MESA REDONDA 1. QUESTÕES DE EPISTEMOLOGIA E TEORIA SOCIAL CONTEMPORÂNEAS TRÊS ABORDAGENS PARA O ESTUDO DA SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA Márcio de Oliveira 2 TRÊS ABORDAGENS PARA O ESTUDO DA SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA Márcio de Oliveira 1 A Sociologia, como as demais ciências sociais, é uma ciência eternamente jovem, histórica e movida a problemáticas sempre novas e ligadas a novos contextos (Weber, 1995). Contudo, o interesse pelo passado não é um luxo. Ele permite questionar a idéia do passado como “evidência histórica”; permite ainda acompanhar historicamente engajamentos, investigar as disputas no campo; permite enfim compreender, no presente, por que e como certos autores são resgatados e outros não. É de se pensar assim que o termo contemporânea, ao qual procuramos identificar a Sociologia Contemporânea, reflita não apenas àquela juventude e novidade, mas revele também as posições e disposições de autores, de universidades e de centros de pesquisa que fazem o campo da Sociologia hoje. No estudo da sociologia, autores clássicos são diferenciados de autores contemporâneos. De uma maneira geral, a Sociologia Contemporânea diferencia-se da sua congênere clássica, justamente por ter elegido novas problemáticas, em especial àquelas ligadas às novas condições de trabalho da classe operária nas sociedades industriais tanto na Europa quanto nos EUA e ao novo sindicalismo que surgiu neste período imediatamente posterior ao final da IIª Guerra Mundial (Chapoulie, 1991). A Sociologia Clássica se atém basicamente à tríade: Marx, Weber e Durkheim. Na grande maioria dos cursos de Ciências Sociais nas universidades brasileiras, exclui a fundamental contribuição dos sociólogos de Chicago e mesmo a sociologia de Georges Simmel (1858-1918). Do ponto de vista metodológico, a Sociologia Contemporânea impôs sua diferença em relação à Sociologia Clássica também no que diz respeito ao modo de coleta e de tratamento de dados, ao uso intensivo das técnicas estatísticas e, em alguns casos, à incorporação de metodologias até então restritas ao campo da Psicologia (Martin & Vannier, 2002). Em cada país, europeu ou mesmo americano, os temas e procedimentos metodológicos que marcam a Sociologia Contemporânea apresentam diferenças importantes, ligadas às tradições nacionais aí desenvolvidas. A título de exemplo, é possível dizer que parte da primeira geração da sociologia francesa do pós-guerra se opôs à sociologia durkheimiana, fazendo eco assim, ainda que involuntariamente, às afirmações de Jean-Paul Sartre para quem os “fatos sociais não eram coisas”. Mas parte dela também recuperou Max Weber como forma de se opor ao pensamento marxista, como fez Raymond Aron (1997). 1 Professor de Sociologia (UFPR). [email protected] 3 Os pequenos exemplos acima demonstram: identificar temas e procedimentos metodológicos que definem a Sociologia Contemporânea implica em escolher dentre as várias abordagens disponíveis. Esta comunicação tem por objetivo apresentar três dessas abordagens de estudo da Sociologia Contemporânea, apresentando suas vantagens e limites. 1. A Sociologia Contemporânea segundo seus autores O estudo da Sociologia Contemporânea através de seus autores parece uma opção natural. Aqui, basta observar a cronologia, fixar-se no século XX, uma vez que todos os clássicos nasceram no século XIX, e estudar-lhes as obras. Isto é uma vantagem e também uma facilidade. Além disso, este partido permite personalizar a ciência, dar nomes, investigar biografias, mostrando que a ciência tem seus cânones, seus mestres de referência. Escolhendo autores, contudo, eles são individualizados. Seus escritos e conhecimentos são sistematizados em grandes grades de leitura. Os conceitos são descontextualizados, embora isso os torne mais claros e pedagogicamente apresentáveis. A descontextualização das obras permite escolher entre as muitas versões que um mesmo autor deu de um conceito de sua autoria ou simplesmente aquela que sirva ao propósito desejado, “melhorando” seu estilo de escritura. Um exemplo clássico deste procedimento é a forma como Pierre Bourdieu (1930-2002) é apresentado ao grande público, de maneira simplificada, quando não através de pequenos dicionários vocabulares (Chauviré & Fontaine, 2003) 2. Isso porque, além de famoso, é considerado um “autor difícil”. A escolha dos autores e de suas obras individualiza também as últimas. O