Saúde mental e questão social
Edineia Figueira dos Anjos Oliveira1
Maria Lúcia Teixeira Garcia2
A proposta do presente trabalho é debater sobre o processo de reforma na política de
saúde mental, a partir da década de 1970, no período de efervescência dos movimentos
sociais que lutavam por garantir direitos e por democracia. Estabeleceremos aqui a
iniciativa do movimento em defesa pela reforma e implantação da política de Saúde
Mental como resposta a uma expressão da questão social, compreendendo que as
manifestações da “questão social” devem ser apreendidas a partir das lutas de classes,
dos sujeitos políticos envolvidos e das desigualdades sociais, que resultam em tais
manifestações (PASTORINE, 2004).
Historicamente a sociedade capitalista adotou como uma das práticas de exclusão a
construção de espaços fechados e isolados da comunidade no interior da própria
comunidade, como asilos para idosos, dispensários para leprosos, prisões para
criminosos e hospícios para os loucos, impondo enclausuramento aos indivíduos que
não se adaptaram ou não adaptáveis à dinâmica da sociedade capitalista
(WANDERLEY, 2008).
Como afirma Iamamoto (2010), os níveis de exploração de
desigualdades decorrente do modo de acumulação capitalista desencadeiam insatisfação
e resistências que se expressam nas lutas diárias, ainda que não de forma organizada e
com densidade política.
O objetivo desse artigo é analisar a configuração e implementação da reforma da
política de saúde mental como resposta a uma expressão das manifestações da questão
social que permeiam a vida das classes subalternas em nossa sociedade. Para tanto,
tomaremos como ponto de partida os anos 70 do século passado, período de inflexão na
área da saúde mental, momento em que entram em choque dois blocos: a indústria da
loucura – dizer o que é; e o Movimento de Luta Antimanicomial - dizer o que não é.
Têm-se de um lado, os interesses de movimentos numa luta aberta pela cidadania do
1
Aluna do Programa de pós-graduação em política social (PPGPS) (doutorado). Esse trabalho resulta do
aproveitamento da disciplina Trabalho, Ideologia e Questão Social.
2
Orientadora professora do Programa de pós-graduação em política social (PPGPS-doutorado).
“louco”. Do outro, a indústria da loucura privilegiada pela exploração desumana dessa
classe social subalterna.
Esse debate procura demonstrar em que circunstâncias a saúde mental entrou na agenda
política como resposta a uma expressão das manifestações da questão social destacando
as forças políticas envolvidas nesse processo. Aqui discutiremos a formulação e
dificuldade de implementação da política voltada para as pessoas que sofrem com
transtornos mentais, destacando a tensão entre o movimento de luta antimanicomial e a
indústria da loucura. Evidenciaremos os entraves para reversão do modelo hospitalar e a
luta pela consolidação de um modelo de atenção em saúde mental aberto e de base
comunitária.
Apontamos que a política de saúde mental não é resultado de um conjunto de práticas
institucionais, mas, de um processo de organização e mobilização de grupos sociais que
lutam pela reversão do poder.
Palavras Chaves: Saúde Mental, Questão Social e Reforma Psiquiátrica
INTRODUÇÃO
O debate sobre a implantação da reforma na política de saúde mental, a partir da década
de 1970, remonta o período de reemergência dos principais movimentos do país após
um longo período de repressão do regime militar. No conjunto dos movimentos sociais
se destaca o movimento da luta antimanicomial, que denuncia o tratamento oferecido às
pessoas que sofrem com transtornos mentais.
Apontamos aqui a implantação da reforma na política de Saúde Mental como resposta a
uma expressão da questão social, agudizada pelas condições impostas a determinados
grupos sociais no sistema capitalista, compreendendo que tais condições fragilizam as
possibilidades de reprodução material e de existência desses grupos sociais.
Nessas condições, aparecem quadros de adoecimentos sociais que não podem ser
verificado no caso clínico, mas na forma com que grupos humanos adoecem e morrem.
Observando a história podemos identificar como as classes dominantes impõem suas
necessidades ao conjunto da sociedade, condicionando um ou outro conceito de saúde e
doença que ignora o modo característico com que as pessoas adoecem ou morrem. O
conceito de saúde doença da sociedade capitalista, por estar centrado na biologia
individual, desconsidera seu caráter social e, em geral, relaciona-se à incapacidade de
trabalhar, o que está diretamente ligado a economia e eventualmente com a criação da
mais-valia e possibilidade de acumulação capitalista (LAURELL, 1982).
É, portanto, necessário desvelar essa relação tomando o caso da Saúde Mental. Estudos
demonstram a relação entre desemprego e sofrimento psíquico, entre eles: transtornos
mentais leves, depressão, sentimento de insatisfação com a vida, dificuldades
cognitivas, dependência química e dificuldades de relacionamento familiar (ARGOLO;
ARAÚJO, 2004). Mas, em uma perspectiva individualizante, esses fatores são
apontados como causas de desemprego (e não ao contrário).
Temos como pressuposto que as principais manifestações da questão social decorrem
das contradições inerentes ao sistema capitalista e que as formas de manifestações vão
depender das características históricas da formação econômica e política de cada país ou
região. Falar da questão social implica necessariamente em falar da divisão da
sociedade em classe e da apropriação desigual da riqueza gerada socialmente
(PASTORINE, 2004).
