definitiva só Deus, pode fazer tal apelo que não admite ' condições de nenhmua classe e que está aberto a qualquer eventualidade e risco. O caráter absoluto aparece também na exigência de que "se renegue a si mesmo" (Me 8,34). Ora tal verbo é usado no caso oa negação de Pedro (Me 14,30.31. 72) e na passagem do dia do juízo a respeito dos que renegaram a Jesus ,(Lc 12,9). Isso significa que devemos, para seguir a Jesus, ter a mesma atitude em relação a nós mesmos que Pedro teve no ·momento da negação , ou Jesus terá ·no dia do j1,lÍZo para os que o renegaram: total , desconhecimento e liberdade diante de nossos interesses, . egoísmo, comodidades, etc. Numa palavra, renunciar-se significa decentrar-se para centrarse em Jesus. e. RelaçAo com o Reino , Se, de um lado, é verdade que Jesus chama as pessoas com um "segue-me", "vem após mini" (Mc 2,14; 10,21) seco e. sem rodeios, sem propor programas e doutrinas . a serem aceitos, doutro, ele relaciona seu convite com a realidade do Reino, com a missão do anúncio, com a tarefa ,de "pescadores de homens" (Mt 4,19; Me 1,17; Lc 5,10) . A vida e o destino de Jesus vinculam-se indissoluvelmente com o 'Reino. Jesus anuncia-o em palavras e gestos. Realiza a justiça, não distributiva nem• vindicativa, ' mas criativa, isto é, oferece aos ho87 . mens uma situação nova de justiça . pobres. O seguimento de Jesus nespessoal e de transformação da rea- sa perspectiva coenvolve ·necessalidade através de sua palavra e riamente, numa sociedade de clasatos. Por eles manüesta seu poder ses em conflito, perseguições e até de criar, a modo de ensaio e de morte. anúncio, uma situação onde os ceNessa relação com o Reino, apagos vêem, os surdos ouvem; os corece, portanto, o aspecto absoluto xos andam, os leprosos ficam limpos, os mortos ressuscitam, os en- e relativo do processo de Jesus. demoninhados se libertam e aos po- Enquanto caminho de Jesus, Icom bres é anunciada a boa nova da sua tradição javista, nas condições libertação. O seguimento repete ou sócio-culturais e políticas da Pamelhor recria tal situação, postu- lestina, marcado pela vocação' de lando um compromisso ' com essa Messias, em relação íntima e única mesma causa. Jesus realizou-o atra- com Deus Pai, iniciando-a numa vés dos sofrimentos e morte. Os perspectiva de iminência de cumseguidores são convidados a fazer primento do Reino, dentro da pero ··mesmo (Mt 10,38; LcI4,27; Mt cepção sempre crescente da inevi16,24; Mc 8,34). Essa conexão na tabilidade dos sofrimentos e da vida de Jesus e, portanto também morte violenta, ele é histórico, rena estrutura . do seguimento, entre lativo, único, inimitável. Mas, en. a missão pelo Reino e os sofrimen- quanto está em causa o Reino de Deus, se fazem necessárias mediatos, postula, em forma de exigência, uma :!titude de empenho e de ções históricas concretas, em atitude de profunda disponibilidade, coragem dianté dos fracassos, das em vista da recriação da justiça perseguições e da própria possibiatravés do empenho eficaz e da lidade da morte conflitiva. . . aceitação do sofrimento, arriscandoNa vida de Jesus, os sofrimentos se em benefício dos pobres, o ca. e persegUlçoes se seguem · a 'uma minho de Jesus é absoluto, norma•• • primeira etapa de sucesso na mis- tIvo, ImperatIvo. são do anúncio do Reino. A eficácia missionária cede lugar ao silên- V. Recriar o seguimento no contexto de América Latina cio da resistência nas atribulações. O cristão do seguimento é chamado Ser cristão na América Latina é a empenhar-se na · eficácia pelo Reino, contando, porém, com ' as seguir a Jesus Cristo, num contexpossibilidades reais de perseguição, to de dominação e movimentos de já que, como Jesus, privilegia os libertação. Nessa perspectiva, dois pobres. Em outras palavras, pensa aspectos parecem fundamentais: . o a recriação da justiça a partir da caráter processual e conflitivo. Não experiência . de injustiça praticada existe nenhuma forma acabada do . contra os pobres e . por isso ele a segUImento e por .ISSO a conversa0 entende em vist:! da libertação dos exigida por ele não acontece .. se- - 88 mel pro semper", mas está em contínua mudança, tendo como referência o Reino (caráter proces· suaI). E o fato da existência dos pobres, coletivo e em forma maciça, revela uma situação de conflito Qbjetivo e a opção por eles pro. 'voca necessariamente uma - sltuaçao subjetiva de conflito para quem a faz (caráter conflitivo). de resignação diante do próprio destino; um Cristo-criança protegido : pela Virgem, que incentiva . um seguimento de dependência e busca de apadrinhamentos; um Cristo monarca · celestial deslumbrante, que oferece aos poderosos o caminho do sel)horio e aos oprimidos a via da submissão; um Cristo espiritual e distante, que leva a entender o seguimento como uma atividade interior, individual, desligada da história; um cTisto de poder mágico sobretudo presente na hóstia, que permite um seguimento ansioso por milagres que resolvam os problemas sem as mediações do esforço e da luta humanos_ . A situação de urgência, de miséria, de opressão calamitosa dos pobres exige um compromisso ativo com a justiça recriativa. O nível de oposição das forças dominantes é de tal dimensão que freqüentemente a ação se resume na resistência, na constância, na esperança. O amor-eficácia e o amor· sofrimento que na vida de Jesus se A tarefa positiva deram como que em dois momenRecriar positivamente o procestos sucessivos, na A . . Latina se concretizam · simultaneamente. Por so de Jesus na A. Latina implica, causa da eficácia · da transformação antes de tudo, perceber na vida e se sofre e o sofrimento se faz en- no destino de um povo pobre a me. diação encarnatória de Jesus. ~ em tão eficaz. relação a este povo que se dá o seCbamados a recriar o processo guimento de Jesus, de modo que o de Jesus através de ação positiva pobre, mediação do seguimento, re: pela justiça recriativa em favor dos vela a anterioridade e gratuidade pobres e desde eles, encontramo- de Deus que se oferece presente na nos diante de uma tarefa negativa face dele _ Em termos soteriol6gie outra positiva. cos, o pobre se toma na A. Latina mediação objetiva de salvação_ A tarefa negativa Há uma originalidade na presenA tarefa negativa consiste em ça do pobre no seg~imento de Jecorrigir as deturpações das imagens sus em relação à posição tradiciode Cristo existentes em nossa tra- nal de cuidado dos pobres de todição religiosa, que, por sua vez, dos os tempos por · parte dos criscondicionam seguimentos ·de· Jesus tãos _ Com efeito, o pobre não é deformados. De fato, a piedade po- simples término da earidade do se' pular conhece um Cristo vencido e guidor de Jesus, mas, antes de tu" · humilhado que gera um seguimento do, ele é um amado de Deus _ Há 89 lima ação partidária de Deus em nifica comunhão de destino com favor do pobre, tal como Ele a ma- ele. nifestou em relação a Israel nos O seguimento de Jesus ao lado . momentos de . opressão e tal co- · da caminhada do povo pobre só é mo a revelou Jesus, identifican- possível graças à experiência espido-s.e . com os marginalizados (Mt ritual, mística de Deus na face do 2S ,40.45). Essa identificação de pobre e da identificação de Cristo Jesus com os pobres leva o segui- com ele. Como a comunhão com dor de Jesus a entender o seguimen- o destino de Jesus não termina na . to a partir do compromisso com os cruz, mas na ressurreição, este sepobres, oprimidos, explorados, pri- guimento de Jesus ao lado do povo vados de esperança e colocados co- . pobre, por maiores que sejam os ' mo rebotalho da humanidade. Nis- fracassos intermediários, terminará so, .ele reconhece o caminho do na certeza da vitória da ressurrei- · justo humilhado e exaitado, do . ção, da glorificação desse povo. E servo sofredor, figura com . que Je- cada vitória na história concreta é sus (ou a comunidade) se identi- já uma antecipação da vitória fificou. Esta categoria serve · também nal. Nisso o seguidor de Jesus enpara interpretar a caminhada de contra-se em situação privilegiada. nosso povo pobre e nosso segui- Pois nas vitórias do povo vê a anmento junto a ele, já que tal com- tecipação da libertação definitiva, , promisso numa sociedade confliti- nos fracassos momentos .mtermeva necessariamente Implicará hu- dios que o associam ao destino de milhações, fracassos, derrotas, so- Jesus: sofrimentos que conduzem frimentos, cruzes, martírios. à vida, à ressurreição. Mesmo caPerceber tal caminho · junto ao minhando nas incertezas da histópovo como seguimento de Jesus é ria, o seguidor de Jesus num congraça e liberdade e não dedução de tinente de opressão terá sempre nenhuma reflexão política, nem es- uma palavra de ·esperança, já que tratégia revolucionária, nem fruto Jesus o precedeu, abriu-lhe camide categorias sócio-analíticas. Tra- nho, percorreu-o até o fim: a morte ta-se fundamentalmente de inicia- coroada com a vida da ressurreição. tiva absoluta do Senhor que nos Seguir a Jesus é recriar-lhe o põe ao lado de sua cruz, ou mais processo em outras condições hisexatamente,. do Pai que nos convi- tóricas. O processo de Jesus foi da a estar ao lado de seu filho na encontrar no cotidiano o apelo do mesma vida e no mesmo destino. Absoluto de Deus que o levou a Pois se se tratasse de um horizon- reformular continuamente seu prote meramente político, a dimensão jeto do Reino e assim ir realizando de cruz, de morte, de martírio não esse Reino. Processo que o levou teria sentido. Não passaria de fra- a entender e vivenciar que tal reacasso político, enquanto na pers- lização passava pela mediação da pectiva do seguimento de Jesus sig- opção· pelos marginalizados e pela 90 cruz da perseguição . Mas a última palavra sobre esta história não foi dada nem pelos sofrimentos, nem pela morte, mas pela força ressuscitadora do Pai. ria pessoal dentro; da ' vid(,J religiosa? QUESTõES para a leitura individual do texto ou para o debate em comunidade: 2. Dentro de unia lillha de formação e pastoral vOCQcional, que elementos estruturai~ do seguimento de Jesus ontem, ho;e e sempre, você crê devem ser valoriladl» preferenCialmente? 1. Seguir a Jesus é refazer-lhe o caminhO.. Didaticamente o autor apresenta três momentos desse processo. Relendo estes momentos, como você os percebe na sua histó- 3. Que ,relação pode ser percebida entre o seguimento de Jesus na América Latina e o mundo dos pobres? Como a sua comunidade religiosa percebe essa. tarefa? INDICAÇAO BIBLlOGRAFICA J. Sobrlno, Jesus en América latina. A, Schuklz. Nachfolgen und NachahSu significado para la fe y crlslologfa, ' men. Studlen Obar das Verhãltnls der San Salvador, UCA, 1982, pp. 153-162. 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O 91 A VIDA RELIGIOSA NO DOCUMENTO DE SANTO DOMINGO LEITURA À LUZ DE HB 13,8 e LC 24,13-35 Cristo abriu, à comunidade cristã, um caminho novo e vivo .. Ele é pioneiro. fi precursor e consumador . da caminhada de fé . .D4 inicio. Corre à frente, realiza e leva a cabo. Pe. Francisco Taborda, SJ. Belo Horizonte. MG Quem compulse o Documento de Santo Domingo (= DSD), terá certamente dificuldade para uma leitura global que lhe mostre uma unidade interna profunda. Ele parecerá à prhneira vista uma "colcha de retalhos", onde se procurou falar sobre os mais diversos aSSImtos, mais ou menos relacionados com o tema central, mas não hou: ve a preocupação nem o tempo necessário, menos ainda a metodologia adequada, para escrever um documento coerente que facilitasse .0 trabalho do leitor _. Um documento que não é resultado de uma discussao, se presta pouco para smteses _ Tanto mais se faz necessário descobrir chaves de leitura para que se possa compreendê-lo e assimilá-lo . cabalmente _ Essas chaves - 92 . de leitura serão dois textos bíblicos . de importância primordial na inspiração da Conferência: Hb 13,8 e Lc 24,13-35. o primeiro ·passo da presente reflexão será mostrar a necessidade de chaves de leitura para abordar o DSD e os critérios para sua eg· colh ll _ A seguir serão propostas as duas chaves bíblicas de leitura, oferecidas pela própria Conferência _ Num terceiro momento se lerão as refetênciasdo documento à Vida Religiosa sob a luz dos dois textos bíblicos, procurando levar-se em consideração também outras passagens do DSD não estritamente· relacionadas com a Vida Religiosa, mas capazes de iluminar nosso tema. 1. A NECESSIDADE DE CHAVES DE LEITURA o trabalho de procurar "chaves de leitura" é tanto mais necessário quanto mais movimentada tiver sido a história de um texto. O atropelo da elaboração do DSD, feito às pressas, com uma metodologia ca6tica, sem possibilidade de discussão e reformulação tranqüila em plenário, corrobora a urgência de uma busca consciente de chaves de leitura que não traiam a intenção profunda do Episcopado Latino·Americano. 1 . 1. As chaves de leitura em .primeiro lugar deverão abrir a possibilidade de ler o documento na perspectiva do que classicamente se denominou de "analogia da Ir. O Concílio Vaticano I soube expressar com toda precisão o que isso significa. Em sua Constituição Dogmática Dei Filius sobre .a fé católica, falando da tarefa da razão na pesquisa teológica (ou seja: tratando da função da teologia), diz lapidarmente: "A razão, iluminada pela fé, quando busca com aplicação, piedade e sobriedade, alcança, com a graça de Deus, alguma compreensão dos mistérios, e até frutuosíssima, tanto por analogia com o que conhece naturalmente, como pelo nexo dos mistérios entre si e com o fim último do homem" (JJS 3016/ Dz 1796). São as duas analogias com que trabalha a teologia: a analogia da razão, buscando no tesouro da ex- periência e conhecimento humanos meios para compreender as verdades de fé; a analogia da fé, articulando entre si os dados da reve. lação. As chaves de leitura a serem apresentadas a seguir procedem pela " analogia da fé", procurando perspectivas bíblicas que possibilitem dar unidade ao . documento. No interior dessa leitura; porém, para articular melhor os dados sobre a Vida Religiosa com outros afins, se procederá por analogia da razão. 