PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014)
Nova Experiência Masculina: A Modernidade, um ponto de partida1
Danilo POSTINGUEL2
ESPM-SP
Resumo
Este trabalho busca entender a contribuição de Flávio de Carvalho no processo modernizador
da sociedade, para corroborar uma nova experiência de masculinidade, naquilo intitulado por
ele como Experiência n.3. A pesquisa é qualitativa, baseada em revisão bibliográfica, e
análise de algumas revistas da época, em que apresentavam o feito e sua posterior
repercussão. Logo, pode-se entender a importância que o artista teve, tanto para tensionar a
relação de gêneros, assim como mostrar como existia, naquela época, identidades
cristalizadas de o que era ser homem naquela sociedade.
Palavras-chave: Modernidade; Masculinidade; Consumo.
Introdução
Inúmeras foram as personagens que ao longo da história ganharam
notoriedade na mídia, por terem uma postura – comportamento – atípica, para uma
determinada época, localidade e idade. Algumas vezes contestando, outras, apenas
reforçando essa linha tênue entre os gêneros. Nos Estados Unidos, o movimento Glam
Rock (década de 1960) trazia para a cena musical roqueiros, aqui entendidos homens,
que brincavam com uma ambivalência entre os gêneros. Nesse sentido, ao longo das
décadas seguintes, é possível citar as bandas New York Dolls e Kiss, como também,
os cantores David Bowie e Marylin Manson. Recebendo essa influência, Ney
Matogrosso representa o Brasil nesse contexto. Nos casos elencados, estritamente
masculinos, visualizavam-se homens que mostravam e demonstravam sua virilidade,
travestidos entre blushes, batons e longas cabeleiras.
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Novos Fluxos Políticos:
ativismos, cosmopolitismos, práticas contra-hegemônicas, do 4º Encontro de GTs - Comunicon,
realizado nos dias 8, 9 e 10 de outubro de 2014.
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas do Consumo PPGCOM –
ESPM-SP, vinculado ao Grupo de Pesquisa NICO; Bolsista PROSUP/CAPES, email:
[email protected].
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Casos como esses, de personagens que brincam, nessa fronteira entre o
masculino e o feminino, ativam, tensionam, questionam e propõem reflexões acerca
dessa constituição do que é ser homem e ser mulher e, de quais comportamentos e
responsabilidades são pertinentes a ambos.
Essas formas de contestação e até mesmo de ativismo são mediados, de certa
forma, por um consume, primariamente, material de objetos, aqui, traduzidos em
peças do vestuário do sexo oposto. Chama a atenção para esse fato o surgimento de
uma sociedade de consumo, logo uma sociedade que tanto consome quanto contesta,
por meio de um determinado consumo, sociedade essa marcada a partir da
modernidade. Desse momento em diante, é possível resgatar uma discussão
pertinente, que passa acerca do processo modernizador: a modernização dos
indivíduos.
O emergir da modernidade traz consigo uma nova sensorialidade, traz uma
nova forma de se vivenciar a cotidianidade, apresenta mercadorias para o consumo. E
para isso, cobra desses indivíduos uma postura condizente com a época que estão
passando, ou como sinaliza Gay (1988), cobra uma “educação dos sentidos”. Esse
marco torna-se relevante, pois é com a modernidade que há uma preocupação maior
em se definir as coisas, em especial, o que é ser homem e mulher.
Nesse contexto, especialmente, de definição do que é ser homem, e numa
perspectiva local, Flávio de Carvalho, mesmo não alegando ser uma forma de
ativismo, tensiona, na década de 1950, na capital paulista, com sua Experiência n° 3.
Trata essa fronteira entre o que são roupas de homens e roupas de mulheres, ao propor
um novo traje para o homem moderno da capital paulista.
Destarte, o presente artigo é uma pesquisa bibliográfica apoiada nas discussões
acerca da modernidade, consumo e moda, sendo de natureza qualitativa. Busca
entender a contribuição de Flávio de Carvalho no processo modernizador da
sociedade, para uma nova experiência de masculinidade.
