TELENOVELA - o erotismo como produtor de sentidos Prof. Dr. Paulo Fernando de Carvalho Lopes Possui graduação em Comunicação Social, habilitação em jornalismo pela Universidade Federal do Piauí–UFPI. Especialização em Teorias da Comunicação e da Imagem – Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestrado e doutorado em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é Chefe de Departamento do curso de Comunicação Social da UFPI. “Em todo encontro erótico há um personagem invisível e sempre ativo: a imaginação, o desejo.” Otávio Paz RESUMO: Este artigo procura refletir sobre a telenovela e a constituição histórica do erotismo, nas novelas da Rede Globo, enquanto elemento narrativo que atua como um ingrediente a mais na busca de audiência ampliando o espaço de aceitação, via televisão, da esfera íntima em horário nobre e em campeões de audiência. Para tanto, parte-se da pressuposição de que as telenovelas, enquanto práticas discursivas, são produzidas, circulam e são consumidas sob a lógica de um mercado simbólico. Desta maneira, constroem realidades, propõem estilos de vida, ampliam espaços sócio-simbólicos e articulam sentidos. Palavras Chaves: telenovela, erotismo, discursos e poder. Este artigo faz parte de um projeto de investigação sobre a telenovela que teve inicio no Mestrado, na disciplina de Teoria da Comunicação II – Telenovela, e que agora ganha outro enfoque. Em primeiro lugar, antes de entrar propriamente na discussão sobre o aparecimento do elemento erótico nas telenovelas brasileiras faz-se necessário balizar algumas premissas que norteiam o entendimento teórico dos objetos. Considera-se que a novela não é só um gênero1ou uma técnica narrativa, entende-se que ela é um discurso cujo estes dois elementos estão presentes como constituidores deste produto cultural empírico (PINTO, 1999). Discurso é uma prática social de produção de textos entendidos aqui não no seu sentido clássico; seja apenas verbal, oral ou escrito, mas como objetos de conhecimento que envolvem ainda outras semióticas, os diversos contextos e os cotextos. O erotismo não é só um elemento da técnica narrativa utilizado no intuito de mobilizar sentidos e produzir reconhecimentos. Ele possui energia própria, é uma força que 1 A discussão sobre a definição conceitual de gênero está em nossa tese de doutorado e em um artigo ainda inédito intitulado: “ A notícia e a mistura de gêneros”. irrompe o humano, que está para além do seu controle, que o fascina, o confronta, silencia e potencializa mudanças de estados, sejam psíquicos ou sociais. O erotismo, já falavam Marcuse (1978) e Reich (1978), tem potencia política. Aproximando-se de Fairclough (2001), entende-se que a mudança social faz-se pelo discurso e a partir da introdução do erotismo na telenovela brasileira provocou-se uma mudança não só na ordem discursiva como também social. O Brasil, no que se refere aos discursos sobre a sexualidade, desde Gabriela (1975) já é outro. Ao se falar em erotismo o nome de George Bataille surge imediatamente devido o seu livro, onde ele procura mostrar um erótico não glamouroso. Há, para o autor, um erotismo sem esplendor e não literário que evoca os desejos ligados ao mais sórdido. Permite socializar o mais horrível e chama o homem a enfrentar o que ele mais tem pavor. Para definir o erotismo dever-se-ia partir da atividade sexual da reprodução, comum aos homens e aos animais sexuados, mas que aparentemente só o homem transforma a atividade sexual em atividade erótica (BATAILLE, 1980). A diferença entre o homem e o animal não está na inteligência, mas nos interditos. Para o animal nada é proibido. O interdito organiza a sociedade humana e é essencial para a existência humana, pois as normas e as leis asseguram um bem positivo para a vida racional. Bataille desenvolve a idéia que “somos seres descontínuos, indivíduos que isoladamente morrem numa aventura ininteligível, mas que têm a nostalgia da continuidade perdida” (BATAILLE, 1980, p.16,). O humano é um ser descontínuo porque se reproduz e se pensa distinto de si. Cada um vivencia uma experiência particular, totalmente pessoal. No