1. 2. Em segundo lugar, as cha- ves de leitura deveriam situar o documento dentro da tradição ec/esial do Continente, expressa nas Conferências anteriores (especialmente Medellín e Puebla) e solenemente ratificadas por Santo Domingo (= SD). A razão desta chave de leitura está no próprio caráter de ConlerOncia. Na tradição latino-americana conhecemos vários Concílios particulares (na área sob domínio da . Espanha no tempo da Colônia: os Concílios Limenhos e Mexicanos, p. ex.), um Concílio Plenário (em 1899 ·em Roma) e as Conferências (Rio, Medellín, Puebla e agora SD). Cada tipo de reunião episcopal tem suas características pr6prias. Quando se tratou de convocar a Conferência ,do Rio (1955), Pio XII consultou previamente os bispos latino-americanos que preferiram uma Conferência a um Concílio Plenário, por se tratar de uma forma mais dinâmica e mais adaptada às necessidades pastorais, já então . em rápido processo de mudança. 93 Hoje existe, na Igreja universal, mais uma modalidade de reunião episcopal, os Sínodos de Bispos que podem ter caráter mais regional. Caracterizam-se pelo fato de serem praticamente um órgão de assessoria ao Papa, pois o resultado de suas reflexões é entregue ao , mesmo, tiara que, a partir daí, elabore um documento que seja como que resultante do Sínodo. Como não foi essa a denominação dada à reunião de SD, supõe-se que não era tampouco a intenção do Papa ao convocá-la. De uma Conferência deve-se, pois, esperar que responda a uma situação concreta, descubra novos desafios, abra pistas para a ação pastoral e incentive a Igreja toda do Continente a caminhar de olhos abertos à realidade mutável. Ao mesmo temp'o, SD confirmou solenemente seu compromisso com as conclusões de Medellín e Puebla (Ia 290 302 303 Mensagem 4), Vale dizer que, quando não afirmar o contrário, segue valendo o que então foi afirmado, ao mesmo tempo que deve ser levado adiante e aprofundado. 1 .3. Por fim, a busca de chaves de leitura deve levar em consideração que a Conferência de SD tem e bem ' longa uma pré-história - , durante a qual foi amadurecendo a temática, Já nove anos antes, o Papa havia proposto uma "novena de anos" que preparasse a Igreja do Continente para comemorar o Quinto Centenário da Evangelização. Lançou então a idéia da 94 Nova Evangélização, como desafio e tatefa. O CELAM, nos últimos cinco anos, publicou toda uma série de trabalhos preparatórios, alguns reservados, outros de caráter público, que culminaram no Documento de Trabalho (= DT) , precedido imediatamente da Secunda Relatio, considerada o texto que, entre todos, melhor refletiu a opinião do Episcopado Latino-Americano. Devido à metodologia pouco adaptada a uma Conferência (lembrando antes a usada nos Sínodos de Bispos) e extremamente improvisada, todo esse trabalho ingente que provocara uma contribuição muito ampla de . todas as esferas eclesiais do Continente, foi praticamente jogado ao lixo. Como, porém, um evento dessa natureza é mais do que o texto produzido por ele, inclui também a vida sobre a qual reflete e que a partir dele toma consciência de si e desperta, será preciso iluminar o DSD com o trabalho preparatório, quer escrito, quer vivido nas comunidades eclesiais do Continente. Nele se foi tornando pouco a pouco nítido por onde está andando e se propõe andar a Igreja do Continente. Levando em consideração esses três aspectos, serão apresentadas aqui duas chaves de leitura tomadas de textos da Bíblia utilizados em SD . . Desta forma se levará em consideração, por um lado, a analogia da fé: um texto bíblico ilumina um texto do Magistério e o torna compreensível; por outro, a interpretação se manterá fiel a SD, pois são dois textos-chave utiliza. dos na Assembléia. mentar a cristologia do DSD que infelizmente não prima por sua qualidade. Ela é explicitada principalmente na primeira parte do documento que pretendeu ser uma história humana e assim impelindo-nos a tomar a sério nossa própria existência histórica, onde se realiza a salvação. Hb 13,8 é o lema da Conferência, que vinha sendo repetido nos· textos preparatórios, voltou nos discursos do Papa e no decurso da própria Conferência, mas não foi suficientemente valorizado no próo autor da Carta aos Hebreus ·prio documento (só la 287a 302a). Lc 24,13-35 é o texto estruturador 'escreve · a lima comunidade da · seda Mensagem aos Povos da Améri- gunda geração cristã (Hb 2,3) que ca Latina e do Caribe que, seguin- já havia perdido seu primeiro ardo a tradição das ConferênCias an- dor (Hb 10,32) e sentia cansaço teriores, foi publicado no final da e medo (Hb 12,3) face às dificul- . Conferência, procurando · traduzir dades do caminho (Hb 6,12 e o espírio da mesma. A importância 5,11). Sua tentação era fugir do desse tipo de Mensagem se mostra mundo, não mais enfrentar as dia quem considera que foi na Men- ficuldades e perseguições (Hb sagem de Medellín que apareceu 10,33). Está numa crise de persepor primeira vez a proposta de verança (Hb 10,36). Tem então uma nova· evangelização e na Men- saudade do esplendor do culto antigo, não encontrado na simplicisagem de Puebla foi onde se expressou com mais exatidão que a dade da liturgia cristã. opção pelos pobres era tarefa para o autor convida a comunidade a todos os cristãos, independenteautocompreender-se como povo de mente de classe ou posição social. Deus a caminho, "sem cidade permanente" (Hb 13,14), que se 2. DUAS CHAVES mantém "firme até o fim" na conSrSLlCAS DE LEITURA fiança inicial (Hb 3,14). Para As duas chaves bíblicas de leitu- tanto, põe como exemplo os que ra oferecidas ~elo espírito e pela os precederam na fé e na fideliletra da IY Conferência poderiam dade a Deus (Hb 11), essa verdaser qualificadas corrio unia chave deira "nuvem de testemunhas" (Hb 13,2) que é preciso ter ante cristológica e uma chave pastoral. os olhos para adquirir novo ânimo. 2.1. Uha e;have Mas, se Abraão peregrinou "sem crlstológlca: Hb 13,8 saber para onde ia" (t 1,8), a co. A frase de Hb 13,8, proposta munidade cristã sabe para onde corno lema da IV Conferência, ser· vai, porque Cristo lhe abriu "um ve providencialmente para comple- caminho novo e vivo" (Hb 10,20), 95 por onde pode e deve seguir. Ele, Cristo, é pioneiro (archegós, autor: Hb 2,10 12,2), precursor (pródramas: 6,20) e consumador (12,2) da caminhada de fé: como pioneiro dá início, como precursor corre à frente, como consumador a realiza e leva a cabo. Agora se trata, pois, de voltar os olhos ao caminho percorrido por Jesus "nos dias de sua vida terrena" (Hb 5,7) e que o levou ' ao santuário celeste. Para descrever o caminho de Jesus, o autor da Epístola aos Hebreus lança mão de vocabulário cultuaI, 'ritual e sacerdotal, mas o transforma intrinsecamente, aplicando-o ' à realidade profana da existência , histórica de Jesus. O culto de Jesus a Deus se realizou fora do templo, fora mesmo da Cidade Santa, na existência profana. Assim o autor constantemente se refere ao culto levítico para distanciar-se dele e mostrá-lo superado pelo culto histórico realizado por , Jesus, "de uma ' vez para sempre" (Hb 9,26), pois a história, ao contrário do culto ritual, não se repete. res e lágrimas que o salvasse da morte (Hb 5,7). A condição de seu culto eterno ao Pai, e, conseqüentemente de sua função sacerdot~l, foi sua participação responsável na história: humana, pela qual, "embora fosse Filho, aprendeu, contudo, a obediência pelo sofrimento" (Hb 5,8). Isto é: aprendeu a escutar a Palavra de Deus (pois tal significa etimologicamente "obediência", "ob-audire") nas vicissitudes de sua vida. O culto histórico ao Pai culmina na ' ,morte de cruz que não foi um evento transcendente nem mesmo ritual, e sim um acontecimento histórico, com todos os horrores das torturas a que sao submetidas pessoas desprezadas como malfeitores'. O autor de Hb recorda que Jesus morreu como um impuro, "fora das muralhas" (Hb 13,12) e sua , morte significou ' ignomínia (Hb 12,2) . O cristão, se quer ser fiel à sua fé, não pode considerar a glória de Cristo como um dado metafísico , que não diz respeito à história, mas como resultado de uma história ' Se Jesus é agora o Sumo Sacer- muito concreta de solidariedade com dote que "vive para sempre para os impuros: "Corramos com perinterceder" por nós (Hb 7,35), é ' severança para o certame ' que nos porque, por solidariedade com os é proposto, com os olhos fixos nairmãos (Hb 2,11-14)', se dispôs a quele que é o autor e realizador fazer a' vontade do Pai (Hb 10,5-7), da fé, Jesus, que, em vez da aletornando·se semelhante a nós em gria que , lhe foi proposta, suportudo (Hb 2,17), menos no pecado tou a cruz, desprezando a vergo(Hb 1,15). O Jesus Cristo presen- nha, e se assentou à direita do tro· te na comunidade como Sumo Sa- no de Deus" (Hb 12,2). cerdote, reinando glorioso à direita Condição da profissão de fé em do Pai, é o mesmo que em sua vida mortal suplicava ao Pai com clamo- Jesus Cristo hoje, o Senhor presen96 te em sua comunidade, é o seguimento do Jesus ontem, o Jesus de Nazaré dos Evangelhos, cercado de pobres, enfermos, marginalizados, que por afirmar que essa solidariedade era a vontade do ,Pai foi condenado à morte e executado "fora das muralhas" (Hb 13,12), um a mais entre .os "crucificados pela injustiça" de todos os tempos. Salvamo-nos pelo seguimento do "autor e realizador da fé", a exemplo da "nuvem de testemunhas" O:lb 12,1; Cf. Hb 11). Por isso acrescenta o autor da carta: "Não vos deixeis enganar por dou trinas ecléticas e estranhas" ou prescriçoes alimentares (Hb 13,9); pelo contrário, "saiamos ao seu encon. tro (de Jesus) fora do acampamento, carregando a sua humilhação" (Hb 13,13). Este seguimento histórico é o "sacrifício de louvor": "Não vos esqueçais da beneficiência e da comunhão, porque são estes os sacrifícios que agradam a Deus" (Hb 13,16). o lema da IV Conferência, tomado de Hb 13,8, convida, pois, ao seguimento de Jesus · na história e, conseqüentemente, à s.olidariedade de Jesus com os pobres e os "crucificados pela injustiça". Vale dizer à inversa: admoesta contra um· .entusiasmo fácil em um Cristo celeste sem ,raízes históricas. "Jesus Cristo é o mesmo": O Jesus · Cristo glorioso que agora ("hoje") reina com o Pai como nosso Sumo Sa· cerdote e vive para sempre, intercedendo por nós (Hb 7,25), é o mesmo que ontem sofreu por sua comunhão com os pequenos (Hb 2,17) é carregou a ignomínia da cruz (Hb 13,13). . Esse sentido histórico da cristologia, ausente na primeira pa.rte do documento, não chega a· ser totalmente recuperado no corpo do mesmo, embora haja acenos à his· tória de Jesus. Tomar Hb 13,8 como chave de leitura do documento significará perguntar a cada momento que se nos apresente uma "n\lminação teológica", como viveu Jesus ·("ontem") para poder "hoje" ser proclamado pela Igreja desta forma. O conteúdo dos t(tulos de glória que se arrolam no documento ("Jesus Cristo sempre") é a ·vivência histórica de Jes~s que o levou à morte e ressurreição e devem ser lidos a partir da história de Jesus ("Jesus Cristo ontem"). Em terminologia técnica da teologia atual, · trata-se de ler de forma ascendente "(" von unten", a partir de baixo) a teologia descendente do documento ("von oben", a partir de cima). Isto traz consigo o compromisso de viver a fé como peregrinação histórica (cf. Hb 11), na incerteza e na esperança. Tudo o que for diferente (a proposta de um Cristo glorioso sem história e sem cruz) são "doutrinas ecléticas e estranhas" a serem evitadas (cf. Hb 13,9), pois só levarão a um falso culto a · Deus, baseado em prescrições rituais e alimentícias (Hb 13,9 elO) e deixando de lado "a beneficiên- · cia e a comunhão" (Hb 13,16). Também quando a "iluminação" não tem inspiração cristológica, mas 97 eclesiológica ou de outro âmbito da teologia, valerá o mesmo princípio: considerar o caráter histórico e quenótico da fé. 2.2. Uma chave pastoral: Le 24,13·35 o uso da perícope .de Emaús como chave de leitura do DSD pode suscitar uma objeção: ela é; sim, o texto estruturador da Mensagem aos Povos da América Latina e do Caribe, mas é alheio ao documento como tal e, portanto, não 6 uma chave de leitura . legítima. . Dois fatores parecem justificar a opção. O primeiro é que a Conferência é um todo: a mesma Conferência que produziu o DSD, é também autora da Mensagem; esta passou pelo mesmo processo de votação e foi submetida a emendas como o documento. O segundo está na gênese do DSD e da Mensagem. Os bispos haviam aprovado que o documento tivesse um eixo cristológico e que fosse inspirador, pastoral, com linguagem simples, de fácil leitura para qualquer cristão, mesmo que não ·tivesse formação teológica. Quando se notou que a hi.trodução cristológica a ser . proposta não correspondia às características votadas e aprovadas, senão que era essencialista, abstrata, alheia à história, propôs-se em plenái-io que a perícope de Emaús servisse de eixo estruturador da introdução. A proposta teve um apoio significativo de bispos e um texto alternativo chegou a ser apresenta· do no Secretariado da Assembléia. 