Entretanto, as respostas à questão social na agenda política não considera que para
enfrentá-la faz-se necessário colocar em questão a luta pela apropriação da riqueza
social, mas tem se reduzido a responder de forma mais eficiente - que em geral significa
racionalização de recursos escassos - aos problemas sociais, sob o direcionamento do
grande capital financeiro e da lógica neoliberal. Nessa lógica, as respostas dadas à
questão social passam a ser direcionadas para o mercado e para organizações privada, as
quais dividem com o Estado a implementação de programas focalizados de combate à
pobreza (IAMAMOTO, 2008).
Partimos da premissa de que a “questão social” se manifesta pelas desigualdades sociais
e antagonismos sustentados nas contradições próprias da sociedade capitalista, que, na
contemporaneidade, apresenta novas determinações (PASTORINE, 2004). “No novo
cenário a “velha questão social” metamorfoseia-se, assumindo novas roupagens”
(IAMAMOTO, 2008, p.21). Ela expressa a fratura entre o desenvolvimento das forças
produtivas e as relações sociais. Observa-se, na atualidade, o aumento das
desigualdades3, que faz parte da expansão capitalista. Expansão que cria uma população
sobrante de gente que não conseguiu se empregar, ou seja, parcelas de trabalhadores
colocados à margem do trabalho e das formas de troca socialmente reconhecidas. O
desemprego e a precariedade das condições do emprego estão vinculados a uma
regressão dos direitos sociais, decorrentes das mudanças no modo de produção e, mais
precisamente no mundo do trabalho (IAMAMOTO, 2008).
A reestruturação mundial do capitalismo após os anos de 1970 foi acompanhada de uma
ruptura do pacto entre as classes capitalistas e trabalhadores. Agora, o grande capital
internacional, põe em marcha uma série de reajustes e transformações econômicas,
políticas e sociais, intensificando o grave problema do desemprego estrutural, aumento
das desigualdades sociais e da pobreza (IAMAMOTO, 2010).
Os níveis de exploração de desigualdades decorrente do modo de acumulação capitalista
desencadeiam insatisfação e resistências que se expressam nas lutas diárias, ainda que
não de forma organizada e com densidade política. Lutas que ainda tímidas, se destacam
nos âmbitos do direito ao trabalho; pelo acesso a serviços públicos e de qualidade;
contra as discriminações étnico-raciais, de gênero e culturais, pelo direito a moradia, ou
seja, contra as várias formas de exclusão social (IAMAMOTO, 2010).
É nesse sentido que trazemos como objeto de debate a configuração e implementação da
política de saúde mental como resposta a uma expressão das manifestações da questão
social que permeiam a vida das classes subalternas em nossa sociedade.
O texto está estruturado em duas partes: O primeiro apresenta um debate de como a
questão social vem adquirindo novas formas na contemporaneidade, decorrente de
3
Em 2000, o percentual de trabalhadores desempenhando atividade parcial em relação ao emprego total
na Zona Euro, por exemplo, foi de 15,1%, atingindo 18,4% em 2007, ano anterior à crise, e finalizando
2012 com 20,5%. No Brasil registra-se uma tendência de queda na taxa de desemprego. Segundo dados
do IBGE (2014), com resultado apurado em janeiro de 2014 de pesquisa realizada em seis regiões do
Brasil (Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre), a taxa de ocupação
no conjunto das regiões pesquisadas, foi estimada em 53,7% e a taxa de desocupação foi de 4,8%. A
questão a ser considerada é salarial e condições de trabalho. A renda média mensal registrou em três
salários mínimos. O emprego jovem é outro tema a ser considerado. Em março de 2011, o Conselho de
Administração da OIT colocou esse tema na agenda da Conferência Internacional do Trabalho de 2012,
frente à intensificação da crise do emprego dos jovens. Crise esta compreendida como uma grave
violação da regra de melhoria do emprego e as perspectivas econômicas para as gerações seguintes. O
desemprego dos jovens é visto como ameaça que pode não só causar um aumento acentuado das
desigualdades entre os jovens, mas também, apresenta um claro risco de sociedades cada vez mais
desiguais.
profundas mudanças que vem ocorrendo nas relações entre capital e trabalho, na gestão
do Estado, no desenho das políticas sociais. A questão social na sociedade atual centrase nas extremas desigualdades e injustiça que permeiam a estrutura social. Ela se
fundamenta nas relações sociais estabelecidas, em suas dimensões econômicas,
políticas, culturais, religiosas, tendo como base estrutural a concentração de poder e de
riqueza de classes dominantes e na pobreza generalizada de classes subalternas.
O segundo item demonstra em que circunstâncias a saúde mental entrou na agenda
política como uma expressão das manifestações da questão social destacando as forças
políticas envolvidas nesse processo. Aqui discutiremos a formulação e dificuldade de
implementação da política voltada para a pessoa que sofre com transtornos mentais,
destacando a tensão entre o movimento de luta antimanicomial e a indústria da loucura.
Evidenciaremos os entraves para reversão do modelo hospitalar e a luta pela
consolidação de um modelo de atenção em saúde mental aberto e de base comunitária.
Por fim, apresentaremos nossas considerações a esse respeito.
