__________________________________________________________ O Prazer da Militância: a Ética Estética da “Negritude Ilê”
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O PRAZER DA MILITÂNCIA: A ÉTICA ESTÉTICA DA “NEGRITUDE ILÊ”
Rita Maia1
RESUMO: Trata-se de uma análise das múltiplas interpretações em torno das produções
culturais do Bloco Afro Ilê Aiyê, na modificação e valoração positiva da imagem dos negros na
cidade do Salvador. Os desfiles de carnaval e os espetáculos promovidos pelo bloco emitem uma
imagem de negro diversa da habitual, fornecem novos modelos e formas para identificação da
população afro-descendente, bem como, influem nas estruturas de percepção da população local,
interferindo e transformando, em vários graus, as hierarquias estéticas, culturais, políticas e
econômicas na cidade do Salvador.
Palavras-chave: Beleza; Negritude; Bloco; Carnaval; Estética.
ABSTRACT: An analysis of about various interpretations and cultural productions of the Block
Afro Ilê Aiyê, changing to a positively valuate the blacks people image in the city of Salvador.
The spectacles and the carnival promoted for the block emit a diverse image of black of the
habitual and supply new models and forms of identification to the afro-descendant population, as
well as, influence our structures of perception, intervening and transforming, in some degrees,
the aesthetic, cultural hierarchies, economic politics in the city of Salvador
Key-words: Black beauty; Block afro; Aesthetic; Carnival.
1 Os Fundamentos de uma Beleza Negra
Em 1974, surgiu na cidade de Salvador um bloco carnavalesco composto apenas por
negros de pele marcadamente escura e que, posteriormente, por fazer em seus desfiles uma alusão
direta à ascendência africana, aos valores negros locais e mundiais, acabou por ser denominado
pelos veículos de mídia e pela população local como um bloco afro.
1
Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas – Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da
Bahia – UFBA. Professora da Faculdade da Cidade do Salvador e da Universidade Católica do Salvador. E-mail:
[email protected]
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Deste modo nasce o Ilê Aiyê (cuja tradução do nome em iorubá para o português quer
dizer “casa de todos”), um território festivo, onde se privilegia, de modo radical e irrestrito, a
ascendência negra, valorizada e reiterada mediante estratégias cosméticas.
De referências retiradas da vivência e experiência local e comunitária da tradição afrobaiana, mescladas as marcas inaugurais do movimento global da contracultura e da negritude, o
bloco sai às ruas em 1975, ostentando uma fantasia que consistia basicamente de um tecido
‘transado’ no corpo em estilo “afro”, harmonizado com cabelos estilo ‘Black Power’. Seus
componentes empunham cartazes com palavras de ordem dos movimentos negros no mundo,
em prol da negritude, como se fossem ‘alegorias carnavalescas’. Tudo isso inaugurou um estilo
peculiar, uma curiosa mistura de bloco carnavalesco, experimentalismo, performance artística e
manifestação política.
D. Maria Luízai, foliã pioneira do bloco, complementa: “A gente comprava o pano
estampado e fazia a fantasia. Não era fantasia, costura, nem nada. Era amarração. Tinha tudo:
palha, búzio, fitas. A gente usava peneiras, abanos, cabaças e a alegoria da gente era isso...
(MARIA LUÍZA CORREA, 2003).
Assim inicia-se o percurso do Bloco na criação de uma estética única, contrária aos
cânones de beleza hegemônicos (tradicionalmente eurocêntricos), e aliado aos recursos plásticos
se estabelecem princípios normativos, com valores, ‘jeitos de ser e fazer’ expressivos, emocionais
e convenientes aos integrantes da comunidade do bloco; configura-se aos poucos um estilo de
vida característico da “negritude Ilê”.
Tecido estampado utilizado na primeira fantasia do Bloco, em 1975
Fonte: Arquivo pessoal
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Para a criação dos seus emblemas, os idealizadores do Bloco misturaram a história de reis
e rainhas de várias nações africanas, heróis da negritude brasileira e mundial, revestindo-os de
uma aura mítica, reunindo uma coleção de temas e tipos através de um panteão sincrético, que
absorve imagens e referências de uma África ‘histórico-mítica’, de um panteão de personalidades
das lutas políticas de libertação de países africanos e dos contemporâneos grupos e lutas dos
negros norte-americanos pelos direitos civis.
