UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO A REALIZAÇÃO DO OBJETO DIRETO ANAFÓRICO EM PEÇAS DE AUTORES BRASILEIROS DOS SÉCULOS XIX E XX Dados empíricos para observação de mudança no Português Brasileiro Carolina de La Vega Soledade Fevereiro de 2011 Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientadora: Silvia Regina de Oliveira Cavalcante UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO A REALIZAÇÃO DO OBJETO DIRETO ANAFÓRICO EM PEÇAS DE AUTORES BRASILEIROS DOS SÉCULOS XIX E XX: Dados empíricos para observação de mudança no Português Brasileiro CAROLINA DE LA VEGA SOLEDADE Rio de Janeiro Fevereiro de 2011 A REALIZAÇÃO DO OBJETO DIRETO ANAFÓRICO EM PEÇAS DE AUTORES BRASILEIROS DOS SÉCULOS XIX E XX: Dados empíricos para observação de mudança no Português Brasileiro CAROLINA DE LA VEGA SOLEDADE Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientadora: Silvia Regina de Oliveira Cavalcante Rio de Janeiro Fevereiro 2011 A realização do objeto direto anafórico em peças de autores brasileiros dos séculos XIX e XX: dados empíricos para a observação da mudança no português brasileiro Carolina de La Vega Soledade Orientadora: Profa. Dra. Silvia Regina de Oliveira Cavalcante Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Examinada por: _________________________________________________________________________ Presidente: Profa. Doutora Silvia Regina de Oliveira Cavalcante (UFRJ) _________________________________________________________________________ Profa. Doutora Márcia Cristina de Brito Rumeu (UFMG) _________________________________________________________________________ Profa. Doutora Maria Eugênia Lamoglia Duarte (UFRJ) _________________________________________________________________________ Profa. Doutora Beatriz dos Santos Feres (UFF) – suplente _________________________________________________________________________ Profa. Doutora Célia Regina dos Santos Lopes (UFRJ) – suplente Rio de Janeiro Fevereiro de 2011 Soledade, Carolina de La Vega A realização do objeto direto anafórico em peças de autores brasileiros dos séculos XIX e XX: dados empíricos para a observação da mudança no português brasileiro / Carolina de La Vega Soledade. Rio de Janeiro: UFRJ – FL, 2011. Xii, 120f.: il.; 31cm. Orientador: Silvia Regina de Oliveira Cavalcante Dissertação (mestrado) – UFRJ / Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2011. Referências Bibliográficas: f. 110-112. 1. Mudança Linguística; 2. Objeto Direto Anafórico; 3. Português Brasileiro . I. Cavalcante, Silvia Regina de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. Título. SOLEDADE, Carolina de La Vega. A Realização do objeto direto anafórico em peças de autores brasileiros dos séculos XIX e XX: dados empíricos para observação da mudança. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras / UFRJ, 2011. 116 p. RESUMO Diversas pesquisas já atestaram a redução do emprego do clítico de terceira pessoa na função acusativa, que estaria sendo substituído por um SN anafórico, por um pronome lexical, por um pronome demonstrativo neutro e, em maior escala, pelo objeto nulo. O presente trabalho apresenta o padrão de variação nas realizações do objeto direto anafórico em um corpus diacrônico composto por peças de teatro escritas por autores brasileiros entre os séculos XIX e XX. O objetivo é, a partir de um quadro de variação, demonstrar empiricamente um processo de mudança linguística já atestado no português brasileiro: a substituição do clítico acusativo de terceira pessoa pelo objeto nulo nas realizações do objeto direto anafórico. A análise se insere no modelo de mudança proposto por Weireinch, Labov, Herzog (1968) e a metodologia utilizada segue os moldes da Teoria da Variação e Mudança. Os resultados mostram que, de um modo geral, o objeto nulo se fixa como estratégia preferencial de retomada do objeto direto, salvo em alguns contextos nos quais ainda observamos aluma resistência do clítico, como é o caso dos antecedentes com traço [+animado] e traço [+específico/referencial]. O SN anafórico aparece como segunda opção de retomada do objeto direto e o pronome lexical, com poucas ocorrências, fica restrito aos contextos com antecedente [+referencial,+/- específico]. Quanto ao pronome demonstrativo neutro, que retoma um objeto direto oracional, também foram encontradas poucas ocorrências, indicando ter sido a primeira vaiante a ceder lugar ao objeto nulo. Ao fim do último período analisado, as ocorrências de pronome clítico ficaram reduzidas a apenas uma, confirmando a mudança já apontada em direção à categoria vazia no português brasileiro. Palavras-chave: 1. Objeto direto anafórico; 2. Mudança linguística; 3. Português Brasileiro; 4. Variação Paramétrica. SOLEDADE, Carolina de La Vega. A Realização do objeto direto anafórico em peças de autores brasileiros dos séculos XIX e XX: dados empíricos para observação da mudança. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras / UFRJ, 2011. 116p. ABSTRACT Several investigations have confirmed the decrease in the usage of the third person object clitic in Brazilian Portuguese, which is replaced by an anaphoric NP, by a pronoun, and on a larger scale, by an empty category. This study shows the pattern of variation in the frequency of the anaphoric direct object in a diachronic sample composed of plays written by Brazilian authors along the nineteenth and twentieth centuries. Our goal is to demonstrate the linguistic change which has already been attested in Brazilian Portuguese: the replacement of the clitic by the empty category. The analysis takes into account the model of linguistic change proposed by Weinreich, Labov and Herzog (1968) and the methodological tools of the Variation and Change Theory. The results show that, in general, the increase of null objects in the turn of the 20th century. The anaphoric NP appears as the second option and the lexical pronoum, with few instances, is restricted to contexts with [referential /-specific] referents. As for the indefinite pronoun, few occurrences were also found, indicating that it was the first to give way to null object. At the end of the last period of time analyzed, the rates of clitic diminush to 1%, confirming the change has already pointed towards the null category in Brazilian Portuguese. Key-words: 1. Null Object; 2. Linguistic change; 3. Brazilian Portuguese; 4. Parametric Variation. AGRADECIMENTOS Primeiramente agradeço à Silvia Regina de Oliveira Cavalcante, um exemplo a ser seguido. Professora e orientadora que abriu para mim as portas do mundo da pesquisa e, aos poucos, foi me ajudando a escolher o caminho que a partir de agora seguirei. Muito obrigada por tudo, principalmente pela paciência em meus momentos de dúvida e angústia. À minha mãe, Vilma, por ter dedicado a vida a ensinar aos filhos a importância de ser feliz no que faz. Professora dedicada da rede municipal do Rio de Janeiro, onde também foi minha professora, e despertou em mim o interesse tando pela discência quanto pela docência. Devo e dedico a ela tudo o que sou e também tudo o que até hoje conquistei. Ao meu pai, Antenor, pelo apoio e compreensão nos momentos de angústia e decisões difíceis. Apesar de distante do mundo acadêmico, sempre demonstrou orgulho e comemorou comigo cada conquista. Obrigada pelo incentivo incansável. Ao meu irmão e amigo, Daniel, pelos conselhos e também pelo apoio, mesmo sem nunca ter entendido porque desisti do curso de Engenharia e troquei o sólido mundo dos números pelo engenhoso mundo das letras. Um exemplo inspirador de determinação e competência. À Juliana Esposito Martins e Leonardo Lennertz Marcotulio, companheiros doutorandos que me acolheram na instituição, me auxiliaram e contribuíram, cada um a seu modo, com meu aprendizado na passagem pelos cursos. Também à Elaine Melo, pelas dicas e companheirismo nas horas de trabalho. Ao meu companheiro, parceiro, amor e amigo, Rudá Morcillo, pela paciência, pelo apoio e pela ajuda em muitas noites de codificação de dados. Este trabalho foi parcialmente financiado por uma bolsa do CNPq. Índice de Tabelas Tabela 1.1: Objeto direto anafórico na fala de indivíduos não escolarizados _________________ 8 Tabela 1.2: Realização do Objeto direto anafórico na fala de indivíduos escolarizados _________ 9 Tabela 1.3: Realização do objeto direto anafórico na fala do PE e do PB (Freire, 2000) ________ 10 Tabela 1.4: Realização do objeto direto anafórico em estudo painel segundo a escolaridade do falante (Marafoni, 2004) ________________________________________________________ 11 Tabela 1.5: Realização do objeto direto anafórico na escrita do PE e do PB (Freire, 2005) _____ 16 Tabela 1.6: Realização do objeto direto anafórico nos dados diacrônicos de Cyrino (2007) ____ 21 Tabela 1.7: Realização do objeto direto anafórico em cartas de ilustres a Rui Barbosa (Soledade, 2010) _______________________________________________________________________ 22 Tabela 1.8: Realização do objeto direto anafórico segundo a referencialidade do antecedente nas cartas a Rui Barbosa (Soledade, 2010) ______________________________________________ 24 Tabela 3.1: Realização do objeto direto anafórico na amostra de peças ___________________ 55 Tabela 3.2: Distribuição das variantes de acordo com a forma verbal do verbo que seleciona o objeto direto anafórico. _________________________________________________________ 55 Tabela 3.3: Realização do objeto direto anafórico segundo a estrutura projetada pelo verbo. __ 57 Tabela 3.4: Realização do objeto direto anafórico segundo a estrutura da oração ___________ 59 Tabela 3.5: Distribuição das variantes de acordo com a função sintática do antecedente. _____ 61 Tabela 3.6: Distribuição das variantes de acordo com a posição do antecedente. ____________ 64 Tabela 3.7: Posição do objeto direto anafórico em relação ao antecedente. ________________ 65 Tabela 3.8: Distribuição das variantes de acordo com a distância do referente. _____________ 67 Tabela 3.9: Distribuição das variantes de acordo com a realização do sujeito. ______________ 68 Tabela 3.10: Distribuição das variantes de acordo com o traço semântico do antecedente. ____ 69 Tabela 3.11: Distribuição das variantes de acordo com o traço de referencialidade do antecedente. _________________________________________________________________ 72 Tabela 3.12: Distribuição das ariantes de acordo com a forma/especificidade do antecedente. _ 73 Tabela 3.13: Distribuição das variantes ao longo do tempo. _____________________________ 76 Tabela 3.14: Realização do objeto nulo em relação à posição do antecedente. ______________ 79 Tabela 3.15: Peso relativo do preenchimento do sujeito para a realização do ON. ___________ 80 Tabela 3.16: Pesos relativos do traço de animacidade do antecedente para a realização do ON. 81 Tabela 3.17: Pesos relativos da referencialidade do antecedente para a realização do ON. ____ 82 Tabela 3.18: Pesos relativos do período de tempo (data de publicação da peça) para a realização do ON. ______________________________________________________________________ 83 Tabela 3.19: Distribuição do objeto nulo segundo o tipo de oração. ______________________ 85 Tabela 3.20: Distribuição do objeto nulo segundo a forma/especificidade do referente. ______ 86 Índice de Gráficos Gráfico 3.1: Distribuição das variantes ao longo do tempo na amostra analisada.____________ Gráfico 3.2: Evolução do objeto nulo ao longo do tempo na amostra analisada. _____________ Gráfico 3.3: Período de tempo vs. função do antecedente do ON. ________________________ Gráfico 3.4: Período de tempo vs. animacidade do antecedente do ON. ___________________ Gráfico 3.5: Período de tempo vs. referencialidade do antecedente do ON. ________________ Gráfico 3.6: O encaixamento da mudança: percurso do sujeito nulo (Duarte, 1993) e do objeto nulo na amostra de peças _______________________________________________________ 78 84 88 89 90 92 Sumário INTRODUÇÃO ___________________________________________________________ 1 CAPÍTULO 1: PONTOS DE PARTIDA _________________________________________ 5 Introdução ____________________________________________________________ 5 1.1 O fenômeno do ponto de vista sincrônico________________________________ 5 1.1.1 A língua oral ______________________________________________________________________ 5 1.1.2 A língua escrita __________________________________________________________________12 1.2 O fenômeno do ponto de vista diacrônico ______________________________ 18 CAPÍTULO 2: PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS _____________________ 26 Introdução ___________________________________________________________ 26 2.1 Fundamentos Teóricos ______________________________________________ 26 2.1.1 A Teoria da Variação e Mudança _______________________________________________27 2.1.2 A Teoria de Princípios e Parâmetros___________________________________________30 2.1.3 A Variação Paramétrica _________________________________________________________33 2.2 Metodologia e Hipóteses de trabalho __________________________________ 35 2.2.1 A delimitação da amostra ______________________________________________________36 2.3 O envelope da variação ______________________________________________ 41 2.3.1 A variável dependente __________________________________________________________41 2.3.2 As variáveis independentes ____________________________________________________43 CAPITULO 3: ANÁLISE DOS RESULTADOS ___________________________________ 54 Introdução ___________________________________________________________ 54 3.1 Resultados gerais __________________________________________________ 54 3.1.1 Distribuição geral da variantes_________________________________________________54 3.1.2 A Forma Verbal __________________________________________________________________55 3.1.3 Transitividade e estrutura projetada pelo verbo _____________________________57 3.1.4 Contexto sintático da oração que contém o objeto direto anafórico ________59 3.1.5 Função sintática do antecedente _______________________________________________61 3.1.6 Posição do antecedente _________________________________________________________63 3.1.7 Posição da ocorrência em relação ao antecedente ___________________________64 3.1.8 Distância da ocorrência com relação à primeira menção ____________________67 3.1.9 Presença/ ausência de sujeito na oração que contém o objeto direto anafórico _______________________________________________________________________________68 3.1.10 Traço Semântico do Antecedente_____________________________________________69 3.1.11 Referencialidade do Antecedente ____________________________________________71 3.1.12 Forma/Especificidade do Antecedente ______________________________________73 3.1.12 Tempo __________________________________________________________________________76 3.2 A variação objeto nulo vs. clítico ___________________________________ 79 3.3 Algumas observações sobre a questão da mudança linguística ________ 87 CONSIDERAÇÕES FINAIS _____________________________________________ 93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________________ 98 INTRODUÇÃO De acordo com nossas gramáticas normativas, que acompanham a norma lusitana, os pronomes oblíquos átonos o, a, os, as são formas próprias do objeto direto, como se vê em (1). No entanto, diversas pesquisas, até hoje realizadas, no âmbito da linguística, acerca da realização do objeto direto no português brasileiro, dentre elas Duarte (1986), Cyrino (1997), Freire (2000) Marafoni (2004), apontam que esta categoria pode ser retomada anaforicamente através de cinco estratégias: o clítico acusativo (1), um SN conforme (2), um pronome lexical representado por (3), um pronome demonstrativo (neutro) (4) ou (5) um objeto nulo (entendido como o objeto direto não realizado foneticamente). (1) É preciso acompanhá-las. (Coelho Netto, OS, I, 45, apud Cunha e Cintra, 2007: 292) (2) Então o meu filho ficou morando [no apartamento]i, mas ele reclamava muito do barulho, e a gente foi na onda dele de vender esse apartamentoi. (Duarte, 1989: 20) (3) Não dá muito trabalho não! Aqui o cara colhe ... um cara bom pega uns seis sete quilos de [cravo]i. [...] Você colhe elei, ele tem [aqueles dente]j, aqueles cacho, você quebra elesj sem folha, prá casa, chega em casa, você destala elei, tira o talo, [...] e pega elei e bota øi no só. (Figueiredo Silva, 2004: 123) (4) No cinema, a ação vai e volta. No teatro, você não pode fazer isso. (Duarte, 1989:20) (5) A garota não sabe sequer ler, recebe [carta de colega]i, a mãe tem que lê øi pra ela. (Marafoni, 2010: 19) Vale ressaltar que o pronome lexical aparece em Cunha e Cintra (1985: 280) compondo uma uma seção intitulada “equívocos e incorreções”, onde, a respeito do emprego dos pronomes retos, o autor afirma ser frequente na fala vulgar (grifo nosso) o uso do pronome ele(s), ela(s) como objeto direto. Constata-se a partir de então que, tanto na escrita quanto na fala do português brasileiro (PB), a realidade de uso da língua, no tocante ao fenômeno do objeto nulo, é distinta do que prescreve a norma da gramática, bem como da norma do português europeu (PE), uma vez que aquela é espelho desta. A maioria dos trabalhos acerca das realizações do objeto direto anafórico na língua oral, como os de Marafoni (2004) e Duarte (1986), nos trazem uma hierarquia geral de 1 realização na qual o objeto nulo aparece como a estratégia preferencial, seguido do SN anafórico, do pronome clítico e em último lugar do pronome nominativo. A exceção está no trabalho de Figueiredo Silva (2004), que observa o fenômeno na fala de analfabetos e encontra uma porcentagem maior de pronomes nominativos e nenhuma ocorrência de clítico, confirmando o fato de esta já ser, no português brasileiro, uma estratégia aprendida através da escolarização, logo, não mais fazendo parte do que se adquire em língua materna. De fato, os trabalhos de língua escrita, a exemplo de Averburg (2000), apontam um índice um pouco maior de uso do clítico, principalmente na escrita dos informantes com mais alto grau de escolaridade. Cyrino (1997) ao traçar a diacronia do objeto nulo deixa claro que ele sempre foi possível no PB, no entanto, somente em determinados contextos: primeiramente com antecedente proposicional, em seguida, predicativo. Só a partir do século XX é que começa a crescer o objeto nulo com traço [humano, -específico], depois com o traço [-humano, +específico] e por último com o traço [+humano]. Kato, Duarte, Cyrino e Berlinck (2006), analisando a virada do século, encontraram já no século XIX objetos nulos nos mesmos moldes que aparece no século XX ([+específico, -humano]), portanto, já característico do PB. Esse teria sido o ponto que impulsionou a realização desta pesquisa. O objetivo deste trabalho é descrever e analisar as realizações do objeto direto anafórico em um corpus diacrônico composto por peças teatrais escritas a partir da metade do século XIX até o fim do século XX (mais especificamente de 1845 até 1992) a fim de verificar o comportamento desta variável em momentos distintos na linha do tempo e tentar capturar uma mudança em direção à categoria vazia. Constatada a mudança, buscarei estabelecer o percurso de implementação do objeto nulo, que emergiu no PB como principal alternativa de retomada do objeto direto. As hipóteses de que parto e que busco confirmar com este trabalho são (a) a de que o português brasileiro e o português europeu apresentam uma distribuição diferente no tocante à retomada do objeto direto: o PB apresenta, no fim do século XX, alto índice de objetos nulos e baixíssimo índice de clíticos, mantendo-se estáveis as outras estratégias anunciadas; (b) este quadro é resultado de uma mudança linguística que teria ocorrido nesse período de tempo; (c) o aumento de objetos nulos está intimamente relacionado à diminuição de clíticos que, por sua vez, é consequência de uma 2 reorganização do sistema pronominal; (d) no fim do século XX, o objeto nulo não apresenta restrições no PB, expandindo-se aos mais diversos contextos; (e) o contexto de antecedente [+específico,+animado] como um ambiente de resistência do clítico confirmando que uma mudança em direção a uma categoria vazia se inicia pelos contextos [-referenciais,+genéricos]; (f) o SN enraíza como mais uma estratégia de substituição do objeto direto e (g) se apresenta mais expressiva do que o pronome nominativo. O quadro teórico-metodológico que norteia esta pesquisa é a sociolinguística laboviana sociolinguística variacionista, ou Teoria da Variação e Mudança (Weinreich, Labov e Herzog, 1968). Basicamente, da Teoria da Variação e Mudança provém a idéia de que toda língua natural está suscetível a mudanças e que esta, encaixada em outras alterações no sistema linguístico, passa, antes, por um estado de variação (que pode ser sistematizado visto que, para usar o termo de WLH (1968), é uma variação ordenada. Da Teoria de Princípios e Parâmetros, entende-se que toda língua possui princípios rígidos e parâmetros abertos e variáveis que podem ser marcados positiva ou negativamente a depender dos dados a que o falante é exposto no momento de aquisição. Interessa-nos aqui o Parâmetro do Objeto Nulo, que prevê para as línguas com marcação positiva, a possibilidade de deixar o objeto direto anafórico sem representação fonológica. Os resultados esperados para que se confirmem as hipóteses acima são (a) encontrar uma hierarquia geral de distribuição das variantes na qual o objeto nulo é a estratégia preferencial (b) constatar que as outras variantes supracitadas mantêm-se estáveis no decorrer do tempo, (c) confirmar e capturar a mudança em direção ao objeto nulo através do seu percurso de implementação, que (d) obedece a uma hierarquia de referencialidade, (e) detectar os fatores condicionantes atuantes na mudança, bem como (f) a falta de restrições a esta variante no PB. O trabalho está organizado da seguinte forma: o capítulo 1 traz uma revisão das pesquisas já realizadas contextualizando o objeto direto anafórico na literatura. No capítulo 2, discorro sobre os pressupostos teóricos que são o norte desta pesquisa e descrevo a metodologia de análise. O capítulo 3 reserva-se à análise dos dados e resultados encontrados cabendo aqui a confirmação ou não das hipóteses das quais 3 partiu este trabalho. Por fim, nas considerações finais, finalizo o trabalho apresentando as conclusões que pude extrair das análises procedidas. 4 CAPÍTULO 1: PONTOS DE PARTIDA Introdução Muitas pesquisas, sob diferentes perspectivas teóricas, já retrataram, direta ou indiretamente as estratégias de substituição do clítico acusativo. Este capítulo se destina a uma revisão das pesquisas já feitas sobre as realizações do objeto direto anafórico de terceira pessoa, fenômeno variável e objeto de estudo desta dissertação. Serão apresentados neste capítulo resultados que, de algum modo, foram considerados relevantes para o empreendimento desta pesquisa. Primeiramente, na subseção que segue, apresento alguns resultados de pesquisas e análises realizadas por outros pesquisadores em trabalhos acadêmicos sobre o PB e que serviram de ponto de partida para esta pesquisa. Inicio esta revisão com trabalhos que abordam as sincronias atuais na fala e na escrita, em seguida, faço uma revisão do fenômeno no âmbito da perspectiva diacrônica e em sincronias passadas. 1.1 O fenômeno do ponto de vista sincrônico 1.1.1 A língua oral Pode-se dizer que, entre os estudiosos de sintaxe no âmbito da gramática gerativa, Raposo (1986) foi um dos primeiros a observar a ocorrência de objetos nulos no português, mais especificamente no português europeu. O autor atribuiu ao fenômeno o status de variável, um vestígio do movimento de uma categoria vazia para a posição de COMP, e seu principal argumento reside no fato de as sentenças (1) e (2) abaixo, por exemplo, não serem possíveis, visto que apresentam estrutura de ilha para movimento. (1) *Eu informei à polícia da possibilidade de o Manuel ter guardado ø no cofre da sala de jantar. (falando sobre jóias) (2) *O rapaz que trouxe ø mesmo agora da pastelaria era o teu afilhado. (falando sobre pastéis) Sendo as sentenças acima consideradas possíveis no português brasileiro, Galves (1998) propõe que o objeto nulo é pro. 5 Outros trabalhos, de caráter variacionista, surgiram com o intuito de explorar um fenômeno sintático que aparentemente diferencia as gramáticas do português brasileiro e do português europeu. Dentre esses trabalhos, o que serve de ponto de partida para esta pesquisa é o de Duarte (1986), que por sua vez, foi impulsionado pela dissertação de mestrado de Omena (1978), pela dissertação de Pereira (1981) e pela tese de doutoramento de Tarallo (1983). Segundo Duarte (1986), o trabalho de Omena, que trata diretamente das formas variantes do pronome de terceira pessoa em função acusativa na fala de informantes não alfabetizados, levanta importantes condicionamentos linguísticos de natureza sintática e semântica. Deve ser destacado também que não foi encontrada, na na fala dos analfabetos, nenhuma ocorrência de pronome clítico. Com o objetivo de dar continuidade aos estudos citados acima, Duarte acrescenta a este cenário fatores de ordem social e estilística. Em sua dissertação, a autora faz uso de um corpus composto por gravações de fala natural de 50 informantes paulistanos (cerca de 40 horas de gravação) e de 8 horas de gravação de fala provenientes da televisão. Para o controle dos fatores sociais, ou extralinguísticos, que possivelmente influenciariam o apagamento do objeto já observado por Omena (1978), foram levados em conta o nível de escolaridade1 (1º grau completo ou incompleto, 2º e 3º graus) e a faixa etária dos informantes (de 20 a 23 anos, de 34 a 46 anos e acima de 46 anos). Com 3 níveis de escolaridade e 3 faixas etárias, foram obtidos nove grupos de informantes, ou células, cada grupo contando com 5 informantes. A fim de observar o fenômeno em uma geração de fala mais jovem, foi acrescentado mais um grupo com 5 informantes tendo entre 15 e 17 anos e cursando a 8ª série do primeiro grau, totalizando os 50 informantes. O fator estilístico foi observado através dos diferentes graus de formalidade provenientes da comparação entre os dados de gravação televisiva. Foram analisadas 4 horas de gravação de episódios de novela e 4 horas de entrevistas, possibilitando a observação de dois graus distintos de formalidade de fala que atinge e influencia todo o território do país. As variantes observadas para a variável objeto direto anafórico foram as seguintes: 1 Os resultados de Omena (1978, apud Duarte, 1986) demonstram que o clítico acusativo não está presente na competência linguística do falante não escolarizado da área do Rio de janeiro, sendo mais produtivo o apagamento do objeto (76%) em oposição ao emprego do pronome lexical (24%). 