Global Green New Deal: uma receita para a crise
A
recente publicação no âmbito
das Nações Unidas de um
a perda líquida global é ainda de 7,3
«Os problemas que hoje enfrentamos com as actuais formas de pensar não podem ser
resolvidos pelas mesmas formas de pensar que os criaram.»
programa mundial integrando
milhões por ano, sobretudo nas regiões da
África sub-sariana, da América Latina e das
Albert Einstein
soluções económicas, financei-
Caraíbas — o que contribui não só para o
aumento do dióxido de carbono (CO2) na
ras, sociais e ambientais é um
e ao galopante esgotamento dos recursos
Alguns países da América Latina, como o
atmosfera, como para a redução das reser-
que se espera produza reflexos nas políticas
naturais denunciados no relatório Brun-
Brasil, poderão estar em recta ascendente,
vas de água doce potável. A este propósito,
de todos os países a curto prazo.
dtland – o Nosso Futuro Comum (1987); e
mas tanto na Oceânia, como no Leste da
a batalha continua difícil de vencer: 884
Este documento, resultante do contributo
à escalada da desflorestação e das alterações
Ásia e na África sub-sariana, a incapacidade
milhões de pessoas no mundo continuam
de alguns dos principais economistas mun-
climáticas que originaram convenções na
de implementar acções fortes contra a fome
a depender de fontes de água “impróprias”
diais, designado Global New Green Deal,
Cimeira do Rio de 1992... Todos estes avisos
poderá originar uma longa crise alimentar. As
para beber, cozinhar e tomar banho. De
desenha um quadro muito nítido daquilo
foram-se tornando cada vez mais nítidos aos
consequências podem ser fatais, pois mais de
entre estas, 84% vivem em áreas rurais,
a que generalizadamente usamos chamar
olhos da opinião pública e dos responsáveis
um terço das mortes de crianças em todo o
sendo que apenas 27% da população rural
“crise” e aponta um pacote de incentivos
políticos – quase sempre negligentes face
mundo é ainda atribuída à desnutrição.
mundial beneficia de água canalizada em
e medidas muito concretas e diversificadas
ao que consideravam profecias da desgraça
Outro indicador importante que registou
casa. Os enormes investimentos realizados
para se sair dela.
num mundo em boom desenvolvimentista.
progressos foi o acesso à educação primária,
no sector para expandir as fontes de água
A crise, como hoje se sabe bem, são várias
Demorou demasiado tempo para se
dado que os registos de matrículas, tanto
“melhoradas” não têm obtido os resultados
crises e – embora global – está longe de ser
perceber a profunda comunicação interna
na África sub-sariana como no sul da Ásia
esperados, não cumprindo os critérios
uniforme conforme os países e regiões do
que unia estas más notícias às crises sociais
aumentaram 15% e 11% entre 2000 e 2007,
básicos estabelecidos pela OMS.
mundo. É certo que a sua sinistra notorie-
– seja as da persistente pobreza do 3.º Mun-
respectivamente. Mesmo assim, ainda era
Relacionadas com o problema da água, estão
dade advém do acontecimento financeiro
do, seja as das rupturas sociais do mundo
negado o direito à educação a 77 milhões
as más condições de saneamento: em 2006,
norte-americano do ano passado. Foi lá que
desenvolvido. Mas a pobreza e as desigual-
de crianças no mundo inteiro em 2007.
cerca de 2,5 mil milhões de pessoas ainda
o crédito imobiliário mal parado desenca-
dades sociais mostraram-se finalmente como
Quanto à desflorestação mundial, continua
não dispunham de acesso a instalações
deou em cascata a derrocada do edifício de
a outra face da exaustão natural do planeta,
a um ritmo alarmante, atingindo 13 milhões
sanitárias, para não falar na falta de trata-
fantasias bancárias em que vivia o sistema
e a implicação recíproca de ambas designou-
de hectares por ano (uma área equivalente
mento de esgotos. Este é outro objectivo do
financeiro — aí não só norte-americano, mas
-se a “insustentabilidade” do sistema.
ao Bangladeche!). Apesar da crescente
milénio em larga escala de incumprimento,
plantação e restauro de áreas florestais,
sendo que a actual crise económica e finan-
acontecimento de largo alcance
global. É história sabida.