que se refere à continuidade a fusão da paixão erótica é uma marca humana que possibilita a ruptura da descontinuidade entre os seres. A grande paixão é o preço mais alto a ser pago, o amor só é profundo se tiver possibilidade de pegar a morte. A nudez pode ser entendida como uma forma de comunicação. O papel do erotismo interfere nas descobertas. A passagem para o desejo erótico é a ruptura com o racional. A nudez é busca de continuidade do ser. Os corpos se abrem através de canais secretos. O erótico é uma experiência contrária ao prazer, que não arrisca nada, por ser uma experiência profunda e dolorosa. Alberoni (1986) investiga o imaginário erótico feminino e masculino. Para ele, a pornografia é uma figura do imaginário masculino, é a satisfação alucinatória de desejos, necessidades, medos etc... Na mulher, não há interesse em ver particularmente um homem nu. O seu erotismo não tem quase nada a ver com o sexo. Segundo Alberoni pode haver relacionamentos sexuais e cenas de nudez masculina, mas as emoções profundas, o que é especificamente erótico nas histórias voltadas para o público feminino, está na languidez, no arrepio provocado pela emoção. É a inquietação do ciúme, é a paixão que aperta o coração, que faz sofrer, que faz esperar. O erotismo aflora quando esta mulher comum, que nada tem a oferecer, sente o olhar e o interesse do herói pousados nela. (...). O erotismo é também ansiedade, medo de não ser amada. É necessidade de ser procurada, procurada e mais procurada. É recusa, dizer não com a ansiosa esperança que o amado volte apesar daquele não. O erotismo atinge seu ponto nesta tensão, nesta indagação contínua, sempre desiludida e sempre renascente: ele gosta de mim? me deseja? me ama? (ALBERONI, 1986, p.19) O erotismo feminino é influenciável pelo sucesso, pelo reconhecimento social, pelo aplauso, este aspecto encaixa-se na tendência da mulher a contigüidade-continuidade. No homem, ao contrário, há separação entre sexo e política, sexo e lazer, sexo e poder etc... O erotismo masculino é anseio egoístico de gozo. Se um homem casado sente atração erótica por uma mulher e faz amor com ela, não para construir um futuro, uma família, não para realizar um grande amor, mas única e exclusivamente porque lhe agrada fazer amor. (...) quanto a fantasia erótica masculina é oposta a feminina. Se esta procura a continuidade, a intimidade e a vida em comum, a outra esforça-se por excluir o amor, o compromisso, os deveres, a própria vida social. (ALBERONI, 1986, p. 58-60). A mulher, nua ou em trajes íntimos etc., enquanto objeto de desejo visual tem longa tradição e é bastante utilizada em revistas, filmes, novelas, mas a partir do final dos anos 80 início dos anos 90 houve uma explosão de corpos masculinos, na mídia, despidos ou de sunga. As cenas com mulheres continuam a ser mais se levarmos em conta somente os números, mas historicamente, a pontuação masculina é significativa porque antes ela praticamente não existia. O autor de novelas Carlos Lombardi, em entrevista a revista Veja, maio de 1992, afirma que o que existe é uma democratização do nu, as câmeras de tv mostram tanto homens quanto mulheres e o que a mídia revela é o modismo. No entanto os números em publicidade revelam o contrário, há um aumento da oferta do nu masculino e uma estagnação do nu feminino, mas isto é uma discussão paralela, o que gostaríamos de salientar é que mostrar os corpos de atores e modelos inseridos em histórias é um elemento narrativo bastante utilizado pelos meios de comunicação de massa. Mas isto não é privilégio da televisão, ela está apenas dando imagens elétricas às imagens mentais construídas em romances literários do século XVIII, conhecidos como água-com-açúcar, a heroína romântica e virgem a espera do príncipe encantado. Paz (1993) diz que a propósito do erotismo, não há nada mais natural que o desejo sexual e nada menos natural que as formas em que se manifesta e se satisfaz. Continua o autor, na linguagem e na vida erótica de todos os dias, os participantes imitam os rugidos, relinchos, arrulhos, gemidos de toda espécie de animais. A imitação não pretende