6 o clítico acusativo, o pronome lexical, a categoria vazia (ou objeto nulo), o SN anafórico e o pronome demonstrativo isso. A fim de complementar e testar os resultados da fala, Duarte (1986) fez uso ainda de um teste de percepção e de produção com os informantes, através dos quais foi possível observar a reação dos falantes diante das variantes analisadas. Os condicionamentos linguísticos examinados são relativos aos níveis morfológico, sintático e semântico, e nesta ordem os apresento resumidamente. No nível morfológico foi observado que o objeto nulo supera todas as outras variantes em todas as formas verbais, à exceção das construções com gerúndio, que privilegiam o uso de SNs anafóricos. No nível sintático, o quadro é semelhante demonstrando a supremacia da categoria vazia. Somente nas construções mais complexas, o objeto anafórico é realizado sob a forma de pronome lexical, quando este é um SN. É este o caso já mencionado e chamado pelos gramáticos tradicionais de “dupla função”, onde o objeto se confunde com o que na verdade, é o sujeito de uma oração infinitiva. Quanto aos condicionamentos semânticos, observou-se que o traço [-animado] favorece o apagamento do objeto em qualquer que seja a categoria sintática. Cade aqui ressaltar a importância de terem sido considerados os SNs anafóricos. A pesquisadora observou que, aparentemente, os SNs anafóricos parecem obedecer aos mesmos condicionamentos sintáticos, o que pode indicar uma variante em ascensão. Nas construções com gerúndio, por exemplo, os SNs anafóricos mostraram-se salientes. Logo, podemos afirmar que é uma forma que se destaca entre as outras em contextos onde o objeto nulo seria o mais esperado. Considerando os condicionamentos sociais, escolaridade e faixa etária, chamou atenção a total ausência de clíticos na fala dos mais jovens, sendo a variável ascendente nos demais grupos, não na mesma proporção, de acordo com o aumento do nível de escolaridade. Mais uma vez, os uso de SNs anafóricos nos níveis mais altos de faixa etária e escolaridade, chegou a superar o uso do clítico. Ainda assim, o apagamento do objeto foi a estratégia preferencial por todos os grupos. Os dados extraídos das novelas e entrevistas de TV confirmaram a preferência pelo objeto nulo e o baixo percentual de clíticos constatados na fala natural. No entanto, mais 7 uma vez, o SN anafórico aparece saliente, chegando a ultrapassar, nas entrevistas de TV (40,3%), a soma dos percentuais de fala natural (14,6%) e de novelas (16,2%), se apresentando como concorrente do objeto nulo (47,2%). O pronome lexical parece ser mesmo uma variante estigmatizada no contexto televisivo, pois apresentou porcentagem mínima na fala de entrevistas (1,1%). Por fim, os testes de percepção e produção mostraram o que já se esperava: que o uso do objeto nulo é aceito em todos os contextos com certa naturalidade, exceto em casos de traço semântico [+animado], onde a preferência também não é pelo clítico, mas pelos SNs anafóricos, principalmente nos níveis mais altos de escolaridade. Seguindo o percurso iniciado pelos trabalhos já citados aqui, outros pesquisadores, em diferentes partes do Brasil, e sob diferentes perspectivas, analisaram dados sobre o fenômeno na busca de uma visão mais abrangente do que se observou inicialmente: a diminuição do uso do clítico, que é uma variante advinda da escolarização, e o aumento da categoria vazia para representação do objeto direto anafórico de terceira pessoa. Nas tabelas a seguir são apresentados os resultados de alguns destes trabalhos, primeiro com falantes não-escolarizados e em seguida com falantes com 2 ou 3 níveis de escolarização. Tabela 1.1: Objeto direto anafórico na fala de indivíduos não escolarizados Pesquisas OMENA 1978 – RJ PARÁ 1997 – RJ F. SILVA 2004 - BA Instrução Analfabetos Analfabetos Analfabetos 0% 0% 0% _ 24% 16% Obj. Nulo 76% 63% 72% Pronome 24% 14% 12% Total 100% 100% 100% Clítico SN Temos acima, além dos resultados de Omena (1978), os resultados de Pará (1997) oriundos da fala de pescadores do Norte Fluminense e os de Figueiredo Silva (2004) baseados no uso observado em quatro localidades do interior da Bahia, comunidades quilombolas, que viveram em relativo isolamento. O que havia sido observado por Omena (1978) e Duarte (1986) foi confirmado nas outras pesquisas com analfabetos, cuja relevância está no fato de, mesmo estando os informantes afastados dos grandes centros 8 (o trabalho de Figueiredo Silva busca no português afro-brasileiro uma possibilidade de vestígio de uma crioulização que teria formado a variedade do português falado no Brasil), os resultados se assemelharam aos encontrados também nas outras áreas do território brasileiro. A tabela mostra, logo na primeira linha, a completa ausência do clítico, estratégia considerada padrão, entre os dados dos três pesquisadores. O SN, variante destacada por Duarte (1986), não foi observada por Omena (1978), e nos trabalhos de Pará (1997) e Figueiredo Silva (2004), esta variante aparece na segunda posição. A variante com índices notavelmente mais robustos, em todas as pesquisas, foi o objeto nulo alcançando 76% nos resultados de Omena (1978), 63% nos resultados de Pará (1997) e 72% em Figueiredo Silva (2004). O pronome lexical, como era de se esperar na fala de analfabetos, apresentou índices consideráveis de ocorrências nas três pesquisas. Abaixo, seguimos apresentando resultados de pesquisas cujos informantes apresentam dois ou três níveis de escolaridade. Tabela 1.2: Realização do Objeto direto anafórico na fala de indivíduos escolarizados Pesquisas DUARTE 1986 - SP MALVAR 1992 – DF LUÍZE 1997 - SC AVERBURG 1998 - RJ FREIRE 2000 - RJ BALTOR 2003 - PB Instrução 3 níveis 2 níveis 3 níveis 3 níveis NURC 2 níveis Clítico 5% 1% 1% 1% 3% 4% Pronome 15% 25% 9% 15% 4% 28% SN 17% 28% 36% 41% 34% 22% Obj. Nulo 63% 46% 54% 43% 59% 46% Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% Na tabela 1.2, temos os resultados de Duarte (1986) para a fala dos paulistanos, Malvar (1992) para a fala culta do Distrito Federal, Luíze (1997) para a de Santa Catarina, Averburg (1998) e Freire (2000) para a fala culta carioca e Baltor (2003) para a fala culta da Paraíba. Temos um quadro não muito diferente do já apresentado na tabela 1. O uso do clítico se apresenta reduzido (5% em Duarte (1986), 1% em Malvar (1992), Luize (1997) e Averburg (1998), 3% em Freire (2000) e 4% em Baltor (2004)) em comparação às outras estratégias, e a preferência é, sem dúvida, pelo objeto nulo (sempre com mais de 50% das ocorrências). Um concorrente em potencial, como bem observou Duarte (1986) são os 9 SNs anafóricos, que se tornaram estratégias alternativas ao uso do clítico e mais se aproximam do percentual de objetos nulos com percentuais de 17%, 28%, 36%, 41%, 34% e 22% respectivamente. Quanto ao pronome lexical, que, de fato, não é recomendado pelos gramáticos tradicionais, os índices foram mais altos do que os encontrados para o uso do clítico, estratégia recomendada pelas gramaticas prescritivas. Foram encontrados 15%, 25%, 9%, 15%, 4% e 28% de ocorrências desta variante nos trabalhos supracitados. O que se deve observar nos resultados que constam nas tabelas 1.1 e 1.2 é a preferência pela categoria vazia em todas as pesquisas, a mínima ocorrência de clíticos na fala de escolarizados e a total ausência na fala dos analfabetos. Fica confirmada a liberdade do objeto nulo no português brasileiro. Destaco, dentre os citados acima, Freire (2000), que analisa na fala de universitários brasileiros e portugueses as estratégias de substituição do clítico de terceira pessoa nas funções acusativa, dativa e reflexiva. Nesta revisão, aludo somente aos dados relativos à função acusativa. Segue uma tabela que demonstra claramente a distribuição das variantes. Tabela 1.3: Realização do objeto direto anafórico na fala do PE e do PB (Freire, 2000) VARIANTE Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto Nulo Total Variedade Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % PB 4 3 5 4 40 34 68 59 117 100 PE 48 44 - - 27 25 34 31 109 100 Em relação ao PB, os números acima, além de ratificarem os resultados anteriores sobre o pouco uso de clíticos (3%) e a preferência pela categoria vazia (59%), demonstram o alto percentual de ocorrência de SNs anafóricos (34%), trazendo à luz mais dados empíricos em favor da implementação do objeto nulo e dos SNs, visto não apresentarem sinal de rejeição por falantes universitários, como ocorre com o pronome lexical (com apenas 4% de ocorrências). O baixo percentual de clíticos é atribuído ao fato de não fazerem parte dos dados input na aquisição da “língua materna”, sendo aprendido como segunda língua, na escola. Freire (2000) atenta ao fato de que a perda do clítico pode estar propiciando a implementação das duas formas em ascensão. 10 Quanto ao PE, o clítico aparece como forma preferencial (48%); no entanto, os dados mostram que a categoria vazia (31%) e os SNs (25%) também estão presentes na fala dos universitários. Um exame mais cuidadoso das variantes, observando a estrutura do antecedente do objeto, revela que o clítico no PB está restrito aos objetos cujo antecedente é um SN e o objeto nulo é a preferência de retomada de qualquer antecedente. Já no PE, na retomada de todos os tipos de estrutura podemos nos deparar com a presença do clítico. No entanto, com antecedente predicativo ou oracional o objeto nulo aparece com maior percentual (67 % e 70%). Mais adiante, considerando a linha do tempo Marafoni (2004) em um estudo em tempo real de curta duração da fala popular carioca, observou as realizações do objeto direto anfórico buscando observar a mudança na marcação do Parâmetro do Objeto Nulo. Ela monitorou a fala dos mesmos informantes na década de 80 e posteriormente, no ano 2000 sendo consideradas as mesmas variantes das pesquisas aqui citadas. Os dados gerais obtidos neste estudo mostram que, no conjunto, a hierarquia encontrada em Duarte (1986) e nos outros trabalhos aqui resumidos foi mantida: o objeto nulo como estratégia preferencial (67,3%), seguido do uso do SN anafórico (19%). O pronome lexical teve 13% das ocorrências e o clítico apresentou percentual menor que 1%, sendo as três únicas ocorrências da década de 80 provenientes de informantes de faixa etária mais elevada. O diferencial dos resultados levantados por Marafoni (2004) está no fato de, no segundo contato, dois informantes terem aumentado o nível de escolaridade, o que resultou na quebra da hierarquia até então observada. Abaixo reproduzimos uma tabela que apresenta o fenômeno relacionado à manutenção ou não do grau de escolaridade. Tabela 1.4: Realização do objeto direto anafórico em estudo painel segundo a escolaridade do falante (Marafoni, 2004) Objeto Nulo SN anafórico Pron. Lexical Clítico Total Mudaram Escolaridade 353 (73,7%) 46 (9,6%) 72 (15%) 08 (1,7%) 479 (100%) Mantiveram Escolaridade 659 (64,2%) 240 (23,4%) 124 (12,1%) 03 (0,3%) 1026 (100%) Total 1012 (67,3%) 286 (19,0%) 196 (13,0%) 11 (0,7%) 1505 (100%) A Tabela 1.4 surpreende por apresentar quebra da hierarquia entre as variantes 11 nos dados de indivíduos que elevaram o nível de escolaridade passando o uso de pronome lexical para segunda estratégia de preferência (15%) e empurrando o SN anafórico para o terceiro lugar (9,6%). O mesmo não aconteceu com aqueles que mantiveram o nível, que mantiveram a regularidade na representação da variável aqui descrita. A pesquisadora apresenta duas possíveis explicações para esses falantes demonstrarem preferência pelo pronome lexical e pelo objeto nulo em detrimento do uso do SN: os informantes representantes do grupo que elevou o nível de escolaridade pertenciam à faixa etária mais jovem no primeiro momento (década de 80). O fato de ter aumentado o número percentual de falantes, ao contrário do que pode parecer, demonstra que mantiveram seu comportamento linguístico no segundo período analisado. Outra explicação, pode estar relacionada ao fato de essa variante aparecer preferencialmente em estruturas complexas com a função real de sujeito (e não uma suposta dupla função, defendida pelos tradicionalistas). Marafoni (2004), além de confirmar os condicionamentos estruturais das outras pequisas, chama atenção para a implementação do objeto nulo em ambientes que ainda se mostram mais resistentes a esta variante, como antecedente exercendo função diferente da sua (alcançando 27%) e traço semântico [+animado] do referente (52%). Nesta seção foi feita uma retomada dos principais resultados de estudos variacionistas de caráter sincrônico que focavam a representação do objeto direto anafórico na modalidade falada da língua e que serão relevantes para o presente estudo. 1.1.2 A língua escrita Seguindo a mesma linha de trabalho e tendo sido constatada na fala a preferência pelo uso do objeto nulo, Cyrino (2001) analisa o objeto nulo em um corpus constituído por anúncios de revistas portuguesas (VISÃO, que se equipara à brasileira VEJA, QUO, ADOLESCENTES e PAIS & FILHOS) e brasileiras (VEJA, CLÁUDIA, DOMINGO e VEJA RIO, as duas últimas são revistas de variedades que vêm encartadas na revista VEJA e no JORNAL DO BRASIL). A autora chama a atenção para a grande diferença de ocorrência de objetos nulos entre o PB (76% - 19 dados) e o PE (3% - 1 dado) sendo que no PE, o único objeto 12 nulo encontrado, está na sentença (3), com verbo no imperativo2, reproduzida abaixo. A autora destaca também que, em PB, estruturas com verbo no imperativo não tendem a apresentar o objeto preenchido, o que é o comum no PE conforme o exemplo (4) transcrito abaixo: (3) Preencha os seus dados, cole [o cupão]i num postal dos CTT e envie øi para a promoção QUO/NIVEA FOR MEN, Rua Filipe Folque 40 - 2o , 1069-124 Lisboa. (PE) (4) Envie [o seu Donativo]i em Cheque ou Vale Postal A/C Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes. Largo Cristóvão Aires, 1 A-B, 1700-126 Lisboa. Ou deposite-oi no Banco BPI, S.A. (PE) Para o PB foram encontrados objetos nulos como no exemplo (5) abaixo, que não se encontra no PE: (5) [Lentes de contato]i: AGORA, VOCÊ PODE ESQUECER øi. NIGHT & DAY da Vision é a maior inovação em lentes de contato de uso contínuo para miopia dos últimos tempos! As únicas que VOCÊ usa por 30 noites e dias sem precisar tirar ø i nem para dormir. (PB) Também característico do PB, a autora aponta objeto nulo em 2a. coordenada, que, segundo Kato (1993), não ocorre em PE, como mostra o exemplo (6). Não houve nenhum exemplo de objeto nulo em coordenadas com verbos que não estivessem no modo imperativo: (6) No Dia dos Namorados, Baileys começa [a história]i. A sua imaginação termina øi. (PE) Quanto ao objeto proposicional, no PE, não foi encontrado nenhum objeto nulo. Todos são preenchidos pelo clítico neutro, como no exemplo (7) abaixo. Em contrapartida, no PB, a autora se deparou somente com exemplos como (8). (7) Está provado que [Colgate Total é o primeiro e único dentifricio que protege acima e abaixo da linha da gengiva]i, criando um escudo protector durante, pelo menos, 12 horas. E não importa quanto tenha comido ou bebido. Os testes clínico comprovam-noi de forma evidente. (PE) 2 Kato (1993, apud Cyrino 2001) também propõe o exopro, um objeto nulo em contextos especiais de comandos, ou receitas, que é o caso do verbo no imperativo, podendo ocorrer em outras línguas, como no inglês: Send ø by mail. 13 (8) Temos que admitir øi as coisas estão cada vez melhores. (PB) Passando à observação do traço de animacidade, sempre relevante ao se estudar o objeto direto anafórico como bem demonstram as análises apresentadas até o presente momento, no PB, dos 24 antecedentes inanimados, 19 foram objeto nulo e os 5 restantes dividiram-se entre 2 exemplos preenchidos por clíticos, 1 com repetição de SN e 2 com pronome demonstrativo. A única ocorrência de antecedente animado (9) foi um caso de preenchimento com clítico, ratificando a preferência deste pelos antecedentes com traço [+animado]. Para o PE, foram computados 21 antecedentes inanimados, sendo somente um objeto nulo, exatamente o exemplo com imperativo. Como era de se esperar, todas as ocorrências com antecedente animado apresentaram-se preenchidas por clítico. (9) No segundo Grau, [o aluno]i começa a ser preparado para ingressar no mercado de trabalho. Palestras sobre orientação vocacional, ministradas por professores gabaritados e atuantes na área, ajudam a sintonizá-lo com o futuro, ou seja, com sua vida profissional. Cyrino (2003) busca responder a pergunta: a queda dos clíticos ocasiona o aparecimento do objeto nulo? A pesquisadora pretende mostrar que a queda de clíticos no PB e a ocorrência de objetos nulos são fatos independentes, sendo ambos os fenômenos conseqüências de um princípio mais geral, uma espécie de princípio "Evite Pronome"3, que estaria agindo na posição de objeto4. Os clíticos acusativos que estão desaparecendo no PB são os clíticos de 3ª pessoa, e o objeto nulo sempre ocorre em substituição a esses clíticos, já que não é possível de se dizer o mesmo dos clíticos acusativos referentes às outras pessoas, o que faz das sentenças (10) e (11) abaixo agramaticais em PB: (10) *Se [você]i quiser, eu encontro øi na padaria. (11) *[Eu]i telefonei para a Maria e ela encontrou øi no cinema. 3 De acordo com Duarte (2000), o crescente preenchimento da posição de sujeito no PB é conseqüência da perda do princípio "Evite Pronome" explicitado em Chomsky (1981:65), de acordo com o qual, no caso do sujeito, o pronome pode ser "evitado" porque há, nas línguas pro-drop, outro meio de recuperar a sua referência, ou seja, através da "morfologia verbal rica". 4 No caso do objeto, os clíticos de 3ªpessoa podem ser "evitados" no PB por ocupar uma posição baixa na hierarquia de referencialidade (cf. Cyrino, 2003). 14 O princípio "Evite Pronome" seria aplicado a elementos mais baixos na hierarquia de referencialidade. No caso da posição de objeto, isto aconteceria, especificamente, com antecedentes [-animado]. De acordo com Cyrino, Duarte e Kato (2000), ocupam a posição mais alta na hierarquia os argumentos [+N,+humano], ficando na posição mais baixa os não-argumentos e as proposições. Quantos aos pronomes, o falante (=eu) e o ouvinte (=você), sendo inerentemente humanos estão na posição mais alta da hierarquia e o pronome de 3ª pessoa que se refere a uma proposição (o clítico “neutro”) ocuparia a posição mais baixa, estando a entidade [-humano] no meio. Os traços [+/- específico] interagem com todos esses traços. Desse modo, o estatuto referencial do antecedente configura um dos fatores relevantes para uma língua que tem uma opção interna para categorias vazias ou preenchidas. Veja o esquema abaixo que representa a escala de referencialidade: HIERARQUIA REFERENCIAL Não-argumentos proposições [-humano] 3ªp. [+humano] 3ª p. 2ªp. 1ªp. [-específico] [+específico] [-referencial+ ← --------------------------------------------------------------- → *+referencial+ Nota-se pelo esquema que os não argumentos e as proposições, seguidos do pronome de terceira pessoa, se encontram em lado oposto ao traço [+humano], sendo estes os [+específicos], logo, mais resistentes à categoria vazia. De acordo com essa hierarquia, em um processo de apagamento de pronome, quando o antecedente é [animado] e [-específico], ocupando uma posição muito baixa na hierarquia da referencialidade, temos uma tendência ao objeto nulo, o que está plenamente de acordo com os resultados de Omena (1978) e Duarte (1986) entre outros. Ainda no âmbito da escrita e considerando a aplicabilidade da hierarquia de referencialidade, Freire (2005) faz um estudo comparativo dos clíticos acusativo e dativo na escrita brasileira e lusitana analisando um corpus composto por duas amostras, uma para o português brasileiro e outra para o português europeu, com textos de jornais e de revistas brasileiros e portugueses segundo um continuum de maior ou menor 15 formalidade. O autor pretende investigar a realização do acusativo e do dativo anafóricos de terceira pessoa na escrita a partir de um contínuo oralidade-letramento, a fim de capturar a tendência de uso dessas formas dentro da modalidade escrita do PB e do PE e observar até que ponto as mudanças apontadas sobre os clíticos de terceira pessoa na modalidade oral se encontram implementadas na escrita, além de relacionar as estratégias de substituição do clítico ao modo de aquisição da escrita do letrado brasileiro. A tabela abaixo ilustra os resultados encontrados para as duas variedades: Tabela 1.5: Realização do objeto direto anafórico na escrita do PE e do PB (Freire, 2005) Variedades Clítico Pron. lexical SN anafórico Objeto nulo PB 189/406 47% 32/406 8,00% 58/406 14% 127/406 31% PE 282/366 77% - - 40/366 11% 44/366 12,00% A distribuição dos dados representada pelos números acima não deixa dúvidas quanto à influência da escrita representada pelo elevado percentual de clíticos, inclusive no PB (47%). No PE, como era de se esperar devido à já conhecida preferência pelo clítico, foi registrado percentual de (77%) de clíticos. Portanto, na modalidade escrita das duas gramáticas, o clítico é a estratégia mais usada. O pronome lexical não apareceu no PE, o que também era esperado e computou apenas 8% dos dados do PB; o SN anafórico, também não muito expressivo, foi a terceira opção com percentuais de 15% para o português brasileiro e 11% para o português europeu. O objeto nulo seguiu o clítico com percentual de 31% na amostra do PB e 12% na amostra do PE. Note-se que a influência da escrita fez decrescer o percentual de objetos nulos que, nas pesquisas realizadas a partir de dados de fala, era sempre superior a 50%. O interessante de se observar nas pesquisas de Freire (2000) e Freire (2005) é o fato de o percentual de 47% de clíticos na escrita do PB estar relativamente próximo ao encontrado para a fala lusitana em Freire (2000), que foi de 44%. O índice de 47% de clíticos, ainda que alto, pode nos causar uma falsa impressão escondendo a emergência das outras variantes. No entanto, se somarmos os percentuais de SNs (14%), pronome lexical (8%) e de objeto nulo (31%), a diferença com relação ao clítico cai para apenas 6% indicando as variantes citadas como estratégias alternativas ao objeto nulo. Com relação às condições de oralidade e letramento, um dos focos da pesquisa de 16 Freire, no português europeu, o clítico apareceu robusto em todos os pontos do continuum oralidade-letramento e em qualquer contexto. Em contrapartida, para o português brasileiro o traço de [+ letramento] foi o que se mostrou mais favorável ao clítico, e preferencialmente em contexto de ênclise ao infinitivo. Este foi o único contexto no qual Freire (2000) encontrou o pronome acusativo na fala, o que, segundo o autor, indica ser essa a estrutura que mais favorece a recuperação do clítico acusativo através do processo de letramento. Conforme demonstra a tabela 5, confirmou-se, no PB, a implementação das variantes alternativas ao uso do pronome acusativo na escrita, visto que, somadas, representam mais da metade do total de dados, sendo o objeto nulo a variante mais expressiva. Quanto ao traço semântico do antecedente do acusativo anafórico constatou-se o previsto pela hierarquia referencial proposta por Cyrino, Duarte e Kato (2000). Os percentuais retrataram maior incidência de objeto nulo com antecedentes menos referenciais e o contrário, ou seja, menor incidência com os mais referenciais, sobretudo com aqueles com traço [+ animado], revelando-os como um dos contextos que mais favorecem a manutenção do clítico na escrita. De um modo geral, a pesquisa de Freire (2005) contribui para os estudos acerca do clítico e do objeto nulo ao colocar em foco, analisando a diferença de freqüência e de comportamento dos clíticos acusativo e dativo na escrita do PB e do PE, a natureza da escrita do adulto letrado brasileiro e a maneira como esse conhecimento é obtido. Voltando à discussão sobre o estatuto do objeto nulo, o autor conclui que há indícios de que os clíticos acusativo e dativo não possuem o mesmo estatuto nas duas variedades, visto que no PB fica explícita a influência da ação escolar na escolha da variedade considerada padrão. São fornecidos argumentos em favor da hipótese de Galves (1993, 2001, apud Freire, 2005) sobre o enfraquecimento da concordância no PB. Nessa perspectiva, os clíticos de terceira pessoa, tão ausentes na fala são recuperados na escrita, porém, com muitas restrições estruturais. O contrário observa-se no PE, onde esses clíticos são amplamente empregados nas duas modalidades, escrita e oral, o que, de acordo com a hipótese da autora, comprova o sistema de concordância rica do PE. Cabe também citar a análise da escrita escolar feita por Averburg (2000). A autora analisa textos produzidos por estudantes do ensino fundamental e médio e observa que conforme aumenta o nível de escolaridade, cresce o uso do clítico acusativo e diminui o 17 emprego do pronome pessoal do caso reto em função acusativa. Este resultado leva a entender que o processo de escolarização leva o aluno a utilizar o clítico e rejeitar o pronome nominativo em função acusativa. Quanto ao objeto nulo, aparece como a variante mais utilizada até o ensino médio, cedendo espaço ao clítico ao SN anafórico quando o estudante alcança o nível universitário. A relevância desta pesquisa está na confirmação do papel da escola no resgate do pronome clítico acusativo de terceira pessoa. 