Contudo, a doença do sistema revelou
Objectivos de Desenvolvimento
raízes bem mais antigas e mais fundas. Um
do Milénio em derrapagem
sistema económico que assenta historica-
Aquilo a que hoje chamamos crise é, pois, o
mente na exploração ilimitada de recursos
ataque de febre agudo desta outra crise que
finitos e na perpetuação das mais desuma-
se chama a insustentabilidade e que tem
nas desigualdades sociais é o rosto daquilo
levado ao agudizar de todos os problemas.
que se chama a “insustentabilidade”.
Os próprios Objectivos de Desenvolvimento
Não podemos sequer dizer que é novidade.
do Milénio definidos em 2000 pela ONU para
O EMPREGO NAS ENERGIAS RENOVÁVEIS (em % e número total)
Energia hídrica
Geotérmica
Solar térmica
Solar fotovoltaica
cientistas de vários quadrantes alertaram
postos em causa. Os números são impressi-
Vento
para a insustentabilidade ambiental e social
vos, para não dizer impressionantes. Apesar
do sistema que estava a ser construído.
da descida da taxa de pobreza no Leste da
Mas a vertigem eufórica dos ganhos levava
Ásia, graças sobretudo ao rápido crescimento
sempre a recusar esses avisos como agoiros
da China (que ajudou a retirar da extrema
de desmancha-prazeres.
pobreza cerca de 475 milhões de pessoas),
Desde a constituição da FAO, no pós-guerra,
no resto do mundo engrossou a população
com os alertas do seu primeiro presidente,
extremamente pobre: a região sub-sariana,
o agrónomo e médico Josué de Castro;
por exemplo, contou com mais 100 milhões
ao célebre livro de Rachel Carson (Silent
de pessoas nessas condições em 2005
Spring, 1962); ao Clube de Roma e respecti-
comparativamente a 1990. As estimativas
vo Relatório Meadows sobre os “Limites do
entretanto dramatizaram-se: calcula-se que o
Crescimento” (1968); às fomes mediatizadas
número de pessoas vivendo na extrema po-
do Biafra; às guerras coloniais; às crises do
breza em 2009 seja 55 milhões a 90 milhões
petróleo dos anos 70 (1973/74 e 1979/80);
a mais do que se esperava antes da crise
à diminuição e colapso da biodiversidade
económica, embora com variações regionais.
2%, 39.000
1%, 25.000
27%, 624.000
7%, 170.000
31%, 6.300.000
13%, 300.000
10%, 2.100.000
Biocombustível
59%, 12.000.000
p
Fonte: International Labour Organisation (ILO), 2008. = Previsão.
TAXA E NÚMERO DE EMPREGOS NO MUNDO
N.º total de empregos no mundo (mil milhões)
Número de empregos no mundo (valores aproximados, mM)
Taxa de emprego
3,00
62,0
2,25
61,5
1,50
61,0
0,75
60,5
0
60,0
1998
1999
2000
2001
Fonte: International Labour Organisation (ILO), 2008.
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
Taxa de emprego (%)
JANUS 2010 anuário de relações exteriores
50%, 1.174.000
Biomassa moderna
atingir em 2015 estão hoje completamente
De há muitas dezenas de anos para cá,
2030 p
2006
O futuro e as crises ambientais
Luísa Schmidt
2.15
ceira contribuiu para atrasar fortemente
humanidade: a instabilidade climática e a
quase todas as metas que já estavam, aliás,
escassez ecológica.
em derrapagem e veio agravar a situação de
Num momento em que os governos de todo
muitas outras camadas da população mun-
o mundo prometeram três triliões de dó-
dial até aqui fora de perigo, à medida que o
lares em pacotes de incentivos fiscais para
número de desempregados cresce exponen-
reinflaccionar a procura em 2009 e 2010,
cialmente. Trata-se do fenómeno dos “novos
o plano advoga que uma parte substancial
pobres” estimando-se que, em 2009, mais
deste valor seja investido em “empregos
de 100 milhões de pessoas possam passar
verdes” e no “crescimento verde”, conside-
a viver abaixo do limiar de pobreza ( Voices
rado “corda de salvação de uma economia
of the Vulnerable, ONU 2009). De resto,
mundial do século XXI”, como escrevia
por cada 1% de queda no crescimento das
recentemente Ban Ki-Moon, secretário-ge-
economias dos países em desenvolvimento,
ral das Nações Unidas. O objectivo é criar
regista-se um aumento de 20 milhões de
uma economia sustentável com uma nova
pessoas na legião de pobres.
