Luiz Antonio de Castro Santos
Lina Faria
OS PRIMEIROS CENTROS DE SAÚDE
NOS EST
ADOS UNIDOS E NO BRASIL:
ESTADOS
UM ESTUDO COMP
ARA
TIV
O
COMPARA
ARATIV
TIVO
Numa rede de linhas que se entrecruzam.
— I TALO C ALVINO, 1979
N
os dias atuais, tornou-se truísmo da literatura especializada
afirmar que os centros de saúde ocuparam papel declinante na
Europa e, particularmente, nos Estados Unidos, à medida que crescia
a medicina hospitalar e as tecnologias de diagnóstico e cura conferiam
prestígio à profissão médica.1 A experiência do Brasil foi, no entanto,
até certo ponto singular. Aqui, como veremos ao longo do presente
trabalho, os centros de saúde não apresentaram uma relação inversa
em relação à ascensão da medicina hospitalar, mas constituíram-se
em uma forma de assistência à saúde que, ao invés de recuar no tempo,
consolidou-se. É como se os “undeserving poor”, de que nos fala Julius A. Roth (1975), fossem menos numerosos, particularmente nos
Estados Unidos do segundo pós-guerra, e exigissem por isso uma
atenção pública até certo ponto residual, enquanto no Brasil uma estratificação social muito mais rígida forçava os governos a reservar
aos imensos contingentes de “nossos pobres” um lugar específico de
atenção primária. Os centros de saúde foram esse lugar e vieram, nessa medida, para ficar. Não resta dúvida, por outro lado, que o prestígio
e a organização institucional dos sanitaristas nacionais (fosse em torno
de Manguinhos, fosse no Serviço Sanitário paulista e em centros de
pesquisas como o Instituto de Higiene, em São Paulo) contribuíram
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para que a importância dos centros de saúde não declinasse com o
passar dos anos. Isto foi possível, diga-se desde logo, ainda que os
sanitaristas não desfrutassem, a partir de 1930, no Brasil, do enorme
impacto que as gerações de Osvaldo Cruz e Carlos Chagas tiveram no
cenário político e na opinião pública. Ora, desse ponto de vista, o
quadro brasileiro também destoa do panorama nos Estados Unidos,
onde os interesses da saúde pública esbarraram firmemente na organização corporativa e privada da profissão médica, e experimentaram,
como os próprios sanitaristas, uma posição de desprestígio.2
O presente trabalho visa discutir brevemente essas histórias em
larga medida contrastantes, focalizando o processo de formação dos
centros de saúde nos Estados Unidos e no Brasil, no período que se
estende entre 1910 e 1940. A periodização proposta busca delimitar
os momentos mais significativos do surgimento, implantação e consolidação desse modelo de intervenção sanitária nos dois países, por
meio de uma análise histórico-comparativa dos modos pelos quais se
concebeu, organizou e difundiu o centro de saúde.
A análise comparativa põe em destaque questões importantes para
entendimento das trajetórias dos centros de saúde nestes dois países, nos
quais as cidades de São Paulo e Milwaukee representam casos exemplares.
Esses grandes centros têm merecido atenção dos estudiosos da reforma
sanitária no início do século XX. Apresentavam perfil demográfico
similar no período estudado, forte presença da imigração europeia,
expansão econômica considerável, contingente populacional expressivo
(São Paulo contava 580 mil habitantes em 1920, Milwaukee 450 mil).3
Tais cidades foram pioneiras, em seus países, na implantação dos centros
de saúde, tendo, além disso, trajetórias históricas similares no tocante
ao incentivo público e privado à reforma sanitária (realização de campanhas, atenção à educação sanitária, etc.) durante a implantação desse
modelo assistencial. De outro lado, há diferenças significativas quanto
ao tempo de implantação (São Paulo quase dez anos depois) e à concepção (o aspecto curativo era descartado na experiência americana, diferentemente dos centros em São Paulo, que ainda que preponderantemente voltados para a prevenção, não excluíam o tratamento médico).
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Nos Estados Unidos, os centros comunitários de saúde surgem
de iniciativas privadas (que incluíam doações de comerciantes e empresários locais) e entidades filantrópicas. Em Milwaukee, o primeiro
centro de saúde foi criado em 1911 por iniciativa de Wilbur C. Phillips
e sua mulher, Elsie Cole Phillips, baseado em concepções de saúde
comunitária e “social work”, embrião da assistência social e da atenção à saúde, em moldes profissionais e não caritativos, adotado em
vários países do Ocidente. Mas as “verdadeiras” origens de um padrão
estabelecido são quase sempre ardilosas: George Rosen relata, a propósito, que, conquanto inovadora, a experiência do casal Phillips baseou-se na iniciativa de Pierre Budin, professor de Obstetrícia em Paris,
que havia, ainda em 1892, planejado a criação de núcleos de puericultura, uma iniciativa pioneira em seu país (Rosen, 1974, p. 311).
No Brasil, as unidades sanitárias foram inauguradas e operadas
com a cooperação da Fundação Rockefeller e de governos estaduais.
Desse modo, São Paulo inspirou-se no modelo norte-americano dos
health centers, divulgado pela Fundação Rockefeller. Partindo dessa
experiência, os centros de saúde paulistas voltaram sua atenção para a
assistência educativa materno-infantil, o atendimento de tuberculosos
e portadores de doenças venéreas, as medidas profiláticas de controle
das doenças infecciosas, as análises laboratoriais e a formação de profissionais na área de higiene e saúde pública.
Ainda que essas iniciativas pioneiras tivessem todas caráter predominantemente preventivo, em São Paulo as ações curativas nunca
foram, desde o início, descartadas inteiramente. Nessa medida, as
medidas sanitárias implementadas em São Paulo nos anos 1920 e 1930
conformaram uma estratégia de atuação mais ampla, de natureza preventiva e curativa. Outra importante diferença tem a ver com a área de
atuação dos centros de saúde. Em Milwaukee, buscava-se atender às
classes populares urbanas, sobretudo à força de trabalho fabril, com
grande número de imigrantes vindos da Alemanha. Em São Paulo, os
centros de saúde visavam a realização de atividades urbanas e a coordenação das ações em áreas rurais. Os programas de saúde atingiam
tanto a população imigrante urbana quanto a mão de obra imigrante
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das áreas interioranas, sobretudo cafeicultoras. Outra diferença marcante deve ser assinalada, quanto à evolução dos centros de saúde nestes dois países. Os centros de saúde surgiram nos Estados Unidos nas
décadas de 1910 e 1920, mas sofreram certo declínio após os anos de
1930, em parte devido à redução dos fluxos imigratórios e ao poder da
medicina privada, que se articulava contra a atenção pública (Rosen,
1974, pp. 321-4).
No Brasil, segundo alguns estudiosos, teria havido um desprestígio do modelo de centros de saúde no período de Getúlio Vargas.4
Houve, de fato, o abandono temporário — um “cochilo”, dizia um
critico5 — deste tipo de serviço em São Paulo, nesse período. No
entanto, mesmo os gastos estaduais designados para enfermidades específicas não puderam esconder o fato de que a assistência à saúde
continuou a basear-se em “organizações sanitárias complexas”, no dizer de Barros Barreto. Não se pense que este sanitarista, especializado
na Johns Hopkins e em Harvard (com bolsa da Fundação Rockefeller),6 fosse um nostálgico dos tempos da Primeira República: era acima de tudo um “jovem turco” do movimento sanitário do Estado Novo,
tendo sido, por duas vezes, diretor-geral do DNSAMS (1935-1939 e
1941-1945),7 órgão máximo de saúde no Ministério da Educação e
Saúde de Vargas. Para Barros Barreto, o sistema de “divisão por funções” — a concepção “vertical” discutida por estudiosos em nossos
dias — cedia espaço para “a tendência moderna” que pretendia, “mesmo nas pequenas organizações permanentes [os postos de higiene],
cuidar do maior número de problemas sanitários” (Barros Barreto,
1931, pp. 252, 254). Portanto, se houve “cochilo”, este não durou muito,
pois nas administrações do final da década de 1930 o conceito defendido por Paula Sousa voltava a explicitar-se claramente na criação de
inúmeros centros de saúde e postos de higiene no estado de São Paulo.