1.2 O fenômeno do ponto de vista diacrônico Buscando uma visão mais abrangente sobre o objeto nulo, Cyrino (1997) inicia uma longa empreitada que vai do século XVI, da chegada da língua portuguesa no Brasil, até o século XX, quando, segundo os estudiosos da norma como Pagotto (1998) já se encontra fixada uma norma brasileira. A autora, calcada em diversas pesquisas como a de Duarte (1986), que atenta para a substituição do clítico acusativo de terceira pessoa pelo objeto nulo, investiga a mudança pela qual passa a marcação do Parâmetro do Objeto Nulo a partir de dados encontrados em corpus composto por duas amostras: uma composta por peças teatrais populares (escritas entre os séculos XVIII e XX) e outro composto por poesias satíricas, modinhas e comédias escritas por autores populares entre os séculos XVI e XVII. A não homogeneidade no gênero dos textos deveu-se à dificuldade de se encontrar peças teatrais escritas nos primeiros séculos analisados. Esta pesquisa traz à tona os diversos processos que estão envolvidos na questão do objeto nulo, a saber: a diminuição da frequência do clítico acusativo de terceira pessoa paralela ao aumento de ocorrências de objeto nulo; o surgimento, no século XIX, do pronome lexical; uma mudança no paradigma pronominal do PB e a elipse de VP, um processo que pode ser confundido com o objeto nulo (cf. Raposo, 1986; Kato, 1991; Huang, 1991). O resultado da análise diacrônica dos dados aponta que o português que chegou ao Brasil já apresentava a elipse sentencial, analisada na proposta da autora como estrutura de reconstrução de DP/NP em FL. Segundo Cyrino (1997: 199): 18 “a emergência do objeto nulo no PB, isto é, a mudança diacrônica, ocorreu quando a possibilidade da ocorrência do processo de 'reconstrução' em FL e 'inaudibilia' em FF, isto é, elipse, se estendeu para objetos cujo antecedente era [-animado].” Esta pesquisa elucida a relação entre o clítico acusativo de terceira pessoa e o objeto nulo: no século XVI, já ocorria variação entre o clítico neutro “o” e a elipse de objetos sentenciais; porém, diante dessas duas estratégias o falante preferia o clítico neutro. Uma mudança fonológica na direção da cliticização teria ocorrido no PB, no século XVII, que teria impossibilitado a ocorrência de objetos nulos em certos contextos. Vale ressaltar que esta mesma mudança não teria ocorrido no PE. Em decorrência dessa mudança, diminui o número de clíticos neutros, já que o falante tem à sua disposição a elipse sentencial. A autora entende que o falante, a fim de evitar os contextos em que o clítico não era permitido, prefere a opção não realizada, já que estaria dizendo a mesma coisa com ou sem o clítico. No século seguinte, a autora constata um aumento nas ocorrências de elipse sentencial configurando uma mudança na evidência positiva, que passa a tender para a elipse do objeto. No século XIX, a partir de mais um aumento da opção não realizada em comparação ao clítico, conclui-se que, como resultado de "reconstrução em FL", a criança produz objetos nulos específicos com antecedente [animado] da mesma forma que produz elipses sentenciais (que seriam também, como já aludido acima, um caso de reconstrução em FL). Como mais uma opção de realização, surge na amostra de Cyrino (1997), neste mesmo século, o pronome tônico (ou pronome lexical). Segundo Cyrino (1997), o percurso de implementação do objeto nulo foi licenciado, inicialmente, pelos contextos predicativos/oracionais, desde o século XVI, sendo posteriormente atingido o antecedente [-animado]. O antecedente [+animado]/[+humano] ofereceu resistência ao objeto nulo. Ainda que a hierarquia de referencialidade proposta por Cyrino, Duarte e Kato (2000) não tenha sido considerada na pesquisa de Cyrino (1997), os contextos de implementação se encaixam perfeitamente no padrão da hierarquia: os primeiros aceitarem o objeto nulo são os menos referenciais e os últimos os correspondentes ao mais referenciais. Kato, Duarte, Cyrino e Berlinck (2006), retomando Cyrino (1997) e Duarte (1993), 19 que analisaram corpus composto por peças, além de confirmarem em suas análises a aplicabilidade da hierarquia de referencialidade na implementação da mudança em relação a categoria vazia, corroboram os resultados dos trabalhos supracitados. Segundo as autoras, a mudança atinge primeiramente a posição nula cujo antecedente é proposicional, seguindo-se ao antecedente predicativo, como no exemplo e, finalmente, o objeto nulo com um SN [-específico] como antecedente. O mais interessante desse trabalho reside no fato de terem sido encontrados, no século XIX, número elevado de objetos nulos com antecedente [+específico, -humano], reproduzido em (12) um tipo característico do século XIX segundo os dados de Cyrino (1997). (12) Uma agência me indicou um [sobrado]i na Praia Fermosa, por cima de um açougue, mas o dono não quis alugá øi. (1891) No século XX, o maior número de objetos nulos recai sobre o antecedente [-humano]. Quando o antecedente é [+humano], o pronome tônico é o mais cotado para substituir o clítico. Kato, Duarte, Cyrino e Berlinck (2006), além de relacionar, com base em Tarallo (1993), as mudanças ocorridas na virada do século, trazem, mais especificamente sobre o objeto nulo e o sujeito preenchido um exemplo empírico de aplicação da escala de referencialidade em um contexto de mudança. Para dar continuidade às investigações acerca do fenômeno do objeto nulo, Cyrino e Reich (2002) observam o fenômeno em anúncios de jornais do século XIX. Neste artigo, os autores procuram elucidar, a partir da integração de perspectivas sintáticas, fonológicas e variacionistas, um fenômeno que carateriza o Português Brasileiro dentro das línguas românicas: a ausência de pronomes clíticos acusativos de terceira pessoa. Mais especificamente, buscam explicar a mudança no PB em relação à queda dos clíticos, que é atribuída a uma mudança fonológica ocasionada pelo contato plurilíngue, tendo este ocasionado uma mudança no ritmo do PB, e ao surgimento do objeto nulo. Numa perspectiva gerativa, para qual a mudança linguística ocorre na aquisição da linguagem, o objeto nulo é fruto de uma reanálise diacrônica que possibilita à criança a aquisição de um ritmo específico para o PB que permite a queda, ou a não expressão, do clítico de 3ª pessoa. Cabe lembrar que Cyrino (2003) salienta o fato de o objeto nulo estar ligado especificamente à queda dos clíticos de terceira pessoa, visto serem estes os que estão 20 desaparecendo no PB. Os autores também apontam como consequência desta mudança rítmica o aumento na ocorrência do pronome lexical de 3a. pessoa (ele/ela) na posição de objeto. Cyrino (2007) analisa cartas de leitores publicadas na imprensa de vários estados brasileiros (Bahia, Minas Gerais, Rio de janeiro, São Paulo e Paraná) no século XIX. A autora dividiu os dados em três fases: 1ª fase - 1808 a 1840; 2ª fase - 1841 a 1870 e 3ª fase - 1871 a 1900. Em todos os estados foram encontrados objetos nulos, sendo esta variante mais expressiva no estado de São Paulo, e menos na Bahia. Observando os dados de todos os estados na linha do tempo, não houve aumento nas ocorrências de objeto nulo, sendo os percentuais de 13%, 14% e 16% respectivamente para a 1ª, 2ª e 3ª fase. A distribuição dos objetos de Cyrino (2007) se assemelha à de Duarte (1986), é claro que este com maior incidência de objetos nulos, por tratar-se de fatos de língua oral do século XX. O traço de animacidade seguiu a tendência das outras pesquisas e o objeto nulo é predominantemente de traço [-animado] (em um total de 67 objetos nulos, 60 são inanimados). Observando o tipo de objeto nulo, a autora comprovou o que propusera em Cyrino (1997). O contexto proposicional foi um dos primeiros a licenciar o objeto nulo no PB. A tabela 6 reproduzida abaixo descreve a ocorrência ou a ausência de clíticos e proforma. Tabela 1.6: Realização do objeto direto anafórico nos dados diacrônicos de Cyrino (2007) Tipo de ocorrência Ausência Presença Total N % N % N % Clítico “o” neutro 24 41 35 59 59 100 Outro clítico acusativo 38 10 331 90 369 100 Pro-forma “fazer+o” 3 10 28 90 31 100 A partir desses dados nota-se que os percentuais de presença (59%) e ausência (41%) do clítico neutro são bastante próximos, corroborando o encontrado em Cyrino (1997) que aponta ser o antecedente proposicional, juntamente com o predicativo, os que, desde o século XVI, apresentam variação entre o uso do clítico e do objeto nulo, passando este último a generalizar-se na variedade brasileira a partir do século XIX, e 21 aquele já pouco ocorrendo neste mesmo século. De acordo com a mesma pesquisa, este tipo de objeto já não faz mais parte da intuição do falante, e por essa razão, raramente ocorre na língua escrita. Os números acima mostram que, no século XIX, o objeto nulo já estava disponível na língua, dada a variação demonstrada na Tabela 1.6. Este fato se encaixa na hierarquia de referencialidade mencionada acima, visto que os antecedentes proposicionais ocupariam a posição mais baixa na escala de referencialidade, logo, seriam os mais suscetíveis à mudança em direção a uma categoria vazia, neste caso, o objeto direto. A autora apresenta evidências de que devam ser aprofundados os estudos da ocorrência de objetos nulos como sendo uma consequência da queda do clítico neutro “o”. Fica claro que ainda faltam respostas para a elucidação do fenômeno do objeto nulo, principalmente devido aos recorrentes casos de antecedente [+animado], que não raro aparecem nas pesquisas5, apesar da aparente restrição que este contexto apresenta para o objeto nulo. Um olhar mais atento para este ponto, nos leva a observar que os antecedentes com traço [+animado] exercem a função de sujeito, também um contexto de aparente restrição ao objeto nulo. Por fim, é destacada a necessidade de investigação acerca dos requisitos que licenciam o objeto nulo, além de mais dados diacrônicos para que as pesquisas avancem no entendimento desta característica do português brasileiro: a ausência de clíticos acusativos de terceira pessoa e a ocorrência aparentemente livre de objetos nulos. Seguindo com a apresentação de análises do fenômeno em cartas, temos agora os resultados de Soledade (2010) acerca da variação nas realizações do objeto direto em representação anafórica. Foi analisado um corpus composto por cartas escritas por personalidades consideradas ilustres e enviadas a Rui Barbosa durante a segunda metade do século XIX. A Tabela 1.7 abaixo ilustra a distribuição das variantes. Tabela 1.7: Realização do objeto direto anafórico em cartas de ilustres a Rui Barbosa (Soledade, 2010) Estratégias Clítico SN Pronome demonstrativo Objeto Nulo Oco. Total (%) 40/84 (48%) 5/84 (6%) 7/85 (8%) 32/84 (38%) 5 Cyrino (2002) encontra um alto percentual de objetos nulos neste contexto, mas justifica com o fato de os anúncios de jornais que foram analisados serem, em grande parte, referentes a escravos fugidos, portanto, com antecedente [+animado/+específico]. 22 Como se pode observar, de modo geral, o clítico ainda é a opção preferida como retomada do objeto direto na escrita de ilustres tendo sido computadas 40 ocorrências registrando 48% dos dados. No entanto, o objeto nulo não aparece tímido, registrando 32 ocorrências de um total de 84 dados (38%), ao contrário do que demonstram os números correspondentes às outras variantes. A respeito da restrição apontada por Raposo (1986) sobre as ilhas, de fato não foram registradas ocorrências da variante em orações completivas de nome e relativas; todavia, a variante objeto nulo está presente em 35% das orações adjuntas conforme demonstra o exemplo (13) que representa uma elipse do clítico neutro (a que Cyrino, 1997 já classificou como objeto nulo) em uma oração adjunta. Estes resultados nos levam a inferir que os contextos de ilhas sintáticas não oferecem resistência ao ON no PB. (13) Não vão [os regulamentos]i pois ainda não existem impressos aqui e porque não fazes grande empenho em tel-os, mas logo que aparecer encomendarei øi a meu mano Pedro para te enviar øi. (carta 13, Salvador Antonio Moniz) Ainda no âmbito da sintaxe, um outro fator que se faz relevante e licencia o objeto nulo é a função sintática do antecedente retomado. Os primeiros trabalhos que observaram a substituição do clítico acusativo pelo objeto nulo (Duarte, 1986; Cyrino, 1997, entre outros) apontaram o antecedente com a mesma função como um contexto favorecedor da categoria vazia. Marafoni (2004) observou que essa estratégia ganha espaço no PB oral mesmo quando seu antecedente exerce função sintática diferente da de objeto direto. No entanto, segundo Kato e Raposo (2001) o objeto nulo no português sofre restrições quando o antecedente se encontra em uma posição argumental com função de sujeito. Soledade (2010), constatou que, de fato, a função do antecedente igual, ou seja, de objeto direto, é favorecedora da categoria vazia, conforme o exemplo (14), correspondendo a 55% das ocorrências. A função de predicativo demonstrada em (15), apresentou alto índice de ocorrência desta variante (67%), mais uma vez, corroborando Cyrino (1997). Quanto à função de sujeito, a porcentagem de clíticos é bastante superior à de objeto nulo (73% e 20%), mas os casos registrados nos apontam que a função de sujeito não oferece resistência ao objeto nulo, contrariando Kato e Raposo (2001). O exemplo (16) traz os dois casos: o antecedente os regulamentos é 23 retomado primeiro pelo clítico os, e, em seguida, duas vezes por objeto nulo. (14) Se Você tem [a relação dos titulos]i sera muito bom que me mandes øi já ou ao Carlito… (Carta 9, Carlos) (15) A escala móvel ficou sendo [uma burla]i, como ficou sendo øi até agora a construcção das fabricas do 1° e 2° distrícos,... (Carta 1, Antonio Limpo de Abreu) (16) Não vão [os regulamentos]i pois ainda não existem impressos aqui e porque não fazes grande empenho em tel-osi, mas logo que aparecer encomendarei øi a meu mano Pedro para te enviar øi. (Carta 13, Salvador Antonio Moniz) Quanto à animacidade, o traço [-animado] foi o favorecedor da variante nula, computando 81% das ocorrências. Ainda assim, superando as expectativas, são registradas 6 (19%) ocorrências de ON retomando antecedente [+animado] conforme (17). (17) “sobre o tal credito que desejavas do M. mandei dias depois que recebi tua única carta [uma pessoa] i a elle lhe fallar nisso, promptamente disse que sim e que me mandaria resposta, tendo-se demorado, mandei øi novamente lá, isto tantas veses sem obter resposta e até hoje nada...” (Carta 5, Carlos) Por fim, sobre o traço de referencialidade do antecedente levando em consideração a escala de referencialidade proposta por Cyrino, Duarte e Kato (2000), Soledade (2010) encontrou os seguintes percentuais: Tabela 1.8: Realização do objeto direto anafórico segundo a referencialidade do antecedente nas cartas a Rui Barbosa (Soledade, 2010) Clítico SN Pron. dem. Objeto nulo Total [+específico/+ referencial] 23 (64%) 4 (11%) 0 (0%) 9 (25%) 36 [-específico/+ referencial] 7 (41%) 0 (0%) 0 (0%) 10 (59%) 17 [+genérico] 6 (69%) 1 (8%) 0 (0%) 6 (23%) 13 [Proposição] 1 (6%) 0 (0%) 7 (39%) 10 (56%) 18 40 (48%) 5 (6%) 7 (8%) 32 (38%) 84 Total Já na primeira linha da tabela verifica-se a validade da aplicação da escala de referencialidade na medida em que os antecedentes mais específicos são preferencialmente retomados por clíticos (23 - 64%) com apenas a quarta parte das ocorrências correspondendo ao objeto nulo (9 - 25%). Na última linha, representando o 24 extremo oposto da escala, observamos que a categoria vazia (10 - 56%) concorre com o uso do pronome demonstrativo neutro isso (7 - 39%), o que pode indicar ainda a preferência à realização fonológica da variável em questão. Mais uma vez, observa-se que estamos diante de um fenômeno que ainda desperta interesse nos pesquisadores por estar sempre trazendo novas evidências, à luz das quais vão sendo delineados os processos linguísticos que definem o estatuto do objeto nulo no português brasileiro. Em seguida, no próximo capítulo serão abordados os pressupostos teóricos e metodológicos que nortearam o presente trabalho. 25 CAPÍTULO 2: PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS Introdução O presente trabalho tem como objetivo apresentar em um corpus diacrônico o quadro de variação e posterior mudança nas realizações do objeto direto anafórico. Para o preenchimento desta categoria, a gramática tradicional recomenda o clítico acusativo; no entanto, como vimos no capítulo anterior, já se observa no português brasileiro o objeto nulo como estratégia preferencial para o preenchimento do objeto direto anafórico. Pretendo demonstrar, empiricamente, a queda de uso do clítico acusativo observada inicialmente por Omena (1978) na fala dos mobralenses e por Duarte (1986) na fala culta ocorrendo concomitante ao aumento de objetos nulos, com fins a uma visualização de mudança linguística nos termos de Weinreich, Labov e Herzog (1968). Para tal, faz-se necessário explicitar os fundamentos teóricos que nortearam esta pesquisa juntamente com a metodologia de análise adotada e as hipóteses levantadas. Na seção 2.1, apresento os fundamentos teóricos e em seguida, na seção 2.2, apresento a metodologia e as hipóteses de trabalho. Os resultados obtidos aqui serão comparados com os de Cyrino (1997), já que a autora traça a diacronia do objeto nulo em peças teatrais e é a emergência desta mesma categoria que eu pretendo demonstrar aqui. 2.1 Fundamentos Teóricos Os pontos de partida deste trabalho, citados no capítulo anterior, seguiram o modelo de análise da Teoria da Variação e Mudança associados a alguns pressupostos teóricos da Gramática Gerativa, mais especificamente, da Teoria de Princípios e Parâmetros. Neste mesmo quadro teórico, conhecido como Sociolinguística Paramétrica, ou variação paramétrica, está inserida esta pesquisa. A seguir, discorro sobre os pressupostos da Teoria da Variação e Mudança e do modelo de princípios de Parâmetros para em seguida explicitar as relações entre esses modelos, que no passado, eram tidos como incompatíveis. 26 2.1.1 A Teoria da Variação e Mudança Um dos postulados da Sociolinguística variacionista (ou Sociolinguística laboviana), reside no fato de um indivíduo poder optar entre formas diferentes para dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, o que significa que um fenômeno pode apresentar variação nas suas formas de realização. Essa variação não é aleatória, ou livre, ao contrário, postula-se que ela está condicionada à influência de fatores de ordem estrutural e social (ou linguísticos e extralinguísticos) envolvidos diretamente no contexto situacional do ato comunicativo. Desse modo, postula-se a coexistência de variantes mais ou menos prováveis que outras influenciadas por fatores internos e externos ao sistema linguístico. A análise quantitativa destes fatores condicionantes possibilita ao linguista buscar o modo como se organiza esta variação, conferindo-lhe estrutura e ordenação. A importância dos fatores sociais está no fato de serem eles os avaliadores do status de uma determinada variante dentro da comunidade lingüística: se é padrão ou não-padrão, estigmatizada ou de prestígio, conservadora ou inovadora. O modelo sociolinguístico de análise proposto por William Labov, também rotulado de sociolinguística quantitativa, opera com tratamento estatístico de dados e preocupa-se com a sistematização de uma situação de variação, ou de heterogeneidade, o aparente caos linguístico conforme diz Tarallo (1985), que na verdade, nada mais é do que uma situação de variação onde observamos a competição de duas ou mais formas variantes para a realização de uma variável. Neste trabalho, a variável é a forma de realização do objeto direto anafórico e as variantes concorrentes para a sua realização são: o clítico acusativo, o SN anafórico, o pronome lexical, o pronome demonstrativo neutro e o objeto nulo, entendido como a não realização fonética do objeto direto anafórico. Neste contexto, qualquer fenômeno em variação na língua pode ser sistematizado, e a estruturação da variação deve ser apreendida. Note-se que não estamos mais diante da concepção estruturalista de língua como sistema homogêneo; inicia-se agora o interesse científico sobre o que é variável, antes, na Lingüística Estrutural, considerado assistemático e individual. Para proceder à sistematização de um fenômeno em variação, Tarallo (1985: 10-11) estabelece cinco passos a serem seguidos pelo pesquisador, cujos 27 resultados propiciarão a formulação de regras gramaticais que estabeleçam o padrão da variável analisada. Seguem os passos prescritos pelo autor: 1. “levantamento exaustivo” de dados de língua falada que reflitam mais fielmente o vernáculo da comunidade; 2. “descrição detalhada” da variável acompanhada de um perfil completo das variantes que a acompanham; 3. “análise dos possíveis fatores, linguísticos e sociais, condicionadores” que favorecem uma ou outra variante; 4. “encaixamento da variável no sistema linguístico e social da comunidade”; 5. “projeção histórica da variável no sistema sociolinguístico da comunidade”. Este último passo envolve a relação entre variação e mudança linguística, primordial para este trabalho, que, segundo o autor dando sequência ao item 5, fica estabelecida da seguinte maneira: “a variação não implica necessariamente mudança linguística (ou seja, a relação de contemporização entre as variantes). A mudança, ao contrário, pressupõe a evidência de estado de variação anterior, com resolução de morte para uma das variantes.” (Tarallo, 1985:11) De acordo com Labov (1982) uma teoria que investigue a mudança deve ser capaz de determinar o início, a velocidade, a direção e o término de cada mudança. Na mesma direção, Tarallo (1985: 64) ressalta que “a estrutura de uma língua somente será totalmente entendida à medida que se compreendam efetivamente os processos históricos de sua configuração”. O autor também chama a atenção para o princípio da uniformidade, segundo o qual “as forças que atuam no momento sincrônico presente são (ou deveriam ser) as mesmas que atuaram no passado, e vice-versa. Portanto uma teoria da mudança linguística deve guiar-se por uma articulação teórica e metodológica entre presente-passado e presente.” Logo, como os estudos referidos no capítulo 1 indicam que já foi constatada a substituição do clítico acusativo pelo objeto nulo na realização do objeto direto anafórico 28 em diferentes partes do Brasil e em diferentes níveis sociais, e entendendo que toda mudança pressupõe um estado de variação anterior, encontra-se aí a motivação para este trabalho: demonstrar, em caráter diacrônico e a partir de um quadro de variação nas realizações do objeto direto anafórico, a mudança já atestada em direção à categoria vazia. Para capturar a mudança no instante em que ela ocorre, ou seja, não somente comparando as diferenças entre duas sincronias, em 1968 Weinreich, Labov e Herzog publicam Empirical Foudations for a Theory of Language Change (WH&L, 1968), texto que traz as bases empíricas para uma teorização orientada para a mudança. São delineados cinco problemas que envolvem a instalação de uma nova variante: o problema das restrições (constraints problem), o problema da transição (transition problem), o problema do encaixamento (embedding problem), o problema da avaliação (evaluation problem) e o problema da implementação (actuation problem). Resumidamente, com o auxílio de Lucchesi (2004), o primeiro refere-se ao estabelecimento das condições que favorecem ou restringem as mudanças, e, por conseguinte, qual o conjunto de mudanças possíveis. O segundo, o problema da transição, investiga o percurso histórico através do qual cada mudança se realiza, questionando se ela é gradual, ou seja, se é estabelecida através de um continuum variação-mudança ou através da sucessão de estágios discretos de língua de um modo mais abrupto. Os estudos de caráter variacionista nos direcionam para uma interpretação da mudança como um continuum no qual uma mudança é inevitavelmente resultado de um momento variação entre formas, tendo uma se sobreposto à outra no tocante ao uso. O problema do encaixamento considera o fato de que uma mudança só ocorre se possibilitada, ou melhor, se encaixada no sistema lingüístico como um todo. Segundo WLH (1968), é “natural que uma mudança linguística deixe certos vestígios ou “efeitos colaterais” – a que eles se referem como “encaixamento de mudança” – que atestem um novo traço de fato se instalando no sistema”. O problema da avaliação se opõe à idéia de que o indivíduo aceita de modo passivo qualquer tentativa de reestruturação da língua e alude à avaliação consciente do falante acerca do valor de determinada variante inovadora ou conservadora de uma variável lingüística. Esta avaliação interfere diretamente no percurso histórico de estruturação da mudança. Por fim, o problema da implementação questiona 29 por que uma mudança ocorreu em determinado momento do sistema e não em outro, ou seja, busca-se desvendar por que, quando e onde determinada mudança ocorreu. A Sociolinguística variacionista coloca em foco, principalmente, além da questão da propagação da mudança, o encaixamento desta no contexto social de uma comunidade. Neste trabalho, serão focalizados o problema das restrições, a partir do qual pretendemos observar os fatores linguísticos que possibilitaram a mudança; o problema da transição através da observação dos estágios de mudança no decorrer dos períodos analisados. O problema do encaixamento será vislumbrado através da relação entre o aumento na frequência do objeto nulo e a queda de frequência de uso do clítico; e quanto ao problema da implementação, serão destacados os contextos que vão cedendo mais prontamente à nova variante; também é nosso objetivo traçar o percurso de transição da mudança no decorrer do tempo na amostra analisada. 