Reunindo um eclético conjunto de ídolos e modelos de negritude, que engloba desde
Zumbi dos Palmares a Marcus Garvey, e no qual também figuram os diretores fundadores do
bloco, a iconografia e cosmética daí resultantes oferecem não só identidade ao grupo específico
de foliões e admiradores do Ilê Aiyê, mas, acaba por tornar-se, aos poucos, um elemento
identitário forte da afro-baianidade.
A roupa criada a partir da técnica de amarração de tecidos coloridos, um método
absolutamente intuitivo desenvolvido por Dete Lima (fundadora do bloco e irmã do atual
presidente), tornou- se uma marca forte da indumentária do bloco que é utilizada para shows e
espetáculos.
Amarração do turbante e roupa já com as inovações plásticas da estampa
Fonte: Arquivo pessoal
Foi em meados de 1978 que aconteceu a criação da padronagem, com as cores definitivas
que representam o bloco. Elas possuem um significado simbólico assim traduzido pelos
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componentes: branco=paz, vermelho=sangue do negro derramado na luta pela liberdade,
amarelo=riqueza e beleza e o negro= a cor da pele.
Foi o artista plástico Jota Cunha o
responsável pelo estilo gráfico das imagens do bloco que decoram as fantasias, as publicações e o
site na Internet. É ele o criador do “perfil azeviche”, uma imagem inspirada em uma máscara
africana, que acabou se tornando a marca do bloco.
Perfil Azeviche
Fonte: Jota Cunha, Ilê Aiyê
O estilo afro do Ilê Aiyê expressa várias tendências do trajar com matriz africana ou
baiana. Estas se alternam ou se mesclam com usos do movimento hippie e outros inventivos
adereços contemporâneos. Ele transita entre o afro-pop, hip-hop e até no tradicional traje
romântico das baianas, que foi preservado pela tradição inerente aos rituais e às cerimônias do
candomblé. Todos os tipos de adaptações são feitos pelos associados nas suas fantasias do bloco,
no entanto, tanto no carnaval quanto no cotidiano, a sua estética se caracteriza pela permanência
por um estilo mais ou menos rígido e ‘tradicionalizante’ do ser/parecer negro, expresso, por
exemplo, no uso de cabelos “naturais” (sem processo de alisamento), arrumado em complexos
trançados ou então ao estilo ‘Black Power’, significando uma atitude de valoração positiva e
preservação dos traços fenotípicos negros.
Nos usos cosméticos do vestuário sempre aparecem palavras de ordem ou imagens de
líderes negros. Trechos de músicas repetem sistematicamente o nome do bloco e do Curuzuii,
associando-os aos valores da negritude, da vida cotidiana e da história do negro, que, por sua vez,
são sempre investidos de valoração positiva pela associação do negro com valores como: beleza,
coragem, luta, orgulho, respeito, vitória, união, amor, liberdade e igualdade
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Tecido do Ilê Aiyê que expressa os valores e a história do bloco.
Fonte: Jota Cunha, tecido para fantasia do Bloco.
As roupas do bloco traduzem seus princípios éticos; vesti-las é parte da “incorporação”
de um estado extraordinário de conduta e expressão:
[...] a nossa roupa é o nosso design, é uma outra situação. Nossas palhas dizem muita
coisa, nossas contas, nossa maquiagem, nossa dança, nosso torso, nossos tecidos têm
uma outra magia. A gente passa uma imagem pra o público de que essa é a
personalidade e a auto-estima da mulher negra. (MENEZES, 2003).
Essa estética, que não se encerra nos usos corporais, acaba funcionando como um
discurso militante, como um “método suave” para a conscientização do valor da tradição e da
cultura afro-descendente, da necessidade de luta e ações afirmativas para negros e não-negros. As
canções do bloco para o carnaval contam a história das várias nações africanas e do negro no
Brasil, complementando as informações sobre a cultura negra que o conteúdo da educação
formal escolar até o momento não supre satisfatoriamente.