impacto da época sobre a obra se torna menos importante do que a obra e a forma como ela é interpretada e/ou atualizada. Um exemplo desta postura é o caso de Florestan Fernandes. Alguém se lembra, por exemplo, que Fernandes estava decidido a trabalhar sobre o tema da imigração sírio-libanesa em São Paulo quando Roger Bastide o convidou para realizar uma pesquisa sobre negros? O curioso assim é que, lendo a posteriori, a obra sobre brancos e negros em São Paulo ou o tema no negro na sociedade de classes assumem uma importância inexorável, como se fosse uma sequência teórica lógica na trajetória do autor, servindo tanto para explicar questões do presente como para reorganizar o percurso intelectual e biográfico do autor. Quando os autores são retirados de seu momento histórico (no máximo apresenta-se uma biografia individual), tende-se a trazer suas teorias para o presente e para outros espaços (nacionais e sociais muito diversos), obscurecendo os problemas locais e históricos que seus trabalhos queriam 22 Deve-se dizer, contudo, que essas apresentações não são necessariamente ruins. Para os pesquisadores avisados, servem principalmente como ferramenta de estudo porque sistematizam e localizam conceitos que estão espalhados na obra dos autores, permitindo maior facilidade e rapidez nas pesquisas. O problema surge quando esse tipo de obra passa a substituir o texto original e análise do momento histórico. 4 resolver. Dou um exemplo, disso. Quando Bourdieu começa a se interessar pelo desempenho (ou sucesso) escolar, o sistema de ensino na França estava consolidado, apresentando uma estrutura curricular, física (excelentes instalações) e de pessoal qualificado (professores, técnicos) para todo o território francês, tanto no ensino básico, como nos ensinos secundário e superior. Além disso, nos anos que se seguiram a Segunda Grande Guerra, parte das camadas baixas e médio-baixas francesas viram na escolarização uma possibilidade de ascensão social. A igualdade e a fraternidade republicanas nela se espelharam, fazendo com que a escola se tornasse mesmo a mais importante estratégia econômica. O livro “Les Héritiers” (1964) mostrou justamente os limites dessa estratégia e da ascensão social, anunciadas pela democratização do ensino, daí o mal-estar causado na sociedade francesa. Esse mal-estar, de certa forma, explica a publicação do livro “Desigualdade de Chances” (1973) de Raymond Boudon (1973). Com efeito, nele o autor mostra que as escolhas e/ou aptidões pessoais que realmente explicam o sucesso ou o fracasso escolar, e não o capital cultural, a violência simbólica ou a autoridade pedagógica. Por isso, é possível considerar este livro de Boudon, publicado apenas três anos após “A Reprodução”, como sendo apenas uma resposta a este. A escolha de autores implica em selecioná-los. Alguns autores tornam-se mais importantes do que outros. Na Sociologia clássica, ensina-se bastante Max Weber e pouco Georges Simmel. Nos autores contemporâneos, em especial nos países de língua latina, Pierre Bourdieu tem espaço muitíssimo maior do que Erwin Goffman. A escolha de autores, portanto, finda por consagrá-los. Seu tempo e ambiente se tornam apenas a história e as condições que os projetaram. Seus feitos são superdimensionados e os tantos colegas que participaram de muitas de suas empreitadas tornam-se rapidamente “colaboradores”. A maior parte dos manuais de Sociologia apresenta os autores dessa maneira. Escolhe aqueles considerados mais importantes e simplesmente esquecem tantos outros. No caso de autores contemporâneos, isso é ainda mais grave porque ainda não se tem notícia de uma subclassificação hoje necessária. Quero me referir aqui à diferença entre os contemporâneos já clássicos, boa parte deles já desaparecida, e os contemporâneos ainda atuantes. Concluindo, a escolha dos autores emudece conflitos laterais, inimizades etc., e acaba privilegiando as genealogias tanto biográficas quanto conceituais, muitas vezes indicadas pelos próprios autores em entrevistas ou esboços autobiográficos. Isso submete o leitor ao tempo definido pelo autor e às vicissitudes que nele vicejam. 