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Modernidade
Uma profusão de acontecimentos marca o século XIX. Nele vivenciou-se o
aumentar das cidades, tornando-se metrópoles. As pessoas passaram a conviver com
máquinas, o que modificou a forma de se relacionar com outros seres (um novo
sensório surgia), assim como, novos estilos de vida foram sendo criados.
Falar sobre o período da modernidade é falar de um tempo histórico tomado
por grandes acontecimentos. Nesse caso, não se pode deixar de enfatizar a relevância
que foram as Revoluções Industrial e Francesa, para a época. A primeira trouxe uma
nova técnica fabril de produção; a segunda, corroborou com a ideia de um novo
Estado.
Como já sinalizado, anteriormente, parte desses eventos, em especial os
relacionados às novas formas de produção e ao surgimento de um novo sistema
econômico – capitalista, estiveram presentes no século XIX, contudo Bueno (2008, p.
10) ressalta que o século XVIII já “prenuncia a emergência de um novo modo de vida
ligado simultaneamente à valorização material e da subjetividade”.
A modernidade, como assinala Camargo (2008, p. 17), “foi palco do chamado
„processo civilizador‟”. Nela o estilo “bárbaro” (Ibidem) da Idade Média precisa ser
repensando. Buscando compartilhar com esses indivíduos esse novo momento, até
mesmo preparando-os para o futuro, para o novo, manuais, especialmente de etiqueta,
disseminavam para essa sociedade formas de como se portar em público, à mesa,
como conversar, dando certo destaque, aqui, até mesmo a com que se vestir.
Fazendo um breve paralelo, esse período histórico ficou marcado por uma
enxurrada de produtos, termos, nomenclaturas novas, que surgiam todos os dias,
inclusive, o termo novo. Romper com a tradição significava apresentar algo novo. Era
preciso enfatizar que esse novo não bastava ser novo, precisava parecer com o novo.
Essa ideia de novo estava atrelada à postura dos indivíduos que vivenciavam
esse período. Esse rompimento, conforme sinalizado no parágrafo anterior, não era
somente com a tradição, mas com o passado também. Tudo o que existia e era
conhecido precisaria ficar no passado.
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Tendo como análise central a modernização dos indivíduos daquela época,
percebe-se que até o século XVII havia certa liberdade entre os gêneros; com relação
ao sexo, suas práticas eram mais afloradas e menos recriminadas. No entanto,
Foucault (1988), ainda relatando esse período, acrescenta que, com o despontar da
burguesia, essas práticas sexuais seriam cerceadas. E esse cerceamento marcaria
como o corpo precisou e foi domesticado para viver e conviver nesse tempo que
chegara, tornando-se mais visível o delineamento entre os gêneros.
Com isso, esse momento de modernização das cidades trazia consigo uma
nova dinâmica de habitar esse novo mundo. Era preciso educar essa sociedade para,
agora, conviver nesse novo cenário. Conforme os sentidos foram sendo educados,
alguns atos, práticas e costumes acabaram sendo aprisionados. O corpo precisou ser
educado, modos e gostos foram criados. Tudo isso com o intuito de modernizá-lo para
o agora e desvinculá-lo do passado.
Berman, contribuindo à discussão, aponta que
Homens e mulheres modernos precisam aprender a aspirar à mudança: não
apenas estar aptos a mudanças em sua vida pessoal e social, mas ir
efetivamente em busca das mudanças, procurá-las de maneira ativa, levandoas adiante. Precisam aprender a não lamentar com muita nostalgia as
“relações fixas, imobilizadas”, a se empenhar na renovação a olhar na direção
de futuros desenvolvimentos em suas condições de vida e em suas relações
com outros seres humanos (BERMAN, 2007, p. 119).
Cabe ressaltar que vivenciar essa modernidade era viver dicotomicante a vida,
era, como o próprio Berman (2007, p. 24) apontou, “encontrar-se em um ambiente
que
promete
aventura,
poder,
alegria,
crescimento,
autotransformação
e
transformação das coisas em redor – mas, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o
que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”.