Esse foi o diferencial que determinou o surgimento de estilo de um bloco que acabou por
ser denominado de ‘afro’. Seu traço distintivo diante dos outros foi a atitude reativa à
discriminação racial e à utilização de recursos plásticos e espetaculares como instrumento de um
discurso em que advoga um projeto igualitário para os afro-descendentes.
Recriando uma África imaginada e celebrando as “raízes” e a “pureza da tradição”, o Ilê
Aiyê (e, mais tarde, os outros blocos afros) segue, criando narrativas que acabam exercendo o
papel de mito fundador para esta nova realidade social e midiática. Nos seus recursos expressivos
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foi criada a fonte imagética para a modelização de um mundo alternativo àquele hegemônico,
instituído sobre bases segregacionistas.
Do espetáculo do carnaval e de suas festas para o cotidiano, a imagem do bloco toma
forma e se enriquece nas ações promovidas na passagem da sua razão social, de Associação
Cultural para a de Entidade de Utilidade Pública. Assim, um capital simbólico gerado no âmbito
da festa e do lazer se transforma em outro, mais reconhecido como o resultado válido de uma
ação política efetiva.
2 Forma/Ativismo, Identidades e Identificações
Os espetáculos e o trabalho assistencialista criados pelo bloco afro Ilê Aiyê constituíram
para os afro-descendentes da Bahia a possibilidade da existência de um negro valorado,
favorecendo a identificação com a herança negra para a população local e oferecendo aos olhos e
à sensibilidade dos negros uma forma-de–ser possível e desejável.
Nisto a forma se aproxima do que os místicos denominam ‘essencificação’. A essência é
plena daquilo que é, e daquilo que poderia ser. Para retomar uma observação de Ernst
Benz [...] a essência não contém unicamente a forma, como também todas as potências
e possibilidades de realização, de desdobramento e de evolução de uma coisa [...]
(MAFFESOLI, 1998, p. 87).
A forma que a imagem do negro produzida pelo bloco configurou, em seu caráter
espetacular e bastante peculiar, exerce um profundo poder de atração. Sua força se explica
justamente pelo fato de satisfazer as expectativas de vários segmentos sociais locais e externos.
Essa imagem de negro toma uma forma que “[...] acentua, caricaturiza, carrega no traço e, assim,
faz sobressair o invisível, o subterrâneo, quase se poderia dizer, o subliminal...” (MAFFESOLI,
1998, p. 89) e a ação formativa do bloco consiste justamente em dar reconhecimento a um
conjunto de valores, estilos e modos que já existiam concretamente, mas que ainda não tinham
alçado visibilidade e expressividade.
O fato é que assumir a identidade negra a partir dos ideais veiculados pelo Ilê Aiyê
corresponde a uma transformação profunda. É uma passagem entre dois mundos, de um campo
de fenômenos a outro, habitando um campo em que a identidade é levada a assumir uma nova
forma. Poder-se-ia dizer que é um (re)nascimento para uma nova vida, como bem demonstra este
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depoimento da cantora do bloco, onde aparecem os sinais de uma trasformação individual assim
expressa:
Porque eu quando comecei no Ilê Aiyê, fazia parte de um coral no mosteiro de São
Bento e cantava em barzinho. E não tinha uma consciência do que era ser negro do que
era ter raça, uma identidade. Quando eu cheguei no Ilê Aiyê em oitenta e oito, eu vim
ter essa nova vida. Eu fui gerada, eu fui recebendo os primeiros passos, fui aprendendo
e tendo respeito, foram me valorizando. (GRAÇA OMAXILÊ, cantora do Bloco,
2002).
Aprender a “ser gente” para muitos afro-descendentes baianos foi e é inevitavelmente,
desligar-se de um universo imagético e valorativo hegemônico eurocêntrico, é aprender a “ser
negro”, buscando, com isso, construir as suas próprias categorias de valor de grupo e indivíduo.
O fato é que a escassez cotidiana de imagens com referências positivas para o corpo negro
aponta a pertinência e o alcance da demanda latente pelas imagens que constituem o discurso
plástico-imagético produzido pelo bloco.