simplificar, mas complicar o jogo erótico e assim acentuar seu caráter de representação. Segundo Duringan (1985), o erotismo não imita a sexualidade, “é sua metáfora” e o texto erótico é a representação textual desta metáfora. Muniz Sodré (l990) diz que a ordem da televisão ou macrotelevisão, ou o império dos processos de reprodução elétrica de informação e imagens, advém do momento exato de esgotamento da força dos modelos clássicos de representação e que o problema não está localizado só nos conteúdos específicos dos meios de comunicação, que são hegemonicamente impostos, mas sim na articulação dos conteúdos e formas produtivas da indústria cultural com as formações ideológicas e práticas institucionais da sociedade civil. O importante é determinar até onde vão os efeitos de organização das relações sociais provocadas pelos meios de comunicação, desta forma, em um dado momento da história da telenovela, o erotismo e as cenas de nudez, até então reservadas ao cinema e exibidas para maiores de dezoito anos, passam a fazer parte do universo novelístico, num primeiro momento no horário das vinte e duas horas e depois nos vários horários da programação. A televisão trabalha com o inconsciente, mas de forma reflexa. Quando ela diz que apresenta “o real”, na verdade está apenas representando-o, pois no momento em que se representa o real ele deixa de ser real para ser algo representado. Assim também é com o imaginário, quando ela procura relatar as nossas fantasias e nossos desejos os faz alterandoos; a mulher dos nosso sonhos usa uma determinada de perfume , o galã veste uma certa peça de vestuário etc. Vieira (1992) diz que a televisão realiza o projeto de homogeneização do imaginário social: (...) a televisão quer ser o sucedâneo da realidade. Os desejos irrealizados, em vez de se transformarem na vida material através da minha intervenção, através da impossibilidade de conter a minha angústia, em vez de se tornarem recalques, transformam-se em realidade, através da fantasia no meu cotidiano. No sentido freudiano, a televisão lutaria para fazer felizes todos os homens incapazes de fantasiar. Porque só o infeliz, o homem pleno de desejos irrealizados, é capaz de fantasiar, é a forma de corrigir uma realidade insatisfatória. (p.124) É assim, envolta num mundo de fantasia que a novela se apresenta ao telespectador. A telenovela em seus primórdios A primeira telenovela a ir ao ar foi “Sua vida me pertence”, em 1951, de autoria de Walter Foster, estréia na TV Tupi de São Paulo trazendo, para o Brasil, o know-how do gênero melodramático. Ortiz (l989), afirma que é clara a filiação da novela ao romancefolhetim, mas, no entanto, este tipo de narrativa, não é o único que influencia este gênero. Há, ainda, as contribuições da soap-opera americana e da rádio-novela latino-americana. No início, a telenovela ia ao ar duas vezes por semana e ao vivo. Se “Sua vida me pertence” foi a primeira novela brasileira, “2-5499 ocupado” foi a primeira novela diária e “O direito de nascer”, em 1964, foi o primeiro grande sucesso nacional. Seu último capítulo foi apresentado no Maracanãzinho com a presença do elenco da novela. A partir de então, as principais emissoras de São Paulo investiram no gênero. Ao longo destes quase cinqüenta anos, várias novelas foram ao ar criando um hábito na população brasileira. Aos poucos, na guerra entre emissoras, foi se firmando uma nova concorrente: a Rede Globo de Televisão. Ela começou a funcionar quinze anos depois da implantação da TV no país. A sua primeira emissão se deu em abril de 1965, um ano depois do golpe militar de 1964. No início a sua penetração, junto ao público telespectador, foi fraca. A imagem era boa, passava filmes interessantes e tinha profissionalismo na operação, mas ela não conseguia alcançar o sucesso. Os planos pareciam ir de água abaixo quando, literalmente, uma forte chuva inundou o Rio de Janeiro e a emissora resolveu fazer uma cobertura jornalística da catástrofe. As câmeras testemunharam a desolação da população desabrigada e desenvolveram uma campanha de ajuda às vítimas da enchente. A cidade se mobilizou para