Assim, esse dicotômico período, ao passo que apresentava o novo, o
progresso, de certa forma, buscava presentificar o futuro, causava nos indivíduos,
especialmente, na burguesia uma ansiedade por definições, definições essas,
primeiramente, em descobrir quem eram. Gay reforça o pensamento enfatizando que:
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Um ingrediente preocupante, apesar de por vezes apenas perceptível, da
experiência da burguesia do século XIX foi a ansiedade com que ela procurou
definir a si própria: suas hierarquias internas, seu status na sociedade, seu
relacionamento com as demais classes, suas características morais (GAY,
1988, p. 23).
Havia uma constituição de identidades sendo formada. Um surgimento mais
bem delineado do que era ser homem e do que era ser mulher, tanto nas roupas, nas
atividades, no trabalho, nas obrigações, entre outras coisas. Com relação a essa
identidade masculina que ia tomando forma, Oliveira (2004, p. 20) salienta que “a
masculinidade se expressa como um mito efetivo da sociedade moderna”.
Ainda para Oliveira, nesse período, torna-se quase impossível desassociar a
modernidade da valorização de características assumidamente masculinas. Para o
autor, elas andavam praticamente juntas, e ainda salienta ser possível detectar essa
presença da masculinidade em vários momentos. Entre eles: “dos revolucionários
franceses radicados na crença de que os „novos símbolos poderiam fazer novos
homens‟ até os triunfantes ideais burgueses e seus valores de classe média”
(OLIVEIRA, 2004, p. 21).
Esses valores de masculinidade, como garra, poder, bravura, virilidade, eram
enfatizados constantemente, para reforçar a formação de jovens meninos em futuros
homens. Para isso organizações eram fundadas, imbuídas desse propósito. Entre
alguns exemplos, Oliveira cita que:
Em 1883, associada à Igreja anglicana, foi fundada a brigada dos garotos. Sua
prioridade era a estruturação do tempo de lazer dos jovens, que deveria ser
ocupado com atividades que ajudassem a desenvolver virtudes como a
disciplina e também a bravura, no intuito de transformá-los em homens
verdadeiramente cristãos. Em moldes parecidos, na mesma época, foram
fundados a YMCA (Young Men's Christian Association) 3 [...] Houve quem
visse aí nada mais do que um misto de arena (quase) militar misógina de
socialização infantil masculina, dirigido para a inculcação nos meninos de
uma virilidade disciplina (OLIVEIRA, 2004, p. 47-48).
Dessa forma, “a masculinidade patenteou-se na modernidade como símbolo de
um ideal de permanência” (OLIVEIRA, 2004, p. 48). Essa patente crescia, tendo
3
Surge em 1844, na Inglaterra. A associação propunha a organização de práticas físicas para os jovens
pobres, oprimidos e esquecidos da Revolução Industrial, disseminando o futebol e criando novas
práticas esportivas, como o basquete e o vôlei (CAMARGO, 2008, p. 21-22).
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como promotor os valores burgueses que, de forma dicotômica, enalteciam esse ideal
masculino, mas também acirravam o preconceito e a intolerância acerca daqueles que
não se enquadrassem no modelo de masculinidade socialmente proposto (OLIVEIRA,
2004).
Essas convenções sociais marcam, como um manual de instruções, as formas
pelas quais deveriam se portar esses homens, seus gestos, seu comportamento, e, com
enfoque especial na discussão, o modo de se vestir.
A indústria da moda e os homens
Antes de trazer à discussão, o consumo, propriamente, como colaborador para
a constituição das identidades, voltemos alguns séculos, buscando entender o
processo de marcação do vestuário para o homem. Trago, neste momento, a ideia de
vestuário, pois a moda, como a conhecemos, assim como a indústria do prêt-à-porter
tomam as proporções com que as conhecemos na modernidade (CAMARGO, 2008).