2.1.2 A Teoria de Princípios e Parâmetros A teoria gerativa considera a linguagem como uma capacidade inata do ser humano, ou seja, algo relacionado à herança genética de todo indivíduo, portanto, uma faculdade. Postula-se a existência de uma Gramática Universal (GU), um estágio inicial da gramática comum à mente de todo indivíduo recém-nascido que lhe possibilita construir sua gramática fixando os valores dos parâmetros de acordo com os dados (input) a que será exposto. A depender desses dados, cada indivíduo adquire sua gramática. O desenvolvimento da GU em interação com o meio social de aquisição da linguagem vai determinar a existência de uma gramática particular a cada indivíduo. Neste quadro, é proposta uma distinção entre Língua-I e Língua-E, sendo esta o conjunto de todos os enunciados possíveis de serem produzidos por uma comunidade de fala e aquela entendida como o saber individual, inerente a cada indivíduo. Neste contexto, Noam Chomsky (1981) propõe a Teoria de Princípios e Parâmetros. De acordo com esta proposta, a GU é constituída por dois princípios básicos: primeiramente, todas as línguas apresentam certas características que são rígidas, universais e invariáveis, os chamados “princípios”. Também apresentam “parâmetros”, responsáveis pelas diferenças (variações) entre as línguas, que são mais abertos, podendo 30 ser a eles atribuídos valores [+] ou [-] a depender do sistema linguístico. Por exemplo, é um princípio que todas as línguas tem um sujeito nas orações, no entanto, sua forma de realização é uma questão de valor do parâmetro: algumas línguas, como o espanhol e o italiano, admitem o sujeito referencial nulo, ou seja, marcam positivamente o parâmetro do sujeito nulo, enquanto outras, como o inglês e o francês, não admitem o sujeito nulo, logo, apresentam marcação negativa para o parâmetro do sujeito nulo. O mesmo ocorre com o objeto direto; se é um princípio que o verbo transitivo direto sempre projeta um objeto direto, a forma de realização dessa categoria, se nula ou fonologicamente expressa, configura um caso de parâmetro. Estes são os responsáveis pelas diferentes línguas humanas6. Deste modo, se uma comunidade fixa pelo menos um parâmetro de maneira distinta de outra, tem-se gramáticas distintas que poderão conforme Galves (1998) produzir enunciados diferentes (ou impossíveis com a mesma interpretação em uma língua e outra), enunciados possíveis nas duas línguas porém com frequências diferentes, ou ainda enunciados também possíveis nas duas línguas mas com extensões diferentes nas restrições que agem sobre eles. A partir dessa concepção, quando ocorre mudança, pressupõe-se que ocorreu alteração no valor de algum parâmetro, ainda que somente na extensão de uso do fenômeno, com é o caso do parâmetro do sujeito nulo e do objeto nulo, que são apontamentos fortes favoráveis à distinção entre o português brasileiro (PB) e o português europeu (PE) enquanto gramáticas de uso principalmente porque caminham na direção contrária aqui e lá. Enquanto o PB representa plenamente o sujeito referencial, o PE é favorável ao apagamento; enquanto o PB aceita livremente o objeto nulo, o PE opta preferencialmente pelo preenchimento desta posição com clítico acusativo (cf. Freire, 2000). Para comprovar a hipótese de que PE e PB configuram duas gramáticas distintas, ou duas Línguas-I distintas, Galves (1998) lança mão de estruturas que caracterizam a 6 Não se pode afirmar que cada língua histórica corresponda a um parâmetro, pois o próprio PB apresenta parâmetros iguais ao do PE, no entanto, com extensões de uso distintas. Por exemplo, línguas com marcação positiva para o parâmetro do sujeito nulo (ou seja, que apresentam resistência ao preenchimento da posição do sujeito anafórico) são chamadas línguas pro-drop, como é o caso do PE. Em contrapartida, por apresentar registros de ocorrência de sujeito preenchido em diversos casos em que não ocorre em outras línguas com avaliação [+] para o parâmetro pro-drop (ou parâmetro do sujeito nulo) o PB já é classificado como uma língua parcialmente pro-drop. 31 gramática do PB. Entre elas, interessam-nos aqui as que se referem ao parâmetro do objeto nulo, que como dito acima, é um fator importante na distinção entre as duas gramáticas do português. A autora aponta a três aspectos que são relevantes para a caracterização do PB no tocante à realização do objeto direto. Destaco aqui (a) sintaxe pronominal, (b) a frequência de determinadas propriedades gramaticais. (a) Acerca da sintaxe pronominal, interessa-nos ressaltar o uso dos pronomes tônicos você/ele na posição de objeto sem duplicação do clítico ou preposição, ao contrário do PE. Vejamos os exemplos de Galves (op.cit) em (1), (2) e (3): (1) Vi ele ontem na rua. (PB) (2) Vi-o a ele ontem na rua. (PE) O pronome do exemplo (1) é interpretado como tópico discursivo, ou seja, faz referência à pessoa ou coisa de que se fala e em (2) o pronome preposicionado comportase como foco contrastivo conforme demonstra (3). (3) Vi-o a ele na rua ontem, mas não a ela. Em outras palavras, isto quer dizer que no PB o pronome tônico objeto apresenta um comportamento análogo ao clítico no PE podendo retomar referentes animados e inanimados, diferentemente do que se observa no PE e em outras línguas românicas como o francês, o espanhol e o italiano, nas quais o pronome tônico pode ter apenas uma pessoa como referente. (b) Com relação à frequência de algumas propriedades, a autora alude ao fato de ambas aceitarem o objeto nulo, no entanto, a frequência com que esta estrutura aparece nas duas variedades é sensivelmente diferente. O objeto nulo retratado em (4) é mais frequente no PB, onde a categoria vazia tem o mesmo comportamento de um pronome, não sofrendo, pois, restrição a certos contextos sintáticos. (4) Joana viu [ø] na televisão ontem. O estudo de Freire (2000), ao analisar a fala culta do PB e do PE, mostra a 32 possibilidade de o objeto nulo aparecer nas duas variedades, ainda que com frequências distintas (59% e 31% respectivamente). Raposo (1986) aponta os contextos de ilha sintática7 como restrições ao objeto nulo no PE. Observemos os exemplos do autor em (5) e (6): (5) (falando de pastéis) O rapaz que trouxe [ø] da pastelaria era o teu afilhado. (PB) (6) (falando de pastéis) *O rapaz que trouxe [ø] da pastelaria era o teu afilhado. (PE) A frase (5) é completamente aceita no PB, ao passo que em PE, conforme (6) é considerada agramatical. De acordo com Galves, isso se deve ao fato de as duas categorias vazias terem naturezas distintas nas gramáticas em questão, apresentando no PB, como citado acima, características de um pronome, podendo parecer inclusive em ilhas sintáticas sem sofrer restrições, enquanto no PE, a categoria vazia recebe, devo às restrições apontadas por Raposo (1986), o estatuto de variável. 2.1.3 A Variação Paramétrica Conforme mencionado anteriormente, a variação paramétrica alia pressupostos da Teoria da Variação e Mudança e da Teoria de princípios e Parâmetros. A união destes pressupostos têm sido bastante enriquecedora nos estudos de variação linguística e reforça a importância da inter-relação entre uma teoria da mudança e uma teoria da linguagem. Fernando Tarallo, em 1987, propõe a sociolingüística paramétrica destacando a compatibilidade entre o modelo laboviano e a teoria de Princípios e Parâmetros de Chomsky (1981) através da noção de complementaridade, a partir da qual uma teoria supriria as lacunas da outra. No caso em questão, busca-se na Sociolingüística a importância dos contextos sociais na variação lingüística e, complementarmente, se busca na teoria gerativa a descrição de fatos estruturais/gramaticais. Os resultados de análises variacionistas serviriam à observação de valores paramétricos já fixados ou contribuiriam para descobrir a marcação de novos valores. Isso não significa que uma teoria esteja a “tapar os buracos da outra”; antes, as duas teorias apresentam lacunas que os pressupostos da outra podem auxiliar a completar sem que nenhuma perca sua 7 São consideradas ilhas sintáticas as orações relativas, adverbiais e completivas nominais por não ser possível extrair dela um constituinte. 33 identidade e sua proposta, permanecendo ilesa como antes da compatibilização. Borges (2004) aponta a incomensurabilidade referindo-se a “propriedades estruturais que impedem a coexistência da gramática gerativa e da Sociolingüística” como, por exemplo, os dados utilizados, o conceito de vernáculo, o conceito de língua, etc. A Sociolinguística quantitativa atribui a implementação e a propagação da mudança a fatores sociais, enquanto o modelo paramétrico preocupa-se com a origem da mudança e a influência de fatores estritamente gramaticais. Ainda assim, em razão da teoria de Princípios e Parâmetros de Chomsky (1981) aliada às decorrentes preocupações com a aquisição e a mudança lingüística, bem como do interesse pela análise diacrônica, que exige o trabalho quantitativo com dados reais, outra corrente de estudiosos entende ser bastante profícua a associação entre os modelos considerados conflitantes, principalmente no tocante a alguns dos princípios estabelecidos pela Teoria da Variação e Mudança: princípio das restrições; do encaixamento e da implementação. Neste trabalho, a associação destes pressupostos se faz importante porque nos permite verificar o encaixamento de uma mudança a partir das propriedades do Parâmetro do Objeto Nulo. Nesses termos, esta pesquisa centra-se na variação das formas de realização do objeto direto e sua possível relação com outros fenômenos de mudança no nosso quadro pronominal que afetam a representação do sujeito e objeto pronominais, além da ordem dos constituintes (Cf. Tarallo, 1983; Duarte, 1989; Cyrino, 1994). A partir desta perspectiva, pretende-se observar a variação e a mudança na realização do objeto levando em consideração o problema dos condicionamentos (constraints), do encaixamento (embedding) e o da implementação (actuation problem) em uma amostra constituída de peças teatrais escritas entre 1845 e 1992 e representadas no Rio de Janeiro buscando um tratamento empírico para a descrição de uma mudança linguística já atestada em outras pesquisas. Isto posto, esta pesquisa foi desenvolvida obedecendo ao quadro teórico-metodológico da sociolinguística paramétrica tanto no levantamento e na codificação de dados quanto na formulação de hipóteses de trabalho. 34 2.2 Metodologia e Hipóteses de trabalho A análise de materiais históricos em um recorte temporal específico. Neste caso cito como exemplo textos literários do gênero dramático, que podem evidenciar a tensão entre uma gramática inovadora e outra conservadora. A mudança é concebida como um conjunto de processos lentos e graduais, cujo completamento se dá após um período, por vezes bastante longo, de variação entre formas linguísticas alternantes. Em outros termos, pode ser observada a diminuição da frequência de uma estrutura gramatical e aumento da frequência de outra. Considerando que a mudança nasce na e da variação, e que esta é característica da língua falada, cabe ao historiador da língua selecionar entre os documentos históricos disponíveis aqueles que mais refletem a linguagem distensa, livre das pressões normativas – o vernáculo (tal como definido por Labov, 1972) – da época ou do recorte temporal escolhido para análise a fim de garantir a representatividade da amostra. A metodologia de análise dos dados aqui empreendida está calcada na linha variacionista, conforme o modelo de Teoria de Variação e Mudança (WLH, 1968). Resumidamente, escolhe-se uma variável dependente (sobre a qual se deseja depreender a mudança, aqui a realização do objeto direto anafórico) e em seguida são determinadas as variáveis independentes linguísticas e extralinguísticas, se for o caso (aquelas que possivelmente exercem influência sobre a varável dependente). Os dados coletados das peças foram organizados/classificados de acordo com variáveis independentes que contemplem os contextos de variação e os contextos de não-variação já apontados pelos trabalhos citados. Em seguida, foram submetidos à análise estatística do Programa GoldVarb para que fossem obtidos os percentuais de frequência das variantes. No âmbito da mudança diacrônica, segundo Tarallo (1985), assume extrema importância o tratamento quantitativo, já que através da variação de frequência das variantes no tempo é observada a dinâmica da mudança. As hipóteses que orientam esta pesquisa, baseadas na mudança do paradigma pronominal sofrida pelo português brasileiro, são (a) depreender estatisticamente o decréscimo e o acréscimo das frequências de clítico acusativo e objeto nulo, respectivamente, concluindo assim que aquele já não mais faz parte da gramática do PB 35 no século XX, (b) o aparecimento do SN anafórico como mais uma variante possível para a realização do fenômeno, (c) confirmar que o pronome lexical não configura uma variante de frequência robusta, aparecendo em poucos casos e somente a partir de um determinado período e (d) confirmar a passagem do século XIX para o XX como um recorte temporal valioso aos que buscam descrever os caminhos percorridos pelo português a partir do momento em que se discute a constituição de uma norma culta no Brasil e o estabelecimento paralelo do português brasileiro (cf. Pagotto, 1998). Neste trabalho, pretendo demonstrar que a gramática do português brasileiro segue um caminho contrário ao da matriz européia no tocante à expressão do objeto direto anafórico. Enquanto lá o clítico é a estratégia preferencial, aqui, ele desaparece gradativamente da gramática dos falantes. Nas subseções que seguem, apresento e justifico o corpus escolhido para, a partir da variação entre as formas, comprovar empiricamente a ascensão do objeto nulo e a consequente queda do clítico. 2.2.1 A delimitação da amostra Para a análise de variação e mudança diacrônica, foram selecionados os seguintes textos: (à esquerda do nome da peça, o ano de sua publicação, e à direita, o nome do autor). · 1845 - O Noviço, Martins Pena · 1860 - Luxo e vaidade, Joaquim Manuel de Macedo · 1883 - Caiu o ministério!, França Junior · 1918 - O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro · 1937 - O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga · 1955 - Um elefante no caos, Millôr Fernandes · 1975 - A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes · 1992 - No coração do Brasil, Miguel Falabella Como se pode observar, a amostra é composta por oito peças, cada uma escrita 36 por um autor. Este corpus foi escolhido também por já ter sido utilizado por Duarte (1993) para a observação da trajetória da mudança linguística na representação do sujeito pronominal e da fixação da ordem sujeito verbo (SV) na sintaxe da gramática brasileira. Para a observação do padrão de realização do objeto direto anafórico, substituí a peça “Como se fazia um deputado” pela peça “Caiu o ministério!” ambas escritas por França Junior. Como o trabalho a que este corpus se serve tem o objetivo de demonstrar com dados empíricos um fenômeno que já foi atestado e demonstrado no capítulo 1, em cada período foi considerado apenas um autor que tenha desenvolvido suas atividades literárias no Rio de janeiro. Assim, os resultados servirão para “indicar uma tendência de uso de cada época, dada a popularidade dos textos analisados” (cf. Duarte, 1993: 108). Ainda que se trate de um corpus aparentemente pequeno, o fenômeno que será observado apresenta bastante recorrência nos textos, somando um total de 809 dados (809 ocorrências de objeto direto anafórico) mostrando-se adequado ao fenômeno que se pretende estudar. O primeiro passo, que deve custar ao pesquisador o estabelecimento de critérios bastante acurados sob pena de invalidar os resultados da pesquisa, é a escolha dos textos a compor o corpus, já que esta é sua base de dados. Considerando o gênero dramático, foram priorizadas peças de caráter popular que retratassem a atualidade em que foram escritos, ignorando aqueles ambientados em ouras épocas históricas. Importou também a escolha da ambientação, que deve possibilitar a convivência de tipos populares, e de faixas etárias variadas, como estabelecimentos comerciais, pensões, cinemas, etc. Quanto à temática, foram selecionados textos que não tratam de questões polêmicas e específicas tais como política e religião. A opção pelas comédias de costumes, introduzida no teatro brasileiro por Martins Pena, se deve à diversidade de temas/assuntos abordados pelos personagens visando ao retrato dos costumes e das instituições da sociedade brasileira, neste caso, especificamente a comunidade carioca. Com relação à variedade de registros, a comédia possibilita com mais liberdade a inserção das variedades não-padrão da língua, ou seja, faz um relato linguístico considerável do conjunto da fala comum da época. 37 A extensão do texto ou a quantidade de textos representativos de determinada sincronia vai depender da frequência de ocorrência das variantes, bem como da disponibilidade de dados necessários ao pesquisador. A quantidade de textos por período deve ser responsável pela simetria quantitativa dos dados (ou seja, para que se disponha de aproximadamente a mesma quantidade de dados para cada sincronia), sempre buscando garantir a representabilidade8 e a produtividade da amostra. Tarallo (1993) aponta a virada do século XIX para o XX como o período em que emerge uma gramática brasileira com traços sintáticos que possibilitam a descrição de um sistema distinto do registrado no português europeu. A partir da análise de quatro mudanças sintáticas já atestadas no PB, a saber: a reorganização do sistema pronominal (que teve como principais consequências implementação de objetos nulos e o aumento na frequência de sujeitos lexicais); a mudança nas estratégias de relativização; a reorganização dos padrões sentenciais básicos, a partir do qual a gramática do PB se caracteriza por uma ordem SVO rígida; e, por fim, os padrões sentenciais em perguntas e respostas, Tarallo (1993) propõe-se a delinear as bases linguísticas em torno das quais estaria centrada a discussão acerca de uma possível gramática brasileira que, a partir do século XIX, já apresentava expressivas diferenças estruturais com relação à gramática do PE. De acordo com Pagotto (1998), sobre a periodização da língua portuguesa no Brasil, a norma culta se fixou aqui na primeira metade do século XX espelhando-se na norma culta vigente em Portugal já bastante distanciada dos padrões brasileiros. Ainda neste período, ao observamos o padrão de colocação pronominal em corpora também escritos (Pagotto e Duarte, 2005), notamos uma variação entre próclise e ênclise, que não é natural da gramática do PB, mas pode ser reflexo da busca de um padrão normativo, fruto de um intenso trabalho discursivo que ocorre no Brasil ao longo do século XIX (Pagotto, 1998). Desse modo, a análise das realizações do objeto direto anafórico em peças escritas entre os séculos XIX e XX nos permite observar a emergência da gramática 8 Um corpus representativo deve, em primeira ordem, possibilitar uma coleta de dados de acordo com as condições estabelecidas pelo aporte teórico-metodológico escolhido (o conceito de língua, o tipo de registro – falado ou escrito –, o número de falantes/autores necessários, etc.), além de ser relevante para os objetivos da pesquisa. No caso das peças, devem apresentar ou representar as tendências de usos linguísticos da época que se quer caracterizar. Mais sobre critérios de montagem e representatividade de corpus, ver Sardinha (2000). 38 brasileira, nos contextos onde em PE não se admite o objeto nulo, e também a influência do laborioso discurso de formação da norma culta no Brasil. A busca por fontes para o estudo da variação e da mudança em diferentes épocas ainda é um desafio com o qual o historiador da língua se depara por trabalhar, inevitavelmente, com registros escritos de épocas passadas. E levando em conta essas dificuldades torna-se, então, preocupação primeira do pesquisador, avaliar cuidadosamente os dados que a história nos legou. Essa avaliação dependerá, assim como a metodologia de análise, da perspectiva teórica adotada. Para um estudo sincrônico, dispomos, além das gravações de fala espontânea, de alguns testes empíricos, tais como os testes de aceitabilidade e gramaticalidade com informantes, sobre os critérios de boa formação de uma determinada construção na gramática de uma língua, ou de testes experimentais que permitem o controle direto das variáveis envolvidas no desempenho linguístico. No entanto, no estudo de épocas pretéritas não está mais ao alcance do pesquisador a realização destes tipos de testes. Uma questão que se deve considerar é a impossibilidade de captarmos, em materiais históricos, a evidência negativa em relação aos critérios de boa formação de formas lingüísticas geradas pela gramática de uma língua. O acesso a somente evidências positivas registradas em materiais históricos nos leva a um impasse que pode ser solucionado se assumirmos que se uma dada construção não for encontrada é porque, muito provavelmente, essa não pertence àquele estado de gramática refletido nos textos. Seguindo o panorama de pesquisa proposto por WLH (1968) para o estudo da mudança linguística, a observação e análise de dados extraídos de textos históricos viabiliza o estudo dos problemas de transição e de implementação, ou, de como e em que contextos as línguas particulares mudam no tempo. Os padrões atestados nos textos históricos são evidências empíricas que devem ser interpretadas, com o respaldo de alguma ciência da linguagem, visando captar e explicar um determinado processo de mudança gramatical. Em favor do texto dramático, Berlinck, Barbosa e Marine (2009) atestam que, ainda que sendo um texto produzido, o texto dramático mantém uma relação indireta com o uso da linguagem em situações concretas de enunciação; logo, há que se 39 considerar que, a depender da escolha da peça, que por sua vez vai depender dos objetivos da pesquisa, temos em mãos um texto que pretende e busca a “representação” do diálogo, ou seja, de manifestações da fala “não-monitoradas” em situações de interação comunicativa. Mais do que uma linguagem oral, coloquial, distensa, o que licencia a linguagem teatral para a depreensão de estágios anteriores da língua é o seu caráter verossímil, semelhante à verdade da língua em uso, semelhante à verdade do valor social a ela atribuído em determinada época. Estamos diante de um gênero textual que licencia e promove o aparecimento da língua vernacular. É claro que esse gênero de discurso, ou melhor, o texto da peça teatral torna-se objeto de estudo diacrônico primeiramente pela falta de registro na fala, com a expectativa de que o registro linguístico na escrita reflita o que seria a língua falada, à época da produção das peças. O linguista deve ter em mente que se trata de um texto que, embora representativo da língua oral, quando transposto para a escrita sofre adaptações e ajustes que a língua em sua modalidade escrita. Duarte (1993: 122), também acerca da utilização da língua escrita representando a língua oral, faz a seguinte ressalva: A comparação entre língua escrita e língua oral apresentada (…) serve para mostrar que, num estudo diacrônico que busque investigar a língua coloquial, é preciso ter em mente a relativa distância entre ambas. Por mais que, em certos gêneros literários o autor procure reproduzir a linguagem do seu tempo – como deve ocorrer em peças de teatro popular – a escrita é mais conservadora. Inseridos na mesma perspectiva teórica e de análise apresentada no decorrer deste capítulo, muitas pesquisas de caráter histórico têm dado destaque a este gênero nos estudos que se ocupam da depreensão dos processos de mudança em padrões gramaticais que caracterizam a distinção entre o PB e o PE (sobre o sujeito, Duarte, 1993, 1995; sobre o objeto direto Cyrino, 1997; também sobre a posição do sujeito Berlinck, 1999; Kato, Duarte e Cyrino e Berlinck, 2006, entre outros). Ainda com relação às possibilidades de análises viabilizadas pelo estudo das peças de teatro, Berlinck, Barbosa e Marine (2009) demonstram que podem ser feitas não somente análises intralinguísticas como também inseri-las em um contexto social. As autoras exemplificam em uma breve discussão acerca dos resultados de realização do 40 objeto direto anafórico em comédias brasileiras do século XIX obtidos por Cyrino (1993) e da análise da ordem sujeito-verbo em três comédias de José de Alencar (Berlinck, 1999) como o gênero dramático pode fornecer subsídios para o estabelecimento de papéis sociais relacionados ao uso linguístico. De fato, por ser um gênero plurilíngue construído para representar várias vozes, a linguagem pode ser um fator definidor dos personagens possibilitando uma relação entre características não-linguísticas de cada personagem (faixa etária, sexo, escolaridade, etc.) e a expressão variável de aspectos gramaticais. O controle do ano de nascimento dos autores, quando pode ser recuperado, associada à observação da produção/publicação da peça pode fornecer ao linguista valiosas informações acerca das propriedades gramaticais refletidas nos materiais históricos, já que a teoria gerativa advoga que a mudança se realiza na aquisição da linguagem. Mais especificamente, o autor deste ou de séculos passados, pertence a uma comunidade linguística heterogênea e tem em sua gramática (ou em suas gramáticas) traços linguísticos em comum com essa comunidade. Deste modo, quando observado o período de nascimento do autor, possibilita-se a identificação de uma geração de “falantes” que “compartilham” propriedades de uma determinada gramática. Para concluir esta questão, reproduzo as palavras de Galves (2007: 514) “...os textos que compõem a matéria prima da lingüística histórica são amostras da LínguaExterna da sua época.” 2.3 O envelope da variação Nesta seção, apresentamos as variantes e os grupos de fatores analisados seguindo a metodologia empregada nos estudos variacionistas. Os dados foram codificados e submetidos ao Programa GoldVarb de análises estatísticas. Como variável dependente temos as variantes do objeto direto anafórico: clítico, pronome lexical, SN anafórico, pronome demonstrativo e objeto nulo. 2.3.1 A variável dependente Estamos considerando para análise cinco variantes do objeto direto anafórico: (A) 41 clítico (7) e (8); (B) pronome lexical (9); (C) SN anafórico: foram considerados como SN anafóricos: (i) lexemas com núcleo idêntico ao do SN antecedente, com ou sem mudança de determinante (10); (ii) expressões sinônimas ou quase sinônimas (11)-(13); (iii) nomes genéricos (coisa, trambolho, fato...) (14); (D) demonstrativo isso (15); e, por fim, (E) objeto nulo (16) e (17): (7) No fundo [a fortuna]i é para quem sabe adquiri-lai. (O Noviço, 1845 - Martins Pena) (8) Já se vê que [esse homem] i é grosseiro. Certamente, que não tenho a fortuna de oi conhecer. (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (9) Neiva: E o pai, te dá alguma coisa? Dolores: Só desgosto! Eu bem que fui no quartel, pra ver se o comandante enquadrava [ele], mas não deu em nada. (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (10) Jeremias: Só lhe suplico deixar-me usar [este monóculo]i,...Jamais me separarei deste cristalino disco de penetrante visualidade na alma humana. Madalena: Está bem. Consentirei que use o monóculoi. (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (11) A filha, antes de sair para a igreja, teve a idéia de ir procurar [a mãe] i. Correu até o muro, o véu de renda batido pelo vento, tentando encontrar a mãe adoradai. E pra seu horror, viu a pobre mulheri do outro lado do arame farpado. (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (12) Ela sim! Por causa dela já não durmo, já não como, já não bebo. Vi-a pela primeira vez, há uma semana, no Castelões. Comia [uma empada]i! Com que graça ela segurava a apetitosa iguariai entre o fura-bolo e o mata-piolho, assim, olhe. Vê-la e perder a cabeça foi obra de um momento. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (13) Elisa: É…é…é para matar pulgas e percevejos nas camas dos hóspedes. Cristóvão: Ora essa! Também serve para matar [esses inocentes animaizinhos]. (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (14) Mas não vale a pena mandar vir vestidos da Europa. Chegam por um dinheirão, e aqui não apreciam [essas coisas]. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (15) As grandes vitórias humanas são simples produtos do acaso. Os triunfadores que não são totalmente imbecis, no íntimo, reconhecem issoi... (O Hóspede do Quarto n˚ 2, 1937 – Armando Gonzaga) (16) …vá, vá seu crápula, e não me apareça mais aqui, vá logo, aproveite e lhe entregue [esses livros]i e diga a ela que é para enfiar øi...ela sabe onde. (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (17) Eu vou botar outro anúncio no jornal. Papel, lápis, mesa. Escrevo [o anúncio] i. 42 Como escrevo øi (Um Elefante no Caos, 1955 – Millôr Fernandes) 2.3.2 As variáveis independentes Estabelecidas as forma de representação do objeto direto anafórico como variável dependente, serão apresentados agora os fatores de natureza morfológica, sintática e semântica que foram selecionados, a partir de resultados dos trabalhos citados no Capítulo 1, para o controle das variáveis dependentes e testes das hipóteses levantadas. O controle dessas variáveis nos possibilita um olhar qualitativo, além de quantitativo, pela possibilidade de observarmos os fatores que propiciaram a implementação de uma mudança já atestada no português brasileiro falado desde Duarte (1986): a substituição do clítico em função acusativa pelo objeto direto nulo. (1) Forma (tempo/modo) do verbo que seleciona o objeto direto anafórico A pesquisa de Duarte (1986) já aponta a preferência pelo objeto nulo como forma de representação do objeto direto anafórico em todas as formas verbais sendo as formas simples do presente e do passado, e principalmente as formas verbais compostas com infinitivo as que ainda abrigam o clítico acusativo. Indo mais além, os resultados de Freire (2000) apontam na fala culta do PB a ênclise ao infinitivo como o único contexto de ocorrência desta variante considerada a padrão. Espera-se encontrar, nos últimos períodos analisados, poucas ocorrências de clíticos e confirmar estes contextos de resistência da variante. Estamos controlando as seguintes variáveis: a) Indicativo (exe. 18); b) Subjuntivo/Imperativo (19-20); c) Infinitivo simples (21); d) complexo verbal com infinitivo (22); e) complexo verbal com gerúndio (23); f) complexo verbal com particípio (24). (18) O Sr. Ambrósio tomou conta dos [nossos bens]i, vendeu-osi e partiu para Montevidéu. (O Noviço, 1845 - Martins Pena) (19) Já reparou que [a D.Irene]i não elogia mais os militares? Também, coitada. Se a gente não ajudasse øi, tinha dia que ela nem comia. (No Coração do Brasil,1992 Miguel Falabella) (20) Eis aí [a sua letra]i. Está me queimando o dedos: hei-la. E pois que não a vem receber, apanha-ai no chão. (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) 43 (21) Podias ter decidido [o negócio]i perfeitamente sem levá-loi às Câmaras. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (22) É sobre [o melão]i?...está aqui, seu bobo, inteirinho, você acha que eu iria comêloi? (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (23) [O curso]i repetiu o sucesso dos livros, atravessou as fronteiras e agora estamos lançando-oi aqui no Brasil. (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (24) [Rosa]i me falou muito bem do senhor, embora dissesse que o senhor ai tinha expulso de casa. É natural, o senhor a criou tão bem, tão burguesmente, tão...ricamente... (Um Elefante no Caos, 1955 – Millôr Fernandes) (2) Transitividade Verbal e Estrutura Projetada pelo Verbo A análise da regência verbal e da estrutura projetada pelo verbo nos mostra as estruturas sintáticas que favorecem a ocorrência de cada variante. Nas estruturas simples SVO, tanto Duarte (1989) quanto Freire (2000) e Marafoni (2004) demonstram a preferência pela categoria vazia quando o antecedente é um SN e o uso do demonstrativo anafórico isso concorrendo com o objeto nulo nos casos de antecedente sentencial. O que também se pretende verificar com a análise desta variável independente são os contextos em que o objeto direto anafórico é preferencialmente realizado pelo pronome lexical (o pronome sujeito). De acordo com Duarte (1986) seria o caso das construções sintáticas mais complexas com predicativo e objeto constituindo uma mini-oração (small-clause) e das construções complexas com reduzidas de infinitivo e de gerúndio. Esse grupo controla as seguintes construções: a) Verbo + Objeto Direto (SN) (25); b) Verbo + Objeto Direto (SN) + Oblíquo/Complemento Circunstancial (Verbos transitivos de três lugares) (26); c) Verbo + Objeto Direto + Objeto Indireto (Verbos ditransitivos) (27); d) Verbo + Objeto Direto (SN) + Predicativo do objeto (Verbos transitivos predicativos) (28); e) Verbo + Objeto Direto [SU acc + Vinf.] (29); f) V(cópula) + Predicativo do Sujeito (Verbos copulativos) (30); g) Verbo + Objeto Direto (Sentença) (31); h) Verbo + Objeto Direto + Oblíquo (Sentença) (32) e (33). (25) A desgraça feriu [meus pais]i, um crime vergonhoso está a ponto de de desonralosi...oh! não há que hesitar...é preciso que eu me sacrifique para salvá-los. (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (26) Armando: Cristina, vc viu [minha carteira]i? Cristina: Não. Você não deixou øi lá dentro? (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (27) Sendo eu conhecedor [dos sítios mais belos e pitorescos da cidade] i, não podia deixar de mostrar-lhosi... (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) 44 (28) Menina, muito cuidado com [o senhor seu primo]i. Não se fie nele; julgo øi capaz de tudo. (O Noviço, 1845 - Martins Pena) (29) Paulo, Paulo, estão atirando n[o homem que saiu daqui]i. Ele vem correndo pela escada. É melhor fechar a porta! Não deixa elei entrar! Vão matá-lo aqui dentro. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millôr Fernandes) (30) Frederico: E nós faremos tudo por tornarmos [dignos dela] i. Maurício: Desde muito que oi são, eu respondo pelo reconhecimento de Anastácio. (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (31) Se você preferir amaremos de pé, de bruços, de joelhos, como você quiser ø i. (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (32) Isso não sei. [O Candinho]i estará no Rio apenas de passagem. Amanhã, de madrugada, seguirá de avião para o Rio Grande do Sul. Em todo o caso, vou ver se oi convenço de ficar no Rio alguns dias. (O Hóspede do Quarto n˚ 2, 1937 – Armando Gonzaga) (33) [As pessoas]i nascem só e morrem só. O casamento, pelo menos esse casamento pequeno burguês obriga as pessoasi a violentarem permanentemente suas individualidades. (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (3) Tipo Sintático da Oração em que ocorre o objeto direto anafórico Esta variável se ocupa do tipo de oração que possibilita a ocorrência do objeto nulo no português brasileiro. Raposo (1986) inicialmente constatou que o objeto nulo, no PE, obedeceria às restrições de “ilhas sintáticas”, contextos dos quais não se pode extrair um constituinte e movê-lo para uma posição periférica da sentença. Os trabalhos de Cyrino (1993, 1997) e Galves (1998) corroborados pelos de Freire (2005) e Marafoni (2004), centrados no português falado, apontam que o objeto nulo não sofre a mesma restrição no PB, visto que pode ocorrer livremente em qualquer contexto sintático. Para testar a aplicabilidade dessas descrições e confirmar a livre ocorrência do objeto nulo no PB observei a interferência do contexto sintático na representação do acusativo anafórico de terceira pessoa no decorrer dos períodos. Os tipos considerados foram: a) Raiz (matriz/simples/primeira, em coordenação) (34); b) Coordenada (segunda coordenada) (35); c) Completiva de verbo com função de sujeito (36); d) Completiva de verbo com função de objeto (37); e) Completiva de nome (38); f) Relativa (39); g) Adjunta (40): (34) Se é [o Major Tiburcio Mimoso]i, conheço-oi muito. (O Hóspede do Quarto n˚ 2, 1937 – Armando Gonzaga) 45 (35) Eu, que quisera viver com uma espada à cinta e à frente do [meu batalhão]i, conduzi-loi ao inimigo através da metralha, bradando... (O Noviço, 1845 - Martins Pena) (36) O senhor gosta da [filha do americano]i e ela se mostra esquiva? É fácil dominálai... (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (37) O senhor tem toda razão. Olha - ainda noutro dia [um conhecido meu]i descobriu que a mulher oi traía. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millôr Fernandes) (38) Dorotéa: O Candinho é também muito simpático. Leocádio: Terei muito prazer em conhecê-[lo]. (O Hóspede do Quarto n˚ 2, 1937 – Armando Gonzaga) (39) Aquilo não é [uma jazida]i, é um tesouro. Não há dinheiro que ai pague. (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (40) Eu não pinto [o cabelo]i. Eu uso um pouco de camomila para clarear øi. (4) Função do Antecedente Os resultados dos trabalhos já citados apontam a função sintática do antecedente como condicionamento forte para a realização do objeto nulo no PB, sendo o objeto direto nulo favorecido quando seu referente é oracional, predicativo ou exerce a mesma função de objeto direto. Marafoni (2004) observou que essa estratégia ganha espaço no PB oral mesmo quando seu antecedente exerce função sintática diferente da de objeto direto. Em estudo posterior, Marafoni (2010) observou que somente um antecedente com função diferente da de objeto direto inibe consideravelmente a ocorência do objeto nulo no PE oral. No entanto, segundo Kato e Raposo (2001) o objeto nulo no português sofre restrições quando o antecedente se encontra em uma posição argumental com função de sujeito. A hipótese a ser testada por este grupo de fator é a de que, corroborando Freire (2005), o PB não sofreria essa restrição. As funções consideradas foram: a) Função de objeto (41); b) Função de sujeito (42); c) Função de adjunto (43); d) Função de Complemento nominal (44); e) Função de Predicativo (45); f) Tópico estrutural/discursivo (46) e (47): (41) A sua primeira experiência, Cristina é despertar [o seu corpo]i para levá-loi a um grande desempenho. (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (42) Não me foi possível vir mais cedo. Estive à espera que [o homem] i se levantasse para eu levá-loi ao tabelião. (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (43) Não é precisamente isso, mas eu fui tão bem recebido n[esta casa]i que me 46 sentiria acanhado em deixá-lai, assim sem mais nem menos. (O Hóspede do Quarto n˚ 2, 1937 – Armando Gonzaga) (44) Eu senti imensamente a morte [do pobre rapaz], porque oi achava muito simpático. (O Hóspede do Quarto n˚ 2, 1937 – Armando Gonzaga) (45) Félix: Ela é [amante desse bestalhão]i do secretário americano? Jeremias: Não afirmo que øi seja ;mas eu não afirmando que é øi , não quer dizer que não øi seja. (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (46) [Essa foto]i, nunca hei de esquecer øi: a moça muito jovem,... (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (47) (falando sobre aborto...) Margareth: Eu acho tão perigoso fazer essas coisasi em casa. Você devia ir ao médico. Dolores: Me disseram que tem um, em Botafogo, que faz øi, mas custa uma nota preta. E esse chá, se você toma bem quente, e depois anda de montanha russa, É batata! Pior, minha filha, é fazer com talo de mamona! E tem muitas que fazem! (5) Posição do Antecedente Raposo (1986) já havia chamado atenção para a possibilidade de ocorrência do objeto nulo com antecedente em função de tópico no PE. Além da observar a possibilidade de ocorrência de pronomes resumptivos em contextos de topicalização, a hipótese que pretendo confirmar com a análise deste fator é o favorecimento ao objeto nulo por um antecedente em função de tópico (estrutural ou discursivo). Assim, com esse grupo estão sendo controladas duas possibilidades: a) posição argumental (na mesma sentença ou em estruturas paralelas) (48) e b) posição não-argumental (tópico estrutural ou tópico discursivo) (49). Foram consideradas como não argumentais as estruturas de topicalização e como tópicos discursivos os antecedentes distantes, estando já fora do discurso (termos das orações adjacentes foram considerados como dentro da mesma sequência). (48) Quanto aos seus antecedentes, precisamos saber se a senhora nunca tentou esfaquear [seu marido]i, queimá-loi com ferro elétrico, jogá-lo pela janela... (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (49) (falando sobre aborto...) Me disseram que tem um, em Botafogo, que faz øi, mas custa uma nota preta. E esse chá, se você toma bem quente, e depois anda de montanha russa, é batata! Pior, minha filha, é fazer øi com talo de mamona! E tem muitas que fazem øi! (No 47 Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (6) Posição da ocorrência em relação ao antecedente Com este fator, pretendo observar a relação entre as estruturas sintáticas que contêm a retomada do objeto e o seu antecedente. Assim como Figueiredo Silva (2004), a hipótese é que quanto maior for a distância com relação ao antecedente, maior a possibilidade de estratégias lexicalizadas. São essas as possibilidades: a) Antecedente na oração imediatamente anterior (coordenada sindética) (50); b) Antecedente na oração imediatamente anterior (coordenada assindética) (51); c) Antecedente na oração imediatamente anterior (subordinada) (52); d) Antecedente no período imediatamente anterior (53); e) Antecedente no turno anterior (54); f) Antecedente na subordinada anteposta (55); (50) E depois, como come, santo Deus! Segura n[a faca]i assim, olhe, e mete-ai na boca até o cabo, toda atulhada de comida. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (51) Eu vou aproveitar o dia de folga, vou dar uma massagem n[o cabelo] i, enrolar øi, passar uns cremes no corpo, fazer a unha. Vou me tratar! (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (52) Vimos [a rosa]i apenas alguns momentos, e quando votamos a contemplá-lai, tinha já desaparecido! (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (53) …Devolvo *teus brincos+i como prova da sinceridade de meu amor. Você esqueceu elesi comigo e nem sequer pensei em me desfazer deles pra melhorar minha lamentável situação econômica. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millôr Fernandes) (54) Florência: Não, não quero [demandas]i. Ambrósio: É o que eu também digo, mas como preveni-lasi? (O Noviço, 1845 Martins Pena) (55) E assim passaram-me os dias, os meses, os anos, até que meu excelso mestre, não podendo entregar [a alma]i aos credores, entregou-ai ao criador. (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (7) Distância em relação a primeira menção Com a análise deste grupo de fator pretendo observar a distância entre a primeira menção do referente e o seu objeto direto anafórico. A hipótese a ser confirmada é de que o maior afastamento licencia ou favorece a uma estratégia lexicalizada. Exemplifico 48 em (56) a primeira referência, em (57) a segunda referência após a primeira menção, e assim por diante até a quinta referência. (56) Sim senhor. Diga ao [Senhor Senador]i que hei de fazer todo o possível por serviloi. Vá descansado. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (primeira menção: Senhor Senador; primeira referência: lo) (57) Mas não vale a pena mandar vir [vestidos]i da Europa. Chegam por um dinheirão, e aqui não apreciam essas coisasi. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (1ª menção: vestidos; 1ªreferência: (Eles) Chegam por um dinheirão; 2ª referência: essas coisas). (58) Florência: Então, que te parece [teu primo Carlos]i? É a terceira fugida que faz. Isto assim não é bonito. Emília: E para que oi prendem? Florência: Prendem-noi porque ele foge. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) (1ª menção: teu primo Carlos; 1ª referência: É a terceira fugida que (ele) faz.; 2ª referência: para que o prendem?; 3ª referência: Prendem-no porque ele foge) (59) Preciso, e quanto antes, que eu fale com [esta mulher]i. … ela, não há dúvida... Mas como soube que eu estava aqui? Quem lhe disse? Quem ai trouxe? (O Noviço, 1845 – Martins pena) (1ª menção: esta mulher; 1ª referência: ela, não há dúvida...; 2ª referência: Mas como (ela) soube...; 3ª referência: Quem lhe disse?; 4ª referência: Quem a trouxe?) (60) Florência: Então, que te parece [teu primo Carlos]i? É a terceira fugida que faz. Isto assim não é bonito. Emília: E para que oi prendem? Florência: Prendem-noi porque ele foge. Emília: E ele foge porque oi prendem. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) (1ª menção: teu primo Carlos; 1ª referência: É a terceira fugida que (ele) faz.; 2ª referência: para que o prendem?; 3ª referência: Prendem-no; 4ª referência: porque ele foge; 5ª referência: E ele foge; 6ª referência: porque o prendem.) (8) Realização do Sujeito na Oração que contém o objeto direto anafórico Tarallo (1993), também analisando um corpus diacrônico, aponta a preferência por sujeitos plenos e objetos nulos como característica da gramática do PB em oposição à gramática do PE, que demonstra preferência pelos sujeitos nulos e objetos diretos lexicalizados. Segundo Galves (1998), as duas gramáticas aceitam tanto o sujeito nulo 49 quanto o objeto nulo, entretanto, a freqüência com que ambos ocorrem nas duas variedades difere consideravelmente. Deste modo, a análise deste fator pode revelar uma relação entre esses dois fatos linguísticos pertencentes a parâmetros diferentes da língua. Foram observados os sujeitos dos tipos: a) Preenchido (com SN ou pronome pleno) (61) e (62) e b) Não preenchido (sujeito nulo) (63): (61) Mas como lhe dizia, [o meu sobrinho]i cá não apareceu, desde o dia que o padremestre oi levou preso eu ainda não oi vi. (O Noviço, 1845 - Martins Pena) (62) Ele pede [um bombom]i. No que você entrega o bombomi, o amor brota entre vocês. (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (63) É um rapaz muito hábil. O senhor não imagina que [discurso]i tinha ele preparado. Ontem recitou-mo todo. Ø Sabia-oi na ponta da língua. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (9) Traço Semântico do Antecedente Duarte (1986) confirma os resultados de Omena (1978) e aponta o estatuto proposicional ou oracional do antecedente como sendo favorecedor da variante objeto nulo na fala paulistana na década de 80, seguido pelo traço [- animado] do antecedente; o traço [+ animado] do antecedente corresponde a um fator de resistência à categoria vazia na retomada do objeto direto. Cyrino (1993, 1997), em seus estudos diacrônicos, destaca que os contextos oracionais e predicativos, desde o século XVI apresentam variação entre o uso do clítico e do objeto nulo, passando este último a generalizar-se na variedade brasileira, a partir do século XIX. Marafoni (2004) observa entre a década de 80 e o ano 2000, em um estudo de painel9, que a restrição ao uso de objeto nulo com antecedente [+ animado] vai aos poucos enfraquecendo. O que se pretende com este grupo é observar, no decorrer dos períodos aqui analisados, a implementação do objeto nulo e o possível enfraquecimento da restrição ao objeto nulo em contextos de antecedente [+ animado] a partir de uma diferenciação entre os traços [+ animado] e [+ humano] do antecedente. Por extensão, investigar o grau de interferência do tipo de antecedente do acusativo 9 Nos termos de Labov (1994), um estudo de painel corresponde a um estudo em tempo real de curta duração. Uma comunidade de fala é observada em dois momentos distintos da linha do tempo. Para um estudo de painel, neste segundo momento de observação devem ser controlados os mesmos falantes; para um estudo de tendências, tem-se duas amostras da mesma comunidade de fala colhidas em momentos diferentes e com falantes diferentes. 50 anafórico de terceira pessoa na escolha das variantes candidatas à sua realização. Seguem exemplos para os contextos: a) Traço [+animado] do Antecedente (64); b) Traço [-animado] do Antecedente (65); c) Traço [+humano] do Antecedente (66); d) Antecedente "sentencial", demonstrativo neutro ou predicativo (67) e (68): (64) [Uma aranha enorme]i me atacou. Quebrei a vassoura esmagando elai. (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (65) Daí em diante, todos os dias, depois de fazer limpeza na sórdida baiuca que habitávamos, punha-me a ouvir [suas lições]i, só asi interrompendo para despachar os credores do excelso mestre,... (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (66) Se é [o Major Tiburcio Mimoso]i, conheço-oi muito. (O Hóspede do Quarto n˚ 2, 1937 – Armando Gonzaga) (67) Tu não disse que ia [tirar a letra]i? Eu não sei se vou conseguir øi de uma vez só. (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (68) Félix: Ela é [amante]i desse bestalhão do secretário americano? Jeremias: Não afirmo que seja øi; mas eu não afirmando que é øi, não quer dizer que não oi seja. (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (10) Referencialidade do Antecedente Cyrino (1997) aponta o traço [-específico/referencial] como um dos responsáveis pela implementação do objeto nulo no PB. De acordo com Cyrino, Duarte e Kato (2000) um processo de mudança em direção a uma categoria vazia (um pronome nulo) começaria pelos itens menos referenciais. As autoras propõem, então, uma hierarquia de referencialidade, onde argumentos [+humano] ocupam o extremo mais alto da hierarquia referencial e os não-argumentos no extremo mais baixo. Entre os extremos estão os argumentos de traço [- humano] e as proposições. Kato, Duarte, Cyrino e Berlinck (2006) afirmam que já no século XIX podemos observar o objeto nulo com antecedente [+específico, -humano]. Este grupo de fatores foi estabelecido com o propósito de observar a aplicação desta escala de referencialidade no que tange às ocorrências do objeto nulo na virada do século e confirmar os resultados citados. Neste grupo, são controladas as seguintes variáveis: a) Antecedente [+ específico/ + referencial] (69); b) Antecedente [- específico/ + referencial] (70); c) Antecedente [SN's indefinidos/genéricos] (71); d) Antecedente [proposicional] (72): 51 (69) …*esse navio+i já partiu, ó, há muito tempo e a tonta da Margareth tá até hoje esperando øi no cais. (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (70) E depois, como come, santo Deus! Segura na [faca] i assim, olhe, e mete-ai na boca até o cabo, toda atulhada de comida. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (71) Eu, quando tava grávida, só queria comer [jiló]i. Comia øi até não me aguentar mais. (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (72) Eu sabia que o senhor era filho do major, porque o senhor me disse ø i. (O hóspede do quarto n˚ 2, 1937 – Armando Gonzaga) (11) Forma/Especificidade do Antecedente Este grupo ilustra a forma e a especificidade do termo retomado pelo objeto direto anafórico. Os nomes [SN's] foram classificados como nomes contáveis no plural com ou sem determinante, nomes contáveis no singular com ou sem determinante ou ainda em nomes não contáveis com ou sem determinante, como veremos nos exemplos a seguir. A hipótese para este grupo de fator é que antecedentes não-contáveis e contáveis no singular sem um determinante (quantificador, artigo, etc.) sejam favoráveis ao objeto nulo. Estamos controlando as seguintes variáveis: a) Nomes contáveis no plural com determinante (73); b) Nomes contáveis no plural sem determinante (74); c) Nomes contáveis no singular com determinante (75); d) Nomes contáveis no singular sem determinante (76); e) Nomes não contáveis com determinante (77); f) Nomes não contáveis sem determinante (78): (73) O Sr. Ambrósio tomou conta dos [nossos bens]i, vendeu-osi e partiu para Montevidéu... (O Noviço, 1845 - Martins Pena) (74) Meu tio, o que vossa mercê praticou hoje comigo chama-se uma traição: foi provocar-me a um passeio no Jardim Botânico, sabendo que vinham aqui [pessoas]i que me olham com o mais insultuoso desprezo, e obriga-me, para não encontrá-lasi, a correr a medo para as alamedas mais solitárias e afastadas, como se eu fora... (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (75) Pois não, são frescos, sobretudo o Zebedeu. No outro dia, à mesa do jantar, mamãe disse-lhe: _Vá buscar lá dentro [uma garrafa de vinho do Porto] i, mas tome cuidado, não ai sacuda. Quando chegou com a garrafa, mamãe perguntou-lhe: _sacudiu? _não senhora, diz ele, mas vou sacudir agora... (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (76) Todas a pessoas pogonóforas, isto é, com [barba]i na cara, que não pertencerem ao Partido Terrorista, devem raspá-lai imediatamente para evitar equívocos fatais. (Um Elefante no Caos,1955 – Millôr Fernandes) 52 (77) Que seria [este dinheiro]i nas mãos de uma criatura fraca de ânimo que não tivesse o discernimento preciso para desviá-loi das más aplicações? (O Simpático Jeremias, 1918 - Gastão Tojeiro) (78) D. Irene: Eu tenho [vergonha]i de sair na rua com você. Holly: Então engole a vergonhai porque não tem outro, não! (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (13) Data de Publicação da Peça Neste trabalho, controlamos o tempo a partir da data de publicação da peça que vai desde a metade do século XIX até fins do século XX. Esperamos encontrar um número reduzido de clíticos na peça do último período, confirmando seu enfraquecimento na gramática do PB e evidenciando a mudança sintática em favor do objeto nulo. Seguem elencadas as peças, seguida da sua data de publicação, e em seguida o autor: O Noviço -1845 - Martins Pena Luxo e vaidade - 1860 - Joaquim Manuel de Macedo Caiu o ministério! - 1883 - França Junior O simpático Jeremias - 1918 - Gastão Tojeiro O hóspede do quarto nº 2 - 1937 - Armando Gonzaga Um elefante no caos -1955 - Millôr Fernandes A mulher integral - 1975 - Carlos Eduardo Novaes No coração do Brasil - 1992 - Miguel Falabella 53 CAPITULO 3: ANÁLISE DOS RESULTADOS Introdução Neste capítulo apresento os resultados obtidos para cada um dos grupos de fatores analisados. Inicialmente, na seção que segue, os resultados serão apresentados considerando as cinco variantes apresentadas no capítulo anterior, clítico acusativo, pronome lexical, SN anafórico, objeto nulo e pronome demonstrativo, relacionando-os aos dos trabalhos já comentados para verificar se as hipóteses levantadas se confirmam. Em seguida, interpreto os resultados considerando as variantes que entram em competição na linha do tempo para então verificar de que modo os fatores analisados atuaram na mudança em direção à categoria vazia. Por fim, faço algumas observações acerca do que os resultados aqui encontrados nos dizem sobre os cinco problemas da mudança linguística propostos por WLH (1968). 3.1 Resultados gerais Nesta seção apresento os resultados gerais focalizando os fatores linguísticos condicionadores das variantes, tendo em vista principalmente os resultados encontrados por Marafoni (2004; 2010) para a diferença entre PB e PE. Desse modo, buscamos aqui mostrar como se configuram os condicionamentos estruturais para uma determinada forma, sem considerar o fator tempo. 3.1.1 Distribuição geral da variantes A tabela 3.1 a segui traz a distribuição das cinco variantes estudadas. A análise dos valores apresentados na tabela mostra que, apesar de a porcentagem de clíticos (48,0%) ainda ser a maior dentre as variantes, se somarmos os valores absolutos de preenchimento do objeto direto anafórico através de pronome lexical (1,0%), SN (8,5%) e objetos nulos (39,6%) chegaríamos a um resultado bem próximo ao número de clíticos (49,1%), o que pode indicar que o fenômeno encontra-se em variação. O SN anafórico aparece como a terceira opção de retomada com 8,5% e em seguida, o pronome lexical com apenas 1,0%. 54 Tabela 3.1: Realização do objeto direto anafórico na amostra de peças Clítico Objeto Nulo SN Dem. Isso 388 – 48% 320 – 39,6% 69 – 8,5 24 – 3% Pron. Lexical Total 8 – 1% 809 – 100% 3.1.2 A Forma Verbal A Tabela 3.2 nos mostra a distribuição das variantes de acordo com a forma verbal que seleciona o objeto direto anafórico. Tabela 3.2: Distribuição das variantes de acordo com a forma verbal do verbo que seleciona o objeto direto anafórico. Clítico Forma verbal SN Pron. dem. Pron. lex. ON Total N % N % N % N % N % N % Indicativo 175 41,3 37 8,7 11 2,6 5 1,2 196 46,2 424 100 Subjuntivo/ Imp. 49 54,4 4% 4,4 6 6,7 1 1,1 30 33,3 90 100 Infinitivo 97 58,4 15 9,0 3 1,8 1 1,1 51 30,7 166 100 Gerúndio 8 88,9 0 0,0 1 11,1 0 0,0 0 0,0 9 100 Loc. particípio 5 35,7 2 14,3 1 7,1 0 0,0 6 42,9 14 100 Loc. c/ gerúndio 5 31,2 1 6,2 0 0,0 1 6,2 9 56,2 16 100 Loc. c/ infinitivo 49 54,4 10 11,1 2 2,2 1 1,1 28 31,1 90 100 Total 388 48,0 69 8,5 24 3,0 8 1,0 320 39,6 809 100 A hipótese para este grupo de fator era encontrar nas formas simples e compostas com infinitivo um contexto de resistência de uso dos clíticos, segundo de Duarte (1986) e Freire (2000) que apontam a ênclise ao infinitivo como o único contexto de ocorrência desta variante. Os números da tabela corroboram as pesquisas na medida em que temos nas construções simples e compostas com infinitivo respectivamente 58,4% e 54,4% de preenchimento com clíticos, conforme demonstram os exemplos (1), (2) e (3). (1) Não que [a vida de frade]i seja má; boa ela é para quem ai sabe gozar e que para ela nasceu (O Noviço, 1845 – Martins Pena) (2) …creio que vocês por hora se contentam com estas alturas. Ah! Gil Brás de Santilhana!... mas... que [ideia]i! não ai devo perder... meus fidalgos; até logo! (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (3) De qualquer maneira, eu não teria coragem de tomar [um compromisso]i, sabendo 55 antecipadamente que não poderia resolvê-loi. (O Hóspede do quarto n˚2, 1937 – Armando Gonzaga) Com relação às outras formas verbais analisadas, somente nas formas de Subjuntivo/Imperativo encontramos maior número de casos de clíticos (54%) do que de ON (33,3%) conforme (4) e (5). No entanto, merece observação o fato de que se trata de uma diferença pequena no valor absoluto das ocorrências (temos 49 dados de retomada por clítico e 30 dados de categoria vazia, portanto, apenas 11 dados de diferença). (4) Fiquem os senhores aqui do lado da porta, muito calados; eu chamarei [o sobrinho]. Assim que ele sair, não lhe dêem tempo de fugir; lancem-se de improviso sobre ele e levem-noi a força. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) (5) Deve ser [o Honorato]i. Mande øi entrar. (O Hóspede do quarto n˚2, 1937 – Armando Gonzaga) Quanto ao caso de gerúndio simples, o alto valor da porcentagem (88,9%) pode trazer a falsa impressão de ser um contexto favorecedor de clíticos, no entanto, também merece destaque o fato de terem sido encontradas apenas 8 ocorrências, uma das quais exemplifico em (6), dentro de um total de 809 dados. (6) Ora…eu não conhecia *meu padrinho+i, vendo-oi correr atrás de mim para me abraçar... (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) O SN anafórico aparece distribuído nos contextos de verbos no Indicativo (8,7%), Infinitivo simples (9,0%) e em locuções com infinitivo (11,1%) conforme (7), (8) e (9). O pronome lexical aparece concentrado nas formas verbais do Indicativo (10), assim como o pronome demonstrativo isso (11). (7) E até para os que apenas são honestos, em parte. Para você, por exemplo, ser honesto é pagar [as suas contas]i em dia. Mas por que paga você as suas contasi em dia? (O Hóspede do quarto n˚2, 1937 – Armando Gonzaga) (8) Hortênsia: Deveras que nunca vi [rosa]i mais bela, nem mais perfeita. Fabiana: Mas de quem seria a mão cruel que se atreveu a roubar aquela princesai do jardim?... (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (9) Ora, mamãe, é muito [dinheiro]i. Ainda mais com a situação de reviravolta no país, você nunca vai receber esse dinheiroi. É dinheiro demais! Eles não pagam! 56 (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) (10) Neiva: E [o pai]i, te dá alguma coisa? Dolores: Só desgosto! Eu bem que fui no quartel, pra ver se o comandante enquadrava elei, mas não deu em nada. (No Coração do Brasil, 1992 – Miguel Falabella) (11) …As grandes vitórias humanas são simples produtos do acaso. Os triunfadores que não são totalmente imbecis, no íntimo, reconhecem issoi... (O Hóspede do quarto n˚2, 1937 – Armando Gonzaga) 3.1.3 Transitividade e estrutura projetada pelo verbo Passemos agora ao exame da transitividade verbal e da estrutura projetada pelo predicador com a observação do comportamento das variantes de acordo com cada contexto segundo a Tabela 3.3, a seguir. Tabela 3.3: Realização do objeto direto anafórico segundo a estrutura projetada pelo verbo. Clítico SN Dem. Pron lexical ON Total N % N % N % N % N % N % OD(SN) 256 54,7 53 11,3 3 0 5 1,1 151 32,3 468 100 OD(SN) + Obl/Circ. 46 67,6 8 11,8 0 0 1 1,5 13 19,1 68 100 OD(SN) + OI(SN) 22 31,9 7 10,1 6 8,7 1 1,4 33 47,8 69 100 OD(SN) + Pred. do obj 14 66,7 0 0 0 0 0 0 7 33,3 21 100 OD[SUacc + Vinf.] 6 66,7 0 0 0 0 1 11,1 2 22,2 9 100 Cópula + Pred. Suj. 3 25 0 0 0 0 0 0 9 75 12 100 OD(S) 22 15,6 0 0 15 10 0 0 104 73,8 141 100 OD + Obl(S) 19 90,5 1 4,8 0 0 0 0 1 4,8 21 100 Total 388 48,0 69 8,5 24 3,0 8 1,0 320 39,6 809 100 Os resultados encontrados apresentam para construções simples do tipo SVO (primeira, segunda e terceira linha) maior número de ocorrências de clíticos do que de objetos nulos. Somente com os verbos bitransitivos exemplificados em (12) e (13), ou seja, que selecionam dois argumentos internos, temos maior porcentagem de objetos nulos (47,8%) do que de clíticos (31,9%). Os verbos predicativos transitivos (correspondentes à quarta linha da tabela) também favorecem à seleção da variante 57 padrão conforme (14) computando 67% das ocorrências. (12) Aliás, hoje eu vou sair com uma subversiva ótima. Quer ir? Ela tem [uma amiga]i, eu lhe apresento øi. (A Mulher integral, 1975 - Carlos Eduardo Novaes) (13) ...E tem [o quarto de empregada]i, lá fora. Eu lhe mostro øi. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) (14) No fundo [a fortuna]i é para quem sabe adquiri-la. Pintam-nai cega. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) Os verbos cópula e os transitivos que selecionam obrigatoriamente uma oração, como exemplificados em (15) e (16), são os que apresentam maior porcentagem de ocorrência de objeto nulo. Isso se deve ao fato já apontado na diacronia de Cyrino (1997) de serem os predicativos e sentenciais os primeiros contextos a abrigarem o objeto nulo. (15) Há oito anos, era eu pobre e miserável, e hoje sou [rico], e mais ainda serei øi. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) (16) Pai, que me escutas comovido. Mãe, que me olhas espantada, respondei: quem precipitou essa infeliz na vergonha da corrupção?... Dizei øi ! (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) O demonstrativo isso (17) aparece como concorrente do clítico (18) em estruturas que retomam antecedentes sentenciais correspondendo a 10% das ocorrências contra 15,6% de clíticos. (17) D. Barbara: [Está em casa com toda certeza; mas negou-se]i. Coelho: Istoi sei eu; e por isso é que entrei. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (18) Fabiana: ... [o que lhe importa saber é que Dona Leonina o ama apaixonadamente]i. Pereira: Vossa Excelência oi assegura com toda a certeza? (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) Quanto ao pronome lexical, os dados aqui corroboram, em parte, os de Duarte (1986) que aponta os contextos de construções sintáticas mais complexas com predicativo e objeto constituindo uma mini-oração (semi-clause) e das construções complexas com reduzidas de infinitivo e de gerúndio como favorecedores desta variante. Não foi 58 encontrado pronome lexical em mini-oração e apenas uma ocorrência de construções complexas com infinitivo ou gerúndio (19). Na verdade, o pronome lexical pouco aparece na amostra, somente 8 vezes. As 6 ocorrências restantes aparecem em estruturas simples, como (20) e (21), o que também corrobora Duarte (1986) confirmando não ser esta uma escolha comum. (19) Paulo, Paulo, estão atirando n[o homem que saiu daqui]i. Ele vem correndo pela escada. É melhor fechar a porta! Não deixa ele i entrar! Vão matá-lo aqui dentro. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) (20) Paulo: Ah, mãe, você está enganada a respeito [desta moça] i. Ela... Maria: Você já conhecia ela i? (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) (21) ...Devolvo [teus brincos] i como prova da sinceridade de meu amor. Você esqueceu eles i comigo e nem sequer pensei em me desfazer deles pra melhorar minha lamentável situação econômica. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) 3.1.4 Contexto sintático da oração que contém o objeto direto anafórico A tabela 3.4 descreve a distribuição das variantes de acordo com o contexto sintático da oração que contém o objeto direto anafórico. Tabela 3.4: Realização do objeto direto anafórico segundo a estrutura da oração Clítico SN Dem. Pron. lex. ON Total N % N % N % N % N % N % Raiz 144 39,3 31 8,5 18 4,9 5 1,4 168 45,9 366 100 Coordenada (segunda) 87 53,7 10 6,2 0 0 0 0 65 40,1 162 100 Compl. função de sujeito 12 66,7 0 0 0 0 0 0 6 33,3 18 100 Compl. função de objeto 51 52,6 13 13,4 3 3,1 1 1,0 29 29,9 97 100 Completiva de nome 13 56,5 2 8,7 1 43 0 0 7 30,4 23 100 Relativa 22 73,3 2 6,7 1 3,3 0 0 5 16,7 30 100 Adjunta 59 52,2 11 9,7 1 0,9 2 1,8 40 35,4 113 100 Total 388 48,0 69 8,5 24 3,0 8- 1,0 320 39,6 809 100 59 Os resultados encontrados para este contexto confirmam a hipótese de que no PB o objeto nulo não sofreria restrições aos contextos de ilha sintática, ao contrário do que afirmou Raposo (1986). Em todos os contextos sintáticos temos casos de ON. Seguem os exemplos (22), (23) e (24) trazendo o objeto nulo em contextos de “ilhas” (orações relativas, adjuntas e completivas nominais): (22) As mulheres perdem [a virgindade]i nas mais diferentes circunstâncias. Tem uma aluna nossa que perdeu øi dentro de um desses tubulhões do emissário submarino. (A Mulher Integral, 1975 - Carlos Eduardo Novaes) (23) Já reparou que [a D. Irene]i não elogia mais os militares? Margareth: Também, coitada. Se a gente não ajudasse øi, tinha dia que ela nem comia. (No Coração do Brasil, 1992 – Miguel Falabella) (24) Oh, muito obrigado! Por acaso...eu tinha trazido aqui...[uma lembrancinha] i... Se me der a licença de aceitar øi ... (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) As orações raiz (matriz/simples/primeira, em coordenação), e as orações coordenadas (segundas no período coordenado) são os contextos nos quais observamos maior porcentagem de objetos nulos (45,9%) e (40,1%), como em (25) e (26). (25) Julia: Ele precisa reafirmar constantemente [suas qualidades de garanhão]i. Alice: E não pode reafirmar øi com a própria mulher? (A Mulher Integral, 1975 Carlos Eduardo Novaes) (26) …*esse navio]i já partiu, ó, há muito tempo e a tonta da Margareth tá até hoje esperando øi no cais. (No Coração do Brasil, 1992 – Miguel Falabella) Os SN's anafóricos estão distribuídos nas orações raiz (matriz/simples/primeira, em coordenação) (8,5%), nas completivas de verbo com função de objeto (13,4%) e nas adjuntas (9,7%). Os exemplos estão em (27), (28) e (29): (27) Carlos: ...e lhe dou [a escritura]i. Ambrósio: Caro sobrinho! E, para mostrar o meu desinteresse, rasgo essa escriturai. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) (28) Jeremias: Só lhe suplico deixar-me usar [este monóculo]i,...Jamais me separarei deste cristalino disco de penetrante visualidade na alma humana. Madalena: Está bem. Consentirei que use o monóculoi. (O Hóspede do Quarto n˚2, 1937 – Amando Gonzaga) 60 (29) Ventura: ...Tive um tia que também se chamava Felicidade. Infeliz senhora! Morreu depois de ter comido [uma perna de frango]i... Felicidade: Envenenada? Ventura: Não. Depois de ter comido [a maldita perna de frango]i, saiu para visitar uma amiga. (O Hóspede do quarto n˚2, 1937 – Armando Gonzaga) Quanto ao pronome lexical e o demonstrativo isso, ambos são mais frequentes em orações raiz (matriz/simples/primeira, em coordenação) conforme (30) e (31): (30) …Devolvo *teus brincos+i como prova da sinceridade de meu amor. Você esqueceu elesi comigo e nem sequer pensei em me desfazer deles pra melhorar minha lamentável situação econômica. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) (31) É necessário arranjar um pretexto plausível, uma maneira digna... Olha, ó Jeremias, entrego à sua sabedoria a solução desse caso. Consiga-me issoi e terá uma recompensa de encher o olho. (O Simpático Jeremias, 1918 – Gastão Tojeiro) 3.1.5 Função sintática do antecedente Estes resultados descrevem a realização das variantes de acordo com a função sintática do antecedente. Vejamos os números da tabela 3.5: Tabela 3.5: Distribuição das variantes de acordo com a função sintática do antecedente. Clítico SN Pron. dem. Pron. lex. ON Total N % N % N % N % N % N % Sujeito 171 76,3 10 4,5 0 0 4 1,8 39 17,4 224 100 Objeto 132 46,2 50 17,5 2 0,7 3 1,0 99 34,6 286 100 Complemento nominal 15 60,0 4 16,0 0 0 1 4,0 5 20,0 25 100 Adjunto adnominal 18 78,3 2 28,7 0 0 0 0 3 13 23 100 Predicativo 7 41,2 0 0 0 0 0 0 10 58,8 17 100 Tópico (estrut./disc.) 14 37,8 3 8,1 1 2,7 0 0 19 51,4 37 100 Total 357 58,3 69 11,3 3 0,5 8 1,3 175 28,6 612 100 61 Os trabalhos comentados, de modo geral, apontam o antecedente com a mesma função de objeto como forte condicionamento para o objeto nulo. Marafoni (2004) observa que o ON no PB oral tem se alastrado a antecedentes de outras funções, o que se confirma com os dados da tabela acima, visto que temos dados de ON retomando todas as funções selecionadas, inclusive quando o antecedente exerce função de sujeito, apontada por Kato e Raposo (2001) como restrição ao ON no português. Sobre a função de sujeito, para Freire (2005), o PB não sofreria essa restrição, e os dados da tabela o confirmam, visto que, embora com porcentagem consideravelmente menor em comparação às outras funções (17,4%), somamos 39 casos de ON com antecedente sujeito. Na segunda linha, para a função de objeto, temos 34,6% de ON e 46,2% de clíticos, o que pode aparentemente indicar a preferência pelo pronome neste contexto, no entanto, se somarmos os percentuais de ON com os 17,5% de retomada por SN anafórico, teremos mais da metade dos dados o que pode nos sugerir que as outras variantes surgem como opção de uso em detrimento do pronome clítico, princialmente o SN anafórico muito bem observado por Duarte (1986). As funções que, de acordo com a tabela, favorecem o objeto nulo, com porcentagem acima de 50%, são as de predicativo (cf. Cyrino, 1997) e de tópico (estrutural ou discursivo) que será discutida a seguir. Em (32), (33), (34), (35), (36) e (37) temos exemplos de ON retomando as funções de sujeito, objeto direto, complemento nominal, adjunto adnominal, predicativo e tópico. (32) Vai ver [a menina]i ainda não dormiu. Tem dia que ela tá tão agitada que a gente ouve øi daqui. (No Coração do Brasil, 1992 – Miguel Falabella) (33) Carlos: Ainda duvidas? Ve como enganam [esta inocente criança]i! Emília: Não enganam øi não, primo. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) (24) Foi reprovada [na redação]i. Margereth escreveu cada besteira que vocês precisavam ver. Eu queria guardar øi, mas ela rasgou. (No Coração do Brasil, 1992, Miguel Falabella) (35) …destas *despesas loucas+i e superiores aos recursos de quem asi faz, transpira uma prova de demência ou de imoralidade (Luxo e vaidade,1860 - Joaquim Manuel de Macedo) (36) Carlos: Nem eu nem meu primo Juca queremos ser [frades]i... Ambrósio: Não serão øi. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) 62 (37) [E esse chá]i, se você toma øi bem quente, e depois anda de montanha russa, é batata! (No Coração do Brasil, 1992 – Miguel Falabella) O SN anafórico, como em (139) mais especificamente, aparece mais expressivo retomando antecedente com função de objeto apresentando 50 ocorrências em um total de 69. (38) Ela sim! Por causa dela já não durmo, já não como, já não bebo. Vi-a pela primeira vez, há uma semana, no Castelões. Comia [uma empada]i! Com que graça ela segurava a apetitosa iguariai entre o fura-bolo e o mata-piolho, assim, olhe. Vê-la e perder a cabeça foi obra de um momento. (Caiu o Ministério!, 1883 - França Junior) O pronome lexical apresenta 4 ocorrências retomando a função de sujeito como em (39), 3 retomando a de objeto como em (40) e uma retomando a função de complemento nominal (41) em um total de 8: (39) [Rosa]i subiu pelo elevador e o elevador enguiçou com ela lá dentro. Você quer ver se o Nanico tira elai de lá? (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) (40) Devolvo [teus brincos] como prova da sinceridade de meu amor. Você esqueceu elesi comigo e nem sequer pensei em me desfazer deles pra melhorar minha lamentável situação econômica. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) (41) Paulo: Ah, mãe, você está enganada a respeito d[esta moça]i. Maria: Ela... Você já conhecia elai? (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) O demonstrativo isso, por retomar frequentemente uma oração, aparece inexpressivo nesta tabela com apenas 3 ocorrências, uma das quais transcrevo em (42). (42) Mas isso não é decente. É necessário arranjar um pretexto plausível, uma maneira digna... Olha, ó Jeremias, entrego à sua sabedoria a solução desse caso. Consigame issoi e terá uma recompensa de encher o olho. (O Simpático Jeremias, 1918 – Gastão Tojeiro) 3.1.6 Posição do antecedente Observemos a distribuição das variantes relacionando-as à posição argumental ou não-argumental do antecedente. 63 Tabela 3.6: Distribuição das variantes de acordo com a posição do antecedente. Clítico SN Pron. dem. Pron. lexical ON Total N % N % N % N % N % N % Argumental 374 48,4 66 8,5 23 3,0 8 1,0 301 39,0 772 100 Não-argumental 14 37,8 3 8,1 1 2,7 0 0 19 51,4 37 100 Total 388 48,0 69 8,5 24 3,0 8 1,0 320 39,6 809 100 Os percentuais encontrados confirmam a suspeita de Raposo (1986). A posição não-argumental do antecedente, ilustrada em (43) se apresenta aqui como um contexto favorecedor do objeto nulo com 51,4% de ocorrências, ou seja, mais da metade neste contexto. (43) [Essa foto]i, nunca hei de esquecer øi: a moça muito jovem,... (No Coração do Brasil, 1992 – Miguel Falabella) Em posição argumental, o somatório dos percentuais de SN anafórico (8,5%), pronome demonstrativo (1,0%) e objeto nulo (39,0%), exemplificados por (44), (45) e (46) se equipara ao percentual de clíticos (48,4%), como em (47) demonstrando mais uma vez a variante padrão competindo com as outras estratégias de retomada do objeto direto anafórico. (44) [A minha amizade]i, excelentíssima...Eu não ofereço a minha amizadei a esta fúria nem que me serrem! (Luxo e vaidade,1860 - Joaquim Manuel de Macedo) (45) [Lisol?] Se não me engano issoi é uma droga para matar gente. (O Simpático Jeremias, 1918 – Gastão Tojeiro) (46) [Essa unha]i, eu tenho øi encravada há muito tempo. (No Coração do Brasil, 1992 – Miguel Falabella) (47) [Esse filho do Major Tiburcio]i, se o Carlos conseguisse traze-loi aqui pra casa, talvez nos aproveitasse bem... (O Hóspede do Quarto n˚2, 1937 – Amando Gonzaga) 3.1.7 Posição da ocorrência em relação ao antecedente Procurei observar com este fator a relação entre as estruturas que contém o objeto direto anafórico e a que contém o seu referente. 64 Tabela 3.7: Posição do objeto direto anafórico em relação ao antecedente. Clítico SN Dem. Pron. Lex. ON Total N % N % N % N % N % N % Antecedente na or. anterior (sindética) 39 55,7 3 4,3 1 11,4 0 0 27 38,6 70 100 Antecedente na or. anterior (assindética) 44 55,0 4 5,0 0 0 0 0 32 40,0 80 100 Antecedente na or. anterior (subordinada) 45 66,2 2 2,9 0 0 0 0 21 30,9 68 100 Período anterior 72 47,4 16 10,5 4 2,6 4 42,6 56 36,8 152 100 Turno anterior 169 41,4 43 10,5 19 4,7 4 1,0 173 42,4 408 100 Antecedente na subordinada anteposta 19 61,3 1 3,2 0 0 0 0 11 35,5 31 100 Total 388 48,0 69 8,5 24 3,0 8 1,0 320 39,6 809 100 Parti do pressuposto que quanto maior fosse a distância da ocorrência, maior seria a preferência por uma estratégia lexicalizada, conforme proposto por Figueiredo Silva (2004). A expectativa é confirmada. Nos contexto de coordenação alocados na primeira e segunda linha da tabela, o preenchimento do objeto direto anafórico corresponde a mais da metade dos dados (com somatórios de 55,7% e 55%), no entanto, a categoria vazia se apresenta como forte concorrente (38,6% e 40,0%). Veja os exemplos (48), com preenchimento com clítico e (49) sem preenchimento. (48) Eu, que quisera viver com uma espada à cinta e à frente do meu [batalhão] i, conduzi- loi ao inimigo através da metralha, bradando... (O Noviço, 1845 – Martins Pena) (49) Hoje, já não podendo, questionei com o D.Abade. [Palavras]i puxam palavras; dize øi tu, direi eu, e por fim de contas arrumei-lhe uma cabeçada, que o atirei por esses ares. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) Os contextos de subordinação, ao contrário do que verificou Figueiredo Silva (2004), são os contextos que mais favoreceram ao clítico com 66,2% e 61,3%, que demonstro com (50) e (51): (50) Sucedia, porém, que essa canoa, às vezes, por conduzir carga demasiada de 65 [homens]i, virava no meio do rio, atirando-osi todos à água. (O Simpático Jeremias, 1918 – Gastão Tojeiro) (51) Ide levar os sapatos do americano e se ele vos der [uma gorjeta], não a i guardeis, mas trazei-ai porque representa o fruto sanzonado do meu esforço. (O Simpático Jeremias, 1918 – Gastão Tojeiro) Se levarmos em consideração os números referentes ao antecedente em turno diferente da ocorrência, o somatório das variantes lexicalizadas ultrapassa a metade do número de dados neste contexto, 57,6%, mas não deixa de saltar aos olhos os 42,4% de objetos nulos representados por (52). Note-se que este é o contexto em que o SN anafórico (53) aparece mais expressivo, computando 43 dados de um total de 64 ocorrências. (52) Armando: Cadê [meu prato]i? Cristina: Procure øi. (A Mulher Integral, 1975 - Carlos Eduardo Novaes) (53) Carlos: E será também falsa [esta certidão] do vigário da freguesia de... Ambrósio: Dá-me esse papeli! (O Noviço, 1845 – Martins Pena) Quando o antecedente se encontra em outro período, a hipótese se confirma com somatório de 63,1% de estratégias lexicalizadas, como nos exemplo (54) e porcentagem de 36,8% de ON representado por (55). (54) Mas não vale a pena mandar vir [vestidos]i da Europa. Chegam por um dinheirão, e aqui não apreciam essas coisasi. (Caiu o Ministério!, 1883 - França Junior) (55) Olhe, quero contar-lhe em segredo: Dona Leonina amava não sei porque ao coronel Reinaldo; o galanteio entre ambos tinha ido além de certos limites; desde porém que Vossa Excelência se apresentou como pretendente, o coronel, embora tenha ainda licença para amar øi, perdeu já a esperança no casamento. (Luxo e vaidade, 1860 - Joaquim Manuel de Macedo) O pronome lexical se distribui simetricamente entre esses dois últimos contextos, com 50% dos casos com antecedente em outro período e 50% com antecedente em outro turno, conforme (56) e (57): (56) [Uma aranha]i enorme me atacou. Quebrei a vassoura esmagando elai. (No Coração do Brasil, 1992 – Miguel Falabella) (57) Neiva: E [o pai]i, te dá alguma coisa? 66 Dolores: Só desgosto! Eu bem que fui no quartel, pra ver se o comandante enquadrava elei, mas não deu em nada. (No Coração do Brasil, 1992 – Miguel Falabella) Quanto ao demonstrativo, temos mais da metade das ocorrências com antecedente em turno diferente da anáfora como demonstrado em (58): (58) Cristóvão: Lisol? Se não me engano isso é uma droga para matar gente. Elisa: Olha que ideia! Cristóvão: Para que diabo quer você issoi? (O Simpático Jeremias, 1918 – Gastão Tojeiro) 3.1.8 Distância da ocorrência com relação à primeira menção A Tabela 3.8 a seguir descreve a relação das variantes com relação à distância do referente. Tabela 3.8: Distribuição das variantes de acordo com a distância do referente. Variantes Clítico SN Pron dem. Pron. Lexical ON Total Condicionamento N % N % N % N % N % N % 1˚ Referência 220 42,1 44 8,4 23 4,4% 3 0,6 233 44,6 523 100 2˚ Referência 104 57,5 14 7,7 1 0,6 5 2,8 57 31,5 181 100 3˚ Referência 42 60,9 8 11,6 0 0 0 0 19 27,5 69 100 4˚ Referência 16 164 2 8,0 0 0 0 0 7 28 25 100 5˚ Referência 6 54,5 1 9,1 0 0 0 0 4 36,4 9 100 Total 388 48,0 69 8,5 24 3,0 8 1,0 320 39,6 809 100 A hipótese a ser confirmada com a análise deste grupo de fatores, assim como o grupo anterior, era que quanto mais distante a referência anafórica estivesse do seu antecedente, ou da sua primeira menção no discurso, mais favoreceria a uma estratégia lexicalizada. Mais uma vez, a hipótese se confirma. O objeto nulo só apresenta porcentagem relativamente alta (44,6%) quando corresponde à primeira referencia seguida à primeira menção do antecedente, como demonstro em (59). (59) Mas [as inglesas]i são very beautiful. Eu vi øi em Londres, verdadeiras formosuras. (Caiu o Ministério!, 1883 - França Junior) 67 Da segunda referencia em diante, como em (60) e (61), já se observa maioria considerável no somatório das porcentagens de estratégias com preenchimento com relação à categoria vazia. O exemplo (62) ilustra um caso de preenchimento através de SN, que de acordo com a tabela se concentra neste contexto (somando 44 de 69 casos ao todo). (60) Armando: Não? Por que não? Ainda não está pronto? Eu não lhe avisei que ia chegar cedo pra almoçar? Por que você não aprontou [o almoço]i na hora? Cristina: Ele está pronto, eu é que não vou botá-loi na mesa. (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes). (61) Na hora d[ele]i chegar ao invés de recebê-lo sem pintura, com avental de cozinha, cheirando a gordura, aguarde-o, olhe-oi de odalisca, gogo gril... (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes.) (62) Alice: Um noite, um grupo de Grace encurralou [um cidadão]i num daqueles becos do Bronx... Cristina: Um cidadão comum ou um porco chovinista? Alice: Devia ser um porco: oito filhos, todos homens. Mas deixa eu contar: cercaram o homem. Ao se ver cercado, ele quis correr. Segura daqui, apanha dali, seguraram o homemi (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes.) 3.1.9 Presença/ ausência de sujeito na oração que contém o objeto direto anafórico Segue a Tabela 3.9 com a distribuição das variantes relacionadas à presença ou ausência de sujeito na oração em que está o objeto direto anafórico. Tabela 3.9: Distribuição das variantes de acordo com a realização do sujeito. Variantes Condicionamento Clítico SN Dem. Pron. Lex ON Total N % N % N % N % N % N % Suj. preenchido 101 39,9 21 8,3 13 5,1 6 2,4 112 44,3 66 100 Suj. não preenchido 266 50,3 46 8,7 10 1,9 2 0,4 205 38,8 187 100 Total 367 46,9 67 8,6 23 2,9 8 1,0 317 40,5 782 100 O objetivo de se analisar este grupo de fator é encontrar algum tipo de relação entre a tendência do PB de representar fonologicamente o sujeito referencial e não o fazer com o objeto direto anafórico, seguindo direção contrária ao PE, que tende a apagar os sujeitos e representar os objetos. Os números desta tabela demonstram certa simetria 68 entre os percentuais de preenchimento e não preenchimento de objeto em estruturas com e sem a presença do sujeito. Na verdade, observando a primeira linha da tabela, vemos que o percentual de objetos nulos (44,3) é superior ao percentual de clíticos (39,9) para as estruturas com o sujeito preenchido. No entanto, em uma observação mais atenta, somado-se os números de objeto preenchido pelas quatro variantes não nulas (SN, clítico, pronome demonstrativo e pronome lexical) e contrastando com o número de objetos nulos, temos um outro resultado: mais objetos preenchidos (141) do que nulos (112) em estruturas com o sujeito também preenchido. Na segunda linha temos os valores para as estruturas com o sujeito não preenchido e o maior percentual é o de clíticos (266 – 50,3%), seguido do objeto nulo (205 – 38,8%), do SN anafórico (46 – 8,7%), do pronome demonstrativo (10 – 1,9%) e do pronome lexical (2 – 0,4%). Neste contexto, a hipótese se confirma: paras sujeitos não preenchidos, temos maioria de objetos preenchidos. É interessante observar nesta tabela que, olhando isoladamente o caso do preenchimento do objeto com SN anafórico, temos maior percentual para as estruturas com o sujeito não preenchido do que para as estruturas com o sujeito preenchido (21 – 8,3%), também confirmando a hipótese, por esse ângulo. A distribuição das variantes relacionada ao preenchimento do sujeito parece ainda carecer de maior atenção pois os resultados obtidos a partir desta amostra são, de modo geral, favoráveis ao proposto por Tarallo (1993). 