CARTILHA DE DEBATES Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal 2 Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal EXPEDIENTE Realização: Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal – ABEEF. Descrição: Cartilha de subsídio aos debates sobre o Agronegócio Florestal. Edição e diagramação: Coordenação Nacional – Gestão Piracicaba 2008/2009. Revisão: Ana Paula C. Rezende, Cauê V. de Melo, Gabriel B. Martone, Iara Jaime, Ivan Zaros, Leandro J. de Oliveira, Raquel Izidoro, Otávio G. Ferrarini e Terena P. de Castro. Apoio de publicação: SAAP / FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) – www.fase.org.br E-mail: [email protected] Site: http://abeef.cjb.net/ Piracicaba-SP Março – 2009 Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 3 Sumário Apresentação .................................................................................. 5 Como utilizar desta cartilha de debates ........................................... 6 Sugestões e dicas ........................................................................... 9 Encontros ...................................................................................... 11 1º ENCONTRO: “A UNIVERSIDADE BRASILEIRA E O CURSO DE ENGENHARIA FLORESTAL”.................................................................................................... 11 2º ENCONTRO: “O AGRONEGÓCIO FLORESTAL: IMPACTOS DA PRODUÇÃO FLORESTAL” .................................................................................................... 16 3º ENCONTRO: “O AGRONEGÓCIO FLORESTAL: A LÓGICA DE FUNCIONAMENTO DA INDÚSTRIA DE BASE FLORESTAL” ....................................................................... 21 4º ENCONTRO: “AS EMPRESAS TRANSNACIONAIS NO BRASIL” .............................. 26 5º ENCONTRO: “A AGROECOLOGIA COMO PROPOSTA” ......................................... 31 Da inquietação à AÇÃO!................................................................ 35 Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal 4 Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal Mudos Muitos são os anéis que seus aniversários desenharam em seu tronco. Estas árvores, estes gigantes cheios de anos, levam séculos cravados no fundo da terra, e não podem fugir. Indefesos diante das serras elétricas, rangem e caem. Em cada derrubada o mundo vem abaixo; e a passarada fica sem casa. Morrem assassinados os velhos estorvos. Em seu lugar, crescem os jovens rentáveis. Os bosques nativos abrem espaço para os bosques artificiais. A ordem, a ordem militar, a ordem industrial, triunfa sobre o caos natural. Parecem soldados em fila, os pinheiros e eucaliptos de exportação que marcham rumo ao mercado internacional. Fast food, fast wood: os bosques artificiais crescem num instante e vendem-se num piscar de olhos. Fontes de divisas, exemplos de desenvolvimento, símbolos de progresso, esses criadouros de madeira ressecam a terra e arruínam os solos. Neles, os pássaros não cantam. As pessoas os chamam de bosques do silêncio. Eduardo Galeano Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 5 Apresentação Companheiros e companheiras, Pensando no atual momento em que vivemos onde as questões ambientais estão pipocando em todos os setores da sociedade, nós da ABEEF apresentamos a vocês essa cartilha de debates que tem como foco de análise o Agronegócio Florestal. A idéia de abordar esse tema surgiu da necessidade identificada pela Associação de aprofundar mais o seu debate sobre esse assunto, uma vez que, direta ou indiretamente, é um tema que nos diz muito respeito, pois vai desde o ensino nas nossas universidades, a nossa atuação enquanto profissionais, que está completamente atrelada aos caminhos definidos pelo agronegócio, até as implicações sobre o destino do país nesse momento de crise do sistema capitalista. Desse modo buscamos trazer aqui um roteiro orientador de estudos e debates a serem realizados pelos grupos organizados de estudantes de Engenharia Florestal de todo o país, que fomente a necessidade de se entender com profundidade a realidade em que se insere o nosso curso. Assim essa cartilha traz inicialmente reflexões sobre nossa formação profissional, para que possamos perceber que nosso curso faz parte de um processo histórico que define o papel que um profissional da área deve ter nos dias de hoje, bem como o papel que a universidade vem cumprindo nesse mesmo sentido. Após esse momento, passamos para uma analise mais focada no agronegócio florestal e seu funcionamento. Dentro dessa analise, inicialmente abordaremos o modelo de produção utilizado nesse setor, os seus impactos socioambientais e sua falsa imagem sustentável; após isso passaremos a análise das indústrias do setor, de sua origem, seu funcionamento e do destino de sua produção; para por fim chegar às transnacionais, sua influência nas políticas e programas do governo, na mídia e nas universidades. Assim, após tecer toda a crítica em torno desse modelo, pretendemos trazer elementos sobre a agroecologia como a proposta alternativa que nossa Associação defende como contraponto a esse modelo de produção e, para além disso, como uma ferramenta importante dentro do processo de transformação social que acreditamos. Dessa maneira, não ficamos apenas na critica sem proposta, conseguimos definir um norte para essa caminhada que estamos fazendo. Por fim, vale ressaltar que essa cartilha não terá efeito positivo, se a proposta que aqui será apresentada não for incorporada e concretizada pelos grupos de estudantes de nossa Associação, pois ela é parte inicial do processo de formação e denúncia que pretendemos realizar. Então companheirada, essa cartilha precisa ganhar vida, e isso só será possível com o esforço conjunto de todos nós, que, comprometidos com a construção de um mundo sem exploradores e explorados, harmônico humanoambientalmente, temos a tarefa de denunciar os problemas desse modelo e marcar a nossa posição diante da situação apresentada. Sabemos que para fazer luta com propriedade devemos ter claro contra o que estamos lutando, e para isso é necessário o estudo. Portanto, vamos lá. Façam um ótimo proveito dessa cartilha, esforcem-se para fazer ela ganhar vida. Boa leitura, bom estudo e boa luta!!! “Cinco siglos resistiendo, cinco siglos de coraje, manteniendo siempre la esencia; Y es esencia, y es semilla y esta dentro nuestro por siempre; Se hace vida con en sol, en la pachamama florece.” Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 6 Como utilizar desta cartilha de debates Como dito anteriormente essa cartilha precisa ganhar vida. Portanto ela foi pensada como um roteiro de estudos para auxiliar os grupos organizados de estudantes de Engenharia Florestal comprometidos com a ABEEF, na apropriação desse debate, mas depende fundamentalmente dos esforços desses grupos para se concretizar. Então, o primeiro passo é que os grupos consigam através do estudo, obter mais elementos que contribuam com o entendimento do assunto que estamos tratando. No entanto, esse não é o objetivo final dessa cartilha, pois entendemos que esse acúmulo de debate não pode ficar restrito simplesmente a um grupo seleto de pessoas esclarecidas, pois a partir do momento que passamos a compreender melhor a nossa realidade e seus problemas, passamos também a ter o compromisso de levar isso até as pessoas que ainda não conseguiram enxergar a realidade em sua essência. E para, além disso, passamos a ter a responsabilidade de lutar para transformar essa realidade. Dessa forma, vemos como fundamental que os grupos que tiverem acesso a essa cartilha