O homem, como ser racional, é o único que cobre-se com roupas, seja por
proteção, seja por vaidade. Passando por inúmeras transformações, a moda
masculina no último século sofreu poucas mudanças comparado com a
feminina. A vaidade masculina é de longa data e não um fato recém
descoberto pelos metrossexuais (BESSA, 2006, p. 2).
Lipovetsky (1989, p. 28) salienta que “ao longo dos séculos, os mesmos
gostos, as mesmas maneiras de fazer, de sentir, de vestir-se vão perpetuar-se,
idênticas a si mesmas”, por homens e mulheres. Ainda Segundo o autor (Idem, p. 29),
é somente no século XIV que nitidamente aparecem diferenças no vestuário segundo
os sexos: “curto e ajustado para o homem, longo e justo para a mulher”.
Um fato notório, e como apresenta Lipovetsky, aproximadamente no século
XIV, o vestuário masculino era mais rebuscado, se comparado com o vestuário
feminino (LIPOVETSKY, 1989). Na cultura inglesa do século XVIII, por exemplo,
os aristocratas da época impunham poder e respeito, parte deles decorrentes de seus
trejeitos, de certa forma, efeminados, como também a ostentação presente em seu
traje, algo rotineiramente copiado pelos burgueses da época.
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Segundo Bessa (2006, p. 3-4), “é na era vitoriana que começam as grandes
mudanças. Enquanto as mulheres ostentam cada vez mais, os homens buscam um
visual marcado pela discrição”. Mais uma vez, retomando a modernidade como centro
das discussões, enfatiza-se que a era vitoriana, além de marcar as mudanças no
vestuário de ambos os sexos, é o período em que desponta a Revolução Industrial e o
progresso, especialmente, britânico.
Trazendo um breve adendo sobre esse período, com relação ao consumo, logo,
também pertinente para a discussão, é nesse período, e com o advento da Revolução
Industrial que uma imensidão de mercadorias é apresentada para os indivíduos,
despontando nesse cenário uma sociedade mediada pelo consumo, uma sociedade que
passa a desejar e a consumir essas mercadorias. Houve, como propõe Walter
Benjamim, um fetiche por essas mercadorias – um sex-appeal do inorgânico.
O advento e a disseminação dessas mercadorias tomaram papel de destaque
nessa sociedade moderna, tanto que templos foram erguidos para venerá-los e neles
foram praticamente endeusados. Segundo Monçores (2012, p. 8), “essas lojas de
departamento inovaram colocando na área de exposição da loja com os produtos em
primeiro plano, muitos fora da embalagem, possibilitando o toque e a experimentação
pelo visitante, distribuídos em corredores amplos e em áreas decoradas”.
Torna-se pertinente enfatizar a pertinência das lojas de departamento, pois são
elas as propulsoras, como salientou Burke (2008), a popularizar o lazer e a moda para
as massas, sendo datadas de meados do século XIX. À medida que se populariza a
moda, que chegava às camadas até então desprovidas de seu uso, seu consumo
transcendia para algo além do material; essas mercadorias carregavam em si uma
dimensão mágica.
Dando continuidade à discussão proposta nesta seção, torna-se praticamente
explícita, a relevância da indústria da moda, como uma das principais e primeiras
indústrias a disseminarem suas mercadorias. Por outro lado, é preciso atentar-se para
a amplitude do consumo dessas mercadorias. Numa perspectiva benjaminiana, é
preciso extrapolar a essência materialista desses produtos, torna-se preciso levar em
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consideração o valor não só palpável da mercadoria, mas o impalpável também. Em
direção similar, Rocha (2008, p. 125) enfatiza que é preciso entender os “hábitos de
consumo em um „para além‟ dos objetos e serviços, [...] gerando sofisticadas e
intensas
articulações entre o campo simbólico
e aquele especificamente
mercadológico”, possibilitando assim, estabelecer relação entre o que se consome e o
que isso representa.
Trazer à discussão a dimensão simbólica do consumo dessas mercadorias
permite extrapolar uma análise utilitarista desse processo, permite refletir acerca de
um consumo, em vez de um consumismo – um ato desmedido e impensado do ato de
consumir. Se por um lado é preciso atentar-nos para sua dimensão simbólica, Douglas
e Isherwood (2006, p. 113-114) contextualizam, enfatizando que “a escolha dos bens
cria continuamente certos padrões de discriminação, superando ou reforçando outros.