Programas distritais de saúde foram criados e implementados em vários municípios paulistas. Na década de 1940, o antigo modelo assistencial, de natureza mais complexa, consolidava-se rumo ao interior
do estado. Não houve, pois, alteração nos padrões de atuação dos centros, como defendia Sales Gomes. Note-se, neste caso, que havia uma
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oposição de caráter partidário ao grupo de Paula Sousa, sintonizado
como o PRP e com a Rockefeller, não propriamente uma divergência
de caráter programático em torno da saúde pública. No grupo de Sales
Gomes estavam não apenas dissidentes do PRP, como Oscar Rodrigues Alves, mas também sanitaristas do chamado “grupo nordestino”,
capitaneado por Artur Neiva. Por fim, tanto Sales Gomes quanto Neiva haviam se desentendido com os dirigentes locais da Rockefeller
por questões de caráter pessoal e profissional (ao primeiro foi negada
uma bolsa de estudos, e o segundo não obteve apoio para criar em São
Paulo, sob sua direção, uma instituição do porte de Manguinhos, que
lhe serviria para duelar com o prestígio nacional de Carlos Chagas).8
Mas retomemos o esforço comparativo. Em ambas as experiências houve elementos comuns indiscutíveis, sobretudo o estímulo à
educação sanitária. Colocando-a na fórmula simplista, o objetivo era
“educar para prevenir”. Nesse sentido, educação e prevenção, a divulgação de conhecimentos de higiene e a promoção de uma “consciência sanitária”, aparecem com grande força nos programas dos centros
de saúde, tanto em Milwaukee quanto em São Paulo. A ideia de administração sanitária distrital ou local foi outro elemento comum. A
delimitação populacional e territorial permitia estabelecer distritos de
atuação. Para cada distrito, de acordo com um índice demográfico-territorial, caberia um centro de saúde ou posto de higiene, objetivando a
educação, fiscalização e implementação de medidas profiláticas. Essa
tendência para desenvolver um serviço local e diversificado, tanto no
Brasil quanto nos Estados Unidos, era o reconhecimento de que um
programa efetivo de saúde requeria uma relação mais próxima com a
população de cada distrito, que poderia, assim, ver atendidas, “em um
mesmo local e de uma só vez, todos os seus interesses e necessidades
em matéria de higiene” (Barros Barreto, 1931, p. 253).
Mais do que nas similaridades, talvez resida em um ponto de
contraste a relevância, para a análise histórico-sociológica, das experiências selecionadas neste trabalho. Com efeito, seria previsível que, em
função de fatores bastante semelhantes que deram origem ao movimento de centros de saúde nos dois países, também se esperasse que o
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declínio dos centros de saúde em um dos países — bem como o enfraquecimento da própria ideia de participação comunitária — tivesse
reflexos no outro. Tal, no entanto, não ocorreu. Enquanto a experiência norte-americana experimentava evidente declínio, a partir da década de 1930, os centros de saúde no Brasil seguiam uma rota de
prestígio na autoridade sanitária e continuavam a ser a mola mestra da
prevenção epidemiológica e das campanhas de combate às endemias e
epidemias, sem prescindir da atividade ambulatorial. Este será, em
linhas gerais, o relato das próximas seções.
A concepção de centros de saúde
nos Estados Unidos
A
NOVA SAÚDE PÚBLICA AMERICANA
E A IMIGRAÇÃO EUROPEIA
Durante os primeiros anos do século XX, algumas cidades americanas, como Nova York, Boston, Milwaukee e Chicago, criaram
secretarias de saúde com o objetivo de melhorar as condições de vida
e de higiene das populações imigrantes e pobres nestas cidades, tornando mais sistemáticos os esforços iniciais, realizados ainda no século XIX, de organizações privadas e grupos voluntários. A afluência de
europeus para o país era vista pelas autoridades sanitárias como uma
ameaça à saúde pública americana. Além disso, o “ideal sanitário” que
brotara desde a Guerra de Secessão, na trilha aberta pelo chamado
Progressivism9 norte-americano, tivera repercussões sobre a própria
propagação do conceito de trabalho comunitário em saúde, bem como
sobre a necessidade de visitadoras para disseminar os princípios da
higiene entre a população (Armeny, 1983, p. 17; Davies, 1983, pp.
58-9). Ainda não tocados pelo “evangelho da saúde”, os imigrantes
eram na maioria italianos, mas algumas regiões do país eram seletivamente escolhidos por alemães, poloneses, grupos étnicos de origem
judaica, etc. Em qualquer caso, a preocupação dos sanitaristas era a
mesma: os altos índices de mortalidade e pobreza. Alguns estados
americanos começaram a preparar o terreno para a implementação de
programas sanitários de maior amplitude. Nesse sentido, as secretarias
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de saúde ficaram encarregadas não só da realização de campanhas de
prevenção e controle de doenças infectocontagiosas, bem como da
construção e operação de sistemas de esgotos e de abastecimento de
água, da remoção de lixo e da fiscalização de alimentos.
Um dos maiores estudiosos da reforma sanitária nos Estados
Unidos mostra como o advento da microbiologia abriu caminho para
que as secretarias municipais de saúde, em conjunto com os serviços
estaduais, pudessem iniciar a luta contra as doenças transmissíveis.
“Ao utilizar laboratórios de diagnóstico e vacinas preventivas, e quarentenar os doentes em residências e hospitais, lançaram-se as bases
para o ataque a doenças letais como a difteria, a escarlatina e a febre
tifoide” (Duffy, 1992, p. 205). Do ângulo da higiene pública, a assistência materno-infantil era outra resposta aos índices altíssimos de
mortes entre crianças com menos de cinco anos de idade (ibidem, p.
207). As autoridades sanitárias incentivaram programas educacionais
sobre cuidados com a saúde infantil e financiaram a instalação de
centros de distribuição de leite em vários locais do país. (Pesquisas
recentes haviam comprovado o valor nutricional do leite e demonstrado a estreita relação entre o leite contaminado e altas taxas de mortalidade infantil.) Um programa pioneiro foi iniciado em Nova York,
em 1905. Uma associação voluntária contra a pobreza organizou o
New York Milk Committee, ao qual cabia a dupla função de supervisionar o suprimento de leite da cidade e educar as mães sobre os
principais cuidados com a criança. Em 1920, a cidade contava com
cerca de cinquenta centros de distribuição de leite, além de ter um
programa de assistência materno-infantil considerado, à época, exemplar. A cooperação de organizações privadas foi fundamental para seu
sucesso (ibidem, p. 208).
As enfermeiras visitadoras ou distritais — precursoras das enfermeiras de saúde pública — desempenharam importante papel na
reforma sanitária americana. Associações de Enfermeiras Visitadoras
— as Visiting Nurse Associations — foram criadas em várias cidades
americanas, nas últimas décadas do século XIX, financiadas e mantidas por organizações voluntárias. As enfermeiras atuavam em várias
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frentes, desde visitas domiciliares — com o intuito de educar as mães
sobre cuidados com os recém-nascidos —, visitas em escolas — para
orientar as crianças sobre higiene bucal e hábitos alimentares, até no
tratamento de doentes com tuberculose.
Nas primeiras décadas do século XX as secretarias municipais
de saúde foram se tornando mais complexas em virtude da proliferação de novos programas na área. Ao mesmo tempo, muitas organizações privadas começaram a se engajar neste movimento. Nas palavras
de John Duffy, “Elas acreditavam essencial uma integração dos esforços particulares e públicos de assistência à saúde e de educação, bem
como conduzi-los diretamente para dentro das comunidades e envolver os moradores nas atividades do centro de saúde” (Duffy, p. 214).
Em 1919, um professor da Faculdade de Medicina de Yale, C.-E.
A. Winslow, figura-chave na elaboração do famoso Relatório Goldmark, que traçava, em 1923, os novos rumos da enfermagem de saúde
pública nos Estados Unidos, declarava-se abertamente defensor do
modelo dos centros de saúde, “a manifestação mais notável e típica do
movimento de saúde pública da atualidade” (apud: Rosen, 1974, p.
317). A participação das visitadoras era a pedra de toque das atividades dos centros: elas tratavam dos mais diversos problemas que atingiam os bairros pobres (particularmente a população estrangeira), como
a exploração no trabalho e moradias insalubres, o alcoolismo, a prostituição e a saúde precária. “Sua preocupação imediata”, diz George
Rosen, era o trabalho com a comunidade (ibidem, p. 307).