98 Entretanto, a todo-poderosa Comissão de Redação, predominantemente conservadora, fez caso omisso do pedido dos bispos e . manteve -no texto sua teologia essencialista, reinante no ensino dos seminários antes do Concílio, na década de 50. Como compensação, apareceu o episódio de Emaús na estruturação da Mensagem. Usá-la como chave de leitura do DSD resgata, pois, o atropelo da opinião de significativa parcela de bispos, que. havia solicitado sua inclusão no DSD. A perícope de . Emaús é denominada chave pastoral de leitura _do DSD, porque permite uma articulação melhor entre a teologia e a realidade (cf. Carlos Mesters: Flor sem defesa. Uma explicação da Bíblia a partir do povo. Petrópolis: Vozes, 1983, 24-29). A falta de metodologia adequada na elaboração do DSD . teve como conseqüência uma desarticulação entre o que o documento chama de "iluminação teológica" e os desafios e pistas pastorais. A "iluminação teológica" é um capítulo douti-inal ou um conjunto de citações bíblicas: os desafios surgem abruptamente e muitas vezes se reduzem a observações sobre a realidade, desconexas entre •• • SI; as pIstas, por sua vez, consIstem freqüentemente em um elenco de ações a serem realizadas, muitas vezes apenas com uma relação bastante vaga com os desafios anteriormente listados. . A narração do encontro na estrada de Emaús possibilita que se ponha ordem na ausência de arti- culação. A Mensagem . aos Povos da América Latiua e do Caribe dá uma pista, embora imperfeita, porque prejudicada pela preocupação de encontrar na perícope os elementos constitu.tivos do tema d·a Assembléia. Assim, apesar de pôr no título referente a Lc 24,25-28 a palavra cultúra, a própria explicitação dos n9s 18 a 22 da Mensagem esquece (ou não encontra meios) de abordar a temática da cultura. Não obstante, explicando Lc 24, 13-17 como expressão da atitude de Jesus que assume "as alegrias e esperanças, as dificuldades e tristezas da vida" (Mensagem 14), e vendo em Jesus o Bom Samaritano que "se aproxima dos caminhan. tes" e "penetra na vivência profunda da pessoa, em seus sentimentos e atitudes" (Mensagem 16), a Mensagem indica como primeiro passo para a articulação entre fé e realidade a atitude de "ver". Não um "ver" frio, objetivo, científico, mas um "ver" vivenciado, solidário, desde dentro da realidade sofrida, numa "atitude de prbximidade e acompanhamento" (Mensagem. 15). e o que o DSD recomenda aos pastores, num texto muito inspirador: . "A proximidade a cada uma das pessoas permite aos pastores partilhar com elas as situações de dor e ignorância, de pobreza e marginalização, os anelos de justiça e libertação" ·'(74b). o segundo passo na articulação entre pastoral e teologia está bem expresso num dos subtítulos da Mensagem: "Jesus ilumina com as Escrituras o caminho dos homens." A Palavra de Deus ilumina a situação dada e, por sua vez, adquire caráter mordente a partir da situação. A conseqüência é o terceiro passo, a missão à comunidade e a partir da comunidade (cf. ,Mensagem 26). ou seja, a atuação pasteiralou "agir", no qual se encontrarão novos impasses e dificuldades a serem posteriormente iluminados pela Escritura. A perícope de Emaús convida, portanto, a que se volte ao méfodo ver-julgar-agir, abandonado pelo documento. A razão do abandono era claramente o desejo de alguns membros que, por seu grande poder, exerciam forte influência na organização da Conferência, de que O documento não apresentasse o mínimo resquício de Teologia da Libertação. E o DSD não só não fala dela, como quase não usa a palavra "libertação": ápenas cinco vezes (74b; 123a, duas vezes: 157a; 243c). Mas, como articulação de um método pastoral, o ver-julgaragir até agora não encontrou outro que o pudesse substituir. Prova é a desarticulação do documento e a pouca ou rienhuma incidência da iluminação teológica sobre os desafios e linhas pastorais, bem como seu caráter pouco inspirador. Contraprova .é que a parte mais elabo: rada do DSD, o capítulá sobre a promoção humana, é justamente a que, desrespeitando a censura ao método, segue o caminho do verjulgar-agir. 99 Os bispos contrários ao método temem que o "ver" influencie de tal forma o "julgar" que desfigure o conteúdo da fé, a partir da mentalidade vigente ou . pior ainda - a partir de categorias das ciências sociais. Não há porque temer, desde que se entenda bem a relação ver-julgar-agir. Não é uma seqüência linear, . mas um entrosamento dialético, onde cada um dos momentos influencia o outro · e é condicionado pelo outro. Ou ' seja: o "ver" já está marcado pelo "julgar" e pelo "agir", assim como sobre eles influencia. O método quer ser globalizante e não constituído por etapas estanques. Lc 24,13-36, sugerindo a metodológia do ver-julgar-agir, pode, pois, ajudar a uma compreensão mais articulada do documento. Em concreto se trata de reorganizar os dados da realidade, em geral apresentados sob o nome de desafios, buscar o fio condutor da análise subjacente, tanto aos desafios como às pistas pastorais, considerar a partir d.aí porque os bispos julgaram que a iluminação teológica oferecida ajuda a compreender à lqz da fé <> que está acontecendo, e, por fim, tirar as ~onseqüncias prátiCas para a ação. . A volta ao ver-julgar-agir se justifiCa também, se se .considera a preparação para SD. A Secunda Relatia como · o Documento de Trabalho, seguindo a orientação dos bispos secretários das Conferências Episcopais do Continente, adotaram o método nonualmente usado na 100 pastoral latino-americana. Se não se deve jogar fora as etapas da preparação para SD em seu progressivo amadurecimento (cf. acima 1,3), o método ver-julgar-agir precisa ser com razão revalorizado. 2.3. Convergência das duas chaves As duas chaves de leitura propostas não devem ser vistas como isoladas, mas intimamente relacionadas. O método ver-julgar-agir, aprendido da perícope de Emaús, é resultado da historicidade de Jesus tão fortemente sublinhada na Epístola aos Hebreus. A partir da situação concreta que viveu, Jesus respondeu ao Pai (Hb 5,8). Ver a realidade e as situações possibilitou a Jesus apreender em sua a vontade · do condição humana Pai para aquele momento e pô-Ia em obra. O método ver-julgar-agir, por sua vez, não é meramente pastoral, mas dá nova luz para a compreensão teológica do dado da fé. No decorrer de sua vida, ao embate dos acontecimentos, Jesus, como verdadeiro homem, compreendeu melhor e mais profundamente quem era o Pai. Embora .por ràzões didáticas seja necessário aplicar as chaves de leitura cada uma de sua vez, convém não esquecer sua conexão íntima. O estudo começará com a leitura em . chave· pastoral que possibilita englobar todo o material e organizá-lo melhor. A chave cristológica só complementará a iluminação teológica num segundo momento. Apesar da separação, não se esqueça a unidade interna das duas chaves de leitura. 3. A VIDA CONSAGRADA SEGUNDO O DOCUMENTO DE SANTO DOMINGO Além da seção específica sobre o tema da Vida Consagrada (8593), o DSD menciona os religiosos e as religiosas em vários outros lugares (19a 20b 37 42 45 64 68a 80a 82b 104 128d 128g 227 240 273 275 285a 293b) e a Mensagel;ll aos Povos da América Latina e do Car:ibe a eles ·se refere duas vezes (Mensagem 30 e 35). Interessa agora ler todo esse . material como globalidade e relacioná-lo com temas afins, abordados pelo DSD. Nessa tarefa . se utilizarão as duas chaves de leitura propostas. O resultado da aplicação da chave pastoral será uma visão da situação, iluminada por uma teologia da Vida Religiosa, de onde deriva uma proposta ·c oncreta para a vivência da mesma em nossas condições .. A chave cristo lógica chamará a atenção para alguns aspectos da teologia da Vida Religiosa presentes .ou ausentes do DSD, confirmando ou comPlementando' ·a leitura pastoral. 3.1. Leitura do texto . em chave pastoral 3.1.1 A Vida Religiosa nente fIO Conti- 1. SD tinha como horizonte a comemoração dos 500 anos .de evangelização da América Latina. Nada mais natural que o documento recorde o papel dos religiosos nesses cinco ·séculos de hist6ria. A evangelização do Continente teve no c0meço "como generosos protagonistas sobretudo membroS' de ordens religiosas ", embora tenha sido "obra conjunta de todo o povo de Deus" (19a). O DSD repete com o Papa · que a evangelização da América Latina foi, em grande parte, fruto do serviço missionário dos religiosos (91 a). Eles são apresentados entre os defensores dos direitos e da dignidade · dos índios (20a). Ilustraram a história latino-americana com o testemunho de sua santidade, tanto assim que, entre os quatro santos e beatos citados nominalmente, três são religiosos (21a). A Vida Religiosa contínua a ser hoje ainda "uma força evangelizadora e apostólica primordial" (91a). O .DSD não se detém, porém, a explicar como essa força atua el;ll concreto. Supõe-se que principalmente pelo testemunho, mencionado três vezes (85a; 85c; 92b; indiretamente 37, cf. 86) e ligado à pre.sença dos religiosos e religiosas nas situações mais difíceis (85a; cf. 85c). Mas, como os textos falam a linguagem do "dever ser", não se sabe so é lícito estender a afirmação ao "ser" atual. O n'? 85a parece sugeri-lo. 2. De qualquer fonna, para o DSD, sob a inspiração do Vaticano II e o impulso de Medellín e Puebla, a Vida Religiosa passou por um processo de renovação, 101 com uma "volta às fontes e à primitiva inspiração dos institutos (85e). O fato de no mesmo parágrafo citarem'se "as Conferências de Superiores Maiores" . nome canônico das Conferências de Religiosos e Religiosas parece supor que o documento lhes atribui um papel na citada renovação. Seja como for, reconhece que "cumprem um . papel importante para a vida 'consagrada" (ib.). h 3. Um dos elementos que parece mais chamar a atenção dos bispos, é a variedade presente na Vida Religiosa. Eles reconhecem na diversidade de carismas "uma contribuição à Igreja" (92b). Não será infidelidade ao texto classificar . essa contribuição dos diversos carismas como enriquecedora (85f) e entender que é sob essa pluriformidade que a Vida Religiosa é um "dom peculiar de Deus" (ib.) ou do Es. pírito (85a) à Igreja. Por isso mesmo, há uma preocupação por in' centivar o respeito à diversidade (85e, 92b), . o que subentende que se teme não esteja sendo respeitada. Subjacente a essa cautela estará possivelmente uma visão negativa de intercongregacionalidade incentivada pelas Conferências de Religiosos (85e). Outra manifestação da admiração dos bispos pela pluriformidade da Vida Religiosa é o fato de se, empenharem em enu'merar explicitamente formas de vida consagrada a Deus, sem deixarem nenhuma 'esquecida, mesmo que sejam pouco significativas. .' , 102 Assim referem a Vida Religiosa contemplativa (86), os Institutos Seculares (87), as Sociedades de Vida Apostólica (88), as virgens consagradas existentes em âmbito diocesano (89), a Vida Religiosa feminina (90) e ao tratar da educação os religiosos e religiosas educadores (275). O n9 37 ainda distinguirá a vida monástica da contemplativa. A ~impatia com que os bispos vêem essas diversas forinas de Vida Religiosa se mostra na forma como as descrevem ou qualificam. Ale' gram-se com o aumento de vocações da Vida Religiosa contemplativa e sua expansão até mesmo para outros países (86). ,Agradecem a Deus o dom da Vida Religiosa con- , templativa e monástica (37). A partir daí, deve-se supor que a "singular fecundidade evangelizadora e missionária" da' vida contemplativa, bem como de seu testemunho da "primazia do absoluto de Deus" (86) não sejam mera afirmação de princípio, mas constatação de uma realidade na América Latina. O tom de alegria perpassa também o parágrafo ,s obre os Institutos Seculares que verifica seu crescimento (87). Das Sociedades de Vida Apostólica é dito, na mesma aparente pauta de reconhecimento, que "contribuem também generosamente" na tarefa da evangelização (88). Das virgens consagradas se afirma sua entrega "ao serviço da' , Igreja" (89). Mas é sem dúvida a Vida Religiosa Feminina que merece maior reconhecimento por sua ação evangelizadora. "A mulher consagrada contribui para impregnar de Evangelho nossos processos de promoção humana integral e dá dinamismo à pastoral . da . Igreja. Ela se encontra freqüentemente nos, lugares de missão que oferecem maior dificuldade e é especialmente' sensível ao clamor dos pobres" (90; cf. DT 260). especialmente na evangelização da cultura" (275). Ao falar das Congregações dedicadas à educação, acentua-se a opção pelos pobres como critério da tarefa educadora (275), como ao referir-se às religiosas se sublinha sua sensibilidade ao clamor dos pobres (90). Reconhece-se que a opção pelos pobres "leva a postos de van-' guarda de maior dificuldade ou de , inserção mais comprometida" (92e), mas que esses religiosos e religiosas não recebem atualmente suficiente apoio dos bispos, e sua missão . não é bastante assumida pelos pastores (ib_). S6 assim se explica que seja necessário estabelecer como linha pastoral "apoiar e assumir" essas formas de missão, sobretudo as de mais vanguarda e inserção. Também na seção dedicada às mulheres (104-110) , as religiosas são mencionadas (104), de forma que se deve aplicar especificamente à mulher consagrada o que nesses números é dito genericamente das mulheres. Vale, pois, das religiosas ' que "cresceram na consciência da igual dignidade da mulher e do varão" (105a) , embora a igualdade .e estranho, no entanto, que tão seja por ora antes reconhecida na preocupados em enumerar as di~ teoria que na prática (ib.). versas formas de Vida Religiosa, Das religiosas vale, sem dúvida, os, bispos percam de vista o conque elas são nas comunidades ecle- tingente mais importante e mais siais "quem mais comunica, sus- numeroso de religiosos e religiotenta e promove, a vida, a fé e os sas, os institutos religiosos dedicavalores" (106b). E nesse sentido dos à vida apost6lica. Eles são merecem também a designação que subentendidos no que se diz soJoão Paulo II deu à mulher em bre a Vida Religiosa feminina geral na homilia da missa inaugu- pois se trata das religiosas desses ral da Conferência: "o anjo da institutos - e nas referências feiguarda da alma cristã do Continen- tas a religiosos e religiosas fora do te" (ib.)