A “Questão Social”
Debater a “questão social” implica necessariamente fazer referência ao capitalismo e ao
Estado por ele constituído e capturado (PASTORINE, 2004). Como afirma Pastorine
(2004), as principais manifestações da “questão social” - a pauperização, a exclusão e as
desigualdades sociais - decorrem das contradições inerentes ao sistema capitalista que,
em cada estágio, produz distintas expressões das manifestações da “questão social”.
A análise da questão social está diretamente ligada às configurações assumidas pelo
trabalho e situa-se em uma arena de disputas entre projetos societários de distintos
interesses de classe, com diferentes concepções e propostas para o direcionamento das
políticas sociais (IAMAMOTO, 2008).
Compreendemos que a questão social, como parte constitutiva das relações sociais
capitalistas, expressa as desigualdades sociais resultante do modo de produção
capitalista. Requer no seu enfrentamento a coletivização das demandas dos
trabalhadores, a responsabilidade do Estado no provimento dessas demandas e a
afirmação de políticas sociais de caráter universal (IAMAMOTO, 2008; PASTORINE,
2004; YAZBEK, 2001).
Para Castel (1998) a questão social sempre existiu e, ele a define como uma “aporia
fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta
conjurar o risco de sua fratura” (CASTEL, 1998, p.18). Ele compreende que a questão
social tornou-se explicita no século XIX como “questão social operária” com diferentes
problemáticas em relação às sociedades do Antigo Regime. Partindo da ideia de que a
“questão social” foi se redefinindo e se metamorfoseando com o passar do tempo, ele se
propõe em analisar o que há de comum e diferente nas heterogêneas situações de
vulnerabilidade social entre o século XIV ao século XX. Castel (1998) concentra sua
análise na sociedade salarial e no surgimento do pauperismo compreendido como um
novo estado gerado não mais pela ausência de trabalho, mas pelo processo de
organização do próprio trabalho.
Partimos do pressuposto de que a questão social não pode ser compreendida como um
fenômeno recente, típico do esgotamento do padrão de acumulação fordista, anos
gloriosos da expansão capitalista. Ela deve ser entendida indissociável do processo de
acumulação capitalista e de seu impacto sobre as classes trabalhadoras, que vai exigir do
Estado uma resposta por meio de políticas sociais públicas (IAMAMOTO, 2008;
PASTORINE, 2004; YAZBEK, 2001).
A questão social expressa à emergência da classe trabalhadora e sua inserção no cenário
político, por meio de lutas pela cidadania. Uma luta que exige o reconhecimento como
classe, por parte da classe dominante e pelo Estado. Ela surge com a luta de classes
fundadas na contradição entre capital e trabalho, no estágio do capitalismo
concorrencial na segunda metade do século XVIII. A partir daí, os interesses
antagônicos da burguesia e proletariado estarão sempre presentes e evidentes na
evolução do capitalismo, inicialmente de formas mais grosseiras, mas aos poucos
avançam para uma crescente politização que as tornam mais conscientes (NETTO,
2012; NETTO, 2005; IAMAMOTO, 2008).
Mas, como afirma Netto (2005), é no capitalismo monopolista que são criadas as
condições para resposta à questão social, em razão de que o Estado por ele capturado
tem que buscar legitimidade política no jogo democrático de absorver demandas das
classes subalternas, desde que as mesmas sejam funcionais ao capital. Este processo é
tensionado pelas exigências da ordem monopólica, bem como pelos conflitos que esta
ordem incide em toda escala societária. Somente nestas condições as sequelas da
“questão social” podem tornar-se objeto de uma intervenção contínua e sistemática por
parte do estado (NETTO, 2005).
No capitalismo concorrencial, aproximadamente a partir de 1780, a “questão social” era
objeto da ação estatal na medida em que a mobilização da classe trabalhadora ameaçava
a ordem burguesa ou que, no limite, colocava em risco global o fornecimento da força
de trabalho para o capital. Mas, na fase monopolista, principalmente a partir das últimas
três décadas do século XIX, a questão social se internaliza na ordem econômicapolítica, tanto pelas características da nova ordem econômica quanto pela consolidação
política do movimento operário e necessidade de legitimação política do Estado
(NETTO, 2005).
Assim, com a emergência do capitalismo monopolista é possível pensar em política
social pública. Ela configura uma intervenção contínua, sistemática e estratégica sobre
as sequelas da “questão social”. A política social do Estado burguês no capitalismo
monopolista procura administrar as expressões da “questão social” objetivando atender
às demandas da ordem monopolista garantindo consensos variáveis, mas operantes. Ela
se expressa nos processos para preservar e controlar a força de trabalho e assegurar as
condições adequadas ao desenvolvimento monopolista. No nível político elas legitimam
o Estado como “social”, como mediador de interesses conflitantes (NETTO, 2005).
A teoria marxista não discute a expressão “questão social”, mas apresenta, no centro de
sua análise sobre a sociedade capitalista, os processos sociais que ela produz. Para a
tradição marxista, o regime capitalista de produção não é somente uma produção das
condições materiais da vida humana, mas também um processo que se desenvolve sobre
relações sociais de produção específica. Significa dizer que a produção bens materiais é
indissociável da forma econômico-social em que é realizada. O debate sobre trabalho e
questão social na atualidade só se sustenta se considerarmos essa dupla e indissociável
dimensão (IAMAMOTO, 2008).