geração de empregos em sectores como as
energias renováveis, eficiência energética,
SECTORES PRIORITÁRIOS A INVESTIR
1. Eficiência energética — Os edifícios são responsáveis por 30 a 40% de toda a energia gasta,
emissões de GEE e de lixo. A simples aplicação de medidas para o seu recondicionamento energético pode levar a uma redução de 80% destes efeitos, abrindo oportunidades de investimento
e de criação de empresas e empregos qualificados. Em muitas circunstâncias, permite envolver
a recuperação de técnicas tradicionais de construção eficientes e ambientalmente benignas. Nos
EUA, por exemplo, estão a aplicar-se 825 mil milhões de dólares no incentivo ao pacote energético (edifícios, renováveis e redes eléctricas), prevendo-se gerar 5 milhões de postos de trabalho.
2. Transportes — O sector dos transportes vai requerer uma melhoria de 50% da sua eficiência
até 2050 para estabilizar as emissões de CO2. Nos países da OCDE, com a aplicação rápida de
tecnologias já disponíveis, poderiam ser poupados anualmente 6 biliões de barris de petróleo e
2 gigatoneladas de emissões de CO2; bem como criar 3,8 milhões de empregos só na construção
de automóveis limpos e outros 19 milhões de empregos indirectos no sector de transportes
públicos. A política dos transportes e a reorientação enérgica para o ferroviário é uma peça charneira desta mudança.
3. Renováveis — A geração de energia limpa com origem em fontes renováveis é um benefício,
tanto para os países desenvolvidos, como em vias de desenvolvimento. Recorde-se que 80% dos
africanos não tem acesso à electricidade, pelo que a destruição das florestas é inevitável e a desertificação avança. O investimento em i&d neste sector é crucial para incentivar a microgeração
de energia, diminuir a dependência energética e garantir grandes produções de energias limpas.
Na África do Sul, a iniciativa “Working for Water” emprega mais de 30 mil pessoas no combate à
infestação de plantas invasivas que ameaçam a água, as terras aráveis e os destinos turísticos. As
plantas são convertidas em combustível que já supre 2% das necessidades de energia eléctrica do
país e criou mais 5 mil empregos
Novos investimentos, novos empregos,
habitação, transportes sustentáveis, agri-
mais futuro
cultura, pesca, gestão da água e território...
Para contrariar este horizonte de derrocada
Para todos estes sectores foram definidas
das sociedades humanas e do planeta,
metas, não só claras, como tecnicamente
têm-se mobilizado todo o tipo de organiza-
exequíveis com os recursos já disponíveis
ções internacionais. Neste sentido, a ONU,
(ver ”Sectores prioritários a investir”).
enquanto autoridade que detém a chave do
Ao mesmo tempo recomendam-se mudan-
sistema internacional, produziu um docu-
ças políticas em algumas áreas-chave, tais
mento programático de política mundial: o
como acabar com os subsídios perversos
Global Green New Deal (GGND). Trata-se de
à agricultura, à pesca e aos combustíveis
um plano realista e exacto com medidas ur-
fósseis; promover um sistema de incentivos
gentes e inevitáveis – pelas quais as políticas
que encorajem comportamentos responsá-
dos vários Estados vão ter de alinhar os seus
veis ambientalmente, tanto dos indivíduos
programas de forma adaptada às circunstân-
como das empresas; levar a cabo uma
cias e às responsabilidades de cada um.
reforma fiscal “verde” que crie empregos e
Nele, sem paixões mas com desassombro,
reduza emissões.
