DECLÍNIO E EXTINÇÃO DO EROTISMO
Acompanho, não sem certo divertimento, o debate nas redes em torno da adaptação para o
cinema de “Cinquenta tons de cinza”. Houve até um “artigo de uma psiquiatra” sobre o filme
(curioso, por que não se diz: “artigo de um crítico”, “artigo de um jornalista”, etc, mas se diz
“artigo de uma psiquiatra”?). É um texto bem-intencionado, que pretende alertar os leitores
(sobretudo as leitoras) contra o abuso sexual, do qual a autora trata na sua clínica. Infelizmente,
ela o faz sob um embasamento que pode ser medido pelo emprego livre de noções como
“homem psicologicamente saudável” (sic). E, o que é mais grave, confundindo a violência no
casal com a fantasia sexual. Daí porque exorta seriamente seus leitores a não assistirem o filme
e a recomendarem aos seus amigos que não o assistam para evitar seu “efeito tóxico” (sic).
É impressionante que ainda se confunda a realidade com a representação artística (se
estendermos com liberalidade o termo “arte” para um best-seller e sua adaptação). Poderíamos
imaginar os conselhos que a autora daria a respeito da leitura de “A Filosofia na Alcova”, o
escandaloso panfleto de Sade, censurado durante séculos. É justamente no seu comentário
acerca dessa obra que Lacan observa:
“É que uma fantasia, com efeito, é bastante perturbadora, pois não se sabe onde situá-la, por
ela estar ali, inteira, em sua natureza de fantasia que só tem realidade de discurso e que nada
espera de seus poderes, mas que lhes pede, isto sim, que se ponham em dia com seus desejos.”
(Escritos, p. 791)
E notem que o artigo de onde essa citação foi extraída foi publicado em 1963! O que não é
muito, considerando que Freud, há exatos cem anos, explicava aos seus colegas médicos que a
vida sexual de um “homem psicologicamente saudável” é constituída por elementos das mais
diversas perversões descritas no compêndio de psicopatologia sexual de Kraft-Ebbing. Não
estivesse Freud morto e “superado”, quem sabe ele pudesse refazer suas conferências ipsis
litteris para alguns psiquiatras contemporâneos...
Mas o que Sade poderia nos ensinar acerca do erotismo? Justamente o seu oposto, segundo
Barthes:
“Continuam a dizer-nos que Sade é um autor ‘erótico’. Mas o que será o erotismo? Não
passa de uma palavra, pois as práticas só podem ser codificadas se forem conhecidas, ou seja,
faladas; ora, a nossa sociedade nunca enuncia qualquer prática erótica, apenas desejos,
preâmbulos, contextos, sugestões, sublimações ambíguas, de modo que, para nós, o erotismo
pode apenas ser definido por uma palavra perpetuamente alusiva. Deste ponto de vista, Sade não
é erótico: como já dissemos, não há em Sade qualquer espécie de strip-tease – esse apólogo
essencial do erotismo moderno.” (Sade, Fourier, Loyola, Signos, p. 31)
Não é em Sade, portanto, que poderemos encontrar um precursor da produção
hollywoodiana. Tampouco o cinema pornô pode ser considerado um legítimo descendente da
obra de Sade. A pornografia pode até ser sádica, mas não sadiana. Falta-lhe, evidentemente, o
vigor filosófico do marquês, que levou Lacan a aproximá-lo de Kant.
Porém, talvez possamos tomar o comentário barthesiano da exceção sadiana a contrario,
como uma definição da regra do erotismo. Este seria um gênero caracterizado por uma
elaborada circunvolução em torno desse centro que é o objeto. Talvez por isso Charles Melman
defina o erotismo como “uma atividade altamente intelectual e que passa pela linguagem”.
Numa leitura superficial, a expressão “altamente intelectual” pode soar pouco compatível com o
erotismo, mas é a ideia de que este passa pela linguagem que melhor nos esclarece. Se o
significante, por definição, não é o objeto, a prática linguageira tem como efeito cercar o objeto,
bordejá-lo, sem jamais alcançá-lo, em um autêntico trabalho de elaboração “intelectual”.