realizem encontros sobre os temas que aqui serão apresentados. Esses encontros têm, fundamentalmente, o papel de disseminar o debate em torno do agronegócio florestal, e para isso a intenção é abranger o maior número possível de pessoas e atores de acordo com a realidade de cada escola e região. Em algumas escolas pode ser interessante realizar encontros só com estudantes, ou então aproveitar a calourada para realizar os encontros; em outras pode ser mais interessante fazer encontros mais abertos com presença de professores, movimentos sociais, etc. A intenção é que o grupo tendo aprofundado seu conhecimento sobre o tema, consiga construir espaços que tenham como objetivo sensibilizar, denunciar, aproximar novos militantes, mostrar o posicionamento da ABEEF e se fortalecer enquanto um coletivo de luta. Para isso, sugerimos a realização de 5 encontros com os seguintes temas: • 1º ENCONTRO: “A Universidade brasileira e o curso de Engenharia Florestal” O objetivo desse encontro é trazer questionamentos sobre o que é a Engenharia Florestal, de onde ela surgiu, qual o papel que ela deveria cumprir dentro da sociedade atualmente, qual papel ela cumpre, etc. A partir dessas reflexões sobre a Eng. Florestal, vamos explorar o debate sobre a quem serve a universidade hoje em dia, isso somado a um panorama mais geral sobre o papel da educação dentro do modelo capitalista de sociedade. • 2º ENCONTRO: O Agronegócio Florestal - impactos da produção florestal Nesse encontro o objetivo é demonstrar os impactos sociais, ambientais e econômicos provenientes do modelo de produção das monoculturas florestais e de exploração das matas nativas, que são as formas mais consolidadas do agronegócio florestal no Brasil. A idéia é apresentar dados, de pesquisas cientificas, econômicas, estatísticas, que revelem a real faceta desse modelo, desmistificando a imagem sustentável vendida pelo setor florestal. • 3º ENCONTRO: O Agronegócio Florestal – a lógica de funcionamento da Indústria de Base Florestal Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 7 Esse encontro vai trazer mais elementos sobre a indústria dentro do agronegócio florestal. O objetivo aqui é apresentar seu funcionamento, sua origem e o destino de sua produção. Para isso é interessante trazer dados das indústrias de celulose e madeira processada que revelam para onde vão os produtos florestais produzidos aqui no Brasil. A partir desses dados pretendemos debater sobre o papel que o Brasil cumpre dentro da divisão internacional do trabalho (o de exportador de commodities), e com isso demonstrar que o setor florestal brasileiro funciona para beneficiar uma minoria rica (em grande medida de países estrangeiros) enquanto volta às costas para os interesses do povo brasileiro. • 4º ENCONTRO: O Agronegócio Florestal – As empresas transnacionais no Brasil O objetivo aqui é apresentar a lógica de funcionamento das transnacionais do agronegócio florestal, que vai desde a sua influencia nas políticas e programas do Estado, até sua influencia na mídia, que constrói a necessidade desenfreada do consumo, criminaliza os movimentos sociais e de resistência a essas empresas. Além disso, pretende-se trazer um breve histórico de como foi a entrada das principais transnacionais do setor aqui no Brasil, e por fim amarrar com a entrada dessas empresas nas universidades para defesa de seus interesses, e com isso ligar esse encontro ao primeiro encontro. • 5º ENCONTRO: Agroecologia como proposta Por fim fecharemos os encontros apresentando a proposta que defendemos diante de toda a situação apresentada. A Agroecologia não será apresentada apenas como técnicas e práticas de produzir sustentavelmente, mas como uma ferramenta de fundamental importância no processo de transformação social. Uma agroecologia política, que busca a soberania alimentar e energética dos povos, que discute os valores humanistas e militantes e que por isso esta atrelada à disputa do modelo de sociedade e se consolida como alternativa. No entanto, a idéia não é que esses encontros sejam simplesmente palestras sobre os temas, mas espaços construídos com base em metodologias participativas, que fujam do convencional da educação bancária (e para isso temos nossa cartilha de educação popular que nos ajuda muito nesse momento), e que seja fruto da criatividade dos grupos. Essa preocupação com a forma deve estar presente desde a divulgação dos encontros até sua realização, o que não significa que o conteúdo deva ser deixado de lado, muito pelo contrario, forma e conteúdo devem ser igualmente prioridades. O que temos que ter claro e afinado são os nossos objetivos com esses encontros (formação de grupo, aproximação de novos militantes, denúncia, disseminação do debate), e com isso o processo de consolidação desses pode se dar das mais diversas formas. Dentro deste contexto, essa cartilha apresenta, para cada um desses temas, um breve texto elaborado pela Coordenação Nacional, que traz linhas gerais sobre o que queremos abranger em cada um dos encontros. Além disso, trazem referências de textos, livros, relatórios, pesquisas e filmes que se fazem necessário para o aprofundamento no tema e que podem auxiliar na construção de encontros mais dinâmicos e sólidos. No entanto, os grupos não devem ficar restritos ao que é apresentado nessa cartilha e devem buscar, de acordo com a realidade de cada escola e região, outros materiais que contribuam para a melhor efetivação desses estudos e encontros em cada uma das realidades. Portanto, abaixo seguem as contribuições que damos ao debate sobre os assuntos a serem estudados, e as respectivas sugestões. Esperamos que auxilie nessa Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 8 caminhada que está por vir. Contamos com o trabalho de todos que a partir desse momento têm em mãos elementos que não são abertamente difundidos por aí. Vale lembrar a responsabilidade que temos a partir de agora, de dar mais um passo na construção do mundo que queremos. Assim, fica selado o nosso compromisso! “Vamos floresteiros, temos que por um pouco mais de força Estamos todos juntos novamente Floresta e Amazônia não se vendem, se defendem!!!” Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 9 Sugestões e dicas Floresteiros e floresteiras de cada canto do Brasil, para cada um dos textos que temos neste caderno de debates, sugerimos alguns materiais que podem ser utilizados para aprofundamento dos estudos e/ou realização dos encontros. Sugerimos que como um primeiro passo, os grupos realizem momentos de estudo com os textos da cartilha. Este estudo pode ser coletivo, combinando um momento dentro da própria reunião dos Centros Acadêmicos ou grupos de ABEEF das escolas, fazendo a leitura coletiva dos textos e uma discussão na seqüência. Pode também ser individual, para determinado dia todos combinam de ler o texto e discutir no início ou no final da reunião, mas nesse caso é necessário firmar o compromisso de cada um em ler o texto, para que o estudo não seja prejudicado. Um segundo passo é aprofundar o estudo inicial com as sugestões que estão ao final do texto de cada encontro. Para organizar esse segundo momento de estudo é interessante pensar nas conversas que temos realizado a respeito da Educação Popular, ou seja, fazer com que os espaços preparados por nós não sejam uma repetição do que vemos dentro das salas de aula, principalmente quanto a sua forma. Não temos a pretensão de neste pequeno texto abordar a complexidade da Educação Popular, mas podemos dizer que ela utiliza recursos pedagógicos como instrumentos, que ajudam na