Na contemporaneidade, a questão social não se encontra mais ligada às lutas dos
trabalhadores em prol dos direitos relacionados ao trabalho, mas passa a ser objeto de
um violento processo de criminalização das classes subalternas, tidas como classes
perigosas. Naturaliza-se a questão social na repressão e combate à violência em nome
de uma segurança pública e ou transformando suas manifestações em objetos de
programas assistenciais de combate a pobreza, focalizados. Ao invés de evocar uma
ação sistemática do Estado no atendimento às necessidades básicas dos segmentos da
classe trabalhadora evoca-se a repressão policial para dar conta de questões que
expressam as disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais. Assim,
as propostas de enfrentamento da questão social articulam assistência focalizada e
repressão com o poder coercitivo do Estado (IAMAMOTO, 2008, YAZBEK, 2001).
Na contemporaneidade a velha questão social é renovada sob nova roupagem e novas
condições sócio-históricas de sua produção e reprodução. As novas condições são dadas
pela crise econômica dos anos 1970, que desencadeou profundas mudanças nas formas
de produção e de gestão do trabalho diante das exigências do mercado oligopolizado em
um contexto de mundialização do capital. Essas mudanças alteraram a relação Estadosociedade, orientada pela lógica neoliberal (IAMAMOTO, 2008; PASTORINE, 2004).
Como afirma Harvey (1996), a partir de meados dos anos setenta do século passado,
observam-se profundas transformações na economia política do capitalismo
configurando um processo de reestruturação econômica e social. Delineia-se o começo
de um novo cenário: de um lado, tem-se um novo tipo de acumulação capitalista,
aprofundando um processo de financeirização da economia e, de outro, frente ao
esgotamento do modelo fordista, tem-se uma reestruturação produtiva, cujas
características principais são a flexibilização das relações de produção e trabalho,
desemprego e destruição dos sindicatos (HARVEY, 1996; MILAN, 2012).
A esfera financeira nutre-se da riqueza criada pelo investimento capitalista produtivo e
pela mobilização da força do trabalho no seu âmbito. Nessa esfera, o capital se
apresenta como se pudesse gerar valor no circuito fechado das finanças sem levar em
conta que o capital só pode extrair mais valia no sistema produtivo (IAMAMOTO,
2010).
Sob a égide do capital financeiro, a economia ampliou e concentrou o estoque de
riqueza financeira comparado à riqueza real, e permitiu maior alavancagem ao sistema
econômico. Mas, ao mesmo tempo, tornou este sistema mais frágil e mais sensível aos
choques financeiro, tendo em vista a desregulamentação e liberalização econômica que
garante total liberdade de ação dos especuladores (GUTTMANN, 1996). A abertura
abrupta da economia nos países periféricos e nos centros mundiais vem provocando
fechamento de empresas nacionais, elevação de taxas de juros e ingressos maciços de
capitais especulativos. Os investimentos especulativos são favorecidos em detrimento
da produção, o que resulta na redução dos níveis de emprego, no agravamento da
questão social e na regressão das políticas sociais públicas (IAMAMOTO, 2008).
Ao lado do processo de financeirização, o problema do desemprego estrutural foi
também reforçado pelo fenômeno da reestruturação produtiva, cuja característica
principal é a flexibilização das relações de produção e trabalho. A flexibilização afeta os
processos de trabalho, a oferta de trabalho e os direitos sociais e trabalhistas e os
padrões de consumo da população. A lógica é reduzir custo e aumentar a taxa de lucro.
Essa necessidade de redução de custo para o capital resulta em um amplo enxugamento
das empresas com a terceirização e redução do quadro de pessoal. O rebaixamento de
custos do chamado fator trabalho atinge a luta sindical frente à ameaça de desemprego,
rebaixamento de salários e cortes de direitos conquistados (MILAN, 2012). Para se
protegerem, os trabalhadores devem pagar pelos serviços de proteção, constatando
assim uma lógica comercial nas políticas de proteção social.
O processo de financeirização da economia não se reduz à preferência do capital por
aplicações financeiras especulativas em detrimento às aplicações produtivas, mas indica
um modelo de estruturação da economia mundial (IAMAMOTO, 2010). Os mercados
financeiros apresentam as finanças como potências autônomas diante das sociedades
nacionais, escondendo a dominação do capital transnacional e investidores financeiros,
que atuam com o aval e subsídios dos governos nacionais (IAMAMOTO, 2010;
BRETAS, 2012). Pacotes de salvamento para os grandes investidores, num momento de
crise econômica, direcionando recursos públicos para a iniciativa privada, como forma
de evitar que as empresas quebrem em cascata, constituindo a dívida pública
(BRETTAS, 2012; IAMAMOTO, 2010). A dívida pública se constitui como um
importante mecanismo de garantia de margens de rentabilidade do capital e de
fortalecimento dos credores, que passam a representar uma parcela significativa da
aristocracia financeira a partir dos anos de 1970 (BRETAS, 2012)
Esse tipo de dominação só é possível com a intervenção política e apoio dos Estados
nacionais e das coordenadas dos organismos internacionais. Os agentes financeiros
utilizam estratégias para garantir o arcabouço jurídico e político da liberalização e da
privatização do conjunto dos países. Corporações transnacionais e multilaterais - o
Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do
Comércio - subordinam as sociedades nacionais ditando as regras políticas e
econômicas, garantindo os interesses das classes dominantes em escala mundial
(IAMAMOTO, 2010).