ajudar os desabrigados levando donativos à sede da TV. Com as águas baixando, a emissora sobe em simpatia da população local e conquista uma maior audiência. Com uma preocupação em saber o que o público pensava e queria, a emissora passou a usar a pesquisa de opinião, não só para conhecê-lo e saber seu posicionamento diante das ofertas apresentadas, mas também para o que ela não atendia em termos de programação. A Rede Globo, com a criação do “padrão Globo de qualidade”, estabelece uma relação de qualidade com o público. José Marques de Melo diz que o padrão global é, na realidade, uma planejada estratégia de marketing, unindo eficiência empresarial, competência técnica e sintonização com as necessidades subjetivas dos telespectadores, através de pesquisas. “O segredo do seu êxito está na criação de um hábito de consumo, que mantém o mercado potencial fiel a um tipo de programação capaz de atender aos desejos de diferentes faixas etárias e sócio-econômicas” (MELO, 1988, p.18). Ao começar a operar em 1965, a Globo utilizou-se da experiência das emissoras paulistas em telenovelas para contratar os melhores atores e dramaturgos. A escritora cubana Glória Magadan, foi convidada para dirigir o núcleo de telenovelas. A sua linha de ação era encomendar a autores brasileiros a adaptação ou criação de obras que se passavam em outros países ou em outras épocas. Desta forma, o telespectador tinha contato com cenários “fora” do Brasil. Durante mais ou menos seis anos a produção novelística da emissora permanecia utilizando-se do padrão cubano-mexicano do melodrama temporal e espacialmente distanciado do cotidiano do telespectador. Em 1969, a principal concorrente da Globo, a TV Tupi, fez uma revolução no gênero produzindo uma novela, Beto Rockfeller, ambientada no Brasil. Houve um processo de identificação, por parte do público, com os personagens, o tema não era o melodrama, mas sim o humor e a descontração de uma cidade brasileira. À medida que a emissora foi crescendo no mercado nacional em audiência, houve a preocupação em não fazer mais novelas passadas fora do país e utilizar melhor uma técnica recente: o videotape. Este recurso possibilitava a gravação de cenas fora dos estúdios, aproximando ainda mais o espectador do seu referencial urbano. A resposta, por parte da audiência, foi imediata e a busca por maior espaço para veiculação de anúncios também. Diante deste filão, a Rede decidiu investir fortemente no gênero. Uma das primeiras medidas foi estruturar a programação para diferentes faixas etárias e sócio-economicoculturais. A primeira modernização” da Globo foi a divisão de horários das telenovelas, segundo os modelos de público, a saber: - horário das seis da tarde, para os adolescentes, as domésticas, as donas-decasa, com adaptações da literatura romântica. - horário das sete, ainda que para adolescentes, as donas-de-casa e eventualmente para a mulher que trabalha fora com histórias leves, românticas e temperadas com algum humor; - horário das oito, dirigido para a mulher madura, para o marido, para a célula familiar em geral, com histórias que enfoquem o dia-dia, os problemas familiares, as grandes questões; - horário das dez, naturalmente seletivo, destinado a histórias experimentais. (CAMPEDELLI, 1987, p. 37-38,) Um segundo momento estratégico usado para firmar a emissora no mercado veio através da tecnologia como sinônimo de qualidade. Foram comprados os melhores e mais recentes equipamentos fabricados no Japão, criaram-se as cidades cinematográficas, foram contratados em tempo integral escritores e atores, com salários milionários e criou, ainda, um departamento para manter a imprensa informada sobre suas novelas e seus artistas. O público saiu ganhando com estas inovações. Segundo Melo (1988), ao invés de ficarem limitadas as temáticas do Rio de Janeiro, passou-se a produzir histórias ambientadas em outras regiões do país criando uma identificação do publico com as paisagens e valores culturais visibilizados em nível nacional. O terceiro momento da escalada global foi quanto à forma de contar as histórias. As novelas passam a mostrar as contradições