O movimento de centros comunitários de saúde atingiu várias
cidades americanas, especialmente aquelas nas quais a presença de
imigrantes europeus era significativa. No início dos anos XX, o país já
contava com 72 centros em 49 comunidades americanas, sendo 33
administrados pelas municipalidades, 27 sob direção de organizações
privadas (como a Cruz Vermelha) e 16 sob controle público e privado. No início da década de 1930, já eram 385 os centros de saúde
operando em várias cidades americanas, e, no final, cerca de 1.500
centros em todo o país (Rosen, 1974, p. 317). Segundo Adamastor
Cortez, um estudioso contemporâneo (ex-médico de um centro de
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saúde no Brás, em São Paulo), a participação da Cruz Vermelha nos
Estados Unidos, depois da Primeira Guerra, deu considerável ímpeto
a esse modelo de atenção à saúde, focalizado na conquista de uma
consciência sanitária pela população (Cortez, 1926, pp. 7-8, 15).
M ILWAUKEE — “ THE HEALTH IEST CI T Y ”
Wilbur C. Phillips foi o grande agitador de uma concepção
democrática de participação social em programas de saúde nos Estados
Unidos. Já referimos brevemente sua coordenação, em Milwaukee —
após uma experiência pouco ambiciosa, mas bem-sucedida, em Nova
York —, de um experimento social pioneiro. Foi nessa cidade de
Wisconsin que Phillips deu início a um projeto de centro de saúde
que integrava toda a comunidade no esforço de educação sanitária.
Milwaukee tinha taxas altíssimas de mortalidade infantil e “parecia
pronta para enfrentar tais problemas em termos de mudanças sociais
básicas, pois elegera uma administração socialista para a prefeitura, a
primeira cidade americana a fazê-lo” (Rosen, 1974, p. 312). A própria
política estadual favorecia os movimentos reformistas. A administração de Robert La Follette em Wisconsin (1901-1906) foi um passo
importante para a renovação política e econômica do estado, ao bloquear os interesses das grandes corporações e estabelecer uma legislação contra o lobby dos capitalistas. Poucos anos depois, a prefeitura
socialista de Emil Seidel em Milwaukee (1910-1912) incentivou a
união entre recursos públicos e privados para a área da saúde. Por fim,
do ponto de vista da política nacional, tanto o governo estadual do
reformista La Follette como a prefeitura socialista de Seidel e a ação
inovadora do casal Phillips beneficiaram-se do clima permeável a reformas, criado pelo chamado Progressivism norte-americano.10
Vejamos mais de perto as concepções e ações promovidas
por Wilbur C. Phillips. O objetivo era criar em Milwaukee um
centro experimental de atendimento infantil que não funcionasse apenas como posto de distribuição de leite, mas como um
centro de assistência médica e sanitária para crianças de todas as
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idades, um lugar onde as mães tivessem contato permanente com
profissionais (médicos, enfermeiros, assistentes sociais) para tratar
da saúde de seus filhos (Leavitt, 1996). Phillips propunha uma
concepção participativa e democrática (Rosen, 1974, p. 311).
As associações privadas de caridade, até então, ofereciam assistência médica às camadas populares. Uma das mais atuantes —
Daughters of Charity — foi responsável pelo primeiro hospital de
Milwaukee, em 1848. A Milwalkee Children’s Hospital Association
inaugurou, em 1894, um outro hospital para atendimento gratuito a
crianças menores de quinze anos. O Abraham Lincoln Settlement
abriu suas portas em 1900 e promoveu programas educacionais, sociais
e de saúde (Leavitt, 1996, pp. 196-200).
Segundo Leavitt, o padrão típico das políticas públicas norteamericanas, isto é “a fusão entre participação pública e privada”, somadas à ampla base de suporte público e ao compromisso governamental em promover e manter programas de bem-estar social, serviu
“para aplainar o caminho em direção aos esforços de reforma da saúde
de Milwaukee e outras cidades americanas” (ibidem, p. 215). No tocante à ação conjunta dos setores públicos e privados, Leavitt destaca
o relacionamento entre a Visiting Nurse Association, criada em 1907,
e a Child Welfare Commission, dirigida por Wilbur C. Phillips. Esse
foi, nas palavras de Leavitt, “um exemplo de como os esforços públicos e privados geraram maiores benefícios para a população de
Milwaukee” (ibidem, p. 199). “O Child Welfare Commission complementou o trabalho de várias organizações privadas dentro da Secretaria Municipal de Saúde, em 1912” e, ainda, “representou o largo
espectro de interesses de classe média e alta no movimento de reforma
sanitária na cidade” (ibidem, pp. 206, 219). A iniciativa do centro de
saúde no bairro de imigração polonesa em Milwaukee, de acordo
com os princípios de participação social defendidos por Wilbur C.
Phillips, foi o melhor resultado dessa conjunção de ações de caráter
comunitário nessa cidade. A promoção de campanhas de vacinação e
a realização de programas sobre higiene nas escolas complementavam,
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na concepção de Phillips, os objetivos do centro de saúde (Rosen,
1974, p. 312). Foi aqui, em seu programa inovador, que a noção de
representação da população local por blocos residenciais tomaria corpo. (Mais tarde, em Cincinnati, seria esse tipo de participação popular
o ponto fundamental das atividades dos centros de saúde, como indicou George Rosen.)
O Child Welfare Commission e a Visiting Nurse Association
conseguiram, mediante seus programas sociais, educacionais e de saúde,
diminuir radicalmente as taxas de mortalidade infantil em Milwaukee. Em 1910, quando Emil Seidel foi eleito para a prefeitura de
Milwaukee, as taxas haviam declinado — reflexo dos trabalhos realizados pelas associações e grupos voluntários. Nos décadas seguintes, a
mortalidade em Milwaukee reduziu-se ainda mais (ibidem, pp. 26573). Entretanto, apesar das conquistas evidentes das administrações
municipais, o Child Welfare Commission teve vida efêmera. Logo
após o fim da Primeira Guerra, o “Red Scare” levou a administração
seguinte a retirar todo o suporte financeiro ao centro (Duffy, 1992, p.
214). O que importa é salientar, como faz Rosen, que a ideia de centros comunitários de saúde firmou-se na memória institucional do
país, por meio de exemplos históricos como os de Milwaukee, Cincinnati, Boston e Nova York.
A experiência de Phillips em Cincinnati merece breve comentário. Foi nesta cidade que, em 1917, teve lugar sua experimentação
mais “ousada”, que logo lhe valeu a resistência de políticos conservadores (Mooney-Melvin, 1988). Novamente, a saúde materno-infantil
foi o eixo central do programa, que englobava a saúde comunitária e o
serviço social em um projeto de “social unit organizations”. Essas
unidades sociais compreendiam um Conselho de Cidadãos e um Conselho Profissional, atuando em conjunto com moradores, agrupados
em zonas residenciais ou “blocks”. Os profissionais, por sua vez, formavam subgrupos de médicos, enfermeiras e assistentes sociais. O
experimento de Cincinnati foi visto por conservadores como um ensaio de “sovietização” da vida comunitária (em função dos conceitos
de “block workers” e “block councils”) e, ao ganhar popularidade
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nacional, teve os recursos públicos e o apoio político solapados (Rosen, 1974, p. 314). A resistência conservadora e a entrada dos Estados
Unidos na Primeira Guerra minaram o programa de Cincinnati, na
medida em que o próprio movimento “progressista” se enfraquecia
durante os anos do conflito mundial. Quando o New Deal de F. D.
Roosevelt trouxe nova centelha para os ideais reformistas, privilegiando
o papel do governo no combate à pobreza e ao desemprego, era tarde
para deter o processo de esvaziamento pelo qual já passavam os centros de saúde no cenário americano. Rosen atribui o movimento descendente à própria entrada, em cena, da medicina hospitalar (Rosen,
1974). Paul Starr fala da “nova saúde pública”, mais voltada para exames preventivos em massa e prematuramente burocratizada, do que
para o “evangelho” da consciência sanitária (ibidem, pp. 189, 197).