O capital internacionalizado produz uma desigualdade social de um pólo a outro. Em
um pólo social concentra a riqueza e, noutro polariza a pobreza e a miséria, potenciando
a lei geral de acumulação capitalista, em que sustenta a questão social (IAMAMOTO,
2010). Os capitais se deslocam geograficamente à procura de novos espaços para a
exploração capitalista, intensificando a mais valia absoluta e relativa. Nesse processo de
exploração, empresas transnacionais subcontratam as pequenas empresas ou trabalho
em tempo parcial, intensificando o processo de flexibilização que destitui direitos
trabalhistas (NETTO, 2012).
Embora as mazelas da financeirização pudessem ser remediadas ou revertidas, através
de políticas sociais, a hegemonia do capital financeiro e de seu discurso liberalglobalizante ganha forças reduzindo direitos sociais tensionados pelas estratégias de
extração de super lucros (UGÁ, 2008).
Vale destacar que a pobreza é parte do descarte de mão de obra barata excluída da
expansão capitalista. Expansão que aumenta os grupos dos desamparados, dos
necessitados, dos desempregados de longa duração, do trabalho precário e instável.
Eleva-se a proporção de trabalhadores brasileiros que está fora do mercado formal de
trabalho e sem garantias de proteção social (YAZBEK, 2001).
Na contemporaneidade a pobreza mantém-se, apesar do aumento de riqueza. O Brasil é
um bom exemplo de concentração de riqueza. Apontado pelo Banco Mundial como a
sétima economia mundial, o Brasil encontra-se entre os países com maior Índice de
desigualdade social (3° lugar, ficando à frente apenas da Colômbia e da África do Sul
segundo a Organisation for Economic Co-operation and Development, dados de 2013)4.
Ao mesmo tempo em que o país cresce economicamente, aumenta a concentração de
renda e a desarticulação de amplos segmentos da sociedade (NETTO, 2012).
O novo da sociedade capitalista é o fato de que ela constitui as condições e as
4
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo (em 2012 os 40% mais pobres ganhavam apenas
11% da riqueza nacional) (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2013). Mas
essa desigualdade se expressa de forma diferente entre as regiões brasileiras: 40% no Norte e 40,1% no
Nordeste, mas não ultrapassa 11,3% no Sul (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA, 2013).
possibilidades para suprimir as carências materiais da massa da população, mas o que se
observa é que a massa da população encontra-se desprovida das necessidades básica de
sobrevivência. Ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo reúne
as condições de suprimir a fome do mundo, mas não o faz, o que torna a pobreza de
natureza distinta de todas as anteriores (NETTO, 2012). A constante desconstituição de
direitos sociais e trabalhistas feito em nome da justiça despolitiza o reconhecimento da
questão social brasileira como expressão das relações de classe que deixa de ser vista
como questão pública, política e nacional. A pobreza é deslocada para o lugar da não
política, onde é processada como um dado a ser administrado tecnicamente ou gerido
por práticas filantrópicas (YAZBEK, 2001).
Essa perspectiva ignora que a questão social centra-se nas extremas desigualdades e
injustiças que prevalecem na estrutura social, resultante dos modos de produção e
reprodução social, da forma em que cada sociedade nacional se formou e se
desenvolveu. Ela tem acento na concentração de poder e de riqueza de classes e setores
sociais dominantes (WANDERLEY, 2008).
Como já afirmado a questão social na conjuntura atual assume novas expressões
decorrentes das transformações do mundo do trabalho e da perda dos padrões de
proteção social dos trabalhadores e dos setores mais vulneráveis da sociedade que se
veem destituídos dos direitos conquistados. É nesse âmbito que se evidencia a pobreza e
a subalternidade como indicadores de uma forma de inserção na vida social. Uma
condição de classe e de outras condições que reitera a desigualdade como gênero, etnia,
expressando as relações vigentes na sociedade, definindo para esses grupos um lugar na
sociedade. Lugar onde são desqualificados seus valores, suas crenças, onde seus modos
de expressar-se e seus comportamentos sociais são tidos como indesejáveis (YAZBEK,
2001).
Como resultante desse processo tem-se o agravamento da exploração e das
desigualdades sociais inerentes ao modo de produção capitalista. Aumenta os
seguimentos populacionais “excluídos” do mercado por não conseguirem transformar
suas necessidades imediatas em demandas monetárias (IAMAMOTO, 2010).
A problemática desses segmentos aparece como expressão da questão social quando se
torna visível e é assumida por setores da sociedade que, de alguma forma, se organizam,
buscando transformá-la em demanda política. Assim, a identificação da problemática
como questão social pressupõe uma nova correlação de forças que envolvem a
constituição de sujeitos políticos, isto é, sujeitos que se colocam em cena para
inscreverem suas reivindicações na agenda política (WANDERLEY, 2008).
Pensar em questão social numa perspectiva histórico-social implica em analisar a
emergência política de uma dada condição e examinar os processos e mecanismos que
possibilitam que a condição em pauta tome força e se insira na cena política. Ou seja,
compreender em que momento a necessidade social se transformou em demanda
política e, como já dito, para isso é necessário considerar os atores sociais envolvidos no
processo que se colocam na cena política (PASTORINE, 2004).