incorporação dos conteúdos e do próprio método. As dinâmicas e as metodologias participativas são apenas ferramentas que ajudam no dialogo com o sujeito e constroem o conhecimento com ele, a partir de suas experiências. O estudo da Cartilha de Educação Popular “Estudo, Trabalho e Luta: a caminho da Educação Popular” elaborada pela FEAB e pela ABEEF em 2008 pode auxiliar nessa preparação e no entendimento da Educação Popular. Para a organização dos encontros, pensando nesses elementos da Educação Popular, temos algumas dicas. Uma idéia é tirar responsáveis para preparar o encontro. Pode ser uma dupla, bacana se for um homem e uma mulher, e que eles fiquem responsáveis por olhar as dicas de livros, filmes, músicas e poesias e preparem o encontro para o grupo. A dupla pode além de preparar o material para a reunião, ornamentar o espaço, ler um poema, tocar uma música... são muitas as possibilidades. Porém, se o grupo decidir que esse encontro será ampliado, que convidará os calouros e outros estudantes, além da dupla, mais pessoas do grupo que já estudaram o texto da cartilha, poderiam se envolver nessa organização, ajudar na divulgação, no convite a novas pessoas, na ornamentação do espaço. Esta possibilidade, de envolver novas pessoas no segundo momento do encontro é muito importante para levar o debate de nossa campanha para mais estudantes, entendendo que esses temas que pautamos dificilmente são debatidos dentro das salas de aula nas universidades e que são de fundamental importância para a compreensão do papel que deve cumprir não apenas o estudante de Engenharia Florestal, mas qualquer um que reconhece a opressão existente na sociedade atual. Organizar um Cine Floresta com o filme “Papel Del Sur”, por exemplo, e realizar um debate na seqüência, pode se um bom começo para chamar novos estudantes. Novamente lembramos que para isso é preciso preparar o debate, ou seja, é necessário que algumas pessoas se programem para assistir o filme e ajudar a tocar o debate. Dependendo de como o grupo pensar o espaço, convidar um professor para contribuir pode ser muito interessante. Da mesma forma, se o grupo já tiver alguma Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 10 aproximação com movimentos sociais, pode ser muito enriquecedor convidar algum militante, o pode trazer ao debate novos elementos e outra visão, que não a acadêmica, sobre o assunto. Sugerimos ainda que alguns encontros possam ser pensados juntamente com os espaços de formação preparatórios para o nosso 39º CBEEF – Agronegócio/ecologia? A Engenharia Florestal optando por uma nova relação homem natureza (Julho, Botucatu-SP) –, lembrando que o nosso Congresso será fruto desse nosso trabalho, com grande foco na nossa campanha, mas também abrangendo nossas demais bandeiras de luta. Bom trabalho a todos os grupos!!! Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 11 Encontros 1º encontro: “A Universidade brasileira e o curso de Engenharia Florestal” Um pouco de história: O curso de Engenharia Florestal Iremos começar nossos debates abordando o ensino da Engenharia Florestal no Brasil, tratando do momento histórico em que os primeiros cursos foram criados, e a quais demandas e interesses estes vieram a atender. Os primeiros cursos de Engenharia Florestal surgiram em um momento em que nosso país passava por profundas mudanças, por um processo acelerado de desenvolvimento decorrente do governo desenvolvimentista do então presidente Juscelino Kubitschek (JK). Tal política desenvolvimentista baseava-se no rápido crescimento da produção industrial e da infra-estrutura, com a participação ativa do Estado. Foram marcas desse período a construção de Brasília, a implantação da indústria automobilística e a expansão da indústria pesada. Podemos deduzir que para a concretização desse desenvolvimento fez-se necessários muitos investimentos estatais, incentivos fiscais e acima de tudo, demandou-se de recursos naturais. Destes, havia grande demanda por recursos madeireiros para as construções nas cidades, de estradas e ferrovias e para indústrias siderúrgicas e de papel celulose que estavam em franca expansão. Essa grande procura por madeira colocou a produção florestal e o suprimento de madeira no centro das atenções de profissionais e do governo brasileiro. A preocupação com uma possível escassez de madeira para o mercado interno, bem como para o mercado internacional, fez com que o governo adotasse, em meados de 1960, uma intensa política de incentivo fiscal para o reflorestamento. Nesta época já haviam sido realizadas as primeiras experiências de plantio de espécies arbóreas exóticas no Brasil, destacando os trabalhos de Edmundo Navarro Andrade, engenheiro agrônomo da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, com espécies do gênero Eucalyptus. A partir dessas experiências foi possível constatar que o eucalipto poderia atender as necessidades de suprimento de madeira, por ser uma espécie de rápido crescimento e produzir madeira na qualidade desejada para os usos requisitados (como para mourões, dormentes, lenha, carvão, papel e celulose). Inicia-se, então, um amplo desenvolvimento e difusão do “reflorestamento” com eucalipto, ou seja, de plantios monoculturais (homogêneos) da espécie em larga escala no Brasil. Após o Golpe Militar de 1964, a política desenvolvimentista de JK passa a ter um novo impulso, que no campo se dá de maneira bem intensa em função da chamada Revolução Verde. Na política florestal, o governo militar (1964 – 1985) criou uma série de instrumentos, tais como grandes programas e ações políticas com massivos investimentos públicos, que até metade dos anos 1980, incentivou e financiou as grandes empresas florestais. Ainda, essas empresas privadas do setor florestal que foram gestadas com dinheiro público, eram quem detinham as áreas de produção de madeira, ou seja, extensas propriedades de terra com monoculturas de eucalipto. Todo esse processo que descrevemos até agora foi o contexto histórico que determinou a necessidade de um profissional especializado na área florestal, distinto dos profissionais de agrárias já existentes, como agrônomos e veterinários. Criam-se assim os primeiros cursos superiores de Engenharia Florestal no país na década de 60, segundo os moldes norte-americano e europeu, onde tais cursos existiam desde aproximadamente 1880. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 12 Em outras palavras, podemos dizer que a expansão das monoculturas florestais (sobretudo de eucalipto), bem como o desenvolvimento das empresas florestais privadas, impulsionaram a criação de cursos de Engenharia Florestal no Brasil. Logo, existe uma ligação forte entre a Engenharia Florestal e as monoculturas florestais, que no ensino florestal toma a forma de silvicultura - ciência que se ocupa da implantação e condução de povoamentos florestais, em sua maioria homogêneos. Antes de serem criados estes primeiros cursos, a silvicultura integrava o curriculum dos cursos de Engenharia Agronômica, e logo, fazia parte das inúmeras disciplinas e áreas de atuação da agronomia, que abrange diferentes culturas, criações, técnicas, etc. O curso de Engenharia Florestal surge então para dar um maior enfoque às questões silviculturais, tendo-a como principal conteúdo dos currículos, foco das pesquisas e área de atuação central dos cursos no país. Isso pode ser observado em diversos relatos sobre os primeiros cursos de Engenharia Florestal que eram essencialmente o ensino da silvicultura, sobretudo de espécies arbóreas exóticas como eucalipto e pinus. Em muitas escolas