LER de TRÁS PARA A FRENTE: o casamento de Afonso Henriques Sabemos o que aconteceu na história pelos testemunhos e documentos que foram deixados: o que ficou escrito, as criações técnicas e artísticas, o que se guarda na tradição oral e em práticas que, com maiores ou menores diferenças sabemos pertencerem a uma época. Na Idade Média, poucas pessoas sabiam ler e escrever, por isso existem menos documentos escritos do que em outros períodos da história. Dos que foram feitos e ainda existem, e que nos dão muitas informações, são relatos de determinados acontecimentos, escritos oficiais (cartas, tratados, contratos, forais, doações…), crónicas e anais. Estes eram relatos do que tinha sucedido e contavam os factos considerados importantes seguindo os capítulos, por ordem, a linha do tempo em que se tinham dado os acontecimentos. A partir do séc. XIV, para não se perder a memória dos acontecimentos e eles caírem no esquecimento, os reis decidiram fazer o seu registo. Era preciso procurar os documentos nos arquivos reais e conventos e naquilo que as pessoas se lembravam de ter ouvido contar ao longo do tempo e juntar estas informações num documento. Encomendaram, então, a escrita de crónicas. Claro que estas nem sempre contam tudo e, muitas vezes, não deixaram de o fazer de acordo com um ponto de vista que fosse favorável a quem fazia a encomenda ou aos seus antepassados. É já no séc. XV que é dado a Duarte Galvão o trabalho de fazer a Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe D. Affomsso Hamrriques, Primeiro Rey destes Regnos de Portugal (1505). Uma das actividades que propomos na exposição ORIGEM e PRINCÍPIO, é LER DE TRÁS PARA A FRENTE. Podes, como se fosses um historiador, ler tu mesmo partes de uma fonte histórica, sobre Afonso Henriques, veres como se escrevia e contavam as coisas e usares os auxiliares pedagógicos que fizemos para ti. Numa edição de 1917 da Crónica de Duarte Galvão, escolhemos 3 capítulos: os episódios de Egas Moniz, do Bispo Negro (que não se sabe se terão acontecido exactamente como são relatados) e de um que aconteceu mesmo, ainda que aqui tenha poucos detalhes: o do casamento do Rei, por onde vamos começar e contrariando o que era hábito numa crónica, o de contar tudo pela ordem em que os acontecimentos tinham ocorrido no tempo. Depois, podes fazer a organização e até completares com um ou outro acontecimento que pesquises alguns factos que ocorreram entre estes capítulos. ► Uma sugestão: podes tu mesmo(a) fazer a organização dos capítulos e até completá-los com um ou outro acontecimento que pesquises sobre alguns factos que ocorreram entre eles. E podes realizar isto com base em informações recolhidas em livros, na Internet, em respostas a perguntas que faças aos professores e a outras pessoas. Olha que vai ser um bom desafio fazer isto em grupo, serem investigadores e produzirem uma pequena crónica sobre o que mais gostarem de destacar na vida e acção do rei. Em duas folhas da Crónica, no capítulo como o rei concedeu Leiria e Arronches a uma ordem religiosa os assuntos espirituais dessas terras (mas já sabes que, associada a esta concessão, a igreja passava também a ter direito a um conjunto de privilégios, isenções e impostos, ainda que o rei conservasse outros direitos), relata-se também, em cerca de 12 linhas, o casamento do rei. Parece-nos pouco, mas o cronista confessa logo que, sobre este assunto, não tinha encontrado mais informação (faltavam-lhe fontes históricas para poder dar mais detalhes). Se leres essas linhas com atenção podes deduzir (apenas com base no que ali está) alguns aspectos. Diz, então: ► Como hoje sucede, será que os reis já conheciam sempre as pessoas com quem se casavam? ► Muito raramente terão acontecido namoros reais para um casamento, mesmo de forma parecida com aquilo que, na época, seria o namoro de pessoas comuns. Porque é que, e ao contrário de nós, reis e princesas casavam sem se conhecerem, sem partilhar interesses, saber se gostavam do outro, namorar ou terem proximidade física com quem se iam casar, mesmo que já fossem adultos? Reparaste na idade que Afonso Henriques tinha na sua noite de núpcias? ► De acordo com aquilo que a Crónica nos diz, que razões terão levado o rei a escolher a sua noiva? Terás, reparado que uma das razões da escolha foi a noiva ser “dotada de muitas bondades”. Uma delas seria ser católica devota como se esperava de uma dama cristã. Lembra-te que, na Idade Média, as pessoas tinham muita preocupação