Hanz Belting (2005) aponta o fato de que as imagens (formas-mediuns) que são criadas e
veiculadas são os elementos primários de todo aprendizado social. Para ele, o corpo, mídia
primordial do ser-no-mundo, possui e veicula um vocabulário imagético repleto de códigos
identitários, de sinais de solidariedade e distinção incorporados durante o processo de
individuação.
Quando se trata de imagem, observa-se um fenômeno que não estaria apenas atrelado a
um suporte ou a uma coisa apreendida, captada pela capacidade visual. À idéia de imagem podem
ser aplicadas as noções de instituição, convenção e consenso. As imagens estão na base de toda
realidade social. A fabricação das imagens é em si um ato simbólico (BELTING, 2001), ela
influencia e formata o nosso olhar. Os nossos modos de viver estão profundamente atrelados aos
nossos modos de ver.
Pierre Francastel (1982;1983) advoga pela autonomia das imagens em relação às palavras.
Para ele, a atividade figurativa do homem resulta em imagens-formas que se tornam cânones,
os esquemas por meio dos quais compreende-se e representa-se o mundo.
Mesmo minimizando a importância de fatores culturais, as Teorias da Gestalt apontam
para uma busca intrínseca de adequação entre aquilo que se vê e a expectativa do que se iria ou se
experava ver. Em todo ato perceptivo existe uma expectativa (GOMES FILHO, 2000), sempre
existe algo de disposição no estar-no-mundo que, inevitavelmente, será determinado pelo horizonte
simbólico e imagético do indivíduo.
É esta visão da atividade figurativa e formadora que aponta para o ato de plasmação do
mundo negro produzido nos espetáculos do bloco. Nos desfiles do carnaval, nas suas festas
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sanzonais, nos shows da banda e, mais notadamente, na Noite da Beleza Negraiii do Ilê Aiyê, são
abertas as possibilidades de instituição de novas formas positivas do ser negro.
Os ‘territórios de negritude’ constituídos pelo bloco estimulam um processo contínuo de
experiência valorativa e validação dos atributos negros. Neles, a partilha e o reconhecimento
público tornam esses atributos reconhecíveis e assimiláveis.
As formas habitam todas as instâncias da vida: são os habitusiv descritos por Pierre
Bourdieu, as tipificações reconhecidas por Alfred Schultz, as schematas de Gombrichv e uma
infinidade possível de outros termos utilizados para denominar e explicar os moldes (ou modelos)
pelos dos quais se compreende, se interpreta e se expressa o mundo. “A forma consiste na
descoberta de um esquema de pensamento imaginário, a partir do qual os artistas organizam
diferentes matérias” (FRANCASTEL, 1982, p. 10). E a partir do qual se plasma a vida em
sociedade, pode-se acrescentar.
Nesse sentido, a atuação do Ilê Aiyê seria a de constituição de formas positivas que
concorreram para atenuar a força de formas negativas com as quais eram constituídas e
compreendidas as imagens e os atributos negros. Da festa para o cotidiano, foram migrando
formas simbólicas que transformaram os esquemas de tipificação e autotipificação para os afrodescendentes na Bahia. Em conseqüência, pode-se dizer que essas mudanças vêm acarretando
um contínuo reposicionamento dos afro-descendentes nos esquemas classificatórios e
hierárquicos vigentes na cidade.
Ao favorecer modelos positivos de auto-expressão para essa população, o bloco
modificou um esquema de valoração simbólico, no qual qualquer traço corporal da ascendência
negra seria assimilado como um estigma, um motivo de vergonha e um objeto de ocultação. Essa
perspectiva se torna forte e evidente ao partir-se do pressuposto de que o homem é, ao mesmo
tempo, produtor de imagens e imagem de si próprio. Antes do Ilê Aiyê, o corpo negro e, em
conseqüência, a identidade negra não encontravam modelos locais ou externos que lhe
conferissem possibilidade de uma existência positiva. Pode-se-ia até encontrá-los em veículos
midiáticos, mas de modo desrealizado, sem um espaço-território onde esses atributos pudessem
ser partilhados, vividos e experimentados.
Além do mais, o processo formativo na criação-interpretação de imagens sempre é
submetido às limitações impostas pelo universo de significados que são partilhados por meio de
um conjunto de imagens preexistentes. Sempre há uma espécie de inércia ou resistência a um
conjunto de imagens-interpretações originais. Há sempre a necessidade de uma adaptação para
que as novas formas sejam assimiladas.