esse caráter se mantém até hoje. Podemos, então, concluir que o curso de Engenharia Florestal surge como uma resposta à intensa expansão dos monocultivos de eucalipto e pela demanda por profissionais florestais para atuarem junto aos atores dessa expansão, ou seja, as empresas florestais privadas. Dessa forma, vemos que a formação do engenheiro florestal busca atender as demandas e interesses do mercado e não da sociedade em sua totalidade. Não tem como plano de fundo o estudo da realidade brasileira e de seus problemas, tais como a desigualdade social, concentração fundiária, os conflitos sociais no campo e até mesmo problemas ambientais (como do próprio monocultivo de eucalipto). No entanto, esta não é uma situação exclusiva do curso de Engenharia Florestal, mas sim da Universidade brasileira como um todo. Se pararmos para pensar, o objetivo da Universidade não é justamente o de gerar conhecimento a toda sociedade e soluções para os principais problemas brasileiros? Por que então a Universidade não está comprometida com os interesses de toda sociedade, do povo brasileiro? Por que atende aos interesses do mercado e de um pequeno grupo de pessoas? No próximo tópico buscaremos responder essas perguntas, ao analisarmos a Universidade brasileira e seu papel na sociedade atualmente. A Universidade brasileira na atualidade No tópico anterior pudemos entender o contexto histórico em que os primeiros cursos de Engenharia Florestal do país foram criados. Neste segundo tópico trataremos da universidade brasileira, buscando entender qual o papel que esta cumpre na sociedade. Ao verificarmos o desenvolvimento da Universidade brasileira podemos notar que esta nunca buscou cumprir com a função de analisar a sociedade e propor transformações que contribuem para a construção de uma sociedade justa e solidária. Pelo contrário, a Universidade, e a educação brasileira de uma maneira geral, têm mostrado ser um eficiente instrumento de manutenção e reprodução da ordem vigente. No entanto, essa condição tem se intensificado nas ultimas décadas. A exemplo do que ocorreu em outros países, a Universidade brasileira passou a sofrer, a partir da década de 90, um expressivo processo de desmonte, transformação e mercantilização. Estes acontecimentos estão relacionados ao conjunto de medidas e políticas presentes no receituário neoliberal, propagandeado pelos principais órgãos internacionais, tais como o FMI (Fundo Monetário Internacional), OMC (Organização Mundial do Comércio), Banco Mundial, BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Os Estados nacionais, sobretudo dos países periféricos do capitalismo, em função de empréstimos realizados nestes órgãos, recebem junto ao Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 13 dinheiro – como “brinde” – a política neoliberal que deve ser aplicada em suas economias. Não é preciso dizer que a aplicação destas “recomendações” é condição fundamental para que os Estados recebam os empréstimos, funcionando na verdade como uma imposição. No que se refere à educação, com implantação da política neoliberal o Estado se desobriga do ensino superior que é transferido para a iniciativa privada. Desta forma, a educação é compreendida dentro da lógica do mercado, e logo, passa a ser uma mercadoria. É possível observar que a política neoliberal na educação, em particular no ensino superior, tem três grandes conseqüências: o processo de sucateamento das Universidades públicas, com o horizonte de sua privatização; a proliferação indiscriminada de instituições de ensino superior privadas, onde o lucro é mais importante que a educação; e a formação e o ensino nas Universidades balizados a partir de demandas e interesses do mercado. Nesse sentido, observa-se que desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, as Universidades estão recebendo cada vez menos investimentos estatais (Gráfico 1*). Esse fato faz com que as Universidades procurem realizar, para angariar verbas, parcerias com empresas privadas, geralmente no âmbito das pesquisas. Gráfico 1. Investimento do Estado na educação em relação ao PIB do respectivo ano, valor em porcentagem. Fonte: IBGE e STN*. A partir dessas parcerias as empresas constroem laboratórios, bibliotecas e até mesmo salas de aulas nas Universidades públicas em um nítido movimento de substituição dos investimentos estatais pelos privados, que segue o caminho da privatização. Estes investimentos, no entanto, não são realizados de graça. É através deles e das parcerias nas pesquisas que as empresas – que em sua maioria são transnacionais – se infiltram na Universidade pública direcionando o ensino, a pesquisa e a produção de conhecimento para atender seus interesses. Ainda, é cada vez mais comum o caso de professores dessas Universidades envolvidos em pesquisas de transnacionais. Essas pesquisas muitas vezes são de propriedade das empresas e assim, seus resultados não podem ser divulgados para a sociedade, pois os contratos das parcerias apresentam cláusula de sigilo. Podemos então ver que estas utilizam da estrutura da Universidade (laboratórios, departamentos, etc...), de seus professores, funcionários e até estudantes, para produzir suas próprias pesquisas. Já aquelas Universidades que não conseguem realizar parcerias com a iniciativa privada passam por um processo de sucateamento. Com isso, cria-se uma distinção entre as Universidades públicas: as com inserção do capital privado e chamadas de Centros de Excelência e as sem relação com a iniciativa privada, que passam pelo processo de desestruturação e assim apresentam inúmeros problemas de infraestrutura, no quadro de professores e de assistência estudantil. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 14 Essas relações promíscuas entre o privado e o público nas Universidades se dão também com as chamadas Fundações Privadas “de Apoio” às instituições de ensino superior. Criadas com o falso pretexto de auxiliar as Universidades, estas Fundações, na realidade, são organizações empresariais voltadas para o mercado e instituídas com a finalidade de obter ganhos para seus membros. Para isso, utilizamse do espaço e do nome das Universidades na realização de cursos pagos (de especialização, pós-graduação) e venda de serviços, muitas vezes, à própria instituição “apoiada”. A atuação dessas fundações compromete a liberdade acadêmica, direcionando a formatação de cursos, currículos, pesquisas etc. para atender aos interesses do mercado em detrimento das demandas sociais. Além disso, estão envolvidas em inúmeros casos de corrupção e irregularidades, como no caso da Universidade de Brasília (UnB), em que o então reitor Timothy Mulholland desviava recursos públicos da Universidade e repassava às suas fundações de apoio. O fato, juntamente com a atuação decisiva do Movimento Estudantil da UnB, resultou na renúncia do reitor. Isso acontece claramente em muitas Escolas de Engenharia Florestal, onde estão presentes essas Fundações junto aos seus Departamentos. Na forma de institutos de pesquisa, estudos, investigações, etc, as fundações florestais, como dito anteriormente, inserem o curso de Engenharia Florestal nesta mesma lógica de continuar atendendo aos interesses e demandas do mercado. Acompanha todos esses acontecimentos o excepcional crescimento de Instituições de Ensino Superior Privado (IESP), que procuram atender o grande número de jovens dispostos a freqüentar o ensino superior. É possível observar, na última década, a abertura indiscriminada dessas instituições em detrimento de investimentos nas instituições públicas. Isso se