_ contexto dos parágrafos dedicados , à Vida Consagrada. · Mas não se Os bispos reconhecem, enfim, ' trata deles explicitamente, como se que os religiosos e as religiosas de- fossem uma minoria insignificante, dicados à educação os "ajudam mui- quando são na América Latina o tíssimo para cumprir o mandato grande contingente de agentes pasrecebido do Senhor de , ir ensinar torais qualifiç,ados. .e como se a todos os povos (Mt 28,18-20), numa nova versão do velho provér' 103 bio - a ,preocupação com as espécies mais 'r aras de árvores, tivesse impedido de ver as árvores mais abundantes e características ' do mato ... Essa lacuna sugere determinada concepção implícita de Vida Religiosa que os bispos talvez não vejam realizadas nos religiosos e religiosas da América Latina. Levanta-se a suspeifa de que, para o DSD, o protótipo de Vida Religiosa, pelo qual os outros tipos são medidos , e implicitamente julgados, seria a Vida Religiosa contemplativa (e monástica) ou, pelo menos, a Vida Religiosa recolhida em claustros, conventos, mosteiros e grandes instituições. De fato, chama a atenção a forma como é ressaltada. a vida contemplativa. Enquanto no Vaticano 11 a Vida Religiosa em todas as suas formas indiscriminadamente era declarada pertencer "de modo indiscutível à vida e santidade" da Igreja (LG 44), no DSD é a vida contemplativa privilegiada como "sinal vivo da santidade de todo o povo de Deus" (37). Evidentemente o Vaticano II não é ,negado, mas até reafirmado (85a). Entretanto, há uma mudança significativa de acento em direção a deter.. minada feição da vida consagrada. Essa tendência fica bem sugerida também ao reservar aos contemplativos a característica de testemunhar "com toda sua ' vida a .primazia do absoluto 'de Deus· (86). ' característica que, 1110 espfrito de ' LG 44. competiria antes à Vida 104 Religiosa como tal, em suas diver· ' sas formas ; o DSD insiste ' na necessidade de que o clero secular conheça melhor a teologià da Vida Religiosa (92c; 85f). Não estaria aqui uma prova dessa necessidade? Entretanto a suspeita não parece responder à realidade, porque grande parte dos bispos são religiosos. Ou a visão da Vida Religiosa a partir de sua forma monástica ou con- ' templativa reflete os problemas, "tensões e conflitos" que têm havido em alguns lugares entre Vida Religiosa ativa e Hierarquia (92c)? Os bispos teriam ficado como que sonhando com uma Vida Religiosa que não lhes trouxesse incômodos, como é o caso dos contemplativos. cujos membros não criam "tensões e conflitos" por nãó participarem diretamente da atividade pastoral. 4. Mas é bom lembrar que "tensões e conflitos" entre Hierarquia e religiosos são quase tão antigos quanto a , própria Vida Religiosa. Eles se tornam mais agudos e sentidos na medida em que cresce uma concepção de autoridade que se confunde com poder. e uma noção de participação que se , entende como submissão ao detentor do poder. E, vice-versa, na medida ' em que o carismático se auto-afirma de forma absoluta e exclusiva. Em outras palavras: as tensões se aguçam quando, na falta de uma eclesiologia mais equilibrada, um dos lados pretende o monopólio do Espírito Santo. O DSD detecta o problema, quando propõe maior conhecimento recíproco entre · Vida Religiosa e Igreja particular (85f; 92c). 5.· Em · conexão com as" tensões e conflitos" está a problemática da comunhão eclesial. Parece que os bispos julgam não ser suficiente· mente cultivada pela Vida Religiosa, apesar de reconhecerem a exist~ncia de esforço nesse sentido (68a). A fi:ase não permite saber a quem se atribui tal "esforço de unidade", se aos bispos e à Igreja particular ou aos religiosos. . A questão da comunhao é, aliás, um ponto a que o DSD se mostra particularmente sensível. O termo "comunhão" . ocorre· 58 vezes. A maior parte das vezes com sentido de comunhão eclesial. Se se acresce o uso freqüente de palavras como ~unidade" e "reconciliação" com conotação eclesial, bem como o fato de "comunhão" e "reconciliação" serem· .duas entre as quatro palavras-chave propostas pela ~en sagem aos Povos da América Latina e do Caribe (Mensagem 46 e 47), tem-se uma idéia da importância dada pelos bispos à temá: tica. Daí sua sensibilidade face . às "tensões e conflitos" com a Vida Religiosa (92c) , especialmente por parecerem pensar comunhão como algo já feito e estabelecido e não . como meta a ser conquistada pela caminhada ·comum de Vida Religiosa e Hiefarquia. Nesta segunda Jiipótese, comunhão eclesial não se constrói sem conflitos, como já ensina a experiência das primeiras comunidades cristãs (cf. Gl 2,11-14; At 15; 1 Co 11,19). Não é o que parece admitir O DSD, tentado por ~Jma teologia da reconciliação que abstrai ·do processo de reconciliação, esse · caminho · sempre doloroso de procurar compreender o : oponente e sair ao seu encontro na busca comum da verdade e . do bem. Em vez disso, o DSD pareCe escamotear o conflito, ·embora aqui e ali o subentenda ou reconheça (68b), mas não como contribuição positiva a uma comunhão mais profunda na ·verdade e no bem buscados e encontrados em comum . 3.1.2 Iluminação teol6gicá O trecho mais inspirador do DSD no tocante à Vida Religiosa talvez seja o seguinte: "Pela vivência fiel dos conselhos evangélicos (os .t;eligiosos e religiosas) participam do mistério e da missão de Cristo, irradiam os valores do Reino, glorificam a Deus, animam a própria comunidade eclesial e interpelani·' a sociedad·e (cf. Lc 4,14-21; 9,1-6)" (85b) ', 1. Esse texto poderia estruturar o "julgar" da Vida Religiosa. Ela é primeiramente participação no mistério e na missão de Cristo pelos conselhos evangélicos. . Este aspecto é ainda explicitado como uma "dimensão pascal" dos conselhos e "identificação com Cristo em sua (85b). morte e ressurreição" . . Participando da missão de Cristo, insere-se a Vida Religiosa no compromisso, dinamismo, espírito, fervor missionário da Igreja, sobre o 105 Pela insistênCia no testemunho, o qual o DSD volta freqüentemente (23b 27b 51 ' 55b 56 60d 63a 80b documento parece supor que é 'prin124b 126c). Abre assim uma cipalmente através dele que os reliperspectiva de teologia da Igreja, giosos e as religiosas desempenham "comunidade missionária' (294a), seu papel evangelizador. Propondocuja função é ser continuadora da se valorizar a Vida ' Religiosa "por missão de Cristo (6a 190a). Este sua própria existência e testemué a · "única razão de nossa vida .e nho" (92b). O DSD retoma em fonte de nossa missão' (288b; cf. outros termos o que Puebla afir289), de tal .forma que a missão da mara: que "a vida consagrada é, Igreja "procede da missão do Fi- por si · mesma, evangelizadora' lho e da missão do Espírito Santo, (Puebla 721) . segundo o desígnio do Pai" (12a, O testemunho, em concreto, é . citando AG 2). A missão é a "essên- explicitado a partir de um dos trecia mesma da Igreja" (125a). Como chos mais inwiradores da homilia a participação ' de religiosos e reli- do Papa aos religiosos na Catedral giosas no mistério e na missão de de Santo Doiningo (85c). O texto Cristo se dá pelos conselhos evan- designa aqueles perante os quais gélicos (85b) , o característico da . os religiosos religiosas testemuVida Religiosa na missão .da Igreja nharão o. Evangelho: "os necessié mediado pela prática dos múlti- tados da luz . da fé", "os pobres e . plos conselhos que o Senhor pro- os mais esquecidos", "os marginapõe . no Evangelho para que seus lizados e. abandonados", "os sem discípuloS' observem" (LGA2) , den- voz", "os tratados .injustamente" tre os quais sobressaem na tradição . (ib.). Ao serem para eles mensaeclesial a castidade, a pobreza e a geiros da Palavra, próximos, solidários, sacramentos do amor de obediência. . Cristo, ouvintes dos sem voz, de. 2. Os "múltiplos conselhos" evan- fensores e ajuda dos injustiçados, gélicos coincidem com os "valores os religiosos e religiosas estarão do Reino" que os religiosos e reli- dando seu testemunho evangelizador. giosas têm a tarefa de irradiar, pois O ponto de partida dessa atitude só pode haver "identificação com é o seguimento de Jesus, abraçando Cristo em sua morte e ressurreição" os valores do Reino e os conselhos . na vivência e' propagação dos va- evangélicos. b DSD o expressa em lores do Reino que o levaram à' cruz termos de "singular aliança com e glorificação. O que significa "irra- Deus' (85a). Nesse sentido se podiar os valores do Reino", é melhor deria generalizar o que o documenexplicitado sob a categoria de "ex- to diz da vida contemplativa e reperiência testemunhal" (85c) ou ferir a todos os religiosos e relisimplesmente "testemunho" (85a; giosas que eles testemunham "com 92b; cf. , 86 e indiretamente 37). toda sua vida . a primazia do abso- e 106 luto de Deus" (86), porque esta com que o texto foi elaborado. Mas se vive ao abraçar os valores do a · frase anterior exclui toda dúvida: Reino (cf. Mt 13,14·16). A par- . "Assim como a celebração da últir daí se poderia dizer também .de tima Ceia (sic!) está essencialmente toda Vida Religiosa que "é um si- unida à vida e ao sacrifício de Crisnal vivo da santidade de todo o to na cruz e o faz cotidianamente povo de Deus" (37; cf. 85a, 92b presente pela salvação de todos os . homens, os que louvam a Deus reue especialmente LG 44). nidos em torno ao Cordeiro, são A luz dessa perspectiva se pode os que mostram em suas vidas os entender por que os bispos julgam sinais testemunhais da entrega de importallte "apoiar e assumir o ser Jesus (cf. Ap 7,13ss)" (ib., grifos e a presença missionária dos reli- meus). E o texto do Apocalipse esgiosos na Igreja particular, sobre- clarece que os "sinais testemunhais" tudo quando sua opção pelos po- são a perseguição e o martírio, ou bres os leva a postos de vanguarda seja, a vida cristã levada a suas de maior dificuldade ou de inser- últimas conseqüências . .ção mais comprometida» (92e). A partir dessas perspectivas aber3. Num primeiro momento, a . tas pelo DSD, os religiosos e religlorificação de Deus parece iden- giosas que glorificam a Deus não tüicada pelo bSD com a dimensão são como à primeíra vista o do culto cristão que se poderia cha- DSD deixaria entrever . os conmar de . vertical. n o que dão a templativos, pelo afastamento físientender os parênteses contidos nes- co do mundo e por suas atividljdes t.a frase: · "0 culto cristão deve ex- tradicionalmente chamadas de "espressar a dupla vertente da obe- . pirituais", mas também os de . vida diência · ao Pai (glorificação) e da "ativa" pela entrega a Deus no emcaridade com os irmãos . (reden- penho em prol da construção do ção), pois a glória de Deu·s é que mundo e na vivência permanente o homem viva" (34, grifo meu). da oração ("contemplativos na Essa tendência pareceria confir- ação"). Aliás, em outro lugar, os inada, . no contexto da Vida Reli- bispos valorizam "o exemplo de . giosa, pela valorização da vida con- Jesus Cristo" e incentivam os fiéis templativa (cf. acima 3.1.1). a segui-lo integrando sempre a oração "com a missão apostólica na Entretanto, ao falar de " dupla comunidade cristã e no mundo" vertente" do "culto cristão", o texto (47). Esse é justamente o id~al dos está significando que a glorificação religiosos e religiosas de vida apos,.. de Deus tem inseparavelmente uma tólica e sua fonua de glorificar a face voltada ao Pai e outra aos ir- Deus. mãos. A distinção entre "glorifica4 . A quarta característica da ção" . e "redenção" não foi feliz e é uma das tantas mostras da pressa Vida Religiosa consiste na anima107 ção da comunidade eclesial por parte de religiosos ' e religiosas. O DSD sublinha que a Vida Religiosa é um "dom peculiar de Deus a sua Igreja" e, por isso, "necessariamente eclesial" (85f). A eclesialidade se manifesta no fato .de religiosos e religiosas serem, pela. diversidade dos carismas, um fator de enriquecimento das Igrejas particulares Ob.; cf. 92s). Por isso é necessário que os bispos respeitem e · fomentem "a fidelidade a cada carisma fundacional" (92b). · Por sua vez, para que se viva a eclesialidade, é preciso que religiosos e religiosas atuem "sempre em perfeita comunhão com o bispo e . os presbíteros" (93), resolvendo · em diálogo, "a partir da .comunhão eclesial", as possíveis "tensões e · conflitos" (92c). Outro aspecto da eclesialidade . da Vida Religiosa é a "adesão ao Papa" (85f). 5. Cabe ainda aos religiosos e religiosas interpelar a sociedade. J:t a dimensão social e profética da Vida Religiosa que, evidentemente, como todo profetismo, brota da experiência de Deus (37). No entanto, fiel à perspectiva eclesiológica muito voltada para dentro da Igreja, o DSD não .desenvolve esse aspecto e, ao falar da promoção humana, tampouco faz especial menção à tarefa dos religiosos e religiosas. A menção à interpelação da sociedade abre, no entanto, dentro do espírito do documento, para além do que a letra declara. • . 6. e por todo esse conjunto de característibas que os religiosos e 108 religiosas, juntamente com os bispos, presbíteros e diáconos são destacados como "sujeito da nova evangelização", de entre "todos os homens e mulheres que constituímos o povo de Deus" (25). Mas infelizmente este destaque pode também significar a clericalização. Felizmente o DSD o corrige ao falar dos leigos (91-103) e considerá-los "protagonistas" da nova evangelização 003 293a 302. 1) . Conclua-se esta iluminação teológica, lembrando que o DSD apresenta Maria como "modelo de vida para os consagrados e apoio seguro de sua fidelidade (85d). 3.1.3 O caminho da Vida Religiosa Tendo presente a realidade des~ crita e à luz do que ela significa teologicamente, a Vida Religiosa tem um caminho a trilhar na América Latina. Os bispos o indicam bastante desordenadamente (característica do documento por inteiro). Ajuda a clareza reunir os diversos elementos dispersos, segundo o esquema seguido no "julgar" (3.1.2). 