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O fato é que se trarça-se meticulosamente uma história de regulação da imagem do negro,
ver-se-á que ela obedece a padrões sociais bastante rigorosos. No Brasil do séc. XIX, o uso de
insígnias de poder, como chapéu alto, bengala, luva, sobrecasaca por negros, era alvo de ruidosa
sanção social (FREYRE, 2000, p.430). No Brasil da década de 70, quando um novo estilo de
bloco é inaugurado com a saída do Ilê Aiyê às ruas, a vaia e rejeição pública também foram o
resultado da recepção às novas formas. O fato é que, criando novos modelos, o Ilê Aiyê foi o
detonador de um movimento local para a reafricanização e valoração do cotidiano, da cultura e
da aparência negra na cidade. No entanto, foram necessárias três décadas de existência para que
as conseqüências positivas das suas imagens se consolidassem de modo irreversível,
transformando o bloco em um dos grandes referenciais identitários, não só para negros, como
para toda a sociedade baiana.
O discurso de beleza negra produzido pelo bloco parece ser o grande vetor do seu
sucesso e da assimilação de suas imagens. Todo mundo quer ser belo. Além disso, tomando
como pressuposto o fato de que se percebe o mundo mediante uma economia de esforço
cognitivo, o discurso de beleza tem o poder de associar aos negros e aos blocos afros um
conjunto infinito de outros atributos positivos.
Não se pode negar que os símbolos, enquanto formas, são imagens arquetípicas dos
modelos de organização de mundo. Sua eficiência comunicativa se dá pela sua adequação ao
contexto, pela sua conveniência a uma situação. As imagens emitidas e aceitas publicamente
sempre serão aquelas que estão carregadas de sentido e pertinência em relação ao seu contexto e
aos interesses, tanto dos grupos que as emitem, quanto daqueles que as absorvem ou consomem.
O fato é que as imagens de beleza produzidas pelo bloco agregam valor àqueles que as
detêm, àqueles que delas se aproximam e àqueles que para elas contribuem. Pela circularidade e
conveniência que os discursos estéticos acabam por adquirir, principalmente por e para aqueles
que possuem o poder de veicular e controlar as imagens na sociedade, as imagens produzidas
pelo bloco tornaram-se um traço distintivo para garantir a ocupação de espaços e territórios nos
novos cenários da configuração de poder em seus diversos níveis e tipos.
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Governador, Prefeito e Presidente do Bloco Afro Ilê Aiyê na saída do sábado de carnaval, no bairro do
Curuzu, em 2007.
Fonte: Arquivo Pessoal
Desse modo, pode-se dizer que os múltiplos desdobramentos advindos dessas trocas
simbólicas para a população negra ainda não podem ser seguramente previstos ou avaliados em
toda sua extensão, mas decerto possuem um caráter absolutamente transformador das bem
conhecidas condições preexistentes de percepção/construção da imagem de negro no cotidiano
local e global.
3 Alinhavando uma Bela Forma: Acabamentos e Aberturas
Pela atuação do Ilê Aiyê, é facil verificar como as imagens são elementos constituintes e
constituídos pela realidade. Mais do que meros objetos, elas são um componente autônomo da
vida social.
O Ilê Aiyê desenvolveu, manipulou e transformou um universo de imagens em discursos
eloqüentes, que difundiram, por uma idéia-estilo de beleza negra, a possibilidade de valoração
positiva para afro-descendentes, transformando objetivamente a identidade negra local.
Suas estratégias artísticas e espetaculares, de modo consciente ou não, tornaram-se
eficientes instrumentos para a redefinição das estruturas cognitivas vigentes em torno da
aparência negra na cidade.
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Vale salientar que os espetáculos do bloco tornaram-se rituais que são referências e
atendem aos interesses de diversos grupos locais negros e não-negros. Isto porque, além de
produzir um manancial de imagens-modelos para afro-descendentes, também são tomados como
fonte de imagens atraentes da população local, receptores externos e internos, utilizadas pela
indústria do lazer e a cultura afro-axé, estabelecida na Bahia e que, em grande escala, determina o
estilo dos produtos e souvenirs regionais pitorescos.