Mas não resta dúvida de que a sociologia das profissões tem, aqui,
muito a dizer: a própria autoridade profissional (cf. Starr) da corporação médica, atuando nos bastidores, produzia o esvaziamento político
da reforma sanitária e de seu elemento-chave, que eram os centros de
saúde. Nesse sentido, Wilbur Phillips e seus seguidores haviam soado, talvez, o último canto do reformismo social em saúde pública em
seu país. Indicamos que os centros chegaram a multiplicar-se e difundir-se pelos Estados Unidos até o início da década de 1930. Mas,
diferentemente do Brasil, o enfoque comunitário e o componente de
“reforma social” estavam, ao findar dessa década, bastante comprometidos. Era a “nova” saúde pública, que já não suscitava apreensões da
profissão médica, nem feria os interesses da medicina hospitalar.
A concepção de centros de saúde no Brasil
A F UNDAÇÃO R OCKEFELLER :
UMA PROPOSTA EM ES CALA GLOBAL
Nos idos de 1915 a 1920, os sanitaristas paulistas pareciam emular
os grandes nomes da medicina social alemã. Basta lembrar a figura de
Alfred Grotjahn, traçada por George Rosen em seu estudo sobre as
origens da medicina social contemporânea. Enquanto Behring deificava a bacteriologia, Grotjahn proclamava a necessidade de um ponto
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de vista social para o enfrentamento dos problemas médicos de seu
tempo (Rosen, 1974, p. 95). Dois dos grandes nomes em São Paulo,
Samuel Pessoa (Paiva, 2003) e Geraldo Horácio de Paula Sousa (Faria,
1999, 2001, 2002), subscreveriam as posições de Grotjahn. Tome-se,
por exemplo, um estudo retrospectivo feito por Paula Sousa em 1939,
no qual reforça a vocação sanitária dos centros de saúde. Esse trabalho
contrasta os papéis do sanitarista, que “lançou como coluna mestra de
sua ação, o centro de saúde”, e a ação do médico, que lançara “o hospital, o ambulatório, a policlínica”. Era necessário, dizia, demarcar “a
razão de ser de cada uma dessas instituições, para que se não confundam as finalidades respectivas e para que produzam os benefícios de
que são capazes”. “A função perspícua do centro, entretanto, é a sanitária”: a origem dos problemas de saúde pública está nos “fatores do
meio”, que ameaçam a coletividade (Paula Souza, 1939, pp. 1-3).
Mesmo a medicina e a saúde pública nos EUA, em que pese seu
avanço extraordinário, não eram de forma alguma “autóctones”. Consideremos o exemplo de William H. Welch, a quem Duffy se referiu
como “uma figura dominante da medicina norte-americana” no primeiro
quarto do século XX (Duffy, 1992, pp. 252-3). Welch, patologista de
renome, consultor da Fundação Rockefeller e um dos idealizadores da
Johns Hopkins School of Hygiene and Public Health, recebeu na Alemanha (em Leipzig e Berlim), a influência de bacteriologistas europeus (Fleming, 1987, pp. 74-5). Por vezes, como ocorre em tais situações de intercâmbio, a demarcação rígida de fronteiras pode ocultar as interfaces
entre diferentes tradições. Todavia, ainda que se revelem influências
da tradição germânica, por exemplo, em William Welch, não resta
dúvida de que, notadamente após a Primeira Grande Guerra, a referência mundial das ciências “médico-sociais” do período mudou da Europa
para os EUA. Essa alteração na escolha internacional dos “significant
others”, seja em relação aos modelos institucionais da medicina experimental, ou às concepções vigentes sobre a saúde das coletividades e
os métodos de prevenção, afetou seguramente o cenário brasileiro.
Mas antes que passemos à análise da difusão do modelo norteamericano no Brasil — mais precisamente, do “modelo Rockefeller”
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—, deve-se repisar o que se disse anteriormente sobre o impacto mundial desse padrão, fruto da concepção filantrópica, da pedagogia e das
atividades médico-sanitárias da Fundação criada pelos Rockefellers.
Na própria Europa as influências foram nítidas. Na pátria de Pasteur,
a participação da Fundação Rockefeller foi decisiva. Em estudos exemplares, os historiadores Lion Murard e Patrick Zylberman referem o
apoio da International Health Board às atividades do Comité National
de Défense contre la Tuberculose, entre 1917 e 1923, além da transferência de um programa — “la raison de l’expert” — ao movimento
higienista francês.11 O perfil do “médico-sociólogo” Robert-Henri
Hazemann ( n. 1897, da mesma geração do brasileiro Samuel Pessoa),
ele próprio bolsista da Rockefeller nos Estados Unidos, retrata a “conversão” à ciência social aplicada do higienismo e à razão técnica, propagadas pelas missões da Rockefeller (Murard & Zylberman, 1985,
pp. 66, 73; 1987). Na Itália, a relação íntima entre dois grandes malariologistas de dois continentes — Alberto Missiroli e Lewis Hackett
— foi determinante na fundação de um centro de referência em toda a
Europa, a Stazione Sperimentale per la Lotta Antimalarica, em 1925,
embrião do Istituto Superiore di Sanità, ambos com suporte da
Rockefeller e do governo italiano (Stapleton, 2000).12 No continente
americano foram bolsistas da Fundação Rockefeller dois importantes
atores da reforma sanitária no México, Miguel Bustamante, diretor
do serviço de higiene rural desde 1928 e durante a década de 1930, e
Pilar Hernández de Lira, responsável por um programa de educação
médica nas áreas rurais, envolvendo recém-graduados, durante a presidência de Lázaro Cárdenas (1934-1940).13 A influência norte-americana produziu uma experiência de dupla face no México: a proposta
da Rockefeller difundiu-se claramente por meio das unidades de saúde “cooperativas” (governos local, estadual e Departamento de Salubridad Pública), muito próximas ao modelo clássico dos centros de
saúde. Por outro lado, sob o governo Cárdenas difundiu-se a concepção dos ejidos, cooperativas agrícolas que incluíam serviços de saúde
preventivos e curativos, com ampla participação popular. A educação
sanitária por meio de enfermeiras visitadoras e o enfoque “ecológico”
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(saneamento e abastecimento d’água), mais do que a luta antivetor,
tiveram prioridade nessas unidades de saúde. Nesse caso, sugere uma
estudiosa da experiência mexicana, seria sobretudo a influência da Johns
Hopkins e não, propriamente, o “modelo Rockefeller”, que teria prevalecido (Birn, 1996:2, pp. 7-208). Diante das relações extremamente
próximas entre as duas instituições — basta lembrar a influência de
Welch sobre ambas — torna-se difícil separar influências ou determinar claramente a distância entre modelos ou princípios de ação sanitária. Bustamante, no entanto, acreditava poder fazer tal distinção (ibidem, pp. 215-216), aparentemente ditada pela necessidade de
estabelecer um campo autônomo de atuação política e profissional
diante da presença da International Health Division em seu país, e
não por eventuais diferenças de concepção sanitária entre a Universidade
Johns Hopkins e a Rockefeller.14 Tanto no caso de um Hazemann na
França, de um Missiroli na Itália, de um Bustamante no México, de
um Paula Sousa ou de um Samuel Pessoa no Brasil, tudo indica que
eram as próprias tradições locais e o tipo de nacionalismo vigente —
a organização político-profissional, a tradição científica, as práticas
de saúde pública, a natureza da “consciência sanitária” em cada país
(isto é, as crenças e atitudes das populações diante das enfermidades,
das terapias cabíveis, etc.) — que ditavam os caminhos a seguir e a
distância, maior ou menor, que as políticas de saúde nacionais acabariam por seguir em relação ao “modelo Rockefeller/Johns Hopkins”.
A F UNDAÇÃO R OCKEFELLER :
B RASIL
Lewis W. Hackett foi o “peso pesado” da Rockefeller no Rio de
Janeiro entre 1916 e 1923 (antes de transferir-se para a Itália) e, na
ausência de um movimento de reforma sanitária profundamente politizado como o mexicano (em que o Estado chegou a mobilizar-se
francamente em prol da reforma sanitária e mobilizava os camponeses
para a saúde rural), o programa até certo ponto “despolitizado” da
Rockefeller encontrou resistências menores e ressonâncias mais fortes.