dá, contraditoriamente, através de investimentos (BNDES), incentivos fiscais e políticas do governo brasileiro. Políticas públicas, tais como o Pró-Uni, que possibilitam o acesso de jovens da classe média e pobre ao ensino superior, geram imensos lucros às IESP e substituem a obrigação do governo em oferecer ensino gratuito a todos. Para exemplificar, na década de 90 existiam 450 Instituições de Ensino Superior Privado. Já em 2003, o número dessas instituições saltou para 1500. Para isso, o PróUni teve um papel fundamental, sendo uma das principais políticas que ajudaram o setor privado a crescer. Soma-se a esse panorama a metodologia de ensino utilizada nas Universidades, que é a da educação bancária. Nesta metodologia, a relação educador-educando se dá de maneira hierarquizada, em que o educador (professor), dono da verdade, deposita o seu “conhecimento” no educando, o aluno (sem luz). Procura-se, desta forma, eliminar qualquer forma de questionamento e reflexão sobre a situação da Universidade, bem como, de toda a sociedade em que vivemos, reforçando assim, a dominação do mercado. Finalizando este tópico e este encontro, fica claro o papel que a Universidade vem cumprindo em nossa sociedade atualmente, bem como o curso de Engenharia Florestal. No entanto, uma vez que temos o entendimento de que essa é a realidade encontrada nas universidades brasileiras, não devemos simplesmente condenar os cursos de Engenharia Florestal. Nossa sociedade necessita de um profissional, tal como o/a Engenheiro/a Florestal, que possuindo uma visão crítica de questões ambientais e sociais - e como estas se relacionam – possa dar respostas às necessidades de todo nosso povo. Assim, devemos construir uma nova perspectiva para a Engenharia Florestal, enquanto um curso que nos permita entender a realidade em que estamos inseridos, o funcionamento de nossa sociedade, para atuarmos no sentido de transformá-la. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 15 Nada é impossível de Mudar “Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar”. Bertold Bretch SUGESTÕES PARA APROFUNDAMENTO: Textos e reportagens: • *Jornal Brasil de Fato, número 233, ano 5. Edição Especial: Educação. 08/07. www.brasildefato.com.br • “Monsanto na USP. Halliburton na Agência Nacional do Petróleo”. Agência Brasil de Fato. 06/08/08. • “Em parceria com Monsanto, USP quase se submete à lei estadunidense”. Agencia Brasil de Fato. 08/11/08. • “Quando o Ensino é uma Mercadoria”. Revista Caros Amigos. Edição Especial: Universidade no espelho. 12/02. www.carosamigos.terra.com.br • “Para Andes, fundações de fomento à pesquisa se tornaram espaço de corrupção". Agência Brasil. 02/03/09. www.agenciabrasil.gov.br o • “Promiscuidade com fundação derrubou reitor da UnB”. Informativo Adusp n 256. 22/04/08. www.adusp.org.br Livros e Cartilhas: • “Estudo, trabalho e luta: a caminho da Educação Popular”. Cartilha de textos ABEEF e FEAB. • “Universidade pública x Fundações ditas de apoio”. Educação não é mercadoria. Cartilha do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN). www.andes.org.br Monografia: • “A racionalidade privada no departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Viçosa”. Vladimir Oganauskas Filho. Viçosa - MG, 2008. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 16 2º encontro: “O Agronegócio Florestal: impactos da produção florestal” No século XV os países ibéricos se aventuravam pelos mares em busca de novas terras, e já com as primeiras âncoras baixadas no continente americano os navegadores se deslumbraram com as riquezas aqui presentes. Os minérios, principalmente prata e ouro, foram o incentivo inicial para enviarem cada vez mais navios na rota da América hispânica. Neste momento se concebia uma função destas colônias, o fornecimento de matéria prima às metrópoles. A primeira exploração no Brasil colonial foi de um produto florestal. A madeira do pau-brasil era utilizada em construções e extração de tinta para as fábricas de tecido de Portugal. Na ocasião a exploração da espécie a colocou em risco de extinção. Posteriormente, o plantio dos canaviais e a exploração de minérios foram responsáveis por fornecer exorbitantes quantidades de açúcar, ouro e diamante para a metrópole. Esta divisão internacional da produção coloca o Brasil, ao lado dos países latinoamericanos, na função de produzir matéria prima e fornecer mão de obra barata, em prol do desenvolvimento das metrópoles. Não por acaso as “antigas” colônias hoje são denominadas de países em desenvolvimento e as metrópoles em países desenvolvidos. Para visualizarmos como esta estrutura internacional permanece até os dias de hoje, e que nós brasileiros pouco decidimos sobre o que produzir, onde produzir e como produzir, voltemos nosso estudo para o desenvolvimento da agricultura no nosso país. Historicamente o desenvolvimento da agricultura brasileira se inspirou no modelo industrial europeu de produção primária, que teve seu início no século XVIII, tendo como principal objetivo o aumento da escala de produção tanto nas propriedades já existentes, como também, a partir da exploração desordenada de novas áreas. Este modelo industrial imprimiu sobre o meio rural a lógica de uma fábrica, acabando com as integrações entre as diferentes culturas e promovendo a homogeneização das propriedades. Um grande marco desta transformação no campo se deu com a chamada Revolução Verde na década de 1970, quando um levante das entidades de ensino, extensão e pesquisa do país, reformularam suas linhas de ação, passando a privilegiar as áreas e disciplinas direta ou indiretamente envolvidas com a adaptação e validação do padrão agrícola que já se tornara convencional na América do Norte, Europa e Japão. Esse padrão foi consolidado sobre as seguintes linhas de atuação: 1) Insumos químicos: utilizados com o objetivo de fornecer à planta uma situação de máxima produção, disponibilizando nutrientes sinteticamente elaborados e eliminado as “pragas” e “daninhas”, tidas como prejudiciais à produção. Os herbicidas são derivados de produtos desenvolvidos inicialmente como armas químicas, um exemplo é o “agente laranja”, que foi utilizado na década de 1960 na guerra do Vietnã como desfolhador, destruía as florestas onde os soldados vietnamitas se escondiam, possuía subprodutos extremamente cancerígenos que causaram diversas mortes no país. Na agricultura os compostos daquele veneno são aplicados até hoje para eliminar as plantas daninhas, como por exemplo, o agrotóxico Tordon. Os adubos sintéticos também derivaram das fábricas bélicas que após a segunda guerra mundial disfarçaram seu caráter e de produtoras de armas passaram a produzir fertilizantes. 2) Mecanização: usado com o objetivo de aumentar o rendimento das atividades agrícolas antes realizadas manualmente ou com o uso de tração animal. Por ser empregada sem qualquer tipo de planejamento proporcionou um excedente de mão de Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 17 obra no campo, acentuando a migração de camponeses para os grandes centros urbanos. 3) Melhoramento genético: teve como objetivo a adaptação das plantas para as condições de alta produtividade (uso de insumos químicos sintéticos e preparo de solo pesado), sendo que com esse melhoramento muitas das características de rusticidade e qualidade nutricional se perderam nas culturas e nas sementes. Essa perda foi ocasionada pela restrição da diversidade genética realizada pelos programas de seleção que se focavam essencialmente na produtividade. 