Os bens são, portanto, a parte visível da cultura”.
Encaminhando-me para a próxima seção, faz-se necessário entender, por que
nesse período, em que se apresentavam tantas novidades para os indivíduos, há, como
apresenta Lipovetsky (1989, p. 36), a “grande renúncia”, por assim dizer, do homem
em relação à moda. Passando a adotar certa sobriedade e discrição em seu traje, o que
de fato esse consumo poderia representar? E como eram enxergados, na época,
homens que tentassem, de certa forma, contestar ou impor novos padrões que
escapassem do modelo pré-estabelecido?
Experiência n°3
Conforme discutido anteriormente, e assinalado por Lipovetsky (1989, p. 90),
“a época que engrandeceu a moda é também aquela que, por outro lado, a tornou
„proibida‟ aos homens”. Desse momento em diante, a moda passaria a compor o
universo feminino, sendo, de certa forma, negado ao universo masculino. Ainda
segundo o autor, a moda masculina, nessa época, era “simbolizada pelo uso do traje
preto e mais tarde pelo terno-gravata” (Ibidem).
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Fazendo um breve comparativo com o século XVIII, especialmente na cultura
inglesa, se naquela época os aristocratas usavam o traje para demonstrar status, nessa
nova sociedade que emerge – a moderna –, haverá para o homem outras formas de
demonstrar status e até mesmo poder. Uma delas será, conforme apresenta Bessa
(2006), no próprio traje feminino, demonstrando o poder econômico que seu marido
tinha e poderia disponibilizar para que esposa se enfeitasse. Além de marcar o homem
como “o provedor do lar bem sucedido que é”, sinalizava, anteriormente Oliveira
(2004), para a ideia de uma sociedade masculina, ou seja, extremamente machista.
Vale acrescentar que, além de demonstrar poder decorrente de uma possível “vida boa
que pudesse disponibilizar a sua cônjuge”, o poderio desse homem moderno era
marcado por suas posses e reservas financeiras.
A possível justificativa para o uso de cores mais “sombrias” (CARVALHO,
1992) se dá como condição depreciativa da nobreza com relação à burguesia. Essa
nova moda masculina, por assim dizer, “é impulsionada por Londres e, a partir de
1930, cada vez mais pelos EUA” (LIPOVETSKY, 1989, p. 71).
Se por um lado a modernidade possibilitou uma oferta maior de mercadorias
para as sociedades, por outro lado, possibilitou também uma aceleração no transporte,
assim como, na comunicação. Logo essas tendências chegariam ao Brasil. E é pelo
fato, na época, de se consumir demasiadamente a cultura europeia e a norteamericana, que Flávio de Carvalho se faz pertinente com sua Experiência n.3.
A presença do traje tipicamente inglês pode ser visualizado na Figura 1, nela –
década de 1920 –, a elite intelectual brasileira reunida na Semana de Arte Moderna,
de 1922, ocasião em que o país passava por uma euforia modernista, nela visualiza-se
nitidamente a presença do terno em cores sombrias, como aponta Carvalho (1992).
Esse período é pertinente, pois é quando o país, e no caso, São Paulo, passam a viver
novo momento econômico-cultural de modernidade.
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FIGURA 1 – INTEGRANTES DA SEMANA DE ARTE MODERNA
4
Assim como a Semana de Arte Moderna tinha como objetivo “a reatualização
do Brasil em relação aos movimentos culturais e artísticos que estavam ocorrendo no
exterior, e, por outro, implica também buscar as raízes nacionais, valorizando o que
haveria de mais autêntico no Brasil” (OLIVEN, 2001, p. 5). Flávio de Carvalho
seguia nesse pensamento, promovendo com sua Experiência n. 3, um traje para o
homem moderno dos trópicos.