Daí, por exemplo, a estreita aliança — dir-se-ia mesmo, a cumplicidade
UM PROJETO PARA O
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— que se firmou entre Hackett e Carlos Chagas, no plano nacional.
(Mais tarde, com a saída de Hackett, os sanitaristas brasileiros firmaram outras parcerias com a Rockefeller.) A reforma sanitária nas áreas
rurais brasileiras foi antes uma opção retórica do Estado do que uma
adesão a estratégias concretas de mudança no campo, o que permitiu,
particularmente em áreas do Nordeste, a atuação mais desimpedida da
Rockefeller. Isto se diga, desde logo, sobre a ausência de um caráter
diretamente “mobilizador” das ações da Rockefeller: no longo prazo, a
educação sanitária por meio dos centros de saúde deveria produzir nos
proscritos da Nação a consciência dos direitos à saúde e do abandono a
que as autoridades governamentais os relegaram por gerações.
A discussão que se segue, sobre a experiência de São Paulo, é
apenas um dentre muitos capítulos que se poderiam escrever sobre a
balança de poder e o jogo de influências profundamente instável entre
insiders e outsiders, na luta pela reforma sanitária não apenas no Brasil,
mas em vários países, no período entreguerras. No caso paulista, como
em outras partes do mundo, o contato com os cientistas e sanitaristas
norte-americanos abriu caminhos para a pesquisa em saúde pública,
para a formação das chamadas “profissões de saúde” e para o avanço
da educação sanitária. Ao chegar ao Brasil, em 1916, a Rockefeller
concedeu bolsas de estudos para jovens cientistas para o curso de Saúde Pública da School of Hygiene and Public Health, da Universidade
Johns Hopkins, em Baltimore. Dessa geração de brasileiros destacaram-se: Geraldo Horácio de Paula Sousa,15 Francisco Borges Vieira,16
Pinheiro Chagas,17 entre outros.18 Viagens de especialização para os
Estados Unidos passaram a fazer parte do universo destes cientistas
brasileiros. A partir das primeiras levas, vários médicos e sanitaristas
— selecionados por critérios universalistas, entre os melhores na sua
especialidade — seguiram para cursos na Johns Hopkins, sob os auspícios da Fundação Rockefeller.19
Os padrões e métodos de trabalho dos norte-americanos começaram a influenciar as novas gerações de pesquisadores e sanitaristas
brasileiros. Este grupo veio a trazer para o Brasil — não apenas para
São Paulo — uma concepção de saúde pública que, até certo ponto,
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reforçava o “padrão Manguinhos”, baseado na profilaxia de doenças
infecciosas e nos métodos experimentais da microbiologia. Foi particularmente na educação sanitária e na formação de profissionais na área
da saúde pública que o programa da Rockefeller trouxe uma contribuição renovadora. Tratava-se de uma proposta de intervenção sanitária
ousada, cujo eixo se localizava nos centros de saúde e postos de higiene.
O EXEMPLO PAULISTA
Os centros de saúde foram inicialmente introduzidos em São
Paulo, por Geraldo Horácio de Paula Sousa, durante sua administração no Serviço Sanitário (1922-1927). Três anos após assumir a direção da instituição, Paula Souza daria início a profunda reformulação
do conjunto dos serviços públicos de saúde.20 A partir da reforma de
1925, assistiu-se ao surgimento de uma nova estrutura institucional
no Serviço Sanitário. Os centros de saúde — pautados na concepção
dos postos municipais da Fundação Rockefeller — seriam o “eixo”21
das atividades de saúde pública em todo o estado de São Paulo.
As medidas sanitárias nesta fase, apoiadas e, em parte, financiadas pela Fundação Rockefeller, deveriam, na visão de Paula Sousa,
inspirar-se no modelo de saúde pública adotado nos Estados Unidos,
levando-se em consideração as diferenças culturais, sociais e políticas
entre os dois países. Não se tratava, portanto, de um transplante.
Os centros de saúde assumiram papel de destaque no projeto
sanitário de São Paulo. Essas unidades conjugavam ações sanitárias,
serviços médicos e serviços sociais. Inicialmente foram instalados três
centros de saúde em São Paulo: o Centro de Saúde-Modelo — anexo
ao Instituto de Higiene22 —, o Centro de Saúde do Brás e o Centro de
Saúde do Bom Retiro. Todos iniciaram suas atividades em 1925 (Cortez, 1926).
Na concepção de Paula Sousa, os centros de saúde seriam serviços
permanentes para as áreas interioranas e urbanas do estado. A educação sanitária era, nessa proposta, o elemento-chave para a formação
de uma consciência sanitária da população. Esse conceito operava como
um horizonte para a saúde pública, até certo ponto no espírito generoso
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de “missão” dos higienistas militantes do DNSP, isto é, ao modo de
um Belisário Pena. Confronte-se o discurso do pediatra Adamastor
Cortez, do grupo de Paula Sousa:
quando virmos a prática da profilaxia das moléstias transmissíveis dando os frutos que dela sempre se esperam; quando o
índice da mortalidade infantil baixar consideravelmente; quando
os hospitais de isolamento tiverem leitos desocupados, poderemos afirmar que a consciência sanitária do nosso povo se acha
promovida, porque só ela poderá alcançar tal objetivo (Cortez,
1926, p. 25).
Mas já não estávamos diante de propostas grandiloquentes de
“salvação do Brasil”. Já se via, claramente, na proposta dos centros o
traço marcante do modelo Rockefeller, de uma “ciência administrativa
aplicada à saúde”.23 Os centros de saúde e postos de higiene tinham,
na formulação da Reforma de 1925, características de um programa
diversificado, que incluía assistência médica e educação sanitária. Os
“serviços” eram o sinal da especialização: Serviço da Criança; Serviço
de Olhos; Serviço de Ouvidos, Nariz e Garganta; Serviço de Exame
Médico Periódico;24 Serviço de Inspeções de Saúde Requisitadas;
Serviço de Exame Médico Geral; Serviço de Tuberculose; Serviço
de Sífilis e Moléstias Venéreas; Serviço de Laboratório (exame de fezes, sangue e escarro); Serviço de Educação e Vacinações. Essas unidades sanitárias, além da capital paulista, foram distribuídas pelas áreas
rurais, onde eram conhecidas como postos permanentes de saúde (Cortez, 1926, pp. 119-21). O artigo 51 do Decreto 3.876, de 11 de julho
de 1925, especificava as principais atividades dos centros de saúde:
Em cada centro haverá em determinados dias e horas e
em dependências apropriadas, os seguintes serviços gratuitos,
nos termos que forem previstos no regimento interno e franqueados ao público: a- higiene pré-natal, b- higiene infantil, c- higiene pré-escolar, d- higiene escolar, e- higiene das outras ida-
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des, f- exames periódicos, médicos e dos hábitos de higiene,
g- tuberculose, h- verminoses, i- sífilis e moléstias venéreas,
j- nutrição e dietética, k- outros que especificar o regimento
interno.25
A proposta representou uma mudança significativa nos rumos
seguidos até então pelos serviços estaduais de saúde em São Paulo
(Mascarenhas, 1949, p. 88), particularmente na prioridade atribuída à
educação sanitária. Nesse sentido, foi inovadora a criação de uma Inspetoria de Educação Sanitária e Centros de Saúde. Nessa nova Inspetoria atuavam as educadoras sanitárias — novos agentes da saúde
pública — elaborando cartazes de propaganda, realizando visitas domiciliares, palestras, exposições e conferências, fornecendo conselhos
e noções de puericultura. Eram os novos atores da reforma sanitária,
como destacavam Paula Sousa e Borges Vieira: “o trabalho das educadoras sanitárias, [. . .] constituiu entre nós, indubitavelmente, o pivot essencial do triunfo” (Paula Souza & Borges Vieira, 1944, p. 34).