É nesse sentido que trago para o debate a implantação da reforma da política de saúde
mental como resposta a uma expressão das manifestações da “Questão social”. Ela foi
colocada em pauta quando grupos de profissionais, familiares e pessoas com transtornos
mentais se mobilizaram contra o tratamento desumano oferecido às pessoas com
sofrimento mental.
Saúde mental na agenda política
Num processo de redemocratização e re-emergência dos principais movimentos sociais
no país emerge o movimento pela reforma psiquiátrica5, com o objetivo de inserir na
agenda política o direito de garantia de cidadania da pessoa com transtorno mental. Esse
caminho foi urdido lentamente e com muitas resistências. Nesse percurso, uma demanda
era a necessidade de aprovação do marco normativo – a lei de Saúde Mental6.
Foi longo o caminho percorrido desde a emergência do movimento da luta
antimanicomial até se chegar à aprovação da Lei da saúde mental em 2001, que
apresentou propostas para regulamentação dos direitos das pessoas com transtornos
mentais, em consonância com os princípios da Reforma Psiquiátrica.
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A Reforma Psiquiátrica é processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças
de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal, nas
universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas
com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário
social e da opinião pública (BRASIL, 2005).
6
Os dados da Organização Mundial de Saúde (WHO, 2011) indicam que 60% dos países membros
possuem legislação em saúde mental (cobrindo 72% de toda a população mundial), aprovadas
principalmente após o ano 2000 e com crescimento significativo após 2005 (WHO, 2011).
Vasconcelos (2008) periodiza duas grandes fases no processo histórico da reforma na
política de saúde mental até a instituição da Lei 10.216 da Saúde Mental. A primeira
fase descrita pelo autor marca um período de intensa mobilização social e a crítica do
sistema hospitalar e asilar. Destaca nesse período a entrada de pessoas comprometidas
com o movimento no aparelho do Estado e o desenvolvimento das primeiras
experiências de humanização (entre 1978-1992). Na segunda o autor destaca a
implementação da estratégia de desinstitucionalização e a consolidação do movimento
da luta antimanicomial num contexto de avanço do projeto neoliberal (entre 19922001).
Na primeira fase descrita por Vasconcelos (2008), ocorre a realização da Conferência de
Caracas, em 1990, que marcou uma posição clara das principais lideranças da
psiquiatria dos países latino-americanos em torno das diretrizes da Reforma
Psiquiátrica. Tal conferência organizada pela Organização Mundial de Saúde e
Organização Pan-americana de Saúde – O S OPS – buscou pactuar com os países
latino-americanos a implantação de uma política de saúde mental que assegurasse o
respeito aos direitos humanos e civis da pessoa com doença mental. Os participantes
dessa conferência assumiram o compromisso de desenvolver programas que promovam
a reestruturação, assim como a promoção e defesa dos direitos humanos das pessoas
com problemas mentais de acordo com as legislações nacionais e com os respectivos
compromissos internacionais.
Conclamou-se as organizações profissionais, as associações de usuários, universidades e
outros centros de capacitação, organizações de defesa dos direitos humanos e os meios
de comunicação social, a apoiar a reestruturação da Atenção Psiquiátrica e a assegurar o
êxito na implementação de uma política em benefício das populações de cada região.
Nessa direção, o Brasil caminhou para a segunda fase apontada por Vasconcelos (2008),
com a implementação, bastante tímida, de uma rede de serviços extra-hospitalar. Assim,
o período de 1992-2001, foi marcado pelo compromisso brasileiro na assinatura da
Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental,
que fortaleceu o compromisso de uma sociedade sem manicômios e criação de novos
serviços. Nesse período, constituem-se no país as primeiras normas federais
regulamentando a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas experiências
dos primeiros CAPS NAPS e
ospitais-dia, e as primeiras normas para fiscalização e
classificação dos hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2005).
Em abril de 2001 foi aprovada a Lei 10.216, dispondo de um novo modelo assistencial
em saúde mental com proteção e direito das pessoas portadoras de transtorno mental e,
acima de tudo, impedindo a construção de novos hospitais psiquiátricos ou contratação
destes hospitais por parte do poder público. Nesse mesmo ano realizou-se em nível
nacional a III Conferência Nacional de Saúde Mental. O norte do debate é o processo de
descentralização, responsabilizando as três esferas de governo a garantir o
desenvolvimento de políticas de saúde mental, priorizando a construção de rede de
atenção integral à saúde mental (BRASIL, 2001; TENÓRIO, 2002).
A lei da Saúde Mental (2001), e a realização da III Conferência Nacional de Saúde
Mental (2001), ofereceu sustentação para a política de saúde mental do governo federal.
O ministério cria linhas específicas de financiamento para serviços substitutivos aos
manicômios, como também, cria mecanismos para fiscalização, gestão e redução
programada de leitos psiquiátricos em todo o país. As ações do governo federal definem
duas linhas de atuação: a construção de uma rede de atenção à saúde mental para
substituir o modelo hospitalar e a fiscalização e redução progressiva e programada de
leitos psiquiátricos (TENÓRIO, 2002; BRASIL, 2001). A rede de atenção à saúde
mental deve dispor de variados serviços extra-hospitalares, devendo funcionar de forma
articulada, tendo os CAPS como serviços estratégicos na organização de sua porta de
entrada e de sua regulação.