Por outro lado, essas imagens e espetáculos também abriram possibilidades para uma
melhor inserção sócio-econômica para os negros e, ainda que de modo tênue, quebraram a
hegemonia, no senso comum, da idéia de negro como um indivíduo aprioristicamente inferior.
Disto, observa-se que do surgimento do bloco, a criação das suas imagens, a rejeição inicial até a
sua atual aceitação pública, houve um processo que correspondeu às expectativas expressivas de
quase toda a população local entre negros e não-negros.
Sem dúvida, as novas formas criadas pelo Ilê Aiyê acentuaram a imagem do negro
enquanto um sujeito ativo nas relações e nas hierarquias cotidianas na cidade. Elas deram e ainda
dão visibilidade à beleza do mundo negro, antes diluído em interpretações e imagens de pobreza,
mau gosto e ignorância.
Mesmo ainda sujeitos a condições sócio-econômicas que os colocam em desvantagem em
relação aos outros, não-negros, os indivíduos de pele escura, hoje, possuem algum referencial
imagético positivo para o seu corpo e sua existência, uma referência de si em uma imagem que
não se coaduna com a posição de inferioridade e cujos atributos são objeto de orgulho, não só
para várias camadas da população afro-baiana, mas para o arsenal de referências positivas e
marcos de resistência da herança africana na diáspora.
Na Bahia, como no mundo inteiro, os discursos e as imagens de negritude vêm exercendo
um papel fundamental, indicando, inspirando e constituindo uma nova forma de articulação de
grupos negros na diáspora, em busca de um melhor posicionamento social. Por tudo que se viu,
pela sua originalidade criativa e pelo alcance das imagens por ele produzida, o Ilê Aiyê, além de
ser a expressão local desse movimento de caráter mundial, constituiu um modelo de discurso e
atuação política de forte apelo agregador, gerando identificações com o clamor à justiça social e à
reparação condizentes ao movimento de ação afirmativa e ao apelo estético que gera o desejo de
assimilação, identificação e incorporação das imagens de sua (nossa) Beleza Negra.
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Referências
BELTING, Hans. Pour une anthropologie des images. Paris: Gallimard, 2005.
FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1982.
FRANCASTEL, Pierre. Imagem, visão e imaginação. Lisboa: Edições 70, 1983.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos.12 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
GOMES FILHO, João. Gestalt do objeto: sistema de leitura visual da forma. São Paulo:
Escrituras, 2000.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998
OSTROWER, Fayga. Universos da arte. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. 2. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
Notas
Este e outros depoimentos fazem parte de um conjunto de entrevistas desenvolvidas para tese da autora durante os
anos de 2002 e 2003.
ii Bairro onde fica a sede do bloco.
iii Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, uma festa onde ocorre a escolha da Deusa do Ébano, Rainha do Bloco para o
carnaval, onde todos os atributos da estética negra são experimentados, comemorados e valorizados.
iv O habitus tende a reproduzir o sistema social do qual é produto e tem a característica de fazer essa reprodução
passar despercebida. O habitus está na origem dos preconceitos, é por meio dele que se operam as classificações
sociais. Enfim, para Bourdieu (1977), o habitus é um conjunto de “esquemas geradores de classificações e práticas
suscetíveis de ser classificadas que funcionam na prática sem ter acesso à representação explícita e são o produto, na
forma de disposições, de uma posição diferencial no espaço social”.
v E. H. Gombrich, em seu trabalho intitulado Arte e ilusão (1995), desenvolve uma curiosa observação de como os
conceitos adquiridos fornecem um esquema psicológico (schemata) que influenciam as formas de expressão e
compreensão do mundo. Ele observa que, no processo da criação artística, a estilização da natureza sempre
corresponde a um processo interpretativo. Mesmo nas obras mais realistas é sempre evocado um sem-número de
recursos de interpretação pessoal que produziriam a estilização. Toda percepção seria, então, restritiva, seletiva e
desenvolveria um trabalho de enquadramento e classificação do objeto representado dentro de um universo de
informações e habilidades dadas anteriormente.
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