ocorridas nos grandes centro urbanos, os conflitos políticos e a cultura popular - realismo fantástico. “A preocupação norteadora é o “retrato da realidade”, “espelho da realidade”, ‘fidelidade à realidade”. (RAMOS E BORELLI,1989,p. 94). Poderíamos dizer que num quarto momento a Globo começa a investir na captura do público masculino ao lançar o western brasileiro Irmãos Coragem. O quinto é a produção para exportação e daí em diante sempre são feitas estratégias para conseguir se manter no topo da audiência. Uma sexta estratégia foi, ao nosso ver, a utilização de corpos despidos nas novelas. A Globo começa, nos idos dos anos 90, a perder audiência para as novelas da Rede Manchete, cujo carro chefe são boas histórias, bons autores, diretores e atores e a disponibilidade de se mostrarem despidos. A até então, mais recatada, entra numa disputa direta com a concorrente. Mas, até chegar a este momento, esta prática teve sua história. O erotismo em seus primórdios na telenovela brasileira “Quando eu vim para este mundo, eu não atinava em nada, hoje eu sou Gabriela, Gabriela e seus camaradas”. Todas as noites, de abril a outubro de 1975, o telespectador sabia que estava começando, aquele que durante dez anos, foi um dos grandes sucessos da Globo. A novela Gabriela, escrita por Walter George Durst, adaptada do romance de Jorge Amado - Gabriela, Cravo e Canela, contava a história da vida em Ilhéus, no interior da Bahia. A vida da pequena cidade começa a transformar-se com a aparição de uma oposição de peso ao sistema político dos velhos coronéis, fazendeiros de cacau. Dr. Mundinho Falcão - interpretado por José Wilker- era este opositor. O outro gancho da história era o amor entre o turco Nacib (Armando Bógus), dono do bar Vesúvio, pela retirante, da cor de canela, Gabriela (Sônia Braga). Se Irmãos Coragem foi um investimento para iniciar uma paquera das novelas com o público masculino, Gabriela é uma declaração de amor na forma de um olhar erotizado da câmera. O banho de chuva que a retirante toma no caminho para cidade mais próxima quando vem fugindo da seca, nos primeiros capítulos, deu mostras deste aspecto na novela. Usando vestidos curtos, que deixam ver as belas pernas torneadas e de chita - tecido fino, colorido e barato, muito usado pela população carente do nordeste, Gabriela brinca com a água, enquanto esta cola o vestido a seu corpo. Rossetti (1995) explica que “a roupa ao se molhar, torna-se como uma gaze transparentíssima, que destaca tudo o que envolve, tornando-o visível e abrilhantando-o como se fosse verniz, polindo-o e fazendo de um mamilo como que uma uva de jade e de um púbis uma penca de algas presas numa rede trêmula que solta faísca. A roupa molhada é capaz de traçar o arco seguro do damasco entre as nádegas mais rijas, afundar em suas covinhas, aplanar-se sobre um ventre como uma membrana, recurvar-se numa coxa e rodeá-la até atingir o lugar onde a pele é tão suave como talco e cobrir as numerosas arestas de suas úmidas dobras entre as pernas”( p. 59). Ao contrário das heroínas puras dos folhetins melodramáticos, Gabriela deixa de ser virgem durante a viagem. Há um jogo de sedução, pelo olhar, entre um dos retirantes que a acompanha e ao avô, e ela. O avô não resiste à viagem e morre, deixando-a sozinha. Ao chegar à cidade vai para o mercado onde ficam os retirantes e é lá que ela se oferece ao turco Nacib chamando-o: “Moço bonito”, num tom brejeiro e sensual. Com uma abordagem destas, ela ganha a cozinha do turco onde mostra que é exímia cozinheira, conquistando não só seu estômago, mas dos freqüentadores do bar. Gabriela é pura sedução. As cenas mostram o andar cadenciado, lânguido e “inocente” pelas ruas de Ilhéus. O percurso de casa ao bar é acompanhado com desejo por todos os seus freqüentadores, aumentando a clientela, exatamente, neste horário. O jeito inocente e moleque da morena é mostrado nas cenas que brinca “despreocupadamente”, na rua com os meninos de pular carniça, a cada movimento, dá para entrever um pouco mais suas coxas roliças. A sua subida no telhado para tirar uma pipa de um garoto pára a cidade. Todos, habitantes