Ao longo da primeira década dos anos 2000 o Ministério da Saúde edita algumas
portarias interministeriais, visando intensificar o processo de desinstitucionalização.
Dentre elas, destacam-se a Portaria 106 de Fevereiro de 2000, que prevê a instituição de
casas localizadas no espaço urbano para responder às necessidades de moradia de
portadores de transtornos mentais graves, egressos de hospitais psiquiátricos, hospitais
de custódia ou em situação de vulnerabilidade, destituídos de laços familiares; o
Programa
Nacional
de
Avaliação
do
Sistema
Hospitalar/Psiquiatria
(PNASH/Psiquiatria), instituído em 2002, por normatização do Ministério da Saúde,
que permite aos gestores o descredenciamento do SUS de hospitais que não garantem
qualidade na assistência prestada a sua população adscrita e a Lei Federal 10.708 de
2003, que cria o Programa De Volta Para Casa, que tem por objetivo garantir a assistência, o acompanhamento e a integração social, fora da unidade hospitalar, de
pessoas acometidas de transtornos mentais, com história de longa internação
psiquiátrica (acima de 2 anos de internação ininterruptos), inclusive em hospitais de
custódia. Trata-se de uma bolsa oferecida ao usuário do programa para assisti-lo no
retorno para Casa (OLIVEIRA, 2009).
Em dezembro de 2011 o Ministério da saúde editou a portaria 3.088, que Institui a Rede
de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema
Único de Saúde. A portaria tem como uma de suas principais funções atender ao
Decreto 7.508 de 2011, que dispõe sobre a organização do SUS, o planejamento da
saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa e dá outras providências. Esse
decreto institui a organização das Regiões de Saúde e nela encontra-se inscrito a
Atenção Psicossocial. Em atendimento ao Decreto 7.508 de 2011, estados e municípios
devem se organizar para garantir que cada Região de Saúde disponha de uma Rede de
Atenção Psicossocial o que teoricamente aponta para um avanço da saúde mental.
A edição da Portaria 3.088 de dezembro de 2011 prevê que a Rede de Saúde Mental
deve estar integrada e articulada nos diferentes pontos de atenção para atender as
pessoas com demandas decorrentes dos transtornos mentais, incluindo os decorrentes do
consumo de álcool, crack e outras drogas. A rede deve estruturar-se por um conjunto de
serviços e dispositivos assistenciais que contemple os vários níveis de atenção. Aqui
gostaríamos de destacar o último nível de atenção da portaria que prevê a
implementação de estratégias desinstitucionalizantes (BRASIL, 2011).
No que se refere às estratégias desinstitucionalizantes coloca-se como desafio a
expansão e a consolidação dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), e estes se
destacam dentre as principais preocupações do processo de desinstitucionalização de
pacientes psiquiátricos de longa permanência nos últimos anos. O Ministério prevê a
realocação das AIHs dos leitos psiquiátricos de longa permanência descredenciados do
SUS para o financiamento dos SRT, através de repasse ao fundo de incentivo,
entretanto, esta forma de financiamento revelou ser insuficiente. O mecanismo de
custeio mensal (contrapartida federal) das residências tem sido um dos maiores
obstáculos para a expansão das SRTs. Ainda não se garantiu aumento de recursos para
financiamento de residências terapêuticas. Ademais, a indústria hospitalar tem resistido
na luta pela manutenção dos recursos destinados ao complexo hospitalar privado
(BRASIL, 2011).
Mas, o desafio de implementar estratégias desinstitucionalizantes tem aumentado com a
força com que as Comunidades Terapêuticas (CTs), que têm se colocado no cenário
atual disputando o fundo público. Em 2001, a Secretaria Nacional Antidrogas
contemplou as Comunidades Terapêuticas no eixo de tratamento da Política Nacional
sobre Drogas, tendo como perspectiva a responsabilidade compartilhada entre Estado e
sociedade, adotando como estratégia a cooperação mútua e a articulação de esforços
entre governo, iniciativa privada e cidadãos no desenvolvimento das atividades
antidrogas no país (BRASIL, 2001).
Nesse mesmo período (2001/2002), segundo informações obtidas através do primeiro
levantamento de dados realizados no Espírito Santo pelo Núcleo de Estudos Sobre o
Álcool e Outras Drogas, observou-se crescimento de instituições religiosas que prestam
serviços na área de dependência química (SILVA; DRIUSSO, 2003), instituições estas
que tem duramente disputado recursos do orçamento da saúde mental.
Profissionais de saúde comprometidos com a reforma psiquiátrica adotam uma postura
de resistência diante do fato das CTs estarem contempladas no eixo de tratamento da
Política Nacional sobre Drogas da Secretaria Nacional sobre Drogas (SENAD). Parte da
crítica deve-se ao modelo de tratamento adotado por essas instituições, considerando
que o mesmo compromete o processo de inserção social, pois o processo de recuperação
não ocorre no espaço da comunidade, mas no espaço institucional. A dependência ao
uso das drogas é vista como um problema espiritual, que deve ser tratado pela fé e
fidelidade aos preceitos divinos, logo, é necessário purificar a alma com orações,
estudos bíblicos e desenvolvimento da fé (GARCIA; SILVA, 2004).