11 natural que a maior parte das linhas pastorais visem à dimensão da eclesialidade, pois é o aspecto que mais diz ·respeito à relação dos bispos com a Vida Religiosa. Já que os deinais aspectos, embora não possam ser separados entre si, se referem mais à vida interna dos Institutos e, corno tais, são da competência dos Superiores e Superioras Maiores e dos próprios religiosos e religiosas. Assim, mesmo quando os demais aspectos são tra- tados, o são na perspectiva da co,munhão eclesial. 1_ A importância da participação em Cristo pela observância dos conselhos evangélicos é sublinhada ,p ela preocupação com a promoção vocacional também para . a Vida Religiosa (12 80a 293b Mensagem 30). Mas ela não pára aí e se ,estende à formação inicia! e perma. , nente em campos geraIs ou especIficos (92d 128d 210 280a) e ao acompanhamento espiritual dos religiosos e religiosas (92d; talvez também 42) e a sua "formação doutrinai e espiritual" (45). Cabe aos bispos essa preocupação, enquanto se trata de preparar para as tarefas da NE. Muito correta, mente', porém, vêem sua tarefa nesse campo como um incentivo às iniciativas dos Sl1periores Maiores, a quem compete cuidar da questão (92d) . com gozo a Palavra de salvação; para que os pobres e mais esquecidos sintam a proximidade da solidariedade fraterna; para que os marginalizados e abandonados experimentem o amor de Cristo; para que os sem voz se sintam escutados; para que os tratados injustamente encontrem defesa e ajuda" (85c). Temos aqui diversos campos da atuação dos religiosos e religiosas e a forma de irradiar os valores do Reino, glorificando a Deus. Os necessitados da luz da fé poderiam ser identificados, a partir de outros lugares do documento, como os ba" tizados afastados da Igreja (129131), as religiões não-cristãs (136138), os que buscam luz em novos movimentos religiosos (147-152), os sem Deus e os indiferentes (153156). Frente a estes, os bispos lem-· bram a religiosos e religiosas que é seu desafio estarem "na vanguarda 2. No tocante a "irradiar os va- da pregação" e "da evangelização lores do Reino" e a glorificação de das culturas" (91b) 'e insistem vá~ Deus, o documento é muito parco rias vezes na evangelização "além em linhas pastorais. Talvez porque fronteiras" como tarefa sua' (91b; em parte se confundam com a pró- 92d; ' 128f) _ Com' essas duas expria tarefa evangelizadora. Aqui pressões, o DSD dá a entender tanvaleria recordar que a frase inspi- to a atuação pioneira dos religiosos radora do Papa na Homilia da Ca- e religiosas, onde quer que estejam tedral de Santo Domingo, como ex- ' ("evangelização das culturas"), pressão do "dever ser", é a apre- como a atividade missionária "ad sentação de um caminho a ser per- gentes" ' ("além .' fronteiras") , em corrido pela Vida Religiosa. Vale que o DSD tanto insiste, a porito a pena citar; de estabelecer o ideal de uma n América · Latina missionária" "Por sua experiência testemu(302; cf. 57b 95a 124a 125d 295). ,nhal, a Vida Religiosa há de ser , "Pobres e mais esquecidos", sempre evangelizadora:, para que os necessitados da luz da fé acolham "marginalizados e abandonados", 109 "sem voz", ti tratados injustamente" constituem um único grupo que merece especial atenção (daí o Papa ter multiplicado as . circunlocuções para identificá-los e explicitar diversos aspectos do testemunho dos religiosos e religiosas em meio a eles). A atenção que lhes é devida, provém da própria identidade da Igreja que não pode ser Igreja de Cristo, se não mostrar um especial amor e preferência pelos pobres. Irradiar os valores do Reino é pôr-se do lado de todos esses. Em outro contexto, o DSD, recordando o inspirado texto de Puebla sobre os "rostos dos pobres" (Puebl~ 3139), sente-se obrigado a acrescentar "novos rostos", porque a pobreza aumentou, se aprofundou e se diversificou em nosso Continente. São rostos "todos eles desfigura- . dos pela fome, aterrorizados pela violência, envelhecidos por condições infra-humanas de vida, angustiados pela sobrevivência familiar. O .Senhor nos pede que saibamos descobrir seu próprio rosto nos rostos sofredores dos irmãos" (l7ge). :e bom contemplarmos esses "novos .rostos", porque constituem novos desafios à irradiação do Reino por parte de religiosos e religiosas. "Descobrir nos rostos sofredores dos pobres o rosto do Senhor (Mt 25,31-46) é algo que desafia a todos os cristãos a uma profunda conversão pessoal e eclesial. Na fé encontramos os · rostos desfigurados pela fome, conseqüência da infla- ção, da dívida externa e de injustiças sociais; os rostos desiludidos por políticos que prometem, mas não cumprem; os rostos humilhados por causa de sua própria cultura que não é respeitada e inclusive é desprezada; os rostos aterrorizados pela violência diária e indiscriminada, os rostos angustiados dos menores abandonados que caminham por nossas ruas e dormem de- . baixo de nossas pontes; os rostos sofridos das mulheres humilhadas e postergadas; os ros tos cansados dos migrantes que não encontram digna acolhida; os rostos envelhecidos pelo tempo e pelo trabalho dos que não têm o mínimo para sobreviver dignamente" (nO? 178i). Diante desses "novos e velhos rostos" da pobreza, a resposta mais gritante é a de estar na vanguarda, concretizando· a opção pelos pobres e assumindo uma "inserção mais comprometida" (92e). Não é sem razão que os bispos se propõem a "apoiar e assumir" essa atitude dos religiosos e religiosas (lb.). 3. A irradiação dos valores do Reino assim explicitada é o cerne da evangelização e tem sua raiz numa "profunda experiência de Deus" (91b, grifo meu), fonte de toda "verdadeira e autêntica" ." ação profética" (37). Por isso mesmo, não se pode falar da glorificação de Deus, senão a partir de uma prática segundo o Reino. c 110 Por todo .esse testemunho de vida que a Vida Religiosa se propõe, os bispos desejam "reconhe- cer li vida consagrada como um sos e religiosas (64). No entanto, dom para nossas Igrejas particula- devido à grande estima que o dores" (92a) e "fomentar a vocação · cumento mostra pela diversidade de carismas da Vida Religiosa à santidade" dos mesmos, valori(8be; 92b), também aqui a inser- · zando-os por aquilo. que são e não ção . na pastoral orgânica se deverá pelo critério da eficiência (92b). dar .. a partir de . seus próprios ca4. O acento das linhas pastorais rismas" (ib.). Vale dizer: os caris~ para a Vida Religiosa está nll ecle- mas estão acima de qualquer ensialidade. E um campo prático, por quadramento na pastoral orgânica. excelência da competência dos De particular importância é a· . pastores, e onde se' verificaram maIOr partlClpaçao e co-responsaatritos concretos, "tensões e conflitos" (92c). A proposta é, pois, que bilidade que os bispos se propõem a se abra um diálogo, que o documen- oferecer à mulher religiosa "na to infelizmente restringe ao nível programação da ação pastoral e ca• das "comissões mistas e outros or- ritativa" (90). O sentido e extenganismos previstos· no documento são deste propósito pode e deve ser da Santa Sé Mutuae Relationes" aprofundado, lançando mão do que (ib.) , quando seria desejável que o documento expressa mais adianté . se estendesse a todos os níveis, co- sobre as mulheres em geral (104110). Segundo esse texto, pouco se meçando pelos mais concretos, do dia-a-dia, entre párocos e religiosas. faria na pastoral, se não se contas· . se .. com a liderança feminina" e Base para o diálogo é o conhe- sua presença organizando e anicimento mútuo desde o tempo de mando a evangelização (109). Essa formação; Por isso . se recomenda o presença tão . marcante deve ser estudo da teologia de Vida Religio- adequadamente valorizada também sa nos seminários, bem como da no nível do planejamento, incorpo. teologia da Igreja particular e da rando as religiosas .. no processo de espiritualidade dos padres diocesa- tomada de decisões responsavelnos nas casas da fOllllação dos se- mente em todos os âmbitos" (ib:, einbora estranhamente a Igreja não ligiosos e religiosas (92c). seja citada na explicitação dos .. âmA partir do melhor conhecimento bitos", mas apenas · a família e a se poderá esperar que surta efeito sociedade). Entretanto, para que a busca de "." perfeita comunhão possa ser uma participação especícom o bispo e os presbíteros" por fica, desde o ser mulher e na ótica . parte dos :"religiosos e religiosas da mulher, haverá que .. criar espaque se encoÍltram trabalhando pas- ços" para que as religiosas, .tendo toralmente numa Igrejl! .. .particular" descoberto seus próprios valores (93; cf. 91b). Esta comunhão se e sabendo apreciá-los, possam "dar dará na devida acolhida da pasto- sua contribuição abertamente à soral orgânica por parte dos religio- ciedade e à Igreja" (ib.). No eno . . _ 111 tanto, para que a participação das religiosas seja efetiva, é necessário, por uma parte , que se superem as imagens estereotipadas que os va- , rões na Igreja (bispos, presbíteros e religiosos) ,têm com relaç,ão às mulheres em geral e às religiosas em particular (cf. 107); por outra, que se criem ""relações interpessoais baseadas no mútuo respeito e apreço, no reconhecimento das di~ ferenças, diálogo e reciprocidade" (109), ' 5, A dimensão profética ,de interpretação da sociedade não é muito explicitada. Ela poderá receber conteúdo da leitura atenta e discernida do capítulo sobre a promoção humana (157-227), onde os • religiosos e religiosas encontrarão descritos os desafios que a realidadê apresenta à Igreja nesse campo, e, a partir daí, poderão identificar o papel profético que a situação está a exigir da Vida , Religiosa. Num ponto , concreto de 'promoção humana que é simultaneamente , atuação cultural, os bispos visam explicitamente a ação da Vida Religiosa, a saber: no tocante à educaçao. Falando da problemática familiar, propõem-se "acompanhar e apoiar efetivamente os [ ... ] institutos religiosos que se dedicam à educação da infância, prestando especial atenção ao crescimento na fé" (227). E, ao tratar especificamente da . temática educacional, apelam às "Ordens e Congregações religiosas postas a serviço da educação católica", para que, caso tenham abandonado esse campo", 112 voltem a ele. Mas não de qualquer forma, senão entregando-se à educação dos pobres como meio de sua promoção humana, com uma recomendação especial para o trabalho educacional no meio . rural mais abandonado (275). Para interpretar corretamente ' esse n9 27b, será preciso partir de mais longe, pois ele está formulado ambigüamente. Depois de incentivar a volta' a escolas (e a primeira impressão seria que se trata das escolas tradicionais de classe média e alta), o DSD recorda "que a opção preferencial pelos pobres inclui opção preferencial pelos meios para que as pessoas saiam de sua miséria, e um dos meios privilegiados para isso é a educação católica". Essa cláusula, no entanto, não permite que se pense nas obras educacionais para classes abastadas, pois a elas os pobres não têm acesso e, portanto, elas tampouco oferecem os "meios para que as pessoas saiam de sua miséria". Resta concluir que o tex.to quer que se estenda a educação católica para os setores sociais mais desfavorecidos. Ou seja: que os religiosos e religiosas se dediquem à educação popular no meio dos pobres. Essa interpretação em prol de uma atuação da escola católica em meios populares , é corroborada pela intenção da Conferência de Santo Domingo de entender-se "em continuidade com as orientações pastorais de Medellín e Puebla» (302; cf. acima 1.2). E não apenas de forma geral, mas especifi- camente no tocante às orientaçoes suas limí tações a lacunas, perfeitareferentes à educaçao (263a). 'H á mente explicáveis ,em um documenaqui uma reafirmação solene e ex- to' que não tinha como tema a Vida plícita dos documentos sobre a Religiosa nem pretendia, portanto, educação de Medellín e Puebla, de 'esgotar o assunto. Além disso, uma forma que nao se encontra em considerando-se as circunstâncias outro capítulo do DSD. Ora, essas de sua elaboração bem como o Conferências anteriores recomen- curto espaço de tempo disponível dam, remetendo ao Concílio, "uma para redigi-lo, não se podia esperar efetiva democratização da escola muito mais. católica, a fim de que · todos os setores sociais, sem discriminação al1. Certamente SD passará à hisguma, ' tenham acesso a ela e nela tória como a Conferência Episcoadquiram uma autêntica consciên- pal da afirmação do pluralismo culcia social'" (Medellín, Educação, tural e da necessidade de incultu2.3; cf. Puebla 1040). E Puebla ração do Evangelho, um tema canchega a sugerir que se dê "priori- dente que abre imensas perspectidade, no campo educacional, aos vas à evangelização. Por isso, a lanumerosos setores pobres da nossa cuna talvez mais gritante do do,populaçao [ ... ], orientando para cumento seja não falar de incu/tueles, com preferência [ ... ] os serviços e recursos educativos da ração ao abordar a Vida Religiosa, nem desta quando trata daquela. Igreja" (Puebla 1043). Os bispos não tOmam conhecimenEssa perspectiva de uma conver- to do empenho já existente entre são da escola católica às classes po- religiosos e religios as por deba ter, pulares está em perfeita coerência aprofundar e pôr ,em prática a incom o apoio que os bispos se pro- culturação ("ver"). Não conside'põem a dar ,aos religiosos e reli- ram a inculturação como, elemento giosas, "sobretudo quando sua op- característico da Vida Religiosa, se ção pelos pobres os leva a postos quiser ser fiel ao desafio , de situarde vanguarda de maior dificuldade se na vanguarda ou nas fronteiras ou de inserção mais comprometida evangelização ("julgar"). Tamda" (92e). Sem. dúvida um desses pouco recomendam um especial é a educação no meio popular. Aliás, no n'l 275, cita-se em con- empenho ' nesse sentido, a não ser se propõe a indiretamente, quando creto o caso do ambiente rural mais "apoiar e assumir o ser e a presenafastado e necessitado (27'5). ça missionária dos religiosos na Igreja particular", sobretudo na 3. i.4 Limitações e lacU/Uls "inserção mais comprometida" (92e) , Ora, a inculturação é a A leitura orgânica do que o DSD diz sobre a Vida Religiosa, permi- conseqüência mais radical da inte ver mais claramente onde estão serção. 