Assim, o erotismo seria esse strip-tease ausente em Sade. Nele, o leitor/espectador é
conduzido por uma série de revelações progressivas até se dar conta de que o prazer que ele
encontra está menos na revelação final do que no percurso que o levou a ela. Pois se a fantasia
não é a revelação do objeto, mas a possibilidade de delimitá-lo num enquadre, na sua acepção
de roteiro erótico ela será sempre uma atividade própria da linguagem – uma narrativa, portanto.
Daí porque os grandes nomes da literatura erótica ocidental e oriental sejam, ao mesmo tempo,
grandes escritores (às vezes sob pseudônimos). Penso sobretudo em Li Yu, Aretino, Apollinaire
e – por que não? – no Joyce das cartas a Nora, entre outros.
Já a pornografia, segundo Melman, está ligada à substituição da mensagem do Outro pela
dependência imaginária à mensagem da opinião, e pela substituição do semblante do objeto pelo
objeto materializado.
“Ora, a mensagem que agora nos vem da opinião não tem nenhum mistério, é uma
mensagem direta. Ela nos designa o bom objeto, capaz de nos satisfazer e que não é mais um
semblante de objeto, é um objeto bem real. À medida que o desejo por esse objeto não é mais
constituído pelo caminho complexo e difícil da castração, a única coisa que torna esse objeto
desejável é que ele tenha propriedades estimulantes, ou seja, que ele se exiba.” (Novas formas
clínicas no início do terceiro milênio, CMC, p. 147-8)
Se a pornografia atinge o seu apogeu em nossa época, não é tanto pela sua banalização na
internet, mas pelo fato de que é o acesso ao objeto, propiciado pelos discursos que regem a
contemporaneidade, que é em si pornográfico. Assim, o discurso da ciência realiza um
materialismo muito além de Sade, reduzindo o desejo e a fantasia ao âmbito dos estados do
cérebro. Já seu irmão, o discurso capitalista, utiliza o avanço da tecnociência para dar forma a
esse puro nada que Lacan teorizou como o objeto a, imaginarizando-o no objeto de consumo.
Com o acesso direto ao objeto, não há mais o que elaborar: só resta o estupor do consumidor ou
as digressões dos cientistas sobre um corpo puramente instintivo, não-pulsional.
O futuro dessa situação parece bastante previsível: a pornografia tende a se afastar cada vez
mais da narrativa, imitando o estilo documental, tornando-se uma espécie de cinéma verité do
sexo, distante das produções do passado, às quais não faltava o humor. Seu triunfo será
irreversível, só questionado, eventualmente, pelas feministas das redes sociais, que explicam
didaticamente que essa é uma forma de exploração da mulher e que a realidade do set de
filmagem é diferente dos filmes. Penso no que diria Camille Paglia, intelectual brilhante e
teórica feminista, se pudesse ver suas companheiras hoje em dia preocupadas com a dissociação
entre a representação cinematográfica e a realidade...
Quanto ao erotismo, seu futuro é não apenas o declínio, mas a extinção. Com a carência de
bons escritores, como criar boas narrativas? Afinal, convém não enumerar os grandes escritores
contemporâneos para evitar polemizar. Mas podemos afirmar, sem receio de errar, que o
número daqueles que escrevem literatura erótica é ainda menor. E provavelmente nulo o número
daqueles dispostos a permitir que a letra transborde em suas vidas, como Apollinaire: glutão,
beberrão e apaixonado, todas essas três coisas em excesso.
É a falta dessa espécie de excesso que nos faz aceitar fantasiasinhas pasteurizadas, versões
vagabundinhas do erotismo. Pensando bem, talvez este sobreviva como uma raridade, um vício
de elite: exótico, esquisito, considerado meio decadente pelas massas. Porém embriagante,
como a beleza convulsiva de Breton: “A beleza convulsiva será erótica-velada, explosiva-fixa,
mágica-circunstancial ou não será de forma alguma”. (L’Amour Fou, Folio, p. 26)
Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, membro do Campo Psicanalítico de Salvador. Diretor da
editora Ágalma, onde publicou a edição comemorativa dos 200 anos de A Filosofia na Alcova,
do Marquês de Sade, organizada por Eliane Robert Moraes.
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