Flávio de Carvalho (1899-1973), pintor, desenhista, arquiteto e engenheiro,
não chegou a participar da Semana de Arte Moderna, mas vivenciou o movimento
antropofágico, proposto pelos artistas5. Não tendo o mesmo reconhecimento, como de
alguns de seus conhecidos colegas da época – Oswald de Andrade, como também
Tarsila do Amaral –, Flávio, buscou naquilo que chamava por “experiências”, formas
de se entender, principalmente, a cultura local.
O fato de trazer Flávio de Carvalho para a discussão se dá em dois momentos,
o primeiro, pelo fato de o artista vivenciar um dos momentos ímpares da modernidade
em nosso país, e, o segundo momento decorre da sua própria experiência, pois ela foi
uma das primeiras, senão a primeira, a ser midiatizada, ou seja, Flávio teve nos meios
4
Arquitetônico. Disponível em:<http://www.arquitetonico.ufsc.br/a-semana-de-22-e-a-sua-relacaocom-uma-arquitetura-supostamente-moderna>.
5
Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/144165-flavio-de-carvalho.shtml>.
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de comunicação em massa, espaço para demonstrar essa nova experiência de
masculinidade.
A Experiência n. 3 consistia naquilo que Flávio chamou de new look, um traje
moderno para homens dos trópicos. A experiência, em primeira instância, consistiu
em 39 artigos publicados pelo artista, no jornal Diário de São Paulo, em que
apresentava algumas “transformações sofridas pela indumentária, através da história”
(LOTUFO, 2006, p. 339), tanto de homens quanto de mulheres. Em seguida, mais
precisamente no dia “18 de outubro de 1956” (LOTUFO, 2006), Flávio sai às ruas do
centro de São Paulo, desfilando sua proposta de traje para os homens.
Segundo Lotufo (2006, p. 339), o traje consistia de “uma blusa de mangas
curtas, saia acima dos joelhos, meias arrastão, sandálias de couro e chapéu de náilon”
(FIGURA 2). A justificativa de Carvalho (1992, p. 66) para o traje era a de que essa
“nova moda para o verão leva principalmente em consideração a ventilação do corpo
e esta impede o empastamento do suor sobre a pele promovendo a evaporação rápida
do mesmo e diminuindo a sensação de calor”.
FIGURA 2 – FLÁVIO DE CARVALHO PELAS RUAS DE SÃO PAULO COM SEU NEW LOOK6
6
Disponível em:<http://armazemperisc.blogspot.com.br/2012/10/cinco-sentidos.html>.
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Essa transgressão por parte do artista foi noticiada em algumas revistas. Na
revista O Cruzeiro (1956, p. 138), a reportagem, um pouco mais incisiva, além de
justificar o motivo de Carvalho ter desenvolvido aquela vestimenta, alegando que o
“brasileiro não sabe viver em clima tropical”, demonstrava certa intolerância, e até
certo cinismo com o que acabara de ser proposto. Em uma de suas manchetes
aparecia: “Flávio vestiu saia em São Paulo, mas foi para Roma de calça e paletó”. Já
no final da reportagem, questiona, destacando que, se em vez de propor uma saia,
tivesse proposto um short, a tendência até que poderia ser aceita.
No caso da reportagem da revista O Cruzeiro, percebe-se um desconforto dos
leitores, e, em especial, dos homens em usarem saias em seu cotidiano. A reportagem
apresenta algumas imagens 7 do baile promovido pelo próprio Flávio, em que
apresentava a sociedade seu traje, assim como alguns colegas que adotaram seu look.
Já a revista Manchete foi mais tênue em suas colocações. Ao relatar sobre suas
três experiências salienta que:
Com a n.º 1, procurou sondar os sentimentos católicos do povo, atacando
Cristo numa peça de teatro. Não pôde encená-la; com a n.º 2, em 1931, tentou
repetir a dose, atravessando uma procissão de chapéu na cabeça e quase foi
linchado. Flávio desistiu, agora, de pesquisar a psicologia das massas e
resolveu, através da „Experiência n.º 3‟, lançar a „nova moda para o novo
homem‟. E obteve um êxito excepcional (MANCHETE, 1956, p. 77).