113 Por outra parte, esta lacuna pode ser preenchida à luz do documento como um todo. Se há uma insistência tão grande na evangelização inculturada que é uma das três "linhas pastorais prioritárias" (297; 302; Mensagem 320, e aos religiosos e religiosas compete "estar na vanguarda da evangelização das culturas" (91b), então evidentemente o silêncio é mera conseqüência da pressa com que o texto de SD foi redigido e não omissão proposital ou intenção de excluir os religiosos e religiosas da tarefa da incuIturação que deve caracterizar a nova evangelização, se quiser responder ao apelo do Papa, sendo "nova nos métodos e na expressão". Para comprovar que se trata de omissão - circunstancial, basta percorrer o DSD e -verificar quem sao os sujeitos do processo de inculturação. e da competência "das Igrejas particulares sob a direção de seus pastores", mas deve ter também "a participação de todo o povo de Deus" (23.0 b). Dentre estes "catequistas e agentes pastorais" serão "instrumentos especialmente eficazes da incuIturação do Evangelho" (49). Ora, entre estes se contam, sem dúvida, os religiosos e religiosas. Nesse _processo, o evangelizador é convidado "a compartilhar sua vida com o evangelizado" (230a), segundo o modelo da encarnação, incuIturando-se "no modo de ser e de viver de nossas culturas [ ... ], especialmente as indígenas e afro-americanas" (30). Esse o ideal que a Vida Religiosa 114 inserida tem procurado realizar. Nesse espírito, pode-se e deve-se aplicar à Vida Religiosa o que é dito dos movimentos: "E necessário acompanhar os movimentos em um processo de inculturação mais definido e alentar a formação de • • movImentos com uma maIOr característica latino-americana" (102d). A afinidade entre Vida Religiosa e inculturllção é sugerida por outros textos do DSD. Se aos relic giosos e religiosas cabe "estar Da vanguarda da evangelização das culturas" (9th), é tarefa sua também a inculturação, que está em íntima relação com aquela (229b 253b). Se à Vida Religiosa compete "irradiar os valores do R~i no" (85b), -não se esqueça que a inculturação visa a _"alcançar uma maior realização do Reino" (248g). Se a experiência testemunhal dos religiosos e religiosas os leva a estar do lado dos fracos e indefesos (85c), considere-se que essa é "uma meta da evangelização inculturada" (243c). O mesmo DSD que valoriza o papel dos religiosos e religiosas educadores (275), estabelece como compromisso da Igreja "no campo educativo" colocar-se na linha pastoral da inculturação" (271), pois "a educação cristã é [ ... ] a inculturação do Evangelho na própria cultura" (263b). 2. Conexa à lacuna no referente à inculturação, está o silêncio sobre o pluralismo cultural interno à própria Vida Religiosa. O espírito da Conferência permite que esse silêncio se torne voz. Se na Amé- rica Latina não há uma cultura única, mas uma pluralidade cultural, daf decorre obviamente que tam. bém dentro da Vida Religiosa se encontram pessoas provenientes das diversas culturas. 05 bispos se .. propõem " procurar fomentar as vocações que provenham de todas as culturas presentes em nossas igrejas particulares" (80c). B verdade que, segundo o -título 1.3.2, trata-se das "vocações ' ao ministério presbiteral". Mas a referência às mensagens do Papa aos indígenas e aos afro-americanos, onde, nesta última, João Paulo II fala explicitamente das vocações à Vida Religiosa, bem como a expressão "vocações consagradas" no n'! 80a .. . mençoes -..a vocaçao .e as vanas pa' ra a Vida Religiosa (42 82b 293b Mensagem 30), fazem crer que é legítimo estender a preocupação a esse campo. Os religiosos e religiosas (indígenas e) afro-americanos, que o Papa deseja sejam numerosos (Mensagem aos afro-americanos, n'! 5; cf. Mensagem aos indígenas, n" 6), influenciarão a própria Vida Religiosa pela pluralidade de suas culturas, pois não teria sentido (segundo o espírito da mensagem do Papa e do DSD) que, para se tornarem religiosos, tivessem que renunciar a suas raízes culturais. .. 3. Puebla . descobrira · no estilo de vida comunitária' uma das ten-. dências da Vida Religiosa que procuráva tamb.ém incentivar (Puebla 730-732; cf. .764). Estranhamente o DSD não se refere a este aspec- to. No entanto, teria sido possível valorizá-lo como contribuição da Vida Religiosa à Igreja e à sociedade. No âmbito eclesial se observa cada vez mais a necessidade de verdadeiras comunidades para incentivar a vida de fé (p. ex. 142a 156a 259); na sociedade, os tem, pos presentes levam a repensar as relações sociais numa ordem democrática (190-193), numa nova ordem econômica 094-203), na perspectiva da integraçao latinoamericana (204-209) . Em tudo isso, as comunidades religiosas, especialmente as que são testemunho imediato junto ao povo por sua inserção na vida cotidiana, poderiam ter um papel como interpelação à sociedade (85b) e à Igreja, numa verdadeira dimensão profética. 4. Outra lacuna diz respeito ao papel e importâncias das Confer~n cias de Religiosos e em especial da CLAR. Em vez da propõsta de vários bispos que queriam constasse o papel decisivo das Conferências na renovação da Vida Religiosa depois de Medellín e Puebla, a comissão .de redação preferiu ater-se a uma formulação ' meramente jurídica que se refere às Conferências com o nome pouco usual adotado pelo Código de Direito Canônico, indicando apenas as funções mais estritas atribuídas às Conferências pela legislação vigente. Aliás, aqui se encontra, fora o n" 89, o único parágrafo do DSD que cita o Código de Direito Canônico! Com isso, a vitalidade das Conferências de Religiosos e Religiosas em nosso Continente ficou encoberta sob 115 uma capa jurídica e pouco inspi- . concretas, é esquecido a princípio. radora. Uma lamentável omissão Assim, na importante secção dedisem dúvida ocasionada pelas sus- cada ao tema "comunidades cclepeitas e desconfianças que levarain siais vivas e dinâmicas· (54-64), à intervenção na CLAR. nem uma única ·vez é mencionada 5. Em conexão com esta lacuna, a leitura da Palavra de Deus! Nem pode-se citar também o silêncio so- sequer ao tratar das CEBs (61-63). bre a intercongregacionalidade pro- Mais sério ainda é que ao buscar movida pelas Conferências, não só remédios pastorais à corrida dos como expressão da ajuda fraterna católicos às seitas fundamenta listas a Institutos com poucos meios, mas cristãs, não há nenhuma linha pastambém como forma de partilhar toral que incentive claramente a a experiência coml.\m. Aqui não se leitura da Bíblia: o n<i 142a cita, . nota apenas silêncio, mas também entre muitas outras atividades e orcerto temor de que a prática da in- ganizações, os círculos bíblicos; o tercongregacionalidade leve à nive- n<i 143, inciso d), propõe cultivar lação dos carismas que perderiam "a devoção à Palavra de Deus lida na Igreja", como último dos quasuas peculiaridades (85e, 92b). Dada, porém, a explícita determi- tro aspectos característicos da idennação de fidelidade a Medellín e tidade da Igr.eja, sendo os três anPuebla, pode-se seguir estimulando teriores a devoção à eucaristia, ·a "a abertura a relações intercongre- Nossa Senhora e ao Papa com o gacionais nas quais, respeitados o bispo diocesano. pluralismo de carísmas particulaEm outros momentos se recorda res e as disposições da Santa Sé, se promova a união" (Puebla 764). a importância da Escritura face a problemas concretos, como a pas6. Cite-se ainda uma lacuna sutoral familiar (225). Mas a imamamente grave: o silêncio sobre a gem estereotipada e idealizada de leitura oiante da Bíblia como elefamília cristã (214d) dificulta saber mento fundamental de renovação o que isso significaria concretamenda Vida Religiosa no Continente. A recordaçao da polêmica em tor- te. Há ainda um breve aceno a que no ao projeto "Palavra·Vida" da os leigos, frente à cultura moderna, CLAR terá ocasionado o silêncio. exerçam o profetismo "no campo Mas não se justifica que a impor- da Palavra" (254d) e que se protância da Palavra de Deus na vida mova sua formação bíblica (258). da Igreja não seja ressaltada nem Fora de contextos concretos, chegasequer nas demais partes do do- se até · a falar em pastoral bíblica cumento! Apesar de afirmações co- (38b) ou da necessidade de um "sólido conhecimento da Bíblia" mo: "Esta evangelização terá força renovadora na fidelidade à Palavra (49) por parte de catequistas c de Deus" (27b; cf. .33c 33d 76b agentes pastorais. · Mas fica nessa 123b) , na hora das orientações generalidade. 116 Sendo esse infelizmente ' o espírito do documento com respeito à Palavra de Deus, não há por que estranhar sua ausência ao tratar da Vida Religiosa. Pode-se, pelo menos, estender aos religiosos e religiosas a exigência de "sólido conhecimento da Bíblia" requerido de "catequistas e agentes pastorais" (49). 11 hem pouco, mas já é algo. 3.2. Leitura do texto em chave cristológica de Cristo" (85h) poderia ser entendida numa perspectiva antes mística e intimista que histórica, principalmente quando explicitada: em termos de "identificação" (ih.). Entretanto, os aspectos seguintes que atribuem à Vida Religiosa a função de irradiar os valores do ' Reino e interpelar a sociedade permitem ver que a perspectiva histórica e quen6tica estão suficientemente presentes. Os valores do Reino são bem explicitados na citação de João Paulo II na homília da Catedral de Santo Domingo: a acolhida da Palavra de Deus, a proximidade aos pobJ,"es em solidariedade fraterna, a manifestação de amor Ilos marginalizados, a atenção aos sem voz, a defesa e ajuda aos injustiçados (85c) . A leitura dos textos referentes à Vida Religiosa, usando a chave pas-' toral inspirada na perícope de Emaús e tratando de resgatar e coordenar dados dispersos pelo documento para estabelecer um projeto para a Vida Religiosa no espírito de SD, levou a uma visão bem mais ampla, profunda e positiva so·bre a Vida Religiosa do que à pri11 com essas atitudes que se inmeira vista parece haver no DSD. A leitura ein chave cristol6gica po- terpela a ' sociedade. Ao fazer-se ,derá complementar, detendo-se na isso, pode-se ser incompreendido parte de "julgar", pois esta chave pelo mundo, desprezado, perseguide leitura interessa às partes do do- do e condenado à morte, tal como cumento consideradas ou denomi- foi o caminho de Jesus "ontem" . , Desta forma, a identificação com nadas "iluminação teológica". Cristo em sua cruz e ressurreição" Trata-se de retomar a ' análise (85h) adquire uma conotaçao conacima (3.1.2) e perguntar se a ilu- creta e histórica hem forte. Não minação teológica encontrada leva fica no mero campo da intencionaem consideração a identidade entre !idade. E justamente assim se gloo "Jesus Cristo ontem" e o "Jesus rifica a Deus (cf. o sermão após a Cristo hoje e , sempre". Vale dizer: ceia no Evangelho de João) . é preciso perguntar se está presenA cristologia que fundamenta te a dimensão histórica e quenótiteologicamente a Vida Religiosa, ca (o "ontem") de Jesus. , parece, portanto, levar a sério que Num primeiro momento, a parti- o "Jesus Cristo ' hoje", presente na cipação .. do mistério e da missão comunidade, é "o mesmo Jesus U 117 Cristo ontem", "que, em vez da mais que pareça urna imprestável alegria que lhe foi proposta, supor- cana rachada. Ministros que aIristou a cruz, desprezando a vergo- cam a vida pela vida de seus irnha, e · se assentou l\ direita do tro- mãos e irmãs de comunidade (e em no de Deus" (Hb 12,2) . .A Vida nosso Continente isso significa Religiosa, reconhecendo esse mes- ·" ·muitas vezes ser morto em defesll mo Jesus "hoje e sempre" sentado da sobrevivência física dos injus"à direita do trono de Deus", não tiçados, como o foram Mons. Osesquece a necessidade de sair "ao car Romero e Mons. Angellelli). seu encontro fora do acampamento, Fará da tônica geral, há textos cocarregando a sua humilhação" (Hb mo os n"'s 74b e 75b que são ver13,13) . dadeiramente inspiradores. Se a cristologia implícita na visão de VR respeita a dimensão histórica e quenótica da vid.a de Jesus e, · em conseqüência, da vida do cristão, o mesmo não se pode dizer da eclesiologia. Esta parece ter um único paio: a Hierarquia e uma comunhao com a mesma que não é feita de participação, mas de submissão. Não aparece aí a dimensão histórica: a Igreja como povo peregrino de Deus que · no decurso da história precisa aprender a "dar razão de ·sua esperança" e buscar a vontade de · Deus não conhecida de . antemão, a Igreja de participação e comunhão, que se constrói, participando na responsac bilidade e na "solicitude por todas as Igrejas". Praticamente não aparece a dimensão quenótica: a Igreja servidora, cujos ministros são primeiramente servos à semelhança do Servo de Javé (Mc 10,43-45) que não quebra a cana rachada nem apaga a mecha que ainda fumega (Is 42,3) e dá sua vida pelos demais Os 52,13 53,12). Ou seja: ministrós que não falam · nem atuam a partir de sua superioridade, mas dando voz a cada um, por 118 Na Igreja em que "Jesus Cristo ontem", o ·Servo de Javé, que "aprendeu a obediência pelo sofrimento" (Hb 5,8), é "o mesmo Jesus Cristo hoje", Senhor da Igreja, que continua em seu corpo a aprender ao embate dos acontecimentos e não tem tudo já resolvido e pronto por inspiração não mediada historicamente, nessa Igreja, nao precisaria ha~er tanta preocupação pela ·comunhão, porque se saberia que a comunhão é dom de Deus e tarefa de todos (não apenas dos não:pastores). A dimensão da ec1esialidade da Vida Religiosa seria posta em outra perspectiva: na da colaboração mútua, pela qual a Hierarquia aceita ser interpelada pelo profetismo próprio à Vida Religiosa, porque · teme extinguir o Espírito (cf. lTs 5,18-21) que sabe não ser monopólio seu. Nesse Espírito, a Hierarquia exerce seu profetismo específico, procurando não pré-julgar, mns sim provar tudo, para ficar com o que é bom. Nessa eclesiologia, a Igreja teria mais confiança na condução do Espírito do que na segurança da Lei. CONCLUSAO Com todas as limitações e lacunas de uma obra humana (às vezes demasiadamente humana), a Conferência de SD abriu espaço para a Vida Religiosa dar um passo adiante , na busca de sua identidade e da fidelidade ao chamado do S~nhor, prosseguindo em sua experiência testemunhal de proximidade aos pobres e pequeninos. Vale agora, como conclusão, enumerar pelo menos alguns ganhos da Vida Religiosa com o DSD. 1) A síntese de teologia da Vidro Religiosa expressa no n'? 