3.1.10 Traço Semântico do Antecedente Passemos agora ao exame do traço semântico do antecedente com base na distribuição das variantes apresentada na tabela 3.10. Tabela 3.10: Distribuição das variantes de acordo com o traço semântico do antecedente. Variantes Clítico SN Pron. dem. Pron. Lex ON Total Condicionamento N % N % N % N % N % N % [+aninado] 9 50 6 33 0 0 2 10 1 5,6 18 100 [+humano] 209 83 15 6,0 0 0 5 1,9 24 9,2 253 100 [-animado] 129 40 48 15 3 1,0 1 0,3 137 43 318 100 [Proposição] 34 16 0 0 21 10 0 0 158 74,2 213 100 Total 388 48 69 8,5 24 3,0 8 1,0 320 39,6 809 100 69 Os números da tabela acima comprovam, para os períodos analisados, o antecedente proposicional como preferencial ao objeto nulo, seguido dos antecedentes com traço [- animado] conforme apontaram Cyrino (1997) e Duarte (1986) e demonstrado em (164) e (165). No caso dos antecedentes proposicionais, temos 9,9% de ocorrência do pronome demonstrativo neutro concorrendo com 16% de clíticos, a exemplo de (63) e (64). (63) D. Bárbara: E a sirigaita da filha [a estropiar palavras em francês, inglês, alemão e italiano, para mostrar aos circunstantes que já esteve ma Europa]i. Felicianinha: Eu acho øi uma coisa tão ridícula! (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) (64) Eu, quando tava grávida, só queria comer [jiló]i. Comia øi até não me aguentar mais. (No Coração do Brasil, 1992 - Miguel Falabella) (65) Cristina: …de hoje em dia nossa vida vai mudar. Armando: Você já tinha me dito issoi de manhã cedo. (A Mulher Integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (66) Filomena: É singular! Porque desapareceu ele lá de casa? Beatriz: Não sei øi! Alguma intriga talvez. Sou tao infeliz... (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) Os resultados comprovam a restrição, também observada pelas autoras, que o contexto [+ animado/+humano] oferece à categoria vazia (cf. 67), ainda que tenha sido registrado percentual de 9,2% exemplificado por (68). No entanto, podemos observar que em uma diferenciação entre os contextos [+animado] (69) e [+ humano], este último oferece ainda mais resistência à categoria vazia tendo aquele registrado uma porcentagem de 15%. (67) É [o filho do major Tiburcio]i. Chega hoje aí e não posso deixar de ir recebê-loi. Seria imperdoável se eu não fosse receber o seu filho quando ele vem, pela primeira vez ao Rio. (O Hóspede do Quarto n˚2, 1937 – Armando Gonzaga) (68) Nilson: A Neiva não vai mais fazer [a Verônica]! D. Irene: Como não vai fazer? Tem que fazer øi. (No Coração do Brasil,1992 – Miguel Falabella) (69) Estou furiosa por não haver ainda encontrado, aqui em Petrópolis, [um cavalo] i a seu gosto para montar øi. (O Simpático Jeremias, 1918 – Gastão Tojeiro) 70 O SN anafórico (70) ficou concentrado nos contextos de antecedente com traço [animado] com 48 das 69 ocorrências, seguido do traço [+humano] com 15 ocorrências do tipo (71), e do traço [+animado], como (72), com 6 ocorrências. (70) ....voltemos ao baile; eu estou louca por encontrar de novo [o dominó preto] i; já viram o famoso dominó pretoi? (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (71) A filha, antes de sair para a igreja, teve a ideia de ir procurar [a mãe]i. Correu até o muro, o véu de renda batido pelo vento, tentando encontrar a mãe adorada. E pra seu horror, viu a pobre mulheri do outro lado do arame farpado. (No Coração do Brasil,1992 – Miguel Falabella) (72) Eu também sou a favor de acabar com [todos os porcos chovinistas]i. Sou um espi„o feminista infiltrado entre os homens. Eliminem todos os porcos chovinistas i, e ficar só uns poucos como eu... (A Mulher integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) O pronome lexical se distribui em 5 casos com antecedente [+humano], 2 casos de antecedente [+animado] e 1 caso de antecedente [-animado] representados por (73), (74) e (75). (73) Paulo, Paulo, estão atirando n[o homem que saiu daqui]i. Ele vem correndo pela escada. É melhor fechar a porta! Não deixa ele entrar! Vão matá-loi aqui dentro. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) (74) Uma aranha enorme me atacou. Quebrei a vassoura esmagando elai. (No Coração do Brasil,1992 – Miguel Falabella) (75) …Devolvo *teus brincos+i como prova da sinceridade de meu amor. Você esqueceu elesi comigo e nem sequer pensei em me desfazer deles pra melhorar minha lamentável situação econômica. (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) O pronome demonstrativo, como era de se esperar, ficou concentrado nos contextos de antecedente proposicional, como demonstrado em (76), com 21 casos em um total de 24 ocorrências: (76) Pode dizer na sua folha que hoje mesmo deve ficar preenchida a pasta da Marinha; que o governo tem lutado com dificuldades... Não, não diga istoi. (Caiu o Ministério!, 1883 – França Junior) 3.1.11 Referencialidade do Antecedente A tabela 3.11 traz a distribuição das variantes de acordo com a referencialidade do antecedente. 71 Tabela 3.11: Distribuição das variantes de acordo com o traço de referencialidade do antecedente. Clítico SN Pron. dem. Pron. Lex ON Total N % N % N % N % N % N % [+referencial/ +específico] 227 74 27 9 1 0,3 5 1,6 46 15 306 100 [+referencial/ - específico] 101 47 33 15 1 0,5 3 1,4 76 35 214 100 [+genérico] 26 33 9 11 1 1,3 0 0 42 54 78 100 [oração] 34 16 0 0 21 10 0 0 156 74 211 100 Total 388 48,0 69 8,5 24 3,0 8 1,0 320 40 809 100 A Tabela 3.11 nos mostra, nas duas primeiras linhas, que os contextos [+ ou - específicos/referenciais] são favorecedores ao uso do clítico, a exemplo de (77) e (78). Na terceira e quarta linha, vê-se que os contextos mais genéricos (incluindo-se aí os contextos oracionais) favorecem à categoria vazia como em (79) e (80). Este resultado confirma a escala de referencialidade proposta por Cyrino, Duarte e (2000) de acordo com a qual uma mudança em direção a uma categoria vazia se iniciaria pelos contextos menos específicos. De fato, os dados analisados mostram a categoria vazia mais expressiva em contextos menos referenciais, ao contrário do que se observa para o clítico. Seguem os exemplos: (77) Dorotéa: …aqui está *este casaco+i, para o senhor ficar mais à vontade. É do Carlos, mas ainda não foi usado. Ventura: A senhora é a própria bondade...Vou vesti-loi já. (O Hóspede do Quarto n˚2, 1937 – Armando Gonzaga) (78) Ide levar os sapatos do americano e se ele vos der [uma gorjeta] i, não ai guardeis, mas trazei-a porque representa o fruto sanzonado do meu esforço. (O Simpático Jeremias - Gastão Tojeiro) (79) Eu, quando tava grávida, só queria comer [jiló]. Comia øi até não me aguentar mais. (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (80) ...Quem pode nem sempre sabe o que se passa entre nós, para poder remediar ø i. (O Noviço, 1845 – Martins Pena) A retomada por SN anafórico se distribui entre os contextos [+referencial, + ou – específico] com 27 (8,8%) e 33 (15,4%) e os [+genéricos] com 9 (11,5%) de um total de 69 dados. 72 (81) Ele gosta que eu coce [o pé dele]i, quando ele chega do serviço. Todo dia a mesma coisa. Eu tenho que largar o que quer que eu esteja fazendo, pra coçar aquele pé i . (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) (82) [Uma prima minha]i foi baleada assim. Um louco atirou na esposa, a bala atravessou o corpo da mulher e atingiu minha primai, no cais de Marseille. (O Hóspede do Quarto n˚2, 1937 – Armando Gonzaga) (83) …Ele pede *um bombom+i. No que você entrega o bombomi, o amor brota entre vocês. (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) O pronome lexical, como era de se esperar, ficou restrito a antecedentes com o traço [+referencial,+ ou – específico] demonstrado nos exemplos (84) e (85). (84) Paulo: Ah, mãe, você está enganada a respeito d[esta moça]i. Ela... Maria: Você já conhecia elai? (Um Elefante no Caos, 1955 – Millor Fernandes) (85) [Uma aranha]i enorme me atacou. Quebrei a vassoura esmagando elai. (No Coração do Brasil,1992 - Miguel Falabella) 3.1.12 Forma/Especificidade do Antecedente A tabela 3.12 mostra a distribuição das variantes relacionadas à forma de seu antecedente. Tabela 3.12: Distribuição das ariantes de acordo com a forma/especificidade do antecedente. Clítico SN Dem. Pron. Lex. ON Total N % N % N % N % N % N % Contáveis PL com det. 28 77,8 2 5,6 0 0 1 2,8 5 13,9 36 100 Contáveis PL sem det. 5 41,7 3 25 0 0 0 0 4 33 12 100 Contáveis SING. com det. 219 61,3 51 14,3 0 0 6 1,7 81 22,7 357 100 Contáveis SING sem det. 58 69,9 6 7,2 0 0 1 1,2 18 21,7 83 100 Não-cont. com det. 32 44,4 6 8,3 2 2,8 0 0 32 44,4 72 100 Não-cont. sem det. 14 30,4 1 2,2 1 2,2 0 0 30 65,2 46 100 Total 356 58,7 69 11,4 3 0,5 8 1,3 170 28,1 606 100 Marafoni (2004) observa a preferência pelo objeto nulo com antecedentes não contáveis sem determinante. Corroborando o resultado da autora, a última linha da tabela acima nos mostra claramente a preferência pelo objeto nulo neste contexto, representado 73 em (86), tendo sido registrado índice relativamente alto de ocorrência de ON (30 em 46 ocorrências). Tivemos uma ocorrência de SN (87) e uma de pronome demonstrativo (88): (86) Inclinação, inclinação! Que quer dizer [inclinação]i? Terás øi sem dúvida, por algum francelho frequentador de bailes e passeios, ... (O Noviço, 1845 - Martins Pena) (87) Félix: Tem [paciência]i, meu amor... Laura: Já me fartei de ter paciênciai! Sabes de uma coisa? Vou só! (O Simpático Jeremias - Gastão Tojeiro) (88) Cristóvão: Lisol? Se não me engano isso é uma droga para matar gente. Elisa: Olha que idéia! Cristóvão: Para que diabo quer você issoi? (O Simpático Jeremias - Gastão Tojeiro) Com nomes não contáveis com determinante, conforme mostra a penúltima linha, temos um certo equilíbrio entre o preenchimento com clítico e a categoria vazia (32 dados para cada contexto (44,4%). Veja em (89) e (90). A retomada por SN (91) alcançou um total de 6 dados (8,3%) e o pronome demonstrativo apenas 2 dados (2,8%): (89) Eis aí [o meu orgulho]i: é vossa mercê que oi devo. (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (90) Holly: Porque eu acho que [o nosso futuro]i já chegou. Dolores: Chegou e passou. Tão rápido que a gente nem viu ø i. (No Coração do Brasil, 1992 - Miguel Falabella) (91) Carlos: Quero [a minha legítima]i... Ambrósio: Terás a tua legítimai (O Noviço, 1845 – Martins Pena) Em estudo posterior, Marafoni (2010) observou para o PB que nomes contáveis no plural em amostra formal tendem ao preenchimento enquanto em dados de amostra informal observou-se uma distribuição equilibrada (53% de objeto preenchido e 47% de ON). Neste trabalho, os resultados se confirmaram para os nomes contáveis no plural com determinante apontando a preferência pelo preenchimento (conforme indica a primeira linha da tabela e o exemplo 92). No caso dos contáveis no plural sem determinante observamos uma distribuição também equilibrada com 47% de preenchimento com clítico, 25 % de preenchimento com um SN anafórico e 33% para ON, conforme a sequencia de exemplos (93) e (94). Esses números também estão em consonância com os 74 encontrados pela autora citada. Vamos aos exemplos: (92) ...É uma dívida que tenho de remir e de pagar com usura; não me peça [explicações]i que não asi darei. (Luxo e Vaidade, 1860 – Joaquim Manuel de Macedo) (93) Julia: E quanto a sétima lição? Cristina: Qual é? Julia: A das [propostas indecorosas]i. Tem feito propostas indecorosasi a ele? (A Mulher integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) (94) Cristina: Não tenho coragem, Julia. Sem fazer øi vive dizendo que me tornei uma mulher imoral. (A Mulher integral, 1975 – Carlos Eduardo Novaes) A partir de um cruzamento dos resultados relativos à forma/especificidade e a referencialidade do antecedente, a fim de observarmos mais especificamente o tipo de antecedente (como sendo mais ou menos específicos ou genéricos), observou-se que para os nomes contáveis no plural com determinante, independente da especificidade temos sempre maioria de retomada por clítico, como se vê no primeiro bloco da tabela. No caso dos nomes contáveis no plural sem determinante com traço [-específico,+referencial], o ON (40%) e o SN anafórico (20%) passam a competir com o clítico (40%); o mesmo ocorre quando, neste mesmo contexto semântico, temos o traço [+genérico], passando o clítico, o ON e o SN anafórico a apresentarem o mesmo percentual de 33%. Os nomes contáveis no singular com determinante também são em sua maioria retomados pelo clítico, independente do traço de especificidade, com exceção dos casos de traço [específico,+referencial] apresenta concorrência entre as retomadas por clítico (44%), por SN anafórico (18%) e ON (37%). Para os nomes contáveis no singular sem determinante, temos, como esperado, maioria de ocorrências de objetos nulos no contexto [+genérico] de referencialidade com 55% de ocorrências em oposição a 25% para retomadas por clítico e 20% de retomada por SN anafórico. Para os nomes não contáveis com determinante, temos uma distribuição equilibrada somente quando associados aos traços [+específico,+referencial] com 48% de clíticos, 7% de SN anafórico, 3% de pronome demonstrativo e 41% de ON, e [-específico,+referencial] que apresenta 53% de clíticos, 10% de SN anafórico, 3% de pronome demonstrativo e 33% de ON. Com traço [+genérico], temos, também como esperado, maioria de retomadas pelo objeto nulo (75%). Por fim, para os nomes não contáveis, no último bloco da tabela, sem determinante temos maioria 75 de retomadas por objeto nulo em todos os contextos de referencialidade. Esse cruzamento nos possibilita observar que os nomes não-contáveis com ou sem determinante e os nomes contáveis no singular sem determinante são mais suscetíveis a retomada pelo objeto nulo, ao passo que os nomes contáveis no plural com ou sem determinante e os contáveis no singular com determinante, somete aliados ao traço [+genérico] possibilitam a emergência do ON, demonstrando clara preferência pelo clítico. 3.1.12 Tempo Vamos mostrar agora o comportamento das variantes ao longo do tempo para exemplificarmos, através da evolução dos percentuais, como se configura a mudança e quais as variantes em competição. Tabela 3.13: Distribuição das variantes ao longo do tempo. Clítico SN Pron. dem. Pron. Lex. ON Total N % N % N % N % N % N % 1845 62 60,2 7 6,8 3 2,9 0 0 31 30,1 103 100 1860 114 85,1 5 3,7 0 0 0 0 15 11,2 134 100 1883 32 54,2 2 3,4 3 5,1 0 0 22 37,3 59 100 1918 84 56,4 11 7,4 8 5,4 0 0 46 30,9 149 100 1937 35 47,9 10 13,7 3 4 0 0 25 34,2 73 100 1955 16 20,8 7 9,1 3 3,9 4 5,2 47 61,0 77 100 1975 44 33,1 17 12,8 4 3,0 1 0,8 67 50,4 133 100 1992 1 11,2 10 12,3 0 0 3 3,7 67 82,7 81 100 Total 388 48,0 69 8,5 8 1,0 24 3,0 320 39,6 809 100 A Tabela 3.13 mostra a evolução das ocorrências de cada variante ao longo do tempo. Fica numericamente comprovada a variação do objeto direto anafórico. O SN anafórico, observado por Duarte (1986), a partir dos anos 1918 alcança uma porcentagem relativamente estável e aparentemente se fixa como uma das estratégias possíveis de retomada do objeto direto. Podemos observar também, a partir dos anos 76 1955 na peça Um Elefante no Caos, de Millor Fernandes, o aparecimento da estratégia não recomendada pela gramática normativa, o pronome lexical. Note-se que, mesmo sendo uma estratégia não prestigiada e de todas a menos frequente, temos registro desta variável em todos os períodos seguintes ao seu aparecimento. O demonstrativo anafórico isso também é substituído pela categoria vazia, não tendo sido encontrada nenhuma ocorrência no último período. Os percentuais indicam que as formas que entram em competição são o clítico, que apresenta queda de uso (número de casos de de 60,2% para 11,2%) e o objeto nulo, que apresenta aumento na porcentagem de ocorrências (de 30,1% para 82%) no decorrer dos períodos analisados. No segundo período do século XX (1937), o clítico já não corresponde à metade das ocorrências, com percentual de 47,9%. No último período, houve apenas uma ocorrência da variante considerada padrão, que transcrevo abaixo em (95). (95) [A mãe]i tinha ido dormir na casa de uma amiga da família. Acho que foi comemorar o aniversário de uma parenta. Pela manhã, foi surpreendida pelo muro que ai impediu de ver a criatura que ela mais amava. (No Coração do Brasil, 1992 Miguel Falabella) Vale ressaltar que a personagem é uma senhora, professora de francês, e está narrando uma história sobre uma foto. Estes pormenores aliados aos resultados da análise do último período deste corpus, indicam que o clítico acusativo já não faz parte da gramática da criança brasileira na fase de aquisição natural da língua, ou seja, não faz parte dos dados que servem de input ao processo de aquisição natural da língua. Os trabalhos citados anteriormente chegaram à mesma conclusão: Omena (1978) não encontrou um uso sequer desse mesmo elemento na fala dos analfabetos, ou seja, daqueles que não sofreram influência da escola, e Duarte (1986) confirma a “ausência absoluta” desse item linguístico na fala dos jovens. De acordo com Corrêa (1991) e Averbug (2000), o clítico acusativo seria um elemento de natureza marginal na gramática do PB, inserido tardiamente no elenco de traços morfológicos que chegam via escolarização. Segue abaixo o gráfico demonstrando o comportamento das variantes analisadas 77 ao longo do tempo. Gráfico 3.1: Distribuição das variantes ao longo do tempo na amostra analisada. 1,00 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00 1845 clítico 1860 1882 zero 1918 SN 1937 1955 Pronome Demonstrativo 1975 1992 Pronome Os resultados do Gráfico 3.1 acima mostram que as variantes que entram em competição são o clítico e o ON, representados respectivamente pelas linhas azul e vermelha. O clítico, a partir de 1918 dá inicio ao seu processo de diminuição, resultando no quase total desaparecimento e o ON, neste mesmo século, dá início a sua ascensão se destacando das outras variantes. O SN anafórico já aparece em índices muito baixos em 1845, cresce ligeiramente em 1883 e mantém-se relativamente estável a partir de 1937 fixando-se como uma das variantes possíveis, porém, pouco significativa nesse tipo de amostra. O pronome demonstrativo, com antecedentes em sua maioria sentenciais, apresenta baixa ocorrência em todos os períodos, o que corrobora o fato já apontado por Cyrino (1997) de que já ocorria, no século XVI, variação entre o clítico neutro “o” e a elipse de sentenças e aquele, no século XIX, já não fazia mais parte dos dados adquiridos pela criança em língua materna. O demonstrativo neutro seria uma outra forma de preenchimento do objeto direto anafórico sentencial, no entanto, o objeto nulo é a opção preferida pelo falante. Quanto ao pronome lexical, como se esperava, só aparece na segunda metade do século XX, em 1955 e por ser uma estratégia, além de não recomendada pela gramática normativa, estigmatizada e rejeitada pelo falante. 78 Na subseção que segue apresento os dados e os fatores selecionados pelo programa como sendo relevantes em função do pronome clítico e do objeto nulo, já que são as variantes envolvidas no processo de mudança que substituiu o uso do clítico pelo objeto nulo no PB. 3.2 A variação objeto nulo vs. clítico Após constatado o pronome clítico e a categoria vazia como as formas que entram em competição, procedeu-se a uma análise de regra variável de caráter binário. Foi realizada uma nova rodada considerando apenas as duas variantes como valor de aplicação e os pesos relativos forma obtidos em função da categoria vazia. Os fatores selecionados como relevantes para preferência pela categoria vazia foram (1) a função sintática do antecedente, (2) o preenchimento ou não preenchimento da posição de sujeito, (3) o traço de animacidade do antecedente, (4) a referencialidade do antecedente e (5) o tempo. Nesta ordem, apresento os percentuais e os pesos relativos. A tabela abaixo retrata a importância da função sintática do antecedente para a escolha da variante nula. Tabela 3.14: Realização do objeto nulo em relação à posição do antecedente. Objeto Nulo P.R. N/Total % Tópico (estrutural/discursivo) 19 /33 58 .67 Predicativo 10 /17 59 .61 Objeto 99/231 42 .59 5/20 25 .56 Sujeito 39/210 19 .41 Adjunto 3/21 14 .11 357/532 67 Complemento Nominal Total A função sintática de tópico foi a que apresentou maior peso relativo (.67), ou seja, é a que mais favorece ao objeto nulo. Em segundo lugar, temos a função sintática de predicativo com peso relativo de .61 seguida da função de objeto direto (.59). Ainda 79 favorecendo ao objeto nulo, temos a função de complemento nominal com peso relativo de .56. A posição de sujeito, embora tenhamos encontrado casos de objeto nulo, representa um contexto que ainda prefere o clítico com peso relativo de .41. O peso relativo da função de adjunto (.11) indica que dificilmente teremos um objeto nulo com este tipo de antecedente, sendo o clítico a estratégia de uso. Estes pesos relativos apontam a função de adjunto e a de sujeito como ainda sofrendo alguma restrição à ocorrência do objeto nulo, ou melhor dizendo, as últimas a aceitarem a categoria vazia no processo de mudança. O fato de a função de predicativo apresentar forte tendência ao objeto nulo está relacionada a dois fatores: (a) por compor uma mini-oração, contexto apontado por Cyrino (1997), juntamente com os oracionais, como um dos primeiros a aceitar o objeto nulo e (b) devido à forma/estrutura do nome, geralmente um adjetivo sem determinante, portanto, um nome com traço de referencialidade [+referencial,específico] ou [+genérico], que de acordo com a escala de referencialidade proposta por Cyrino, Duarte e Kato (2000) seriam também os primeiros a aceitar o objeto nulo. A próxima tabela traz os pesos relativos relacionados ao preenchimento ou não do sujeito nas orações que contem o objeto direto anafórico. Tabela 3.15: Peso relativo do preenchimento do sujeito para a realização do ON. Objeto Nulo P.R N/Total % Sujeito preenchido 112/213 52,6 .52 Sujeito não preenchido 205/471 43,5 .49 Total 317/684 46,3 Para a obtenção dos valores expressos na Tabela 3.15, foram reunidas as orações com sujeitos preenchidos por pronome e o por um SN para opor aos dados com sujeito não preenchido. A intenção era verificar a relação entre o parâmetro do objeto nulo e a queda do uso de clíticos. Esperava-se que nos casos de sujeito expresso, a posição de objeto fosse preferencialmente ocupada por uma categoria vazia. Na seção anterior, apresentei a distribuição de todas as variantes neste contexto, agora, foram observados apenas os casos de pronome clítico e objeto nulo para verificar, mais acuradamente, a relação entre uma e outra forma. 80 Os números estão de acordo com as expectativas. Para as orações com o sujeito preenchido, temos um percentual maior de objetos nulos (52,6%) do que de clíticos (47,4%) e peso relativo .51 em favor do clítico, ao passo que, para as estruturas com sujeito não preenchido, conforme a segunda linha da tabela acima, temos 56,5% de preenchimento com clítico e 43,5% de objetos nulos e o peso relativo favorece a estratégia preenchida, o clítico (.49). Este resultado pode ser um indício de que existe uma relação entre a queda de uso de clíticos e o preenchimento (ou não preenchimento) do sujeito e do objeto no PB como apontou Tarallo (1993). Com base em trabalhos sobre a ordem dos constituintes da oração e sobre o preenchimento da posição de sujeito e de objeto, o autor afirma que na virada do século XIX para o XX, daí a escolha das peças que compõem este corpus, emerge no Brasil uma gramática que se caracteriza por uma ordem SV rígida e pela preferência aos pronomes sujeitos plenos e objetos nulos, diferentemente da gramática do português europeu (PE), que opta pelo objeto expresso e pelo sujeito nulo. Na amostra analisada, tanto os clíticos quanto os objetos nulos distribuem-se entre as orações com sujeito preenchido e não preenchido em percentuais bem próximos a 50% (47,4 de clíticos em orações com o sujeito preenchido e 56,5 em orações com o sujeito não preenchido; 52,6% de objeto nulo em orações com sujeito preenchido e 43,5 de objetos nulos em orações com o sujeito preenchido). A tabela que segue denota a relevância do traço de animacidade na escolha entre o clítico e o objeto nulo. Tabela 3.16: Pesos relativos do traço de animacidade do antecedente para a realização do ON. Variante Objeto Nulo P.R Condicionamento N/Total % [proposição] 158/192 82,3 .77 [-animado] 136 /265 51,3 .60 [+animado] 02/11 18.2 .59 [+humano] 24/240 10 .19 Total 320/709 45,2 Com antecedente proposicional, o ON se apresenta disparado como estratégia 81 preferencial com o peso relativo mais alto (.78). Com antecedente com traço [-animado], temos situação similar: também o peso relativo (.58) indica favorecimento ao nulo. Confirmando o que foi encontrado na análise dos dados gerais considerando todas as variantes, diferenciando o traço [+animado] do [+humano], temos este último como o grande inibidor do objeto nulo apresentando baixo peso relativo (.20) enquanto o antecedente [+animado] apresenta peso relativo de .55. Estes dados confirmam que a implementação e a transição do objeto nulo se deu a partir dos contextos proposicionais e [-animados], atingindo depois os contextos [+animados] e encontrando, por fim, alguma resistência nos contextos [+humanos]. A próxima tabela ilustra a distribuição das formas no quarto grupo selecionado como favorecedor do objeto nulo, a referencialidade do antecedente. Tabela 3.17: Pesos relativos da referencialidade do antecedente para a realização do ON. Variante Objeto Nulo P.R Condicionamento N/Total % [proposicional] 156/190 82 .67 [+genérico] 42/68 62 .65 [+referencial/ - específico] 76/178 43 .44 [+referencial/+específico] 46/273 17 .38 Total 320/709 45 Observando a coluna do objeto nulo, vemos que os percentuais vão crescendo à medida que o antecedente vai ficando mais genérico. Seguem esse padrão os pesos relativos. Para os contextos referenciais [+específicos], temos .38 (um valor baixo indicando que este contexto não favorece ao objeto nulo, mas sim ao clítico) e para os referenciais [-específicos] temos .44 (número mais elevado, no entanto, ainda favorecedor do clítico) Para os antecedentes mais genéricos, o peso relativo já denota a tendência ao objeto nulo (.65) assim como para os antecedente proposicional. Este padrão está totalmente consoante com a escala de referencialidade proposta por Cyrino, Duarte e Kato (2000): a mudança em direção ao objeto nulo se inicia pelos contextos menos específicos encontrando resistência nos antecedentes com traço [+específico]. Aqui 82 podemos observar e confirmar a aplicabilidade da escala de referencialidade mencionada e os pesos relativos dos condicionamentos comprovam a mudança se implementando dos contextos mais genéricos para os mais específicos, sendo este último um dos últimos contextos de resistência do clítico. Por fim, apresento a tabela 3.18 que traz os pesos relativos para o objeto ao longo do tempo, o último fator selecionado pelo programa. Tabela 3.18: Pesos relativos do período de tempo (data de publicação da peça) para a realização do ON. ON P.R. N/Total % 1992 67/68 98,5 .99 1975 67/111 60,4 .74 1955 47/63 74,6 .78 1937 25/60 41,7 .42 1918 46/130 35,4 .30 1883 22/54 40,7 .35 1860 15/129 11,6 .09 1845 31/93 33.3 .36 Total 320/709 45,2 Aproximando as porcentagens, podemos afirmar que ocorreu uma mudança linguística em favor do objeto nulo. No primeiro período, o clítico acusativo é mais expressivo do que o objeto nulo, e passa a inexpressivo no último período (1,5%), tendo sido substituído pela categoria vazia na posição de objeto direto (98,5%), que praticamente totaliza o número dos dados. A distribuição dos pesos relativos, .36, .09, .35, .30, .42, .78, .74, .99 em ordem crescente de período, comprovam a mudança. O objeto nulo, ao longo do tempo vai ganhando espaço até se tornar escolha preferencial na realização do objeto nulo. O período representado pelos anos de 1955 é aparentemente o que corresponde ao momento em que o objeto nulo ultrapassa as porcentagens de uso do clítico acusativo. Essa mudança é mostrada no Gráfico 3.2 a seguir. 