da cidade e os espectadores vêem e sonham com as formas exibidas por ela. Se, na rua, ela era um estrondo; em casa, as cenas eram mais provocativas. À noite, ela esperava seu Nacib, na cama dele, coberta só com um lençol. Segundo Rossetti (1995), o lençol em torno de um corpo que se sabe nu é um convite ao prazer. Mas não era só Gabriela que esbanjava sensualidade. A beleza madura de dona Sinhazinha (Maria Fernanda), esposa do coronel Coriolano Ribeiro (Rafael de Carvalho), era mostrada sensualmente no vestir e tirar as meias pretas, outro elemento que atiça o imaginário erótico masculino, quando esta traía o marido com o jovem e bonito dr. Osmundo (José Paulo Adour). A relação entre eles era terna, e erotizada, cheia de detalhes no despir; os brincos, os botões do vestido, a abertura dos botões da blusa dele etc. As mulheres de Ilhéus eram sensuais e a novela procurou retratar isso. Desde as garotas do Bataclã, o cabaré da cidade, onde todos os homens passavam antes de irem para casa, até os desejos mais contidos, mas expressados pelo olhar, da doce Jerusa (Nívea Maria) que ardia de paixão pelo doutor Mundinho. As cenas de casais na cama são utilizadas com freqüência na novela e a conversa sobre a sexualidade era aberta. Muitas vezes no Bataclã ouvia-se dona Maria Machadão (Eloiza Mafalda) dizer: “Tá triste, pegue uma das meninas para dançar, se divertir, e você vai melhorar”. O elemento político é, também, o tema principal na novela. O novo se apresenta Mundinho Falcão, como resistência ao antigo poder localizado nas mãos dos velhos coronéis do cacau que mandavam na cidade e nos costumes. São mostrados ainda um vasta gama de assuntos relacionados a esfera intima, reprimidos pela ordem política vigente. Dez anos depois a Globo colocou no ar a novela que fez mais sucesso em público e que tinha sido censurada, em 1975, pelo regime militar. Roque Santeiro, de Dias Gomes, conta o dia-dia da pequena Asa Branca, uma cidade fictícia. Lá, o coroinha Luís Roque Duarte (José Wilker) foi morto pelo bandido Navalhada(Oswaldo Loureiro) ao tentar salvar a cidade de seu bando. Só que Roque não morreu e volta à cidade para pôr fim no mito. Enquanto que em Gabriela era explícito, em Roque Santeiro, o erotismo era implícito, ele não era mostrado, mas sim contado, envolto por uma aura religiosa. Asa Branca vivia sob o domínio da Igreja, do poder municipal, dos comerciantes que enriqueceram as custas do falso milagre e da elite rural representada pelo milionário fazendeiro Sinhozinho Malta (Lima Duarte). Os diálogos usavam muito o duplo sentido da linguagem de forma implícita. Neste sentido a novela era “mais recatada”, deixava que o telespectador, induzido, deduzisse as entrelinhas repletas de referencias ao sexo. Muitas vezes o olhar do telespectador, nas cenas mais íntimas, era trazido pela câmera até um certo ponto dali ele não passava. A primeira vez da romântica Tânia (Lídia Brondi) com o ator de cinema Roberto Matias (Fábio Jr.) é relatado por ela como algo fantástico, na beira do rio, a água, a relva, as estrelas, os corpos se abraçando, a paciência e a doçura do amante etc... Sem nunca ter casado nem conhecido o marido, a viúva Porcina (Regina Duarte), foi a primeira heroína sem caráter da telenovela brasileira. Com roupas coloridas e extravagantes, sem gestos polidos, de língua solta, vinda de uma origem humilde, mulher “foguenta” , como se denominava, era amante do sexo e de Sinhozinho Malta. Viu na história do falso milagre a oportunidade de adquirir respeito e ascensão social. Por isto, mesmo sabendo que estava enrolando todo mundo, assume o lugar de esposa do falecido sem ser questionada por ninguém. A não ser pela verdadeira noiva, D. Mocinha (Lucinha Lins), que não entende e não aceita a presença da rival, uma vez que estava de casamento marcado e o noivo tinha jurado amor eterno. Ela representa um ideal de heroína, que na década de 80, é questionado: romântica e virgem. Na disputa entre as duas, Porcina várias vezes desdenha de Mocinha por ainda ser virgem e romântica, por viver num mundo sem sexo, sendo esta, para ela, a causa de muitos dos males e