8Sb. 2) A referência positiva às mulheres consagradas.' 3) O apoio aos religiosos e religiosas inseridas e que vão aos que estão , à margem da sociedade. 4) A evangelização da cultura (inculturação) como tarefa dos religiosos e , religiosas. QUEST()ES para a leitura ,individual do texto ou para o debate em comunidade: 1. Como nos situamos pessoalmente diante da crítica do autor aos «vazios" teol6gicos do documento de Santo Domingo? Nossa' idéia de Trindade esquece por vezes alguma das pessoas ou supervaloriza uma em prejuízo de outra? Cristo é realmente o Filho enca;nado ou acen- ' tuamos mais o Senhor da Gl6ria? Como entendemos a cruz no con· texto da vida de Jesus? Como tudo isto se reflete em nossas atitudes pastorais? 2. Ao falar da vida religiosa feminina ,o documento de Santo Domingo tem as melhores e maiores frases de reconhecimento. ,Estaria realmente a vida religiosa masculina .respondendo menos aos c/amores do Espírito? 3. Consideradas as características da vida religiosa apresentadas pelo documento quais nossa comunidade concreta parece melhor realizar? Quais mais nos desafiam? 4, Você vê dificuldade em conciliar a "perfeita comunhao" com o bispo e os presbíteros pedida pelo documento e a declaração do aufor de que os • carismas estão acima de qualquer enquadramento na pastoral orgânica "? O Catecismo da Igreja _Católica Um dom privilegiado este Compêndio da fé e da moral católica no qual converge e se concentra' em harmoniosa síntese o passado da Igreja com sua tradição, sua hist6ria de escuta-anúncio· celebração-testemunho da Palavra, com seus Concílios, seus Doutores, seus Santos. João Paulo 11, ao apresentar o Catecismo da Igreja Cat6/ica, no dia 7 de dezembro de 1992. 119 • UM ESTILO DE EDUCAÇÃO: · AS IRMÃS SALESIANAS E A PRÁXIS EDUCATIVA NAS ESCOLAS "O jovem que cresce pelas vossas estradas primeiro vos pedirá uma esmola, depois a exigirá e, por fim, vos obrigará a dá-la com o rev6lver em punho:', Dom Bosco em 1886. Irmã Olga de Sá, FMA . Sao Paulo, SP I - Os inicios D. Bosco é conhecido na história da educação mundial como o Apóstolo da Juventude, o criador dos Oratórios Festivos e do Sistema Preventivo, baseàdo na Razão, na Religião e no Coração. Na verdade, D. Bosco procurou um modo de educar para a cidadania e a honestidade, fundamentando a educação na fé cristã e na profissionalização. Os meninos de Turim não eram propriamente delinqüentes, mas conheciam as prisões. Não tinham trabalho, nem onde dormir ou o quê comer. Careciam de uma profissão, uma família, um amigo (1). Nas Mem6rias do Orat6rio, D. Bosco reflete: "Quem sabe, ·tlizia 120 • • • cOlD1go mesmo, se estes memnos 11vessem fora tlm amigo que se preocupasse com eles, que os assistisse e os instruísse na religião nos dias festivos, não poderiam permanecer longe da ruína, · ou, pelo menos, diminuiria o número dos que voltam para as prisões" (2)? Havia necessidade de preparar os jovens para o mundo do trabalho. Vindos do meio agrícola e rural traziam uma devoção, baseada nas tradições e no folclore, que não resistia no meio urbano. "Essa religiosidade popular, no . caso particular da massa dos operários imigrados, entrava em crise ao tomar contacto com a nova realidade da vida da :cidade. Desenraizados de seu meio rural. limitados pelo analfabetismo, e dominados pelo ritmo esgotador do trabalho e nelas explorações de todo tipo, não conse- guiam estabelecer uma nova síntese religiosa.. Por outro lado, enquanto a promiscuidade das fábricas favorecia a imoralidade, os operários procuravam esconder suas mágoas·e seu vazio, entregando-se ao ' vício. A situação da ' massa proletária em Turim apresentava-se assim complexa e problemática" (3). Enquanto não podiam ganhar a própria vida, era preciso dar-lhes casa, roupa, comida e diversão sadia. Exigia-se local e dinheiro. O Oratório teve de perambular por Turim e arredores, desde seus inícios em 1841 até fixar-se, definitivamente na "Casa Pinardi", em abril de 46 (4). D. Bosco defendia a idéia de que o ambiente também educa e procurava reter os meninos em ambiente sadio. Como nao ti-' nham família nem casa, procurou dar-lhes ambas as coisas. Foi assim . que Mamãe Margarida (a mãe de D. Bosco) perdeu seus poucos lençóis e cobertores, roubados pelos primeiros "hóspedes" que abrigou e, viu dizimada sua horta pelos "soldados" do Oratório de Valdocco, que brincavam de combate e guerra. Em outras palavras: " D. Bosco acabou fundando internatos (colégios) e escolas profissionais. Assim também :Maria MazzarelIo, em Mornese. À " primeira oficina de costura, onde reunia as meninas, se.. guiu-se .b primeiro Colégio e as primeiras internas e daí, as "vocações". Daquela primeira célula as F . M. A. ou Salesianas de D. • • • Bosco se espalharam, mlsslonarias, pelo mundo todo. A primeira Casa, no Brasil, é um Colégio pata 200 meninas: o Colégio Nossa Senhora do Carmo, em Guaratinguetá, hoje completando 100 anos, com cerca de 2.500 alunos e ~lunas. . Embora as F. M. A.,. no Brasil, ,tenham também se dedicado a Hos'pitais, Santas Casas, Asilos, a maioria de sUaS obras até 1971 (quando se inicia o movimento das Comunidades inseridas) são Escolas. Houve grandes internatos para meninas na época em que as famílias tinham dificuldade de encontrar, em certas regiões, sobretudo no interior dos Estados, escolas para suas filhas. Passada a época dos internatos, as Escolas ainda tive· ram mais espaço para multiplicar as salas de aulas e cresceu o número de alunos e alunas. Dos internatos e das Escolas saíram muitas vocações. Para ter colaboradores permanentes, 'na obra da educação da juventude, D. Bosco resolveu fundar uma Congregação Masculina e, depois, uma Feminina. . Em 1879, D. Bosco descrevia, num relatório apresentado ao Conselho de Estado Italiano, os inícios da Congregação Salesiana: "Desde o ano de 1841 o Sac,!rdote Bosco, ajudado pela caridade dos particulares e pelos subsídios do governo, vai recolhendo jovens abandonados e abrigando-os em 121 sua casa, para salvá-los dos perigos da indigência e da corrupção das ruas. Provê-os de alimento e vestuário e, como bom pai, dedica-~e a dar-lhes uma educação cristã. Não sendo ele suficiente para tao .. grande empresa, procura reunir outros, para que o ajudem, animados da mesma caridade. A este faz aprender um ofício; àquele, outro. E como nos nossos tempos tornouse necessidade saber ler, escrever e fazer contas, ele, aproveitando os retalhos de tempo que sobra ao tra. balho, provê setis filhos adotivos de uma conveniente instrução. Alguns, porque dotados' de brilhante inteligência ou porque pertencentes a famílias decaídas, costumam ser destinados ao curso técnico, ao francês, e também a alguns anos de estudo clássico. minários e a lei de· 29 de maio de 1855 decretava a supressão das Ordens Religiosas, que não se dedicavam à educação, à pregação e à assistência aos doentes. Em 1857, em conversa com o Ministro Ratazzi, este lhe aconselhou a dar à sua instituição um cunho civil, isto é, a caracterizá-la como uma associação de cidadao$ dedicados à beneficência. Conservariam, diante do governo, os direitos civis e::,. diante da Igreja, o esta tu to de l,-apgregação religiosa . Deste modo, se contornavam os ataques do Liberalismo e do anticlericalismo, .que também dominavam a sociedade brasileira, em 1885. A Congregação Masculina se chamou Sociedade Salesiana, o suCom este meio, provêm-se de perior das comunidades se chamou alunos compositores a tipografia Diretor (como numa Escola ou Insdo Instituto, de assistentes o esta- tituto de Educação), o Provincial belecimento, enquanto não poucos · foi chamado Inspetor. D. Bosco seguem a carreira militar, ou os es- adequava-se à mentalidade leiga e tudos literários, conforme lhes pa- isso pouco lhe importava, desde Tece poder chegar a ganhar o ho- que a Religião, isto é, a evangelinesto sustento no mais breve espa- zação da juventude fosse asseguço de tempo. Dessa maneira se pu- rada, como conteúdo da educação. deram secundar as propensões dos • • • Os colégios eram ClUias e o amnossos Jovens e orgamzar· um SIStema . educativo conveniente a· um · biente educativo devia ter o clima instituto que em breve chegou a de Família, em que os educadores recolher cerca de novecentos joven- eram pais. A educação e até a sanzinhos, pois tantos são presente- tidade devia efetuar-se na alegria mente os alunos do nosso Institu- e por isso os jogos no pátio, o teatro; a música, os passeios, o canto, to" (5). a presença do educador entre os D. Bosco fundava uma Congre- jovens, vivendo com eles, foi semgação religiosa, na Itália, numa pre a marca registrada da educação época em que se fechavam os Se- salesiana. 122 • As escolas profissionais, agrícolas, os internatos, seminários, sempre foram preferidos pelos Salesianos. o "estilo" salesiano é ·o mesmo do "diálogo pastoral" de D. Bosco com os jovens. Adaptando-se às circunstâncias, D. Bosco multiplicou os colégios, num estilo de eduCàção que se situava nas antípodas do severo jansenismo de sua época, baseado na repressão e nos cas• tJgos. A famosa carta de Roma, de 10 de maio de 1884, em que D. Bosco lamenta o estado dos Oratórios, indica os pontos que lhe parecem críticos e· devem ser corrigidos para que voltem os dias felizes do Oratório . primitivo: 1. a presença constante dos Superiores e Professores em meio aos • • Jovens, no recreIo; 11 A siluaçio da escola no Brasil Até 1870, isto é, há duas décadas do · final do Império, apenas 15% da . população, em idade escolar, freqüentava· escolas de nlvel primário e secundário. Em nível superior, havia poucas escolas isoladas destinadas à formação de profissionais liberais, especialmente no campo . do Direito. Nem tínhamos uma Universidade . Ao terminar o Império, não havia um sistema ·integrado de ensino. O primário nada tinha a ver com o secundário. o. curso secundário, excetuandose o Colégio de Pedro 11 e outros poucos estabelecimentos, nem chegava a se constituir num curso seriado; era formado por -disciplinas avulsas, orientadas para os exames de ingresso aos cursos superiores 2. como conseqüência, o clima (6) . de amor e confiança entre jovens · A vinda da Família Real Portue superiores; guesa para o Brasil e a Illdepen3. o espírito de condescendência dência tinham contribuído no sene tolerância de uns para com os ou- tido de que se orientasse a educatros, por amor de Jesus Cristo, com ção brasileira para a formação das poucas normas disciplinares; elites dirigentes. Além de algumas isoladas iniciativas legais - méto4. os corações abertos com toda do Lanc.aster, gratuidade do ensino, simplicidade e candura; criação de escolas etc. - nada mais 5. a caridade e verdadeira ale- realizou o governo central, embenefício do ensino primário, deixagria para todos; do ao encargo dos governos provin6. o . amor e devoção a Nossa Se- ciais. O ensino técnico-profissionhora Auxiliadora, que reúne os nal foi completamente marginalizajovens nos Oratórios e os coloca do. Ficamos sendo o "país dos sob sua especial proteção. bacharéis" . 