4) Monoculturas em larga escala: também na lógica de transformar as propriedades rurais em fábricas, tem o objetivo de maximizar a produção em pólos agrícolas, reproduzindo a divisão internacional que vê no Brasil a função de ser o “seleiro do mundo”, fornecedor de produtos primários. Para tanto, se justificaria a existência de latifúndios, grandes extensões de terras concentrados na mão de pouco. Segundo o Atlas fundiário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), 3% das propriedade rurais do Brasil são latifúndios, ou seja, possuem mais de mil hectares, e ocupam 56,7% das terras agricultáveis, enquanto 60% do alimento que chega à nossa mesa é proveniente da agricultura familiar. As instituições públicas de assistência técnica rural ficaram incumbidas de impor o modelo sobre as propriedades, os agricultores eram vistos como atrasados, desprovidos de conhecimento, e assim como a igreja catequizou o índios a extensão rural brasileira impôs aos agricultores uma outra forma de se relacionarem com a terra e as plantas. Todas essas medidas constituem o pacote tecnológico da Revolução Verde, e foram amplamente difundidas no Brasil sob o discurso de sanar a fome no mundo. O curioso é que mais de 40 anos depois as linhas de ação permanecem traduzidas no Agronegócio, mas a situação parece não se modificar. O Brasil é o quarto maior em produção de alimentos e o segundo em desnutrição, com um terço da população abaixo da linha de pobreza. Segundo o relatório “O estado da insegurança alimentar no mundo 2008” (FAO), o número de pessoas com subnutrição no mundo em 1992 era de 841,9 milhões (15,3% da população mundial) e atualmente esse numero chega a 963 milhões de pessoas (14,2% da população mundial), porém, curiosamente, a produção de milho para o mesmo período aumentou 45%, o arroz 20% e a soja 97%. Assim, a agricultura moderna brasileira, tanto no campo quanto nas entidades de ensino, pesquisa e extensão, ainda carrega práticas que raramente respeitam o ambiente e o trabalhador que vive no campo. Dentre os problemas ambientais, a destruição das florestas, a erosão e contaminação dos recursos naturais e dos alimentos, tornaram-se conseqüências quase inerentes à produção agrícola, assim como os problemas sociais: a concentração da posse de terra e riquezas, êxodo rural desordenado, aumento do desemprego e assalariamento sazonal. O Agronegócio Florestal Voltemos nosso olhar para o setor florestal. A monocultura do eucalipto segue o modelo ditado pelo agronegócio descrito acima: grandes extensões de terras contribuindo para o aumento das desigualdades sociais, reflexo da concentração de terra nas mãos de uma minoria; uso de insumos químicos com alto potencial residual, poluindo o solo e lençóis freáticos; uso de programas de mecanização incoerentes com as regiões tropicais, e causadores de uma baixa empregabilidade; diminuição da diversidade por utilizarem uma única espécie, além da diminuição da diversidade genética, pelo uso de poucos clones. Por esses motivos é absurda a comparação deste modelo produtivo insustentável com uma Floresta, termo usado nas Universidades e pelas empresas como uma estratégia política de promover uma imagem a favor do deserto verde. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 18 Parece-nos que o desmatamento da Mata Atlântica com o objetivo de plantar Eucalipto é uma coisa abominada pelas empresas do setor, e que isso só aconteceu pontualmente em tempos remotos, mas não é bem assim. Em junho de 2008 o Ministério Público Federal em Eunápolis (BA) multou a empresa Veracel em 20 milhões de reais, além de condená-la a retirar suas plantações de Eucalipto dos municípios de Santa Cruz, Cabrália, Belmonte, Eunápolis e Porto Seguro, todos na Bahia, e a recompor a vegetação nativa no prazo de três meses a um ano. As contradições se expõem: como podem as empresas, que tanto vendem uma imagem de ecológicas, destruírem mais de 96 mil hectares do bioma mais degradado do nosso país? Será que 200 reais é o valor que deve ser pago por 1 hectare de Mata Atlântica desmatado? Não é difícil responder esta questão quando concluímos que o interesse desta é unicamente acumular capital, mesmo motivo que fez a Aracruz demitir mais de 1000 trabalhadores no final de 2008 com a premissa de reduzir os gastos diante de uma situação de risco do mercado internacional. Os trabalhadores não passavam de um fator de produção (mão de obra), que quando necessário deve ser cortado de modo a aumentar a eficiência produtiva. Outro problema socioeconômico gerado pela monocultura de árvores se deve à exclusão de agricultores do campo. O principal alvo na aquisição de terras por parte das empresas são as propriedades familiares, pois, de modo geral, estas famílias passam por um período de instabilidade econômica, frente às dependências geradas pela agricultura convencional. Como para as empresas é muito mais lucrativo possuírem grandes extensões de terras no entorno de um pólo produtivo, estas não medem esforços para comprar várias propriedades, sem considerar qualquer tipo de planejamento de uso e ocupação de um território. São freqüentes municípios extremamente afetados pela extinção do campesinato, antes responsável por alimentar o município. Um caso típico ocorreu em 2005 em São Luis do Paraitinga (SP), onde o Tribunal de Justiça proibiu a atuação da empresa Votorantim Celulose e Papel no município, depois de manifestações populares que alarmaram para o crescimento abusivo da área plantada da empresa, que já possuía 10% de todo o território do Vale do Paraíba. Conflitos semelhantes ocorrem com comunidades tradicionais no norte de Minas Gerais, Vale do Jequitinhonha (MG), sul da Bahia e Rio Grande do Sul, porém são raras as situações em que o Estado apóia as manifestações populares contra o Deserto Verde. Um caso que a mídia hegemônica fez questão abafar ocorreu no município de Aracruz (ES), onde os índios Tupinikim e Guarani lutam há séculos pela demarcação das terras que são suas por direito, e que foram roubadas pela empresa Aracruz celulose. A empresa, no intuito de propagandear a favor de sua imagem, chegou ao absurdo de colocar os seguintes outdoors pela cidade: Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 19 Os índios lutavam por aquilo que lhes era de direito, a demarcação de 11.009 hectares que a empresa, com auxilio do governo militar, haviam lhes tomado. Em 2005, depois de uma longa e corrupta história, o Ministério Público Federal finalmente decidiu demarcar o território e a mídia, mais uma vez, não divulgou nada. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais no ano de 2008, na Amazônia Legal, em média 70 mil hectares foram desmatados por mês, totalizando 840 mil hectares no ano de 2008. Os estados responsáveis por quase a totalidade do desmatamento são Mato Grasso, Amazonas, Pará e Rondônia, e nas mesmas regiões onde estão localizados os principais focos de desmatamento também se localizam as principais empresas de produção de madeira serrada. No ano de 2005 a produção de madeira em toras de florestas naturais foi de 17,37 milhões de m³ (Sociedade Brasileira de Silvicultura), segundo o Greenpeace 80% desta madeira é de origem do desmatamento, portanto ilegal. Um dos principais líderes da organização dos seringueiros, Chico Mendes (19441988), dedicou sua vida em defesa da floresta e dos povos tradicionais da Amazônia. Não se contentava em denunciar os fazendeiros que desmatavam a região de Xapuri (AC), militava em nome da “União dos Povos Floresta”. Exigia do Estado condições para que indígenas, seringueiro, castanheiros, pequenos pescadores, quebradeiras de coco babaçu e ribeirinhos pudessem manter seu modo de vida, com a premissa de que estes povos eram responsáveis pela preservação da floresta, ao contrario dos latifundiários que a desmatavam predatoriamente. Durante os últimos dez anos de sua vida, recebia diversas ameaças de morte, foi torturado em 1979 e enquadrado em processos jurídicos de “subversão” e da “Lei de segurança Nacional”, todos movidos pelos fazendeiros. Um dos seus legados foi a criação das Reservas Extrativistas, instrumento de reforma agrária e de preservação. Foi assassinado em dezembro de 1988 com um tiro de escopeta na porta dos fundos de sua casa. Meses depois os fazendeiros, mandantes do crime, Darcy Alves da Silva e Darly Alves da Silva foram condenados a 19 anos de prisão. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 20 SUGESTÕES PARA APROFUNDAMENTO: Textos e artigos: • “Monocultura, técnica e poder”. Carlos Walter Porto-Gonçalves. Agência Brasil de Fato. 10/01/08. • “Sobre o conflito entre os índios e a Aracruz Celulose”. Informe-se Mais, Coletivo de apoio à causa indígena. 10/06. • “O discurso ecotecnocrata”. Maurício Torres. 20/03/2008. www.mst.org.br • “Queremos produzir alimentos”. Via Campesina • “Carta de Jacaraípe”. 4º Encontro Nacional da Rede Alerta Contra o Deserto Verde. • “Do crescimento à desconstrução da economia”. Enrique Leff. 25/08/08 • “A insustentabilidade da Revolução Verde”. José Maria G. Ferraz. Informativo Meio Ambiente e Agricultura, Embrapa Meio Ambiente. 1999. Reportagens: • Luta entre índios e a Aracruz por terras no Espírito Santo durou décadas. Agência Brasil. 28/08/07. • Veracel é condenada a pagar R$ 20 milhões por desmatamento. Notícias do Ministério Público Federal. 10/07/08. www.noticis.pgr.mpf.gov.br Vídeos: • “Cruzando o Deserto Verde”. Rede Alerta Contra o Deserto Verde (YouTube) • “Rompendo o Silêncio”. Via Campesina (YouTube) • “El Papel Del Sur”. Uruguai, 2006. (YouTube) Monografia: • “Os impactos da monocultura do eucalipto nas comunidades rurais do entorno dos plantios” Grazianne A. S. Ramos. Lavras - MG, 2006. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 21 3º encontro: “O Agronegócio Florestal: a lógica de funcionamento da indústria de base florestal” Dando continuidade ao assunto tratado no encontro passado, agora que vimos os impactos causados por esse modelo de produção no qual está fundamentado o agronegócio florestal, vamos avançar na compreensão dos motivos que mantêm esse modelo como a única opção que nos é apresentada quando falamos sobre o setor florestal. Nesse sentido, a partir de agora o foco de nossa atenção será nas indústrias de base florestal, seu funcionamento, sua origem e o destino de sua produção. Para começar o debate, vamos tratar da principal defesa desse modelo de produção: o constante crescimento da demanda por produtos florestais em todo o mundo. Em qualquer espaço onde se faz a critica a esse modelo, sempre vem a famosa frase “É preciso produzir, pois o mundo necessita de papel e madeira!”. Porém ninguém continua a frase para explicar qual essa real necessidade, qual é esse mundo que precisa de tanto papel, e pra onde vai esse papel. Então vamos tentar cavar um pouco mais esse buraco. Sabemos que o consumo de bens materiais se concentra em alguns países do mundo como os EUA, Japão, Alemanha e Reino Unido. Dados mostram que os EUA detêm em média 5% da população mundial, contribuem com 36% das emissões de gases de efeito estufa e consomem 25% da energia mundial. Além disso, se analisarmos o conjunto dos países desenvolvidos, sabemos que estes congregam um quinto da população mundial e, no entanto, consomem 80% de todos os recursos naturais do planeta. Se pegarmos o caso específico do papel, temos uma média de consumo mundial de 54 kg por pessoa por ano. No entanto, enquanto um finlandês consome 324 kg por pessoa por ano, e um estadunidense 297 kg; um brasileiro chega ao valor de 39 kg, um vietnamita aos 15 kg e um cambojano ao consumo de apenas 2 kg de papel por pessoa por ano. No entanto, essa diferença de consumo não é apenas algo que existe entre os países centrais e periféricos dentro da economia mundial, mas algo que acontece entre diferentes estados de um mesmo país, ou entre diferentes cidades de um mesmo estado, ou entre diferentes bairros de uma mesma cidade, ou entre diferentes pessoas de um mesmo bairro. E aqui chegamos a um ponto importante nessa compreensão, de que essa necessidade de consumo não é a real necessidade de toda a população mundial, mas sim de uma pequena parcela dessa população, que tem condições materiais de realizar esse consumo e que acredita nessa necessidade consumista como algo intrínseco à existência humana. Desse modo começamos a compreender qual é esse mundo que precisa de tanto papel e madeira. Logo, se existe esse consumo excessivo, também se faz necessário uma produção excessiva. E agora chegamos a outro ponto interessante desse processo todo: Onde se concentra essa produção excessiva? E não precisa muito para perceber que essa produção se concentra no Brasil e demais países da America Latina, na Ásia e África. A partir dos anos 70, a necessidade de produção de produtos de base florestal, fez com que empresas do setor que antes se localizavam no Norte, migrassem para o Sul, e como já disse Chico Buarque “não existe pecado ao sul do equador”. Os defensores desse modelo explicam esse processo pelas características naturais, falam que isso ocorreu pois o clima aqui é melhor, pois temos área “vazias” para plantações, temos florestas naturais próprias para o “manejo sustentável” e por ai vai. No entanto, a grande verdade é que temos mão-de-obra excessiva devido ao alto desemprego, o que permite o trabalho precário e mal remunerado; temos a máquina do Estado subserviente aos interesses de lucro dessas empresas, o que permite modificações na legislação, combate aos movimentos de resistência, financiamento público de iniciativas privadas, etc; temos água, minérios, florestas e terra em abundância, o que permite a super-exploração predatória dos recursos naturais, sem grandes Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal 22 Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal preocupações ambientais. Ou seja, a grande verdade é que temos um papel a ser cumprido dentro da lógica de funcionamento do sistema capitalista mundial, e todos esses fatores (desemprego, Estado mínimo, exploração predatória de recursos naturais, criminalização de movimentos de resistência, etc) não existem por um acaso, mas são peças fundamentais que definem a parte que nos cabe nesse mundo globalizado. Ao Norte o desenvolvimento de ciência e tecnologia, o maquinário, o alto-valor agregado, o menor risco ambiental, o alto consumo, os lenços de papel de primeira linha, o trabalho bem remunerado. Ao Sul, a pasta química, os rios e terras poluídos, o trabalho precarizado, as grandes monoculturas, os conflitos de território, os danos ambientais, a fome, a exportação de commodities. Assim nossa economia, nossa política, nossos programas sociais, nossa educação, nossas leis, são todos fatores definidos pelo papel que assumimos dentro da Divisão Internacional do Trabalho que é o de exportador de produtos primários, de baixo valor agregado, que são comercializados no mercado financeiro. Para ficar mais claro vamos apresentar alguns dados interessantes de uma empresa emblemática do setor da celulose, setor mais forte do agronegócio florestal brasileiro, que demonstra o que afirmamos anteriormente. No entanto vale ressaltar que essa lógica também se aplica a exploração de matas nativas que