comportamento da eterna noiva. Porcina não é mostrada indo para cama nem com Sinhorzinho Malta, nem com Roque Santeiro, mas é insinuado o tempo todo o desfeche das ‘brincadeiras” , dos olhares, das insinuações feitas aos dois. Os elementos narrativos eróticos de Roque Santeiro estão nos implícitos de seus diálogos, nos seus relatos sobre situações de envolvimento sexual. As cenas apenas introduziam o telespectador no ambiente, para depois ele ouvir os relatos. A questão política, nesta novela, refere-se a manipulação do povo pobre e analfabeto pela fé. A Igreja reprime os desejos da carne, enquanto vários personagens vivem conflitos morais entre desejo e pecado. Vale Tudo, em 1988, de Gilberto Braga, é uma das primeiras, na Globo, a mostrar o corpo masculino em trajes sumários. O então vice-diretor de operações da rede Globo, José Bonifácio de Andrade, o Boni, na matéria de comportamento da revista Veja, em 13 de maio de 1992, com o título: Os gatos estão nus, quando surgiu a polemica dos homens sem roupas ou de sunga/cuecas nas novelas, disse que a emissora não estava preocupada em usar o nu como estratégia para conseguir audiência. Entretanto, a matéria mostrava que na prática acontecia outra coisa. O vilão César (Carlos Alberto Ricceli) passeia capítulo após capítulo de sunga preta. O herói, já quarentão, Ivan (Antonio Fagundes) mostra uma sunga vermelha. Assim como Thiago (Fábio Vilaverde) filho de Heleninha Roitman (Renata Sorrah), o jovem modelo André (Marcelo Novaes) e o milionário Afonso (Cássio Gabus Mendes), todos desfilam em trajes de banho, de toalha, cobertos por lençóis, tomando banho etc. Rossetti (1995), ressalta como estes elementos erotizam o objeto olhado. A novela mostra um Brasil onde tudo é valido para se dar bem, trair, mentir, corromper, matar, enganar, se prostituir. É um momento de descrença com o país e suas instituições. Embora haja muitas cenas enfocando o corpo masculino, as relações sexuais são mostradas, envolvidas com muita música e clima romântico. Enquanto em Roque Santeiro, o tema sexo está envolto em tabus, Vale Tudo traz, personagens mais desencanados da problemática sexual. Aqui pouco se fala de sexo, o faz de frente para a câmera. . É dado um close no rosto da independente Solange (Lídia Brondi) no momento em que ela tem um orgasmo na primeira vez com Afonso. As personagens principais Maria de Fátima (Gloria Pires), Raquel (Regina Duarte) e Solange vivem sem traumas suas sexualidades. O único conflito, nesta área, é vivido pelo executivo Marco Aurélio (Reginaldo Faria), que suspeita de uma possível homossexualidade do filho Thiago. O autor, Gilberto Braga, polemiza com a sociedade brasileira, ao colocar explicita, em horário nobre, a relação lésbica entre Laís (Cristina Prochaska) e Cecília (Lala Deheinzelin). São duas mulheres maduras, ricas e vivendo em plenitude a relação. Num momento da trama Cecília morre e a companheira fica como herdeira, adiantando uma discussão que só ganharia mais fôlego em meados dos anos 2000. As mulheres em Vale Tudo, estão mais vestidas aparecem, na intimidade, com camisões folgados, camisolas, pijamas, e até baby-doll, porém são roupas em situação de cotidianidade, sem apelo erótico. Esta novela inicia a explosão e exploração do corpo masculino como objeto de consumo, a câmera passeia pelos corpos dos galãs num explicito apelo erótico. Outro romance de Jorge Amado é levado ao ar em 1989. Desta vez, conta a história de Tieta (Beth Faria). A heroína volta a Santana do Agreste para se vingar de todos os que contribuíram para sua expulsão da cidade vinte e cinco anos atrás e principalmente da irmã Perpétua (Joana Fomm). O motivo de sua expulsão era o fogo sexual que ela tinha, ela transava com vários homens da cidade nas dunas do mangue seco, enquanto pastoreava as cabras do pai. Daí ser chamada de cabrita pelos amantes. Tieta deixa de ser virgem no primeiro capítulo. Ela é puro sexo: vive do seu comércio, o pratica por prazer, é exímia na arte da cama e faz “ipsilone duplo”, mote e segredo de toda a novela. Ela é uma heroína incestuosa, vive e ensina os prazeres do sexo ao sobrinho seminarista