Em relatório do Serviço Sanitário para o ano de 1925, Paula
Sousa denominava os centros um “verdadeiro órgão de sondagem social”, que visava sobretudo a saúde da família. Cabia à educadora sanitária, nesse processo, visitar as famílias, transmitir às mães noções de
puericultura e encaminhar para os centros os necessitados de cuidados
médicos. Nessa fase, as taxas de mortalidade infantil eram elevadas em
São Paulo e Paula Sousa sentenciava: “a absoluta carência de noções
de puericultura por parte da grande maioria das mães” era um dos
elementos principais da mortalidade infantil.26
A partir de 1926, verificou-se um crescimento significativo dos
gastos estaduais com serviços de saúde pública, em especial com os
postos permanentes. Aos poucos, os dispensários especializados foram
cedendo lugar aos centros de saúde e postos de higiene, onde os problemas higiênicos, sanitários e sociais eram considerados em conjunto, e
não mais em seus aspectos isolados. Já no ano seguinte operava no
estado quase meia centena de unidades, encarregadas de prestar atendimento geral à população e a realização de análises laboratoriais.
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Simultaneamente, abria-se um campo para a formação de profissionais de saúde pública. Do total de centros e postos de saúde, dezesseis
eram mantidos com a cooperação da Fundação Rockefeller.27
C RÍT ICOS
E DEFENSORES DA PROPOSTA
DE INTERVENÇÃO SANITÁRIA
A parceria Paula Sousa e Fundação Rockefeller gerou atritos e
ressentimentos entre os profissionais da área da saúde. Contra o programa dos centros de saúde voltou-se um grupo influente, constituído
por sanitaristas do porte de Francisco de Sales Gomes Jr.,28 Artur
Neiva29 e Valdomiro de Oliveira.30 Um dos principais motivos dos
ataques que sofria Paula Sousa era sua defesa intransigente do modelo
mais generalista da Fundação Rockefeller. O grupo de Sales Gomes
defendia um modelo centrado nos problemas específicos da saúde.
Neste sentido, inspetorias especializadas — “estruturas verticais especializadas” — ficariam responsáveis pela realização de pesquisas sistemáticas e por campanhas de combate a doenças como a lepra, a tuberculose e a malária (Merhy, 1992). Durante a gestão do governador
Júlio Prestes (1927-1930), em que Valdomiro de Oliveira assumiu a
direção do Serviço Sanitário, as atividades dos centros de saúde em
São Paulo entraram em certo processo de desaceleração.
Ao assumir a direção do Serviço Sanitário, em 1930, Sales Gomes procurou abandonar definitivamente o espírito da reforma de 1925.
Já mencionamos o caráter temporário da rejeição ao projeto, na primeira parte desse trabalho. Com efeito, no período de Oliveira e Sales
Gomes não houve abandono definitivo do projeto de Paula Sousa.
Pois ficou claro, em pouco tempo, o papel multiplicador que os centros de saúde desempenharam, mesmo depois da tentativa de superação do modelo administrativo anterior. Apesar da forte presença de
serviços específicos, os centros de saúde tradicionais ocuparam ainda
um lugar de destaque na organização dos serviços estaduais durante o
pós-1930, no interior e na capital. Tudo leva a crer que a tentativa de
desestruturação do “modelo Paula Sousa” não teve efeitos tão dramáticos nem tão duradouros quanto sugere a literatura, ou — este é um
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ponto fundamental — como supunham até mesmo Paula Sousa e seus
companheiros (Faria, 2002).
Em meio às disputas e rivalidades, predominou um certo consenso em relação à forma de organização e execução das atividades
dos centros de saúde: “a delimitação de uma população dentro de um
território circunscrito”, ou seja, a criação de distritos sanitários (Scarparo Cunha, 1994, p. 33). Tal consenso, na verdade, estendia-se além
dos limites dos serviços de saúde paulistas, pois também na capital do
país o sistema distrital de saúde era o modelo predominante. Barros
Barreto, cuja atuação durante o período varguista, como diretor-geral
do Departamento Nacional de Saúde Pública, já foi destacada, defendia firmemente o modelo tido como “horizontal”. A seu ver, era esse o
modelo que possibilitava o melhor atendimento à população pobre da
cidade e do campo.
Para o público, o novo sistema da divisão distrital é a certeza de poder ver atendidos, em um mesmo local e de uma só
vez, todos os seus interesses e necessidades em matéria de higiene. Se vai alguém a um dispensário, e tem necessidade de exame
complementar, de recorrer a outros serviços, não terá de voltar
em dias ou horas diferentes; por outro lado, pessoas de uma
mesma família, matriculadas em vários dispensários, poderão
vir todas de uma só vez, que prontamente serão atendidas (Barros Barreto, 1931, p. 253).
José P. Fontenelle, inspetor sanitário do DNSP, que se notabilizou como professor de enfermagem de saúde pública na Escola Ana
Nery, era veemente defensor do modelo distrital. Desde 1929, dirigiu
inúmeros centros de saúde na capital federal (como em Inhaúma) e
em 1934 assumiu a Inspetoria dos Centros de Saúde. Recém-chegado
dos Estados Unidos, onde estudou na Johns Hopkins com bolsa da
Rockefeller, discursou no III Congresso Brasileiro de Higiene (4-12
de novembro de 1926), em São Paulo, sobre “o novo sistema de administração oficial de Saúde Pública, inteiramente descentralizado pelos
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vários bairros do Rio de Janeiro”. Àquela alocução no Congresso de
Higiene se referiu Fontenelle, anos mais tarde, em sua obra sobre a
saúde pública no Distrito Federal:31
Seria este [serviço do Distrito Federal] organizado por
áreas correspondentes de modo geral às atuais freguesias urbanas e suburbanas. Em cada uma, um Centro de Saúde completo,
sede da atividade do respectivo sanitarista, trabalhando sob o
regime de tempo integral e, ao seu redor, médicos especialistas,
de tempo parcial, fazendo funcionar os dispensários, em dias e
horas diferentes. Cada centro desses seria também um centro de
enfermeiras, um centro de propaganda, um centro de guardas,
enfim, um centro de esforços em matéria de saúde pública naquela área limitada (Fontenelle, 1937. Apud: Scarparo Cunha,
1994, pp. 23-5).
Esse foi o modelo de centro de saúde, proposto por José P. Fontenelle e João de Barros Barreto para o Distrito Federal e que, segundo Fontenelle, se aproximava da proposta de “organização distrital das
enfermeiras de certas cidades dos Estados Unidos” (Scarparo Cunha,
1994, p. 24).
1930 E DEPOIS : TRAVAND O UMA BATALHA PERDIDA ?
A saída de Paula Sousa do Serviço Sanitário, em 1927, não
significou o abandono de suas propostas de saneamento pelos sanitaristas paulistas. Este é um ponto em que o presente trabalho diverge
das posições mais correntes da literatura. A nosso ver, o objetivo fundamental das unidades de assistência à saúde manteve-se como uma
referência para o movimento sanitário brasileiro. Frise-se que foi uma
referência nacional, não apenas um legado para os paulistas. Os objetivos são traçados com clareza por Paula Sousa: tratava-se de promover a consciência sanitária das populações e, como finalidade correlata, os serviços de profilaxia geral e específica. Note-se que seu programa
não extinguia os dispensários e serviços de caráter especializado. Es-
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tes eram definidos como uma das finalidades dos centros de saúde, sob
cuja direção deveriam entrosar-se (Paula Souza & Borges Viera, 1944,
p. 4). Do ponto de vista do ensino, a institucionalização das questões
da saúde e do saneamento, como pauta de investigação científica e
tema das políticas públicas, projetou o Instituto de Higiene nacional e
internacionalmente. Aqui, também, a parceria entre a Rockefeller e a
“Casa de Paula Souza” — permita-se a expressão — pode ser vista
como uma atividade de filantropia científica que alcançou os resultados esperados. O próprio espaço conquistado pelo Instituto de Higiene frutificaria anos mais tarde, em 1945, na criação da Faculdade
de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo, após a
superação das críticas e de vicissitudes políticas criadas pelo grupo de
Sales Gomes durante o regime varguista.32 Barros Barreto (que chegou a assumir, por curto período, a direção dos serviços sanitários do
Estado de São Paulo), resumiu tais vicissitudes na seguinte passagem:
São Paulo inaugurou [os centros de saúde] na administração eficiente de Paula Sousa, desprezou-os posteriormente, restabeleceu-os quando fui diretor do Departamento de Saúde daquele estado, pôs de novo de lado e agora os implantou numa
terceira investida (Barros Barreto, 1938, pp. 298-9).