Nos espaços das CTs prevalece a imposição da moral cristã como o cerne do tratamento
da CTs. A doutrinação, responsável pela “fervorosa” conversão de alguns residentes aos
preceitos religiosos, na maioria das vezes, não se configura como uma resposta
adequada às suas necessidades, dado que ao sair da instituição o residente não teria
desenvolvido os recursos necessários para fazer outras opções de vida, a não ser voltar
para suas condições anteriores ou se colocar como monitor de CTs (RAUPP, 2008).
A metodologia de tratamento oferecida pelas CTs requer diversos estudos para
averiguar se “isolar” o sujeito do convívio com a droga não pode ocasionar, no
momento de alta, uma recaída em função de que a abstinência ocorreu em um ambiente
de privação tanto da substância quanto do grupo social e não pelo fato do sujeito ter
desenvolvido estratégias para estabelecer uma nova relação com as drogas (SABINO;
CAZENAVE, 2005).
Ademais, a maior parte das CTs, não atende às normas mínimas de funcionamento de
acordo com a RDC 101/01 da ANVISA, que estabeleceu o Regulamento Técnico para o
Funcionamento das Comunidades Terapêuticas – Serviços de Atenção a Pessoas com
Transtornos
Decorrentes
do
Uso
ou
Abuso
de
Substâncias
Psicoativas
(GARCIA;SILVA, 2004).
No Espírito Santo a Proposta da Rede de Atenção Psicossocial sofreu uma grave
violação com o Programa Estadual de Ações Integradas sobre Drogas - ES, lançado por
meio de Resolução do COESAD (nº 01), de 02 de abril de 2013. Conhecido como Rede
Abraço o programa propõe a estruturação de um Centro de Acolhimento e a partir dele
o encaminhamento para Comunidades terapêuticas Religiosas credenciadas para
“tratamento e recuperação” do dependente químico. Tal proposta descaracteriza a
portaria da RAPS que apresenta o CAPS como o serviço de acolhimento da atenção
psicossocial. O Edital de Credenciamento (nº 001/2013 - SEG/CESC) prevê um auxílio
de até R$1.500 por pessoa internada na CT que se encontrar devidamente cadastrada.
Tal cenário evidencia a disputa acirrada pelo reduzido recurso destinado à política de
saúde mental. A luta por mais recurso na saúde mental para construção e manutenção de
serviços extra-hospitalar reflete a correlação de forças sociais e os interesses envolvidos
na apropriação dos recursos públicos. Revela o comprometimento da gestão do fundo
público com os interesses do capital, evidenciando um Estado comprometido com os
interesses da classe dominante, ainda que dispense algumas ações para atender as
pressões das classes subalternas.
Considerações finais
Qualquer possibilidade de conquista social que pudesse significar melhoria na condição
de vida das massas populares sempre foi produto de lutas de classe. A luta é para que as
políticas sociais partam de decisão coletiva que realmente concretiza direitos sociais que
atendam as necessidades das classes populares, superando as decisões planejadas de
gabinete.
Destacamos a necessidade de debater as políticas sociais para além da lógica de uma
mera estratégia de minimização de conflitos ou concessão, referenciando-as no processo
de disputa política pelo excedente econômico gerado pelas massas historicamente
expropriadas, de forma que as políticas sociais sejam reconhecidas não somente como
mecanismo para reduzir as manifestações mais agudas da pobreza via ampliação dos
serviços sociais básicos e de seu acesso, mas, sobretudo, a política social como
instrumento que mobiliza e aglutina forças e organiza as massas a partir de seus
interesses.
Enfatizamos que a luta pela saúde mental representa a indignação de sujeitos políticos,
mobilizados, organizados que inscrevem seus anseios constitucionalmente como
política conquistada por classes subalternas. A política de saúde mental não é resultado
de um conjunto de práticas institucionais, mas, de uma capacidade de organização e
mobilização de grupos sociais que luta pala reversão do poder. A luta do movimento
antimanicomial e pela Reforma Psiquiátrica expressa uma correlação de forças entre
diferentes interesses de classes e setores de classes, inserida no contexto mais amplo de
luta pela hegemonia.
A análise da implantação da política de saúde mental nos remete a realização de uma
práxis teórica e política potencializada pela capacidade de organização de populares em
torno de um projeto coletivo democrático, constituído pelas classes subalternas, de
cunho revolucionário e anticapitalista.
A luta pela política de atenção à pessoa que sofre com transtornos mentais não se limita
às configurações tradicionais de políticas sociais que se baseiam exclusivamente no
mercado de trabalho formal, pois representa a luta pelo direito ao exercício da cidadania
de pessoas que, conseguindo ou não satisfazer suas necessidades no mercado,
necessitam ter sua integridade resguardada. Também busca o afastamento das
formulações que seguem os ditames dos organismos internacionais. É a luta por uma
política que se constitua para além de corte liberal conservador, cujo objetivo é
minimizar os efeitos da pobreza.
Assim, os defensores da implementação da política de saúde mental comprometida com
as diretrizes da Reforma Psiquiátrica lutam para garantir uma mínima fração da pequena
parte do excedente que, apropriado pelo Estado, é direcionado às políticas sociais. E, no
interior dessa luta travam uma batalha acirrada contra os interesses de grupos que
querem garantir mercado com a indústria da loucura.
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