O detalhe final da citação, onde traz que obteve êxito com sua experiência, lêse, que o êxito veio da população na rua não linchá-lo, como aconteceu com sua
experiência n. 2.
Com relação à última experiência que propôs, dois pontos são pertinentes, o
primeiro deles se dava ao fato de um país tropical, como o Brasil, consumir um tipo
de vestimenta, até mesmo de moda, de países com temperaturas mais amenas. Com
isso, Flávio queria valorizar nossa cultura, e passar a consumir por nós mesmos. O
segundo ponto de destaque é que, por mais descabido que pudesse ser aquele traje,
7
Disponível em:<http://bacanasbooks.blogspot.com.br/2011/02/revistas-manchete-e-o-cruzeiro-1956com.html>.
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conforme apontam os meios de comunicação, Flávio confrontou-se com aquela
população, mostrando como já se encontravam cristalizadas nela as representações do
que era ser homem.
Trazendo um excerto de Lipovetsky, pode-se visualizar o que anteriormente
foi apresentado com relação ao delineamento entre ser mulher, e, principalmente,
homem. Segundo o autor, “a era moderna [...] acentuou como nunca a divisão do
parecer masculino e feminino, engendrou uma desigualdade ostensiva na aparência
dos sexos e em sua relação com a sedução” (1989, p. 90).
Contribuindo, Bessa (2006) salienta que a partir da década de 1960, aos
poucos, o homem vai voltando à moda. Por fim, o autor sinaliza para uma questão que
estava presente na experiência de Flávio, assim como ronda nossa sociedade
contemporânea.
Mesmo com tantas mudanças, a moda ainda não atingiu uma uniformidade. O
homem voltou a ter direito de ter cabelos compridos, roupas coloridas e
estampadas, sapatos altos, e acima de tudo, de ser ousado. Mas uma ousadia
que sempre pode ser mal vista pela sociedade, revelando limites. As mulheres
podem ter acesso à moda masculina mas a recíproca não é tão verdadeira
(BESSA, 2006, p. 4).
Considerações Finais
Flávio de Carvalho contribuiu para, hoje, na contemporaneidade, haver a
possibilidade de se discutir sobre novas experiências de masculinidade, e como ele
mesmo quis, em vez de basearmos em tendências da Europa e dos Estados Unidos,
precisávamos olhar para nós mesmo.
Flávio possibilitou visualizar como já se encontrava cristalizada, já naquela
época, o que era uma identidade masculina, sinalizando, principalmente, o que um
homem não deveria vestir. Outro ponto que merece a atenção, e conforme satirizado
pela revista O Cruzeiro, é o fato de o próprio artista usar o traje que tanto criticava.
Entre os que não simpatizaram com o que era proposto pelo artista, muitos
alegavam ser quase como uma fantasia de carnaval, fora de época. Outros viam
naquela saia uma ofensa à virilidade masculina, já que se tratava de um traje
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tipicamente feminino. Revelando que os bens são portadores de significado, mas
nenhum o é por si mesmo. Dessa forma, se aquele traje fosse proposto para as
mulheres, pode ser que não houvesse grandes indagações quanto ao seu uso.
Flávio usou do consumo “de peças femininas”, primeiro para mostrar a
necessidade de observar a nossa própria cultura, e por que não confrontar, mesmo que
inconscientemente, esse acirramento entre os gêneros, já que estava propondo saias
para homens? Claro que ele possuía argumentações e justificativas para tamanha
ousadia, suas inspiração vinha, como ele mesmo chamava, do homem de farrapos.
Trazendo essa contextualização para os dias de hoje, em que inúmeros
discursos acerca da pós-modernidade e de um pós-gênero transitam pelo campo
acadêmico, podemos observar em nossa contemporaneidade que somos tão
conservadores quanto foram as sociedades modernas com relação às identidades e às
representações.
Referências
BENJAMIN, Walter. Sociologia. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1991.
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
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Danilo POSTINGUEL