83 Gráfico 3.2: Evolução do objeto nulo ao longo do tempo na amostra analisada. 1,00 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00 1845 1860 1882 1918 1937 Clítico Zero 1955 1975 1991 O Gráfico 3.2 nos possibilita enxergar o encaixamento da preferência do objeto nulo sobre o clítico acusativo, visto que as curvas são praticamente simétricas indicando que um fenômeno ocorre em paralelo ao outro. Entre o 5º e o 6º períodos, ou entre 1937 e 1955, vemos o ON, em ascensão, se sobrepor ao clítico e este prosseguir decrescente até o fim dos períodos analisados. A partir da tabela acima, podemos inferir que o aparecimento do objeto nulo está intimamente relacionado à queda de uso do clítico, que por sua vez, está encaixada na fixação da ordem SV no português brasileiro e do nosso sistema pronominal. WLH (1968) afirmam que uma mudança deixa vestígios ou “efeitos colaterais” que atestam um novo traço de fato se instalando no sistema. Assim, se o objeto direto anafórico é representado por um pronome e se, de fato ocorreu uma mudança na sintaxe pronominal do português, é natural esperar que a realização do objeto direto anafórico também acompanhe a mudança nas sua estratégias de realização. Foi apresentada até agora, a distribuição das duas variantes em competição e os pesos relativos de acordo com os fatores selecionados pelo GOLDVARB como favorecedores ao objeto nulo, variante tomada como valor de aplicação da rodada. Todavia, é interessante apresentar os resultados de alguns grupos de fatores não selecionados pelo programa computacional com o qual operamos. Em outras palavras, a 84 não seleção desses fatores nos possibilita tirar conclusões interessantes a cerca do fenômeno estudado. O primeiro fator a ser analisado é o tipo sintático da oração que contém o objeto direto anafórico. Tabela 3.19: Distribuição do objeto nulo segundo o tipo de oração. Variantes Condicionamento Clítico Objeto Nulo Total N % N % N % Raiz (matriz/simples/primeira, em coordenação) 144 46,2 168 35,8 312 100 Coordenada (segunda coordenada) 87 57,2 65 42,8 152 100 Completiva de verbo com função de sujeito 12 66,7 6 33,3 18 100 Completiva de verbo com função de objeto 51 63,8 29 36,2 80 100 Completiva de nome 13 65,0 7 35,0 20 100 Relativa 22 81,5 5 18,5 27 100 Adjunta 59 59,6 40 40,4 99 100 Total 388 54,2 320 45,2 709 100 A distribuição dos percentuais apresentados na tabela acima nos revela que as estruturas que formam as ilhas sintáticas não apresentam qualquer tipo de restrição ao objeto nulo, visto que temos ocorrência desta variante em todos os contextos oracionais, inclusive nas orações relativas (5 – 18,5%), nas adjuntas (40 – 40,9%) e nas completivas nominais (70-35,0%). Certamente, o fator não foi selecionado devido a essa distribuição relativamente homogênea dos percentuais, indicando o contrário do que Raposo (1986) aponta para o PE. Outro fator não selecionado que merece destaque é a forma/especificidade do antecedente. Pretende-se com estas classificações considerar a presença/ausência de determinantes (nomes com determinantes são considerados mais específicos) e verificar a ocorrência de objetos nulos com antecedentes contáveis no singular sem determinante, estrutura que não ocorre no PE, como mais um traço diferenciador do PB com relação ao PE no tocante a este fenômeno. 85 Tabela 3.20: Distribuição do objeto nulo segundo a forma/especificidade do referente. Variantes Clítico Objeto Nulo Total Condicionamento N % N % N % Contáveis no plural com determinante 28 84,8 5 15,2 33 100 Contáveis no plural sem determinante 5 55,6 4 44,4 9 100 Contáveis no singular com determinante 219 73,0 81 27,0 300 100 Contáveis no singular sem determinante 58 76,3 18 23,7 76 100 Não contáveis com determinante 32 50,0 32 50,0 64 100 Não contáveis sem determinante 14 31,8 30 68,2 44 100 Total 356 67,7 170 32,3 526 100 Marafoni (2004) observa a preferência pelo objeto nulo com antecedentes não contáveis no singular sem determinante. Corroborando o resultado, a última linha da tabela acima nos mostra claramente a preferência dos contextos com antecedente não contável sem determinante ao objeto nulo tendo sido registrado para este casos índice relativamente alto de ocorrência de ON (30 – 68,2%). Para nomes contáveis no plural, temos equilíbrio entre as variantes, o que favorece à mudança em direção ao objeto nulo que como já mencionado, se inicia pelos contextos [-específicos]. Com nomes não contáveis com determinante, conforme mostra a penúltima linha, temos equilíbrio entre o preenchimento com clítico e a categoria vazia. Com nomes contáveis no singular sem determinantes, um dos focos dessa análise, temos 18 ocorrências (23,7%) de objeto nulo. De fato, é um valor significativamente menor ao de ocorrência de clíticos (58 – 76,3%), mão não indica uma restrição. Ao contrário, temos os nomes com determinantes, como era de se esperar por serem contextos com traço [+referencial], nitidamente favoráveis ao clítico (com 84,8 e 73,0%) indicando que este deve ter sido o último dos fatores a aceitar a categoria vazia. Mesmo que o programa não tenha selecionado o fator forma/especificidade do antecedente, o cruzamento deste com o fator referencialidade nos traz resultados interessantes que complementam e reafirmam o exposto anteriormente. Os números e percentuais nos apontam os nomes não contáveis com ou sem determinante com traço [+genérico] sendo como os que favorecem o objeto nulo, tendo 86 sido computados respectivamente 82% e 67% das ocorrências nestes contextos. Os nomes contáveis no singular sem determinante neste mesmo contexto de referencialidade também demonstram preferência pelo ON com 69% e os nomes contáveis no plural sem determinante apresentaram uma distribuição equilibrada com metade dos dados retomados por clítico e outra metade pela categoria vazia. No caso dos contextos [+referenciais,-específicos] os nomes não contáveis sem determinante são retomados pela categoria vazia em 71% das ocorrências e os contáveis no plural sem determinante em 50% dos casos. Em todos o outros contextos, o clítico ainda é a estratégia preferencial (com mais de 50% das ocorrências). Este cruzamento de dados corrobora a escala de referencialidade mencionada acima com relação à direção de implementação da mudança em direção ao objeto nulo aqui estudada. 3.3 Algumas observações sobre a questão da mudança linguística Os resultados relativos à evolução das variantes ao longo do tempo nos levam a uma reflexão sobre a questão da mudança em direção à preferência pelo objeto nulo no PB. Desse modo, nesta seção trago algumas observações concernentes à mudança considerando dois aspectos: num primeiro momento, vamos considerar o peso das variáveis independentes em cada ponto na linha do tempo para o condicionamento do objeto nulo; em um segundo momento, vamos considerar a questão do encaixamento da mudança. Cabe aqui tecer algumas observações a cerca do que esta amostra nos pode dizer sobre os cinco problemas da mudança linguística apontados por WLH (1968). Primeiramente, sobre o problema das restrições, posso afirmar a partir destes resultados que ao fim do século XX, ultimo período analisado, o PB não apresenta resistência ao objeto nulo, podendo esta variante aparecer em todos os contextos analisados. Os fatores que condicionam, ou melhor, que possibilitam e atuam no processo de mudança do clítico acusativo para o objeto nulo foram a função do sujeito, a presença ou não do sujeito nas orações que contém o objeto direto anafórico, a animacidade do antecedente, a referencialidade do antecedente e o tempo, condicionamento que favorece à mudança linguística indicando que as frequências de uso das variantes em questão se alteraram 87 significativamente. O Gráfico 3.3 a seguir retrata a implementação do objeto nulo ao longo do tempo considerando a função sintática do antecedente. Gráfico 3.3: Período de tempo vs. função do antecedente do ON. 1,00 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00 1845 Tópico 1860 1882 Predicativo 1918 Objeto 1937 C. Nominal 1955 Sujeito 1975 1991 Adj. Adnominal O Gráfico 3.3 nos mostra que a função de predicativo já aceita o objeto nulo desde os primeiros períodos da amostra. A função de tópico, a segunda a atingir o percentual de 100%, apresenta percentual significativo (50%) no primeiro período da amostra (1845) e segue oscilando até 1937, voltando a aparecer somente em 1975 com alto percentual (90%). A função de objeto apresenta linha ascendente no decorrer dos períodos da amostra. As funções de sujeito, de complemento nominal e de adjunto ficam marcadas como aquelas que oferecem certa resistência ao objeto nulo, logo, contextos em que a mudança prossegue mais lentamente, indicando a direção de implementação da mudança. O Gráfico 3.4 a seguir demonstra o traço de animacidade do antecedente ao longo do tempo, outro fator selecionado. 88 Gráfico 3.4: Período de tempo vs. animacidade do antecedente do ON. 1,00 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00 1845 1860 1833 [+proposicional] 1918 [-animado] 1937 1960 [+animado] 1975 1992 [+humano] O Gráfico 3.4 nos possibilita visualizar melhor os dados da Tabela 3.16. Claramente, os contextos oracionais foram os primeiros a aceitarem o objeto nulo, pois ainda no século XIX os percentuais são consideravelmente altos. O contexto [-animado], entre 1860 e 1937, apresenta um aumento gradativo de objetos nulos e a partir de então, passa a aceitar a variante seguindo um fluxo crescente e corroborando os resultado de pesquisas já realizadas a cerca do fato de terem sido estes os primeiros contextos a abrirem as portas para o objeto nulo. Não foram obtidos muitos dados com o traço [+animado], tendo sido computados penas 02 casos. Com relação ao traço [+humano], somente a partir de 1937 começa a aceitar o objeto nulo, que também a partir daí passa a ser mais produtivo. Posso afirmar que foram corroborados os resultados anteriores acerca da animacidade do antecedente. Os percentuais e os pesos relativos indicam que a mudança se iniciou pelos contextos oracionais e predicativos, seguidos dos [-animados], em seguida, atingindo mais lentamente os contextos [+animados] e ainda sofrendo alguma resistência aos [+humanos]. A hierarquia de referencialidade também é confirmada com os números apontados na subseção anterior, indicando que a mudança em direção à categoria vazia se inicia pelos contextos mais genéricos e se implementa na direção do contexto 89 [+humano, +específico] (o exemplo do único caso de clítico que temos no último período representa essa restrição). O gráfico abaixo reproduz a ao longo do tempo a referencialidade na implementação do objeto nulo. Gráfico 3.5: Período de tempo vs. referencialidade do antecedente do ON. 1,00 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00 1845 1860 1883 [+proposicional] 1918 1937 [+genérico] 1960 [-específico] 1975 1992 [+específico] Notamos através do Gráfico 3.5 que o contexto proposicional, em 1883, ainda no século XIX, já apresenta alto percentual de objeto nulo. O traço [+genérico], a partir do mesmo ano, inicia seu processo ascendente, chegando em 1937 com percentual também elevado. O contexto [+referencial/-específico] demonstra resistência ao objeto nulo até 1937 quando daí em diante notamos sua ascendência. O contexto [+referencial/+específico] é o que mais resiste à implementação do objeto nulo, que inicia sua ascendência também em 1937, porém, de modo mais lento do que o contexto [+referencial/-específico]. Somente no século XX os contextos [+referencial/+ ou – específico] abrem as portas para a variante inovadora. O estabelecimento dessas restrições indicam também a direção da implementação da mudança servindo como resposta à indagação acerca do porquê uma mudança ocorreria em um momento determinado e não em outro. Ao longo do tempo, as restrições vão enfraquecendo, como foi aqui demonstrado, chegando ao último período 90 com apenas uma ocorrência de clítico denotando o percurso temporal da implementação da mudança. De acordo com WLH (1968), uma mudança implica um momento anterior de variação, que está representado pela análise empreendida na primeira seção deste capítulo. Quanto ao problema da transição, que define o percurso através do qual cada mudança se realiza, o percurso dos valores relativos apresentados na tabela 18 ilustram que a mudança se deu através de um continuum que culmina na quase total eliminação do clítico em função do objeto nulo como estratégia de retomada de objeto direto anafórico. Esta assertiva está intimamente relacionada ao problema do encaixamento. Este, baseado no princípio de que uma mudança só pode ser compreendida se estiver inserida no sistema linguístico que ela afeta, ou seja, se ela for encaixada, busca desvendar a natureza e a extensão desse encaixamento. Mais uma vez, as tabelas analisadas nos possibilitam afirmar que o aumento da frequência de uso do objeto nulo está intimamente relacionada à queda de uso do clítico acusativo. O tempo, ou a data de representação da peça, seriam o fatores extralinguísticos atuantes no encaixamento desta mudança, visto que ela se dá ao longo do tempo, e também na implementação, já que o enfraquecimento das restrições ao longo do tempo possibilitam a expansão de uma das variante a contextos estruturais restritos, até certo momento. Considerando Duarte (1993), que analisa a representação do sujeito pronominal no mesmo corpus, notamos que a implementação do sujeito pronominal coincide com o aumento do objeto nulo. O Gráfico 3.6 demonstra o quanto estão imbricados os dois fenômenos. 91 Gráfico 3.6: O encaixamento da mudança: percurso do sujeito nulo (Duarte, 1993) e do objeto nulo na amostra de peças 1,00 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00 1845 1882 1918 Sujeito Nulo 1937 1955 1975 1992 Objeto Nulo O Gráfico 3.6 nos mostra que em 1918 (peça “O simático Jeremias”), o objeto nulo inicia seu processo de ascendência, e concomitantemente, o sujeito nulo passa a ser menos produtivo (cf. Duarte, 1993:111). Claramente nota-se a inter-relação entre os dois fenômenos também apontados por Tarallo (1993), que chama atenção para esses dois processos de mudança sofridos elo PB na direção oposta ao que se verifica no PE. A avaliação, que mensura até que ponto a avaliação do falante sobre determinada variante pode inferir no processo de mudança, nos leva a crer que o objeto nulo, variante inovadora, é livremente aceito pelo falante. Os 8 casos de pronome lexical estão relacionados ao traço [+animado] do antecedente, que geralmente ocupa a função de sujeito, que por sua vez, inibe o objeto nulo. No próximo capítulo serão feitas as considerações finais acerca dos resultados encontrados e da contribuição deste trabalho para os estudos de variação e mudança linguística. 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo deste trabalho foi descrever e analisar o quadro de variação das representações do objeto direto anafórico em um corpus composto por peças teatrais escritas entre a segunda metade do século XIX e o século XX. O objetivo primeiro foi através de um quadro de variação capturar e apresentar dados empíricos do percurso de uma mudança que já foi atestada no PB em trabalhos como os de Duarte (1986): o clítico acusativo não mais configura como a principal opção de retomada do objeto direto, tendo cedido espaço para o objeto nulo, que aparece atualmente como a opção preferencial do falante nas mais variadas escalas de níveis sociais e escolares. Buscou-se também relacionar, dentro dos pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística Paramétrica, este processo de mudança a outros processos no interior do sistema linguístico, principalmente com a queda dos clíticos, mais especificamente o acusativo de terceira pessoa. Inicialmente, foi feita uma retomada dos principais trabalhos que abordam o objeto direto a fim de levantarmos os contextos relevantes de serem analisados por de alguma forma influenciarem na escolha de uma ou outra estratégia. Em seguida foram levantadas as seguintes hipóteses: (a) o PB apresenta no fim do século XX, ao contrário do que dizem os resultados de pesquisas sobre o PE, alto índice de objetos nulos e baixíssimo índice de clíticos; (b) o aumento de objetos nulos está intimamente relacionado à diminuição de clíticos que, por sua vez, é consequência de uma reorganização do sistema pronominal; (c) o objeto nulo não apresenta restrições no PB; (d) o traço [+específico,+animado] ainda configura como um ambiente de resistência do objeto nulo, a exemplo da escala de referencialidade proposta por Cyrino, Duarte e Kato (2000); (d) o SN aparece como mais uma estratégia de substituição do objeto direto, (e) o pronome nominativo, uma estratégia estigmatizada pelos falantes, não compete com as outras formas, aparecendo em poucos e específicos casos. 93 Para testar essas hipóteses, a estratégia de realização do objeto direto foi escolhida como a varável dependente e as variantes analisadas foram: clítico acusativo, SN, demonstrativo neutro, pronome lexical (ou pronome nominativo) e objeto nulo. Como variáveis independentes foram selecionados fatores de natureza sintática, morfológica e semântica que pudessem indicar o percurso de implementação da mudança que se deseja captar e demonstrar aqui. Os resultados obtidos foram os seguintes: Primeiramente, os resultados no cômputo geral apresentaram a seguinte distribuição: a porcentagem de clíticos (48,0%) apesar de ainda ser a maior dentre as variantes, se somarmos os valores absolutos de preenchimento do objeto direto anafórico através de pronome lexical (1,0%), SN (8,5%) e objetos nulos (39,6%) chegaríamos a um resultado bem próximo ao número de clíticos (49,1%), o que pode comprovar que o fenômeno encontra-se em variação. O SN anafórico aparece como a terceira opção de retomada com (8,5%) e em seguida, o pronome lexical com apenas (1,0%). Este resultado indica que realmente outras estratégias foram encontradas pelo falante para substituir o uso do clítico, que foi diminuindo ao longo do tempo. Observando a linha do tempo, o SN anafórico, observado por Duarte (1986), a partir dos anos 1918 alcança uma porcentagem relativamente estável e aparentemente se fixa como uma das estratégias possíveis de retomada do objeto direto. Podemos observar também, a partir dos anos 1955 na peça Um Elefante no Caos, de Millôr Fernandes, o aparecimento da estratégia não recomendada pela gramática normativa, o pronome lexical. Note-se que, mesmo sendo uma estratégia não prestigiada e de todas a menos frequente, temos registro desta variável em todos os períodos seguintes ao seu aparecimento. O demonstrativo anafórico isso, a quem geralmente cabe a retomada das orações na posição de objeto também é substituído pela categoria vazia, não tendo sido encontrada nenhuma ocorrência no último período. Os percentuais confirmam que as formas que entram em competição são o clítico, que apresenta queda de uso (de 62% para 1%) e o objeto nulo, que apresenta aumento na porcentagem de ocorrências (de 30,1% para 82%) no decorrer dos períodos analisados. No segundo período do século XX (1937), o clítico já não corresponde a metade das ocorrências, com percentual de 47,9%. No último período, houve apenas uma ocorrência 94 da variante padrão. Após constatado que o pronome clítico e a categoria vazia são as formas que entram em competição, procedeu-se a uma análise de regra variável de caráter binário e foram encontrados os fatores considerados relevantes para preferência pela categoria vazia: (1) a função sintática do antecedente, (2) o preenchimento ou não preenchimento da posição de sujeito, (3) o traço de animacidade do antecedente, (4) a referencialidade do antecedente e (5) o período. Os pesos relativos apontam a função de adjunto e a de sujeito como as que sofreram alguma restrição à ocorrência do objeto nulo, portanto, sendo as últimas a aceitarem a categoria vazia no processo de implementação da mudança. A função sintática de tópico foi a que apresentou maior peso relativo (.67), ou seja, é a que mais favorece ao objeto nulo. Em segundo lugar, temos a função sintática de predicativo com peso relativo de de .61 seguida da função de objeto direto (.60). Ainda favorecendo o objeto nulo, temos a função de complemento nominal com peso relativo de .56. Quanto ao preenchimento ou não do sujeito nas orações que contém o objeto direto anafórico, os números estão de acordo com as expectativas. Para orações com o sujeito preenchido, temos um percentual maior de objetos nulos (52,6%) do que de clíticos (47,4%) e peso relativo .51 em favor do objeto nulo, ao passo que, para as estruturas com sujeito não preenchido, conforme a segunda linha da tabela 23, temos 56,5% de preenchimento com clítico e 43,5% de objetos nulos e o poso relativo favorece a estratégia preenchida, o clítico (.50). Este resultado pode ser um indício de que existe uma relação entre a queda de uso de clíticos e o preenchimento (ou não preenchimento) do sujeito e do objeto no PB como apontou Tarallo (1993). Mais especificamente, nos possibilita relacionar dois fatos linguísticos: a preferência por sujeitos preenchidos e por objetos nulos. A relevância do traço de animacidade na escolha entre o clítico e o objeto nulo reside na confirmação de que a implementação e a transição do objeto nulo se deram a partir dos contextos com antecedentes [+proposicionais] e [-animados], atingindo depois os contextos [+animados] e encontrando, por fim, com alguma resistência, os contextos [+humanos]. Com relação ao traço de referencialidade, a preferência pelo objeto nulo aumenta à medida que o antecedente vai ficando com traço [+genérico]. Para os 95 contextos com antecedentes [+referenciais, +específicos], temos peso relativo de .38 (um valor baixo indicando que este contexto não favorece ao objeto nulo, mas sim ao clítico) e para os antecedentes [+referenciais, +específicos], temos .43 (peso relativo mais elevado, no entanto, ainda favorecedor do clítico). Para os antecedentes com traço [+genérico], o peso relativo já denota a tendência ao objeto nulo (.65), assim como para o antecedente proposicional (.67). Este padrão está totalmente consoante com a escala de referencialidade proposta por Cyrino, Duarte e Kato (2000): a mudança em direção ao objeto nulo se inicia pelos contextos menos específicos encontrando resistência nos antecedentes com traço [+específico]. Temos aqui uma hipótese confirmada. O objeto nulo apresentou a seguinte distribuição dos pesos relativos: .36, .09, .35, .30, .42, .78, .74, .99 em ordem crescente de período, comprovam a mudança. O objeto nulo, ao longo do tempo, vai ganhando espaço até se tornar escolha preferencial na realização do objeto direto anafórico. O período representado pelos anos de 1955 é aparentemente o que corresponde ao momento em que o objeto nulo ultrapassa as porcentagens de uso do clítico acusativo. As hipóteses inicialmente expostas foram confirmadas e, como se esperava em (a), ao fim do século XX, o PB apresenta, conforme as pesquisas citadas no capítulo 1, alto índice de objetos nulos e baixíssimo índice de clíticos, sendo a forma verbal (mais especificamente as formas com infinitivo), o fator linguístico que resgata o uso desta última variante. O Gráfico 3.2 confirma a hipótese (b) e demonstra a relação entre a queda do clítico acusativo de terceira pessoa e o aumento de objetos nulos configurando a mudança linguística. O único exemplo de clítico encontrado na peça de 1992 confirma a hipótese (d) na qual o traço [+específico, +animado] ainda seria um contexto de resistência do clítico. O SN, destacado por Duarte (1986), se fixa como uma das estratégias de realização do objeto direto anafórico e apresenta-se estável a partir de 1937 confirmando a hipótese (d) e o pronome lexical aparece com alguma expressão na amostra em 1955, mas, como esperado em (e), não apresenta alto índice de uso. A partir destes resultados, somente na segunda metade do século XX é que começa a surgir a face do português brasileiro. De modo geral, podemos dizer que os resultados apresentados confirmam a 96 hipótese central desta pesquisa: a de que na virada do século XIX para o XX podemos entrever, a partir de um estágio de variação, uma mudança linguística no PB: a substituição do clítico acusativo de terceira pessoa pelo objeto nulo na realização do objeto direto anafórico. Acreditamos que os resultados aqui demonstrados confirmam a mudança e esperamos que tragam contribuições aos estudos linguísticos, mais especificamente, nos estudos sobre o objeto anafórico no português. Este trabalho contribui também para mostrar que a norma atua na escolha do falante até certo ponto, visto que mesmo sendo o clítico a estratégia recomendada pela gramática, os resultados nos comprovam que o uso, por razões linguísticas e históricas, não acompanha a regra prescrita pela gramática normativa. 97 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVERBUG, M. C. (1998) Objeto direto anafórico: variação na produção oral e escrita e influência do ensino. Estudos da Linguagem: atualidades e paradoxos: Anais do VII Congresso da ASSEL-RIO. Rio de Janeiro: ASSEL-RIO. p. 680-687. AVERBUG, M. C. (2000) Objeto direto anafórico e sujeito pronominal na escrita de estudantes. Dissertação de Mestrado (Letras Vernáculas), Universidade Federal do Rio de Janeiro. BALTOR, C. da S. (2003) Estudo variacionista do objeto direto de terceira pessoa em série anfórica do falar pessoense, Paraíba. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa, Universidade Federal da Paraíba. BERLINCK, R. de A. 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