5 2. A Sociologia Contemporânea segundo suas correntes A escolha de correntes, na Sociologia Contemporânea, parece natural. Assim, autores são funcionalistas, interacionistas, estruturalistas, etc. Podem ainda estar na corrente do “conflito” em oposição à corrente “integracionista” ou “institucionalista”. A classificação de obras e autores em correntes de pensamento naturaliza aquilo que é histórico e social. As correntes traduzem a classificação dos autores que as cunharam e a interpretação dos autores classificados. Dito de outro modo, as correntes impõem a seleção e organização dos autores que foram colocados em cada uma das correntes. Assim, Durkheim, quando eu estudei, era um autor da corrente conservadora, colocado em oposição à “corrente crítica”, liderada por Marx. Aliás, em muitos manuais, Durkheim continua ser apresentado assim. Como um autor avesso à mudança etc. A classificação de autores em correntes apresenta outro problema: a escolha dentre as várias delas disponíveis. Vou dar um exemplo bem simples disso, com base na classificação de correntes de dois sociólogos, um Francês, Pierre Ansart 3 e outro norte-americano, Jeffrey Alexander 4. Ansart (1990) organiza as correntes teóricas contemporâneas a partir de sua hipótese sobre o refluxo do estruturalismo. Assim, surgem quatro grandes correntes teóricas 5: a. Estruturalismo genético, cuja grande referência é Pierre Bourdieu. b. Sociologia Dinâmica, cujas duas grandes referências são A. Touraine e Georges Balandier. c. Funcionalismo estratégico, cujas duas grandes referências são Talcott Parsons e Michel Crozier. d. Individualismo metodológico, cuja grande referência e Raymond Boudon. Já Alexander (2000) organiza as correntes teóricas a partir da ascensão e queda da teoria da ação social (e dos subsistemas da ação) do sociólogo norte-americano Talcott Parsons. É claro, que essa hipótese tem relação com a realidade dos EUA, como àquela de Ansar tem relação com a realidade européia. Mas mesmo deixando isso de lado, vejamos o resultado a que chega Alexander: a. Interacionismo simbólico, cuja grande referência é Erwin Goffman, mas que permite, na leitura de Alexander, recuperar autores como p. ex., Herbert Mead. b. Etnometodologia. As referências são Edmund Husserl e Harold Garfinkel c. Sociologia Cultural, cuja referência é Clifford Geertz d. Marxismo, tendo como referência a leitura que lhe faz Herbert Marcuse. 3 Nascido em 1922, Ansart é professor emérito da Universidade de Paris VII. Escreveu sobre o socialismo, anarquismo e sobre as ideologias, entre outros temas. Sua obra completa apresenta mais de 20 títulos, dentro os quais um dicionário de Sociologia. 4 Diretor do Centro de Sociologia Cultural, da Universidade de Yale (EUA), é um especialista nessa área. Tem mais de 10 livros publicados, alguns deles na área de teoria sociológica. É ainda editor da revista Sociological Theory. 5 Por falta de espaço aqui não exponho a definição que o autor faz de cada uma delas. 6 Mesmo sem entrar no detalhe dos autores escolhidos e mesmo sem comentar as definições dadas às “correntes”, se pode notar a enorme diferença entre uma e outra classificação. Cito rapidamente, mas não vou desenvolver a análise por falta de espaço, a classificação das correntes contemporâneas que é proposta pelo sociólogo brasileiro e professor do IUPERJ, José Maurício Domingues (2001), em seu livro, de sugestivo título, “Teorias sociológicas do século XX”. Nesta, temos o interacionismo simbólico e a fenomenologia; o funcionalismo aproximando Talcott Parsons e Nicolas Luhmann; o estruturismo e estruturação, onde o autor aproxima Pierre Bourdieu e Anthony Giddens e, finalmente, a “Escola de Frankfurt”. A opção deste autor parece ser, acima de tudo, um partido em torno da “modernidade”. Vou escolher outro sociólogo, também contemporâneo e bastante jovem (nascido em 1960), Pierre Corcuff, para terminar estes exemplos. Corcuff (2001; 2007) propôs uma classificação dos contemporâneos em dois tempos, ou melhor, em duas edições. Ocorre que no caso deste autor, houve uma evolução, bastante rápida deve-se dizer, entre a classificação proposta na primeira e na segunda edição de seu livro intitulado “As novas sociologias”. A 1ª edição, já está traduzida em português, tinha como linha de análise a “construção da realidade social”. Já a segunda edição, ainda sem tradução em português 6, embora mantenha a perspectiva construtivista, centrou-se mais numa abordagem relacionista. Mas por que a diferença? Se acreditarmos nas palavras do próprio autor, numa palestra em tom bastante informal, a segunda edição é mais madura, enquanto a primeira fora um arroubo de um jovem sociólogo que acreditara ter tudo compreendido! 