Ricardo. A luta política de Tieta é contra o falso moralismo dos moradores de sua cidade natal que viam nela uma ameaça aos bons costumes, mas que na surdina faziam coisas piores como roubar, matar e impedir o progresso. O erotismo em Tieta está no uso da linguagem no duplo sentido, agora mais explicito. É proposto um vinculo com o publico através do pressuposto. Parte-se do principio que o telespectador entende a linguagem figurada e os gestos usados pelos atores. Enquanto havia “repressão e resistência” ao falar de sexo em Roque Santeiro, em Tieta, os personagens falam com certa dose de ‘descaramento’, de sedução. Osnar (José Mayer) é o garanhão da cidade, todos fazem alusão ao tamanho de seu órgão sexual, as mulheres enlouquecem e são loucas para ir para cama com ele, dentre outras virtudes, mas principalmente pela propaganda feita do “volume que fica entre as calças”. Outra referência feita com dose de humor é o segredo guardado por Perpétua, em uma caixa enorme, desde a morte do seu marido. No final, para desgraça da vilã, a cidade inteira faz fila para ver o grande troféu cortado e guardado. A imagem não aparece, mas os olhares dos personagens para a caixa, os sorrisos e as falas são claras. Em Tieta, o capitão Dário (Flávio Galvão) vive tranqüilamente com duas mulheres (Claudia de Alencar e Claudia Magno). Ele, quase sempre de sunga, é seduzido pelas duas mulheres que aceitam compartilhá-lo entre si. O velho coronel Artur da Tapitanga (Ari Fontoura) retrata o hábito nordestino de ser o iniciador sexual de meninas ofertadas pelos pais em troca de comida e educação, chamadas aqui de “rolinhas”. Há ainda o caso da irmão mais nova de Tieta, Elisa (Tassia Camargo), esposa de Timóteo (Paulo Betti), a qual tem brigas homéricas com o marido por que quer que ele a trate como um prostituta na cama, e ele acha que este procedimento tem que ser dado somente as garotas de vida fácil moradoras e trabalhadoras da Casa da Luz Vermelha. O jovem e atlético engenheiro Rosalvo (Paulo César Grande), mexe com a cabeça de Elisa e mantém a forma fisica correndo, apenas de sunga, pelas ruas da cidade. O publico acompanha a maratona até o final: a fonte onde ele sempre termina seu programa de exercícios tomando banho. Um dos primeiros nus de corpo inteiro, nas novelas, é do jovem seminarista Ricardo (Cassio Gabus Mendes), cansado, vai tomar banho no rio e depois adormece de bruços. Como um conto de fada moderno, onde os príncipes não andam de cavalo, a não ser no final em que os autores procuraram compensar os sonhos da rebelde Imaculada (Luciana Braga), este, no primeiro encontro, não tinha cavalo nem roupa. O olhar de Imaculada, que é o olhar da câmera, é, também, o olhar do telespectador, é uma mistura de surpresa, receio, ternura, descoberta e dúvida diante do corpo do rapaz. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES... O que pretendemos fazer aqui, além do resgate histórico, foi mostrar como o erotismo foi introduzido no universo telenovelístico em quatro momentos diferentes, cada um com sua especificidade, conforme relatado acima. As referidas novelas trouxeram para a sociedade brasileira experiências, nesta área, ainda não retratadas na televisão. Corroborando a hipótese deste trabalho, cada uma contribuiu de forma ‘lúdica’ para que questões e imagens ligadas a sexualidade e o erotismo fossem discutidas pelos telespectadores – provocando mudanças sociais. Se um dia a abertura das novelas Brega e Chique e Tieta sofreram, cada uma, um tipo de censura pela presença do nu, hoje, os mais variados assuntos e imagens sobre sexo e erotismo entram em pauta na sociedade brasileira que se modifica também via telenovelas. *Paulo Fernando de Carvalho Lopes possui graduação em Comunicação Social, habilitação em jornalismo pela Universidade Federal do Piauí–UFPI. Especialização em Teorias da Comunicação e da Imagem – Universidade Federal do Ceará, UFC, Mestrado e Doutorado em Comunicação – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente é Chefe de Departamento do curso de Comunicação Social da UFPI. 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