com a sua alma. Se tivessem cometido pecados, não se tivessem arrependido e sido perdoadas, ainda não estavam mortas e já os diabinhos estavam por ali, a rondar, para lhe levarem a alma para o inferno. Bondade e as boas acções feitas em vida podiam também ajudar a salvar a almas e levá-la, rapidamente, para o paraíso, sem esta ter de ficar ou passar pelo purgatório, uma espécie de sala de espera entre o inferno e o paraíso. Claro que é óptimo, para si e para os outros, as pessoas serem boas. Ainda mais na Idade Média, quando não havia uma assistência social organizada pelo Estado. O apoio aos necessitados era assegurado pela igreja e por pessoas com vontade e meios para o fazerem. ► Imaginas que “bondades” da noiva eram as apreciadas naquela altura, quer enquanto pessoa, na forma como ela se devia comportar, quer naquilo que ela ajudava os outros? Com frequência os casamentos reais e de nobres eram feitos sem que os noivos se conhecessem. O seu encontro devia acontecer apenas uns dias antes de se casarem, quando a noiva, trazendo o seu dote, chegava acompanhada pela sua comitiva. Beleza, feitio, idade não eram relevantes. No caso das mulheres preferia-se que estas ainda pudessem ter filhos para que a família, pactos e alianças tivesse continuidade. Afonso Henriques tinha tido namoradas. Terá desejado casar com uma nobre galega de quem gostava, Châmoa Gomes, sobrinha do Conde de Trava, apoiante e marido da sua mãe, D. Teresa. Apesar de Afonso Henriques já ser rei ele não casou com Châmoa. Acabou por casar com Mafalda, filha do Conde de Sabóia e Piemonte (uma zona entre França e Itália), uma noiva que não conhecia, que não era de um reino vizinho de Portugal e não devia sequer conhecer a língua (o galaicoportuguês) do país em que viria a ser rainha. ► Ninguém tem ideia que Afonso Henriques não fosse um homem corajoso e dado a seguir o que era sua vontade. Porque achas que não casou com Châmoa Gomes, de quem ele até já tinha filhos? Livros e filmes dão a ideia de, na Idade Média, casamentos de reis serem festas muito grandes e luxuosas. Eram-no em comparação com as de outras pessoas, ainda que, nesta altura, e ao contrário do que possas pensar, muita gente do povo não se casava. Iam viver juntas, um padre poderia dar-lhes, depois, uma bênção ou até casá-los quando baptizavam um filho. O baptismo, esse sim, era sempre feito e a união de facto uma coisa aceite. Imagens da época de casamentos de reis e nobres mostram-nos sempre poucas pessoas. Talvez fossem mais do que as que aqui vemos. Mas não seria como os casamentos reais de hoje, com 1.000 pessoas e mais. Por vezes, reis e senhores ofereciam alimentos e vinho e, na rua. o povo participava assim na festa. Repara que naquela altura não havia o “vestido de noiva”. Futuras rainhas, princesas, nobres, casavam-se com um traje, mais simples ou mais luxuoso, mas que não era um vestido para ser usado numa única ocasião da vida e os vestidos não tinham de ser brancos. Umas usavam jóias muito ricas, outras quase não as usavam. Nestas imagens nenhuma leva um ramo de flores e nem todas usam véu, sendo que as que o usam o seu véu não se distingue do das outras mulheres. Claro que antes de estes casamentos se realizarem tinha havido negociações, sido feito um acordo e determinado o dote da noiva (bens ou dinheiro que a família da noiva entregava ao noivo). Na imagem da esquerda, podes ver uma coisa curiosa: cães no casamento. A representação de um cão pode querer significar fidelidade. Mas sabias que na Idade Média, por vezes, os cavaleiros entravam com os cavalos dentro da igreja? ► O casamento, e a ideia que se tem dele, mudou ao longo do tempo de acordo com o que se pensa em cada época. Não tendo deixado nunca de ser um contrato, em tua opinião quais são as grandes diferenças entre estes e os de hoje? Nota: repara na quase ausência de talheres e nos poucos pratos que existiam: comia-se muito em cima de fatias de pão Esta imagem mostra-nos um banquete na Idade Média, não necessariamente de casamento nem do tempo do nosso rei. Basta olhar para a roupa. O que era igual e continuou a ser era haver música. Nas salas de banquete, havendo, exibia-se loiça (baixela) e utensílios de ouro e prata, toalhas de linho fino, tapeçarias e o melhor mobiliário que tivessem. A ostentação era indicadora de poder, riqueza e mostrava distinção. O banquete, um espectáculo que servia para ver e ser-se visto, afirmava a importância das pessoas que procuravam usar as suas