7 Há diferenças entras as duas, do construtivismo ao relacionismo, mas me chama a atenção o pequeno espaço de tempo que as separa: apenas 12 anos! Voltando agora às duas classificações tomadas como exemplo, temos: 1) A Escola de Frankfurt é contemporânea, mas apresenta temáticas inovadoras em relação marxismo. Obviamente, não depende de um refluxo do estruturalismo, antes o precipita. Mas, é claro, muitos dos autores contemporâneos presentes nas correntes propostas por Ansart foram influenciados pelos teóricos frankfurtianos. 2) Norbert Elias não está presente em nenhuma das correntes citadas. Trata-se de um clássico em termos cronológicos (nascido ainda no século XIX), mas cuja obra principal, O processo civilizador, foi escrito nos anos 1930. Não obstante, foi recebido e incorporado pela sociologia contemporânea nos anos 1970 em diante. Em alguns países, foi recebido em dois momentos por cientistas diferentes, como é o caso da França, onde seu legado é objeto de disputas acirradas. Seus 6 É de se pensar a mesma editora se proporá a publicar essa segunda edição que implica em nova tradução. Esta explicação mais subjetiva está ausente do pósfacio que o próprio autor escreveu para a segunda edição. Foi dada numa conferência nas dependências da Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (Paris, França) em janeiro de 2008. 7 7 livros, enfim, foram traduzidos em épocas diferentes nos mais diversos países. Talvez devido a estas dificuldades, só está presente em um dos autores que listados, Pierre Corcuff. 3) A Teoria da Dependência 8, criada na América Latina, faz parte da Sociologia Contemporânea. É original, mas não recebeu destaque em nenhum dos autores. 4) Não se nota, nas classificações propostas, a importância das viagens ou das realidades diferentes visitadas por autores contemporâneos. A importância de estágios na África (caso de Georges Balandier) não é suficientemente explorada, mas apenas seus escritos sobre o continente. Da mesma maneira, movimentos sociais e políticos, como o Solidarinosc, foram incorporados à Sociologia Contemporânea porque um autor, já consagrado, dedicou-lhe tempo e estudo, Alain Touraine. 5) A teoria pós-colonialista e as teorias feministas estão ausentes tanto na proposta de Ansart quando naquela de Alexander, sem um motivo válido para isso. Em conclusão, o estudo da sociologia contemporânea pelas correntes organiza nossas idéias, cria filiações intelectuais e provê a ciência de uma história epistemológica que de fato ilustra e seduz. Mas são tantas reservas que se pode fazer a cada um dos partidos tomados e os paralelos construídos entre autores e conceitos são tão localizáveis, que muitas vezes estamos diante de um exercício acadêmico de enciclopedismo e de inteligência, tanto quanto diante de um esforço organizador que apresenta as diversas dimensões da Sociologia. 3. A Sociologia Contemporânea segundo seus temas centrais A terceira abordagem fundamenta-se na escolha de temas. Quando eu era estudante, chamava-se isso de “Sociologia Sistemática”. Esta era organizada em função de grandes temas ou mesmo conceitos. Por exemplo, os autores eram seguidos através de seus conceitos. A noção de indivíduo ou de Estado, ou ainda de classe em tal ou tal outro autor. Investiga-se assim, em detalhe, o que cada autor escolhido disse sobre tal tema ou como definiu tal conceito. Uma primeira vantagem é a possibilidade de comparar autores clássicos e contemporâneos tomando, por exemplo, a definição de classe social. O problema, uma vez mais, é o anacronismo. A força e a validade histórica de uma definição são congeladas e o tempo esvai-se. Mas cria-se com isso a sensação de que a ciência produziu conceitos clássicos, que ela tem unidade e que ela poder ser ensinada e comunicada ao grande público. A questão da unidade de análise em Sociologia se torna central aqui. Grupos, classes, ator ou o próprio indivíduo? Este pode ser estudado metodologicamente ou pode-se procurar o sentido 8 Refiro-me aqui às teses desenvolvidas a partir do livro “Dependência e desenvolvimento na América Latina”, muito embora o termo de “teoria da dependência” não agrade a um de seus criadores, Fernando Henrique Cardoso. Vide referência completa ao final do texto. 