Barros Barreto refere-se aos três centros de saúde inaugurados
por Paula Sousa em São Paulo, em 1925. Na década de 1940, o estado
já contava com sete centros, além de dez postos de higiene e cerca de
oitenta subpostos de saúde. A reforma dos serviços estaduais de saúde,
em 1938,33 durante o governo de Ademar de Barros — antigo membro do PRP e interventor entre 1938 e 1941 — incentivou a formação
de uma rede de serviços e o aumento dos gastos com os centros de
saúde. Em novo decreto estadual (n.o 9.273, de 28 de junho de 1938),
foram organizados os serviços dos centros de saúde da capital. O Decreto 9.339, de 18 de julho de 1938, previa recursos para a construção
de onze centros de saúde na capital. O Decreto 9.341, de 20 de julho
de 1938, organizou, por sua vez, o Serviço do Interior do Estado,
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composto de diretoria com sede na capital e dos centros de saúde no
interior do estado.34
No governo de Fernando Costa (1941-1945) houve um aumento significativo dos centros de saúde em São Paulo. O Decreto 12.784,
de 24 de junho de 1942, foi responsável pela criação de quase cinquenta centros de saúde em vários municípios paulistas (Mascarenhas, 1959, pp. 184-6). Nessa época, Samuel Pessoa (o antigo discípulo de Wilson Smillie no Instituto de Higiene, agora chefe do
Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina) ocupava o
cargo de diretor do Departamento de Saúde estadual.35 Findo o Estado
Novo, o segundo governo de Ademar Pereira de Barros (1947-1951)
ampliou a rede distrital de centros de saúde, pelo Decreto 18.165, de
22 de junho de 1948.36
Ainda que os centros de saúde fossem parte fundamental das
propostas da Reforma Sanitária em São Paulo, concebida nos anos de
1920, foi durante os anos 1930 e 1940 que houve aumento significativo desse tipo de serviço em todo o país. A influência do programa da
Rockefeller também se verificara no Distrito Federal, transmitida por
ex-bolsistas da International Health Board, como o próprio Barros
Barreto e José Paranhos Fontenelle. Havia, portanto, influências mútuas e consonâncias acerca da ideia dos centros de saúde, tendo São
Paulo e o Distrito Federal papel decisivo (além de Minas Gerais,
onde Ernani Agrícola era um forte aliado).37 Difícil concluir, em face
das evidências históricas de todo o período, que o projeto de Paula
Sousa e companheiros tenha sido uma “batalha perdida”.
As evidências no plano nacional — não apenas no caso paulista
— são consideráveis. A partir de 1934 instituiu-se, nos serviços sanitários de vários estados, o sistema distrital dos centros de saúde e postos
de higiene, que passou a incorporar e conjugar as atividades antes
exercidas pelas inspetorias especializadas (Arquivo Capanema. Apud:
Schwartzman, 1983).38 Durante toda a década de 1940, essas unidades sanitárias firmaram seu lugar no cenário nacional.39 Além dos
centros de saúde e postos de higiene, foram criados subpostos de higiene,
postos de higiene especializados e postos itinerantes. A Divisão de
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Organização Sanitária, do recém-criado Ministério de Educação e
Saúde Pública, determinava que cada centro de saúde deveria dispor
de no mínimo cinco médicos e cinco enfermeiras ou visitadoras. Já os
postos de higiene dividiam-se em duas categorias: Posto de Higiene
de 1.a classe (PH1) e Posto de Higiene de 2.a classe (PH2). Se o posto
de higiene executasse as mesmas atividades do centro de saúde, mas
em escala mais reduzida e com número inferior de médicos e enfermeiras, denominava-se PH1. Se o posto dispusesse apenas de um
médico e uma enfermeira ou visitadora, era classificado como sendo
de 2.a classe. Note-se a importância da enfermagem de saúde pública
no programa dirigido por Barros Barreto. “A falta de visitadora, o grande elemento de ação da unidade sanitária, embora haja mais de um médico
em serviço, implica em relegar o posto de higiene para a categoria de
subposto” (Barros Barreto, 1942, p. 209; nossa ênfase). Os postos especializados eram montados para atividades específicas como, por
exemplo, o tratamento do tracoma, e, finalmente, os postos itinerantes
— totalmente dependentes dos centros de saúde e postos de higiene
— asseguravam a extensão das atividades a toda a área sob seu controle. Eram fundamentais no trabalho com as populações rurais.
É importante lembrar que, entre os anos de 1935 e 1939 e 1941
e 1945, João de Barros Barreto dirigiu a Diretoria Nacional de Saúde
e Assistência Médico-Social (DNSAMS), do Ministério da Educação e Saúde. Os artigos que publicava na revista Arquivos de Higiene
refletiam sua posição militante a favor dos centros de saúde. (Veja-se,
por exemplo, Barros Barreto, 1937.) Não resta dúvida de que Barreto
era um dos mais importantes aliados de Paula Sousa na defesa de suas
concepções de assistência à saúde, e seguramente o mais importante
para sua implementação em todo o país. Se forem incluídos os 16
centros de saúde do Distrito Federal, havia, ao findar a década de
1940, 54 centros de saúde, 54 postos de higiene de 1.a classe, 140 de
2.a classe, 304 subpostos, além de 13 postos especializados e 13 itinerantes, perfazendo um total de 578 unidades em todo o território nacional. Essas ações no campo da saúde pública mostram que, apesar
da existência de serviços voltados para o tratamento e profilaxia de
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doenças específicas como a lepra, a malária e a febre amarela, os centros de saúde ocupavam um espaço privilegiado.
R ECUPERANDO TRAÇOS COMUNS E DIFERENÇAS
A concepção de um centro de saúde oferecendo serviços para a
população de determinada área e sua concretização em formas organizacionais de múltiplos objetivos foi o aspecto central de um amplo
movimento pela reforma sanitária, que se desenvolveu nos EUA, na
Europa e na América Latina durante a segunda e terceira décadas do
século XX, como resposta às circunstâncias e necessidades da população mais pobre dos centros urbanos. Ainda que tenha se originado em
áreas urbanas, como política pública ou iniciativa particular, a expansão dos centros de saúde para as regiões rurais, por meio de serviços
itinerantes, foi um traço bastante frequente em vários países.
Como no caso do Brasil, a experiência norte-americana dos health
centers difundiu-se por vários continentes, em grande parte pela ação
internacional da Fundação Rockefeller e de suas divisões sanitárias.
Todavia, procurou-se aqui ressaltar que, de modo geral, os centros de
saúde não foram uma réplica dos serviços comunitários de saúde norte-americanos. As formações históricas, as tradições médicas e culturais
e os contextos políticos distintos exigiram adaptações que diferenciaram
as trajetórias dos centros de saúde em países como o México e o Brasil.
Entretanto, perduraram alguns elementos comuns importantes: entre
eles, o incentivo à educação sanitária foi o objetivo primordial do
modelo dos centros de saúde nos mais diversos contextos nacionais,
bem como a ideia de administração distrital ou local. Nos exemplos
de São Paulo e Milwaukee, aqui analisados, a proposta de centros de
saúde constituiu um traço marcante na história da saúde pública dessas
cidades e desses países. São Paulo não recebeu o título de “cidade
mais saudável”, como Milwaukee, 40 mas ficou igualmente conhecida
pelo pioneirismo na área da saúde pública.
Houve diferenças expressivas entre os dois modelos abordados.
O próprio declínio do modelo dos centros de saúde nos Estados Unidos aponta para algumas diferenças fundamentais, sobretudo para o
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caráter da pobreza nesses dois países. No Brasil, a dimensão mais
brutal da exclusão exige, até hoje, uma concepção de atenção primária
que talvez encontre nos centros de saúde sua realização mais eficaz.