melhores roupas e jóias. Eram distribuídas pelas mesas e servidas de acordo com a sua importância. Ser admitido à mesa do rei era uma honra que se conferia e, então, ser servido por ele era uma distinção rara e muito especial. Pão branco acompanhava manjares de faisões, pavões, lebres, capões, javalis perdizes, galinhas e leitões em cozidos e estufados mas os assados no espeto eram muito apreciados. Bebia-se vinho, misturado com água e até com algum mel, e comiam-se fogaças, queijos, bolos e tartes de mel, figos, castanhas, nozes, amêndoas. Ao contrário do povo comiam poucos legumes; estes como vinham da terra eram considerados pouco dignos. ► Como Duarte Galvão conta tão pouco do casamento de Afonso Henriques, com o que agora já sabes, não queres fazer uma crónica imaginária do casamento dele? Ao longo da Idade Média e depois um banquete refinou-se num cerimonial de muitas regras. A administração do reino, por muito tempo, não fazia a distinção entre o que era do rei e do reino. Prestar serviço ao rei era como ser hoje funcionário do país e uma forma de se ser compensado. Alguns eram nobres, outros foram-no por prestarem esses serviços considerados muito honrosos e influentes. Havia, por isso, muitos cargos e bem recompensados e que com o tempo se multiplicaram incrivelmente. Iam desde lugares com funções de gestão dos bens e organização do reino, a assuntos religiosos e comando militar. Imagina quantos seriam se, só para servir as refeições reais, como oficiais de mesa, chegou ao ponto de haver; Mestre-sala (para dirigir o cerimonial); Prestes da cozinha (criados que traziam os pratos da cozinha para a sala); Moços da câmara (que transportavam os pratos pela sala); Servidor da toalha (para colocar os pratos na mesa; Uchão de el-Rei, (para entregar os pratos ao trinchante); Trinchante (para cortar a carne e entregar o prato ao Rei); Mantieiro,(retirava os pratos depois do Rei comer); Copeiro-mor (servia as bebidas ao Rei); Copeiro-menor (recebiar do copeiro-mor os copos já utilizados pelo Rei). Mas nem sempre existiram todos estes cargos, nem as pessoas comiam muito. Os mais pobres porque não tinham, mas mesmo os que tinham, depois de terem cometido um pecado grave, se levassem a penitência a sério para salvarem a alma, deviam de ficar tristes com o que podiam comer. Casos extremos havia que, durante sete anos (e só comendo ao pôr-do-sol), em 3 dias alternados na semana só podiam consumir água e pão. Nos outros 3 podiam beber algum vinho ou cerveja (sem mel), mas nada de comer qualquer carne, manteiga, natas, queijo, gordura de porco, ovos e peixes grandes (só um dos pequeninos). Podiam comer uma sopa caldosa, temperar com um bocadinho de azeite e comer legumes secos (favas, ervilhas, lentilhas, grão). E, um pouco mais, ervas e verduras (os espinafres eram muito recomendados para acalmarem as tentações do corpo), e fruta (fresca ou seca) A penitência ficava suspensa ao Domingo, podendo, nesse dia, comer o que quisessem. Esta era a dieta de um grande pecador. Olhando para a das pessoas do povo e para aquilo que comiam quase se poderia pensar que pecavam muito. E não expiavam 7 anos pecados mas uma vida inteira de pobreza e, ao contrário dos pecadores, nem podiam comer muito melhor aos Domingos. Como se levantavam cedo, se tinham com que o fazer, almoçavam (o pequeno almoço) um caldo ou umas papas às 6h; jantavam (o almoço, entre as 10 e as 11h) pão, verduras, azeitonas; merendam qualquer coisa e ceavam (o jantar, entre as 18h, 19h) do mesmo que já tinham comido. Isso porque a base da sua alimentação era o pão escuro (de cevada), pão de castanha e até de bolota para os mais pobres, muitos legumes e alguma fruta. Peixe, ovos, leite não eram frequentes e a carne, essa então, era rara e algumas vezes caçada com risco às escondidas do senhor da terra. Ricos e pobres faziam maiores restrições na Quaresma (o tempo entre o Carnaval e a Páscoa). No Carnaval cometiam-se alguns excessos e, mesmo os mais pobres, comiam um pouco mais de carne. Era um período de tempo em que as regras mudavam e parecia que o mundo andava ao contrário: na mesa dos senhores, criados e dependentes podiam ficar com as melhores partes da comida. Todos se divertiam a criticar, gozar e rir quer da nobreza, quer do clero, quer de homens-bons e burgueses quer uns dos outros. Podia-se pregar partidas, satirizar tudo e todos sem medo de ofensas, castigos ou represálias: Carnaval, um tempo de festa em que ninguém pode levar nada a mal.