8 subjetivamente visado. Percebe-se que este partido aproxima-se da primeira abordagem, quando se foca nas obras dos autores, colocando-as lado a lado. Essa terceira abordagem reúne as mesmas vantagens e os mesmos limites das duas primeiras acima analisadas: clareza na apresentação dos conceitos, mas descontextualização e escolhas arbitrárias de autores que serão utilizados para apresentar os conceitos (retirados de seu tempo e espaço sociais e/ou trazidos ou levados para outras épocas e situações sociais). As temáticas são frutos de escolhas arbitrárias e conseqüências, muitas vezes, de situações presentes (estratégias editoriais, disputas por recursos, rivalidades entre centros de pesquisa etc.). Mais do que isso, correse o risco, nessa abordagem, de eternizar os conceitos e apresentar as diferenças entre as teorias como sendo meramente conceituais. A escolha de temas ou conceitos confunde-se muitas vezes com subcampos da sociologia e com a importância de alguns centros de pesquisa. Assim, estuda-se a sociologia urbana, rural ou outra, como se natural fossem. Outra questão diz respeito às tradições nacionais da sociologia, seu processo de institucionalização acadêmica, seus centros de pesquisa/universidades e a formação de associações profissionais nacionais, internacionais, além da regulamentação da profissão. Estamos aqui no universo do “institucional”, das agências de financiamento de pesquisa, da compartimentação da ciência etc. Neste espaço, encontramos os especialistas, seja no tema da globalização ou das gangues juvenis. A escolha dos temas e a especialização servem aqui para promover carreiras, carimbar espaços, midiatizar o esforço científico, organizar currículos, tanto quando para ensinar e pesquisar. Em relação às sociedades científicas, as correntes e, sobretudo, os subcampos são de extrema serventia. É possível aqui compreender como um tema se torna um Grupo de Trabalho ou Comitê de Pesquisa numa associação nacional ou internacional de sociologia. Trata-se de uma maioridade ou cidadania científica que apenas alguns temas alcançam. Enquanto alguns deles desdobram-se em vários comitês de pesquisa, caso do tema da educação, outros ficam nas periferias, como o tema da mobilidade. Neste processo de reconhecimento 9, o prestígio dos associados, numa associação qualquer, ou um simples modismo falam tão alto quanto o nome ou a temática dos grupos de trabalho ou das mesas-redondas que se organizam. Sobre esta questão, é de se pensar ainda que certos temas saem dos congressos tradicionais, como, por exemplo, a saúde, que tem congresso à parte na Sociologia. E isso, é claro, não ocorre apenas na nossa ciência 10. 9 O mesmo processo de reconhecimento é enfrentado pelos novos subcampos da sociologia, por exemplo, a sociologia da tradução, que não reconhecido em todos países ou associações. 10 Este é o caso da Psicologia Social que fundou associação à parte, em torno dos trabalhos de Serge Moscovici, organizando uma rede internacional, além de congressos nacionais e internacionais regulares, programas de pósgraduação etc. 9 Os temas ainda sofrem um processo de dilaceração conforme a ciência que os estuda. Acaso o tema das etnias recebe o mesmo tratamento na história, na sociologia, na Ciência Política ou na Antropologia? Obviamente que não. Ao contrário, as ciências disputam os temas e competem pela melhor explicação sobre eles. Finalmente, cabe uma rápida palavra sobre este espaço que é a universidade. Tem-se aqui um espaço minado, de disputas científicas e institucionais, de poder, de cargos etc. Bourdieu (1984) descreveu isso com maestria. Aqui, a competência técnica nem sempre é o melhor critério. E o fato das universidades, em quase todos os países, serem financiadas direta ou indiretamente pelos recursos públicos, a faz um espaço social ainda mais complexo. E tudo isso se traduz, claro, nas grades curriculares, nos nomes dos grupos de pesquisa e nos programas de pós-graduação. CONCLUSÃO Todas as abordagens trabalhadas sofrem de uma deficiência comum: menosprezam a história social e não fazem uma análise do campo social de lutas (instituições, revistas, posições e disposições dos agentes, poder) onde estão inseridos autores e suas obras. Padecem particularmente de uma rigorosa análise do campo científico, conferindo nula ou pouca importância aos autores que aparentemente fracassaram e, por isso, não são objetos de colóquios, livros ou reedições críticas de suas obras. Não analisam enfim o campo científico onde estão inseridos aqueles que recuperam, divulgam, ensinam, criticam e editam os autores contemporâneos. Vou mostrar rapidamente como procede a perspectiva da