Por outro lado, a importância da educação e conscientização sanitária
para o movimento das unidades comunitárias — dimensão que, como
bem acentuaram Patrick Zylberman e Lion Murard, revelava a cunha
de intervenção social, presente nas propostas de reforma — não perdurou no caso norte-americano, em função do surgimento de uma “nova
saúde pública” em que os sanitaristas cederam lugar aos profissionais
da epidemiologia e da bioestatística e aos apologistas do “corpo saudável”, individualizado e asséptico.41 Na concepção inicial, era o civismo
a nota dominante do movimento dos centros de saúde. Isso explica sua
sobrevivência no caso brasileiro, se tivermos em conta que a luta pela
cidadania (a saúde como direito social) é uma dimensão essencial dos
movimentos sociais no Brasil contemporâneo. Por outro lado, o surgimento e o impacto dos complexos hospitalares em todo o mundo —
fatores que explicam, em larga medida, o desprestígio da atenção primária nos países ricos — não atenderam à carência de serviços básicos de saúde, particularmente das camadas populares. Nos países do
Terceiro Mundo, onde as carências são mais agudas, os centros de
saúde, a enfermagem de saúde pública e a educação sanitária persistem, nas suas formas e conteúdos atuais, extraordinariamente próximos dos ideais e objetivos dos sanitaristas das décadas de 1920 a 1940.
As lições (e resistências) vividas pelos sanitaristas daqueles tempos,
em Milwaukee ou São Paulo, serão lembradas ainda hoje?
A LGUNS DES CAMINHOS DA INTERPRETAÇÃO
Aqui deixamos de lado nossa preocupação comparativa em relação às experiências brasileira e norte-americana, para examinar o caso
paulista. Nosso propósito aqui será discutir a interpretação, e para tanto a reflexão sobre a reforma dos centros de saúde em São Paulo é
interessante, mesmo considerada isoladamente. Apenas se diga, sobre
nossa breve exposição do programa de saúde pública nos Estados
Unidos, que teve curta duração o ensaio de “intervenção social”, em
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que se mesclavam noções de civismo e educação sanitária; e acrescente-se, ainda, que, após um curto período, logo se firmou a ascendência
da “nova” saúde pública norte-americana, comandada por epidemiólogos, bioestatísticos e especialistas, cujos perfis profissionais sobrepujaram os sanitaristas em sua velha roupagem cívica — ao modo que
poderia ter sido previsto por Pierre Bourdieu.
Já há tempos Pierre Bourdieu descrevia o campo científico como
um lugar de lutas (Bourdieu, 1989, cap. VII). Os cientistas buscam
constantemente o monopólio da autoridade e competência científica
sobre uma determinada área de conhecimento ou atividade. Essa autoridade é ao mesmo tempo capacidade técnica e poder social, conferindo a um agente determinado a possibilidade de falar e agir legitimamente. De fato, na área da saúde não estava em jogo o poder
propriamente político mas, justamente como sugere Bourdieu, o poder social, intimamente ligado ao comando ou controle sobre instituições de serviços (o Serviço Sanitário) e de pesquisas (o Instituto de
Higiene). Tratava-se de uma luta simbólica — havia crenças e valores
em jogo — pela conquista do monopólio do exercício legítimo de
uma atividade ou conhecimento científico. Legitimidade científica e
luta simbólica se entrelaçavam e envolviam grupos com ideias e interesses divergentes. A noção de luta simbólica pode esclarecer, sem
dúvida, aspectos importantes dos processos que aqui pretendemos analisar. Entretanto, o elemento de conflito não pode obscurecer, para o
entendimento da reforma sanitária deste período, o elemento de negociação, de conciliação e de concessões. A relação entre os “partners of
science” de Paula Sousa e o grupo de brasileiros constituía um bom
exemplo. Em 1929, Fred Soper (também hábil negociador) escrevia a
seus diretores da Rockefeller sobre Valdomiro de Oliveira, “desafeto”
de Paula Sousa e novo chefe do Serviço Sanitário: de um lado, criticava-o por tentar destruir o legado da parceria entre Paula Sousa e a
Rockefeller; mas, por outro lado, falava de um Valdomiro cioso das
boas relações de amizade com a Fundação.42 As relações entre os
vários grupos dissidentes de São Paulo, bem como a própria interação
entre os paulistas e os sanitaristas do Distrito Federal (a exemplo de
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Barros Barreto), contam uma história semelhante, de lutas e concessões. Paula Sousa e seus companheiros de academia e do mundo profissional não eram, a rigor, monopolizadores de capital simbólico. O
líder do grupo, particularmente, era um hábil negociador.
Para se obter crédito científico no “mercado” da produção do
conhecimento — este termo deve vir entre aspas, pois não se trata
nesse caso de um conceito explicativo, mas de uma metáfora — Bourdieu enfatizava uma condição essencial: é preciso que o modelo de
ciência que se quer difundir ou aplicar seja reconhecido e aceito como
uma definição legítima. Vimos como a definição e a proposta dos
centros de saúde de Paula Sousa na verdade não excluía a concepção
supostamente antagônica, defendida por Sales Gomes no Brasil, que
era a proposta de inspetorias e serviços “verticais” de saúde. A primeira proposta era mais ampla do que a segunda, e na verdade a encampava sem extingui-la. Tudo se passava como se Sales Gomes e seu
grupo não quisessem “perceber” as interfaces entre os dois modelos
gestores da atenção à saúde, e tampouco o caráter legítimo da proposta dos centros de saúde, preferindo negar as interfaces para não terem
de explicitar as razões mais fortes da dissidência, que se encontravam
na verdade fora da arena científica. As razões da dissidência entre os
grupos devem ser buscadas, a nosso ver, na arena burocrática em formação e na vida partidária do estado. As alianças que as lideranças do
Instituto de Higiene e, sobretudo, os profissionais do Serviço Sanitário eram obrigados a manter com a vida partidária (Partido Republicano Paulista e Partido Democrático, antes de 1930, e Interventores
do Estado Novo, a partir de 1937), explicavam, em grande parte, as
dissensões entre os sanitaristas paulistas. João de Barros Barreto, cuja
atuação no âmbito federal permitia maior nitidez de visão em relação
ao que se passava em São Paulo, por isso mesmo nunca falava de
“abandono” de um modelo e sua substituição permanente por outro,
mas de “cochilos”, de fases transitórias. Deveria prevalecer, supunha,
o modelo que tivesse maior sustentação ao longo do tempo: inspetorias
verticais eram efêmeras, pois tinham a vida institucional presa à própria duração da luta contra uma enfermidade específica. A proposta
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“vencedora” dos centros de saúde era, desse ponto de vista, mais flexível, por ser mais abrangente. Mas dificilmente se pode falar de “proposta vencedora” e “proposta derrotada”.43 Mesmo em face de lutas
políticas e administrativas, que se travavam em torno das propostas
como se fossem questões “de vida e morte”, ainda assim não houve
uma concepção cabalmente derrotada ou definitivamente vencedora
no campo sanitário paulista e nacional. Por exemplo, se o nível endêmico de certas enfermidades no país justificasse um serviço ou inspetoria específicos (como a campanha nacional contra a tuberculose
demonstrou, desde 1946), tais ações eram implementadas, ainda que
para tal devessem lançar mão dos centros e postos de saúde existentes,
como um serviço no interior da própria unidade sanitária (Barreira,
1993, p. 137). Os centros de saúde representaram desde então a concepção mais forte, mas de modo algum cabe a sugestão — tão a gosto
da literatura — de modelo “hegemônico”.
A noção polarizada de campo, em Bourdieu, pode conduzir a
uma caricatura, na medida em que a análise procure hierarquizar, de
modo rígido, relações que nem sempre se pautavam pela dominação
sem contestações ou por dominados sem vitórias.44 Tal foi o caso dos
nossos atores principais. As disputas entre eles dificilmente poderiam
ser classificadas como lutas entre dominador e dominado. Não estamos, aliás — nunca será demais salientar — no campo das lutas de
classes, mas no das disputas profissionais, em que o capital simbólico
envolvido tampouco é capital expropriador, do ponto de vista marxista. Poderíamos dizer que a posição mais forte, que prevaleceu entre as
correntes do movimento sanitário nacional, foi sem dúvida a de Paula
Sousa. A literatura aponta, com razão, que Sales Gomes teve momentos de indiscutível ascendência no campo das propostas sanitaristas
para São Paulo. Mas elas não foram “hegemônicas” no pós-1930, nem,
tampouco, foram derrotadas pela proposta dos centros de saúde integrados. No espaço aberto pelo ideário mais universalista de Paula
Sousa, definiu-se mais tarde o lugar para os serviços específicos ou
“verticais”, ainda que fossem atividades complementares às atividades
dos centros de saúde.
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cap. 6, Castro Santos & Faria, 2010