123 o curso normal praticamente só se desenvolveu a partir do final do Império e, assim mesmo, enfrentando enormes dificuldades, com . a falta de professores qualificados e condições precárias . de ensino. A separação entre Igreja e Estado foi . decretada em janeiro de 1890. " A debilidade das classes médias e do proletariado urbano propiciou a preponderância das ' oligarquias rurais até 1930" (7)'Os ideais republicanos - federa. ção, democracia, convivência social, progresso econômico, independência cultural viram-se frustrados no decorrer da Primeira República. A frustraçao gerou a crise e veio a Revolução de 1930. Vários princípios foram intensamente discutidos no decorrer da Primeira República, tornando-se preceitos constitucionais a partir de 1934: a) gratuidade e obrigatoriedade do ensino de 1'1 grau; b) direito de todos à educação; c) liberdade de ensino; d) obrigaçao do Estado e da Família no tocante à educação; e) ensino . religioso . de caráter multiconfessional. . Quando os Salesianos chegaram ao Rio de Janeiro (1883), o abandono juvenil, especialmente em conseqüência da Lei do Ventre Livre (1871) era impressionante. Em 1882, portanto em 11 anos, segun124 do O. Lasagna, chegavam a duzentos mil os jovens abandonados. Na última década da Monarquia porém o anti-clericalismo era tão intenso que os Salesianos sentiram-se inseguros, quanto" à fundação de Oratórios. Riolando Azzi afirma que não foi só a oposição encontrada que levou os Salesianos, tanto na Itália como em outros países e no Brasil, . a preferirem as Escolas profissionais, que recolhiam meninos pobres ou de . família remediada, onde aprendiam uma arte ou ofício. "Desse modo, as" escolas profissio- . nais suplantavam progressivamente o trabalho dos oratórios festivos" (8) . "A finalidade de D. Bosco era transformar meninos pobres, vindos em geral da área rurál e ocupados em sub-empregos, em operários qualificados, . que pudessem posteriormente ganhar o próprio sustento de forma digna e condizente com a sua capacidade" (9). Nas Escolas Profissionais, D. Bosco via uni meio eficaz e prático de resolver a questão social, que começava a se aguçar na · Europa em vista da rápida urbanização e industrialização. Dizia em Lyon, em 1883, e em Barcelona em 1886: "O jovem que cresce pelas vossa,s estradas, primeiro vos pedirá uma esmola, depois a exigirá e por fim vos obrigará a dá-la com o revólver em punho" (10). • A Congregação Salesiana foi pioneira no ensino profissionalizante para jovens no Brasil, mantendo a mais antiga das escolas profissionais particulares, fundada em 1884, no bairro de Santa Rosa, em Niterói. As "duas grandes metas buscada& por Lasagna foram a assistência aos imigrantes e a evangelização dos índios. A fundação do Liceu Coração de Jesus em São Paulo foi orientada nessa linha; devia ser um centro de atendimento aos imigran~ tes italianos da região, e a9 mesmo tempo uma baú de onde os futuros missionários partiriam em demanda das selvas do Mato Grosso" (lI) . As Irmãs também fizeram o mesmo e hoje o espírito missionário da Congregação continua vigoroso, superando as . idéias "um tantinho românticas sobre a missão entre os selvagens", que tinham, no século XIX : Agora, o espírito missionário levou as Irmãs do Brasil para a Africa, em busca de nossas raí- · zes negras. Como . a finalidade primeira da ação dos Salesianos sempre foi a educação religiosa, os liberais a eles tenazmente se opuseram. O patrocínio que a Princesa Isabel e o Conde d'Eu acusados de clericalismo ofereciam às instituições religiosas prôvocava forte hostilidade da imprensa liberal. A respeito da hip6tese dos Salesi anos abrirem uma obra em Petrópolis e outra em Friburgo, escrevia um articulista de A Folha Nova, referindo-se ao bom clima daquelas cidades: · " (. .. ) asilos de Salesianos, de Jesuítas ou de outros educadores de igual jaez, antes mil vezes a ausência desses simulacros de casas de ensino. As condições sanitárias do lugar periclitariam mesmo; com os roupetas viria o impaludismo moral e físico" (12). 111 O Vale do paraiba O Vale do Paraíba para onde vieram os Salesianos primeiro e, as Irmãs depois, ainda era na época, uma região progressista pela cul tura do café e pela situação geográfica privilegiada, entre Rio e São Paulo(13) . Prenúncios de ·decadência da região, em 1870, acentuam-se com a Lei Áurea (1888), pois o café fora implantado com o apoio do braço escravo" Lorena era uma. cidade importante no tempo do Império. Prosperava ali a aristocracia dos bar<~es do café " Porém, em 1883, as fazendas do Vale começam a periclitar e 50% de seus proprietários estao em situação deficitária" A mão de obra livre estrangeira, os imigrantes, não encontravam bons salários no Vale, entre os fazendeiros individados e, se voltavam para o Oeste Paulista a nova e próspera zona do café. . Como as F . M. A .., naquela époda ca, dependiam canonicamente" . . 125 Congregação Salésiana, a instala. ção dos Salesianos sempre precedeu a das Irmãs. Desde que os Salesianos se fixaram em Niterói, a vinda das Irmãs, para o Brasil, foi ventilada com freqüência. A .. aristocracia residente em Petrópolis manifestara ao Inspetor Salesiano, D. Lasagna, o desejo de que lá se fundasse um colégio de Irmãs. "Na perspectiva de Lasagna, a missão dos Salesianos e das F.M.A. na América Latina deveria ser não apenas o cuidado da juventude pobre e abandonada, mas também a abertura de colégios para as classes· médias, a fim de contrapor o ensino religioso ao ensino leigo· (14). Escrevendo ao Pe. Cagliero, D. Lasagna pede a vinda de dez Salesianos e dez Irmãs. · Que entre . elas haja algumas "bem instruídas támbém em piano, em bordado e na língua francesa" (15). Mas as Irmãs não vieram logo: havia o forte anti-clericalismo e a febre amarela, no Rio de Janeiro. D. Lasagna deslocará a obra salesilma para o eixo Rio-São Paulo. Mas ao invés de iniciar a obra das F. M . A . nos "grandes centros urbanos, onde o · espírito liberal era mais forte, Lasagna preferiu trazêlas para cidades do interior, onde .a tradição religiosa se · mantinha mais forte, e a população mais respeitosa para com os ministros do culto e as pessoas consagradas (16). 126 IV A escola coniessional católica hoje Os desafios da Escola hoje, especialmente da Escola Confessio- ·· nal Católica são de todos conhecidos. A Escola Particular é uma Empresa, o Diretor um Empresário, os Professores e Funcionários sao trabalhadores em regime de C. L . T . Os Pais e alunos, consumidores do produto, chamado ensino. E fácil, portanto, no regime capitalista em que vivemos, caracterizarem-se as relações entre as Mantenedoras e Funcionários, como luta de classes, marcada pelos conflitos patrão·empregado-consumidor. A Escola confessional Católica tem seu corpo e estrutura ancorados em duas realidades, que se opõem entre si: lio regime capita. lista, é uma empresa e . tem que submeter-se às suas regras. Inserida porém, na Pastoral da Igreja, é um lugar de Evangelização e a educação da infância e da juventude, uma experiência de Deus, na vida do educador. . Durante estes últimos anos, no Brasil, a Escola foi assumida como arma política, seja pela "esquerda", seja pela "direita". A mídia realizou um processo de desgaste. da imagem da Escola particular, · diante da sociedade brasileira . A conclusão é que a Escola incomoda. Instrumento valioso da educação da liberdade e da consei- ência, o Estado a assume e/ou a reprime, a "esquerda" quer estatizá-Ia e a "direita", orientá-la. ~ um espaço educativo, onde se reúnem, obrigatoriamente, milhares de crianças e jovens e muitos funcionários, que legalmente têm ' de ser qualificados, sem contar seu valor como pessoas. f. um espaço idealmente democrático; pluralista, onde as relações de poder deveriam . ser desestabilizadas pela produção do saber. O saber ' compartilhado, com o educando e a comunidade, contribuiria para a formação de . cidadãos cristãos, conscientes de seus ' direitos e deveres e os dos governantes. o Estado capitalista e autoritário . ,do 3 9 mundo atrelado ao Estado capitalista do 1'? mundo alimenta a "consciência ingênua" dd povo. A ," esquerda" quer suprimir a liberdade de escolha da família, . combate o pluralismo religioso e deseja uma Escola instrumentalizada pela "ideologia" do Estado. ~ supérfluo dizer que as F.M.A. F.M.A. têm aprendido a administrar os conflitos sociais, procurando assimilar sua natureza dialética, superando ressentimentos e evitan- ' 'do reações ineficazes, quando presas , a um passado saudosista. A realidade mundial e brasileira são os contextos que condicionam os conflitos locais'. As sete Inspetorias brasileiras (províncias) com cerca de 152 casas ,e 1.282 Irmãs, decidiram criar em 1986, depois de um Congresso da AEC em Brasília e o I Congresso Nacional das Escolas Salesianas, em Anápolis, uma Equipe Interinspetorial de Pastoral da Educação Escolar. O ponto de partida das reflexões foi a .urgente , necessidade de inserção da escola no social, no momento político da Constituinte e a luta por uma Escola democrática, redescobrindo a dil:nensão pastoral da tarefa do educador, pessoal e sócio-política. ' Não podendo, neste espaço, enumerar todas as experiências de de~ que têm casas de ~~ucação nos mocratização da educação e de Escinco continentes Ja passaram I alo d I '. f co a para o povo" re lZa as pe as por mUitas trans ormaçoes e revo- S I ' t 'd .d -. E h Mé . " a eSlanas, em o as as reglOes o Iuçoes. na span a, no XICO, em B '1" I . . d' Ch' raSI, mc uSlve entre os ' m Igenas, · CUb a, EI S a1va d or, N Icaragua, 1d ' 1 I' h d Ch' J , estacaremos a gumas f i as e · P IA' Ie" A rgen t ma, o oma, ma, aE . I' . 1 P t I I I d Ch 1 á açao, que a qUlpe ntermspetona pao, 01' uga, r an a, eco osv bl' h E E' . I I" M b' A tentou su m ar. ssa qUlpe tem qUla, oçam Ique' p r n-o c u r ad ' e um'f'Icar os P roI t ugos aVia, o reumr go a e c. ' jetos Educativos e as experiências nas várias regiões do v - As escolas das saleslanas: realizadas" Brasil, sob os mais diversos nomes alguns pri~crplos e as mais diferentes fOllnas, manNo Brasil, desde há 100 anos, tendo as características do Sistema multiplicaram-se os Colégids. As Preventivo de Dom Bosco. 127 Considerando, portanto, quanto possível a realidade da Escola inserida nos diversos contextos, a situação de conflito foi assim caracterizada: 1_ crise mundial dos sistemas econômico-sociais - Capitalismo e Comunismo " gerando ansiedade e incerteza na busca de novos caminhos "poüticos e econômicos; 2. situação nacional de reorganização política e econômica da sociedade, depois de um longo período de autoritarismo, seguido de "grandes desilusões; 3. crise ética em todas as dimensões da vida Nacional, inclusive dos fundamentos da democracia: poder executivo, legislativo e judi" clano; 7. penetração da mídia "e conse· qüente influência sobre a família. a criança e o adolescente, veiculando valores atrelados a uma sociedade consumista, à moral do "jeitinho", do "vale tudo" e de "levar vantagem" . Diante dessa situação, conflitos internos (provenientes da própria Comunidade Educativa) e externos (provenientes da sociedade) devem ser a"dministrados, levando em consideração as forças progressistas e conservadoras, que se defrontain. Algumas posições básicas têm sido bastante debatidas e alguns preconceitos esclarecidos: 1. Pensar, por exemplo, que a Escola Particular Católica tem um papel de suplência em relação à 4. çlecidida posição evangeliza- "Escola Estatal: q"ando ela inexiste dora da Igreja a partir do Vati- ou é ruim, floresce a Escola Catócano 11, Medellín e Puebla - co- lica (ou outra particular). Ao conlocando-se a serviço dos pobres e trário, deve-se exigir do governo o oprimidos, defendendo as classes cumprimento de sua tarefa, mantrabalhadoras, criticando as injus- tendo o "ensino fundamental na quantidade necessária e com quatiças e a desigualdade social; lidade. 5. debate sobre a LDB de Educação Nacional, vários aspectos da Exigir do Governo, influindo nos Constituição do País e dos Esta- Movimentos populares e estimulan- . dos, a lei orgânica dos Municípios. do-os, a aplicação total e honesta aguçando-se a consciência política. do percentual orçamentário estabesob " o estímulo de' antagonismos lecido na Constituição, para a Eduideológicos; caça0. 6. emergência das classes populares, das organizações sindicais, A Escola Católica é uma opção multiplicação dos " partidos políti- da Família, assegurada pela Conscos, e acirrada guerra de impren- tituição. Por isso, o que lhe garansa, exigindo participação e capacidade crítica, ante os meios de in(Continua na 3(1 capa, ao lado) formação e os debates; . " 128 (Cont inuaçao da 3~ capa) Se rejeita as instituições, sobretudo as autoritárias, abre-se ao Traoscendente, quando vivido a seu lado, com autenticidade. QUESTOES para ajudar a leitura individual do texto ou O debate em comunidade: 1. A experiência do carisma do fundador(a) de um grupo de vida religiosa sempre se dá a partir de uma necessidade do povo mais sofrido em sua época. A partir do relato que a autora faz da vida de sua congregação, procure relembrar a percepção decisiva da necessidade do Povo de Deus que le vou seu fundador(a) a constituir sua congregação? 2. Que pontos comuns você percebe do relato da autora sobre a situação brasileira na época do "Ventre Livre" e os atuais tempos no que toca à situaçao do menor? 3. Muitas religiosas ( os) deixaram o campo da educação formal lias últimas décadas, preferindo outras opções pastorais. Considerando os desafios nas partes IV e V do artigo, como você e sua comunidade percebem as possibilidades ( e a necessidade) de uma presença nesse campo? CITAÇOES E REFER~NCIAS BIBLIOGRAFICAS (1) BRAIDO, P., ScrUII oul Slotoma Preventivo nelf'Educazlone deU a gloYen~ lu. Bresc la, La $cuola Edltrl c 8, 1956, p. 360-1. (2) BOSCO, Glovanni , Momorle dell'Oretorlo d i S. Francasco di Sales dat 1815 ai 1855, a cura dei Sac o Eugenio Ceria. To rino . Soc ietà Editrice In· ternazion ale, 1946, p. 123. (3) SCARAMUSSA. Tarclsl o, O sistema preventivo de D. BOl co : um estilo de educação, SP, Editorial D. !losco, 1977, p. 26. (4) Cf. SCARAMUSSA, Tarc is lo. O ~I .tom a d e D. Bosco : um estilo de educ ação . S. Paulo, Editorial D. Bosco , 1977, p. 47. (5) BOSCO, Giovann l, Opere EdUo, vol. XXX (1878-1879). Roma, LAS, 1977, p. 455-6. (6) Cf. PILETTI, Claudino e Nelson , Filosofia e História d a Edu ca· çlo. SP, Allca, 1988, p. 182-4. (7) COS- TA, EmUla Vlottl da, Da monarquia ~ República, momento. decilivol . S . Paulo, Gri j albo, 1977, p. 226. (8) A ZZI, Alo lando, O. 8.1e.lan08 no Rio de Janeiro. SP. Ed. Salesiana, D. Bosco, 1982, v. li, p. 36. (9) AZZ I, Rioland o, op. ci t. , v. li , p. 36. (10) CERI A, Eugenio. Anall d e lla s ocletá Sales la na dalte. orlglnl ali. morte di 5an Glovannl Bo sco (1841 -1888). Tu rim , SEI, 1941, p. 688 C. (1 1) AZZI, Rioland o, O. cit. , v. li, p. 179. (1 2) A Folha Nova, ano 111, 20 de abril d e 1884, p. 1. In : AZZI, Rio lando, O. Saleslano. no Rio da J aneiro, V. li , p. 117. (13) AZZ I, Rio lando, O. cit ., p. 229. (1 4) AZZI, Rlolando, O. cit., p. 294. (15) AZZI, Ri olando, O. c lt., p. 294. (16) AZZI , RiolanO do, O. c it., p. 298. Pedidos: CRB Nacional ou sua CRB Regional Vida Relígiosa e Saúde do Povo . Autor : Pe. Christian de Paul de Barchifontaine, MI , Publicações CRB . Caderno n 9 15. Ano : 1993 . Páginas: 80.