história social e a análise do campo, através de um exemplo. O resgate da obra de Gabriel Tarde (1843-1904) tem vários capítulos, mas nos últimos vinte anos foi mais intenso, tendo alcançado mesmo nossas ciências sociais (Vargas, 2000). Tarde é considerado, nos manuais de Sociologia, o perdedor na luta pela hegemonia sobre o campo da sociologia na França, na virada do século XIX para o século XX. Vários competidores existiam então, como René Worms (1869-1926), presidente da Associação Internacional de Sociologia e fundador da Revue Intenationale de Sociologie. Mas o vencedor teria sido Durkheim e seu grupo organizado em torno do Année Sociologique. Não obstante, o fato é que Durkheim ocupou uma posição periférica no mundo universitário francês durante a maior parte de sua carreira: um professor de província, na Faculdade de Letras de Bordeaux, até finalmente conseguir, somente em 1906, um posto numa universidade parisiense. Já Tarde teve grande importância e, na época em questão, fez mais sucesso do que Durkheim, tendo mesmo sido eleito, em 1900, para a prestigiosa instituição escolar francesa, “Collège de France”. Não por outro motivo, Durkheim procurou se afastar das explicações sociológicas de Tarde, dedicando a isso importante espaço, inclusive sua obra inaugural, “A Divisão do Trabalho Social”. 10 A história social nos ensina que, durante sua vida, os conflitos vividos por Durkheim e seu grupo nem sempre lhes foram favoráveis. Por outro lado, o grupo durkheimiano teve suas dissensões, em particular após a morte prematura de seu líder. Enfim, parte dele sucumbiu aos horrores da Segunda Grande Guerra e se “metamorfoseou”. (Heilbron, 1985). A sociologia durkheimiana foi bastante criticada e, em parte abandonada, logo após a Segunda Grande Guerra 11 e, como curso universitário, a Sociologia só se consolida realmente na França nos anos 1950 e 1960. Como então considerar que Durkheim é o responsável pela institucionalização da Sociologia na França? Como sustentar a tese da hegemonia da sociologia durkheimiana? Além de voltar ao passado, a história social investiga também porque e como Tarde vem sendo recuperado. Na França dos anos 1950, grande importância foi dada à sua produção no campo da criminologia. Nos anos 1960-1970, Tarde se tornou um arauto do individualismo, um crítico do dogmatismo durkheimiano e um precursor da análise estatística de opinião pública na pena daquele que justamente é considerado uma referência da corrente do “individualismo metodológico” neste país, Raymond Boudon (Boudon, 1971). Finalmente, no final dos anos 1990, Latour (2001) recupera Tarde como se ele “estivesse vivo hoje”, apresentando-o como o precursor da “sociologia das redes”! Mesmo sendo sintético e deixando de lado importantes fatos dessa trajetória, a recuperação de Tarde foi realizada, aqui e ali, a partir de uma crítica à hegemonia do grupo e da sociologia durkheimiana (Mucchielli, 2001; 2004). A perspectiva da história social não pretende fazer julgamentos sobre a história, mas parte da hipótese de que autores, obras e conceitos têm seus significados definidos pelo tempo histórico, pelas lutas e pelos espaços que ocuparam. Somente após esse estudo, é possível compreender seus significados também para o tempo presente. O exemplo acima tem sua importância. Mas fundamentalmente tem o objetivo de nos chamar a atenção para alguns procedimentos. Localizar um autor no interior de seu grupo, no interior de sua história, demonstrar como ocorreu sua trajetória e verificar o significado de suas obras e conceitos em relação a seu próprio tempo. Eis alguns elementos ausentes nas três abordagens trabalhadas. Ainda que rapidamente, são estes os pontos que queríamos trazer para o debate de hoje. 11 No começo dos anos 1950, Jean-Paul Sartre declarava que “a sociologia durkheimiana está morta e os fatos sociais não são coisas”. E isso parece ter sido uma tendência da época, como bem demonstra Blondiaux (1991). 11 Referências Bibliográficas ALEXANDER, Jeffrey C. (2000). Las teorias sociológicas desde la Segunda Guerra Mundial. Barcelona: Editoria Gedisa S.A. ANSART, P. (1990). Les sociologies contemporaines. Paris : Ed du Seuil. ARON, Raymond. (1997). As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes. BLONDIAUX, Loïc. (1991) Comment rompre avec Durkheim ? Jean Stotzel et la sociologie française de l´après-guerre (1945-1958). 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