estão explicitadas não só a leitura das crises
Em suma, a referida insustentabilidade
desta crise, como também identificadas as
do sistema não quer dizer o desesperado
frentes prioritárias de actuação e os valores
fim da economia e do futuro. Bem pelo
sociais indispensáveis para a sustentabilida-
contrário. Dispomos hoje de recursos de co-
de de qualquer futuro.
nhecimento e de soluções tecnológicas que
Inspirado no New Deal de Roosevelt aquan-
permitem já figurar um sistema económico
do da Grande Depressão dos anos 30 do
bem diferente — ambiental e socialmente
século passado, o GGND define três grandes
sustentável e, por isso, economicamente
objectivos de partida: reanimar a economia
viável. O fundamental é também activar os
há alternativa a todas estas mudanças a
homenzinhos verdes descidos de um disco
mundial salvando e criando empregos e
mais difíceis factores de todos: a consciência
muito curto prazo. Como o Green Deal bem
voador. É um documento pragmático e
protegendo os grupos vulneráveis; promo-
pública e a vontade política. O GGND reco-
demonstra, não será nunca com meras me-
programático que define os pressupostos
ver um crescimento sustentável e inclusivo
menda, aliás, um sistema de monitorização
didas financeiras ou operações de tesouraria
económicos em que será inevitável assentar
com vista ao cumprimento dos Objectivos
e de informação pró-activa aos políticos e às
e a regar com subsídios perversos activida-
a recuperação ambiental e social do mundo.
do Milénio, especialmente eliminando a po-
populações sobre o modo como os recursos
des sem futuro que se resolverá a crise — as
Ou seja, mostra como restaurar a “saúde”
breza extrema; e reduzir a dependência do
e os pacotes de incentivos estão a ser gastos
crises. O que se pretende justamente é evi-
do sistema económico, criando emprego,
carbono e a degradação dos ecossistemas.
ou utilizados, definindo critérios estatísticos
tar que os actuais estímulos para restaurar a
empresas e combatendo simultaneamente
Ou seja, desenvolver, sim, mas sem pobres
comparáveis para medir a contribuição do
economia não incorram nos mesmos erros
as crises da crise: as alterações climáticas,
a multiplicarem-se debaixo dos nossos pés,
ambiente para o crescimento económico e o
que nos levaram às inúmeras crises.
a dependência dos combustíveis fósseis, a
e sem continuar a alimentar os dois mais
impactos da economia no ambiente.
O Global Green New Deal não é pois uma
devastação dos recursos finitos, a catástrofe
significativos riscos enfrentados hoje pela
A parada é hoje de tal modo alta, que não
peça de ficção científica outorgada por
alimentar e a pobreza tenaz. ■
4. Agricultura e Pesca — Os recursos alimentares e a água potável são duas das mais dramáticas expressões da dita crise global. A produtividade agrícola está hoje declinante, tal como o solo
arável vitimado pelas produções intensivas e seus agroquímicos. A agricultura, ao contrário do
que se pensava até há bem pouco tempo, é hoje vista como uma questão vital de segurança de
todas as sociedades. Uma agricultura sustentável, nomeadamente biológica, tem, segundo um
estudo recente da FAO, não só maior retorno para os agricultores, como gera mais emprego e
sequestra mais carbono do que a agricultura convencional.
Já os recursos do mar, hoje com ¾ de espécies nos limites da sua sobrevivência, vão requerer o
desenvolvimento de uma nova economia tecnológica e cientificamente sofisticada que passa, por
exemplo, pelas aquaculturas ambientalmente saudáveis de alto mar.
5. Água — Quanto à água potável, em dramática ruptura justamente nos lugares onde maior
quantidade de seres humanos precisam dela, é também hoje uma imensa oportunidade de desenvolvimento económico a todos os níveis - da ciência à tecnologia, da captação ao transporte,
do saneamento à requalificação. Na República da Coreia investe-se actualmente 38 mil milhões
de dólares no saneamento de 4 rios do país, criando com isso milhares de empregos. Em NY
a cidade já comprou muitos dos terrenos em redor do lago de onde retira a água para beber,
incentiva a agricultura biológica local e as práticas florestais amigáveis; a água está quase em vias
de poder ser engarrafada.
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