ou viram carvão para gerar energia para indústria de ferro gusa e ser exportado, ou então viram madeira processada que será utilizada para produtos de luxo para exportação (móveis, pisos, molduras) ou para o mercado interno nos grandes centros urbanos (principalmente no sudeste) que estão a milhares de quilômetros de distancia da região onde se dá a exploração e os danos (principalmente a Amazônia). Mas vamos aos dados: Aracruz Celulose e Papel – Dados extraídos dos relatórios financeiros de 2007 e 2008. Começamos analisando a dívida bruta da empresa que é de 3,012 bilhões de reais (somando os 50% de dividas da Veracel da qual a Aracruz é acionista, junto da Finlandesa Stora Enso que tem a outra metade). Desse montante, 41% é representado por empréstimos feitos pelo BNDES, ou seja, pelo Estado brasileiro. Aqui vemos o exemplo claro da função que o Estado cumpre defendendo os interesses dessas empresas, pois ao invés de usar essa verba para atender os reais interesses da população brasileira, prefere ajudar a iniciativa privada e aguardar o pagamento da dívida que é sempre renegociada, e muitas vezes, é perdoada. Outro ponto que merece nossa atenção é o destino da produção da empresa. Abaixo vemos uma tabela que demonstra esses dados no ano de 2007, que foi publicada no relatório do quarto trimestre de 2007, no dia 11 de janeiro de 2008. Distribuição de vendas de celulose por região Europa América do Norte Ásia Brasil 4T07 – Quarto trimestre de 2007 3T07 – Terceiro trimestre de 2007 4T06 – Quarto trimestre de 2006 4T07 3T07 4T06 39,00% 33,00% 25,00% 3,00% 43,00% 35,00% 20,00% 2,00% 39,00% 34,00% 25,00% 2,00% Últimos doze meses 41,00% 34,00% 23,00% 2,00% Esses dados evidenciam tudo o que falamos acima, a empresa exporta celulose (produto de baixo valor agregado) principalmente para os países do Norte, não produz quase nada para o mercado interno, a não ser os conflitos com os indígenas, os danos causados pelas monoculturas, os trabalhadores contaminados pelo uso intensivo de agrotóxicos e mutilados pelo trabalho precarizado, as populações tradicionais expulsas de suas terras, etc. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal 23 Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal No entanto essas empresas sempre adoram apresentar o discurso de que elas têm compromisso ambiental e social, que investem pesado em projetos de preservação e recuperação de áreas, em projetos de inserção social das comunidades tradicionais do entorno e etc. Bom, vamos aos dados divulgados no relatório do primeiro semestre de 2008, publicados em 07 de abril de 2008, referente aos investimentos realizados pela empresa nesse período: (R$ milhões) Silvicultura Compra de terras e florestas Outros investimentos florestais Investimentos industriais correntes Projetos de otimização (Unidades Guaíba e Barra de Riacho) Outros projetos Total Investimentos em companhias afiliadas Total 1º tri. 2008 79,7 23 17,6 12,8 16,7 6,4 156,2 22,3 178,5 2007 284,7 267,4 60,5 100,9 298,1 81,5 1093,1 249,4 1342,5 Vendo os dados notamos que não existe um item de investimento em iniciativas de cunho sócio-ambiental, portanto entendemos que essas iniciativas entrariam no item “outros projetos” junto com diversas outras atividades das mais variadas. Então analisando esse item, temos que no primeiro trimestre de 2008, apenas 4% dos investimentos foi pra essa área, e durante todo o ano de 2007, esse valor foi de 6%. Ou seja, o investimento nessas áreas são apenas migalhas para essas empresas construírem a boa imagem de sustentáveis, responsáveis, ou seja lá o que for. Portanto, essas ações sócio-ambientais não existem devido a uma “consciência responsável”, mas sim, pois é fundamental para a imagem de uma empresa que produz tantos danos. Nesse ponto vale citar Paulo Freire que em seu livro “Pedagogia do Oprimido” coloca bem essa questão das políticas compensatórias: “Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos (oprimidos e opressores). Por isto é que o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como jamais a ultrapassa. Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora, permanente, dessa “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria”. Com isso, conseguimos visualizar os reais interesses da industrias de produtos florestais no Brasil, e perceber que a presença delas em nosso país não é algo natural ou ao acaso, e sim reflexo direto do papel que desempenhamos dentro da Divisão Internacional do Trabalho. Assim temos mais alguns elementos que nos ajudam a enxergar a verdade por trás das coisas. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 24 SUGESTÕES PARA APROFUNDAMENTO: Textos: • “O Eucalipto e a desmaterialização da Economia” Sebastião Pinheiro • “O deserto verde se expande. Porque se planta deserto?” Marcelo Calazans • “Precarização do trabalho e metabolismo do capital sob a intensificação da produção científica e tecnológica” Domingos Leite Lima Filho • “A expansão da monocultura de eucalipto e as crises” Winnie Overbeek. Revista eletrônica Olhar Crítico. 20/02/09. www.olharcritico.com.br Vídeos: • “A história das coisas” YouTube • “Montanhas de papel” World Rainforest Movement (WRM) - www.wrm.org.uy • “Stora Enso no Brasil” World Rainforest Movement (WRM) Livros: • “Pedagogia do oprimido” Paulo Freire • “Plantações de Eucalipto e a produção de celulose - promessas de emprego e a destruição do trabalho: o caso da Aracruz Celulose no Brasil”. Coleção do WRM sobre as plantações ٥ n 2. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal 25 Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal O Saci e o eucalipto Por Ditão Virgilio 14/08/2007 (fragmentos) 1 Um dia fui passear Lá no reino encantado E em cima de um cupim Eu vi o saci sentado Com os olhos cheios d?água Que há pouco tinha chorado Então lhe perguntei Por que estava desolado 5 As casinhas da fazenda Também foram derrubadas Só tem árvores no lugar Quase não serve pra nada Ressecando nossa terra Expulsando a passarada Não tendo onde criar Não alegra a madrugada 2 Deu um rodamoinho E ele me respondeu Olha para as montanhas Veja o que aconteceu Plantaram uns paus compridos Que depressa cresceram Todos os bichos foram embora E alguns até morreram 6 Os peixes estão morrendo Com o veneno espalhado Um tal de mata-mato Que seca até a invernada Dão veneno pras formigas Que nunca é controlado Tamanduás e os tatus Quase foram exterminados 3 É o tal de eucalipto Planta que não é daqui Uma mata silenciosa Que acabou com tudo ali Os macacos foram embora Até o mico e o sagüi Que saudade do sabiá Do sanhaço e o bem-te-vi 7 Já não tem fogão de lenha Onde fumo ia buscar Não tem mais o galinheiro Onde eu ia brincar Acabou-se o chiqueiro Não tem porco pra engordar Os caipiras vão embora Por não ter onde morar 4 Esta planta suga a terra As nascentes estão secando Nossos rios caudalosos Devagar vão se acabando As fazendas destruídas Pelas máquinas vão tombando O caipira sem destino Pra cidade está mudando 8 Não tem vacas leiteiras Nem bezerros a berrar Mesmo o cavalo alazão Já não tem o que pastar O galo já não canta Quando o dia vai clarear Se continuar assim O Saci não vai agüentar Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 26 4º encontro: “As empresas transnacionais no Brasil” No encontro passado o tema das indústrias de produtos florestais nos permitiu entender melhor o papel do Brasil e dos países do Sul, no mercado global neoliberal, e como o agronegócio florestal se insere nesse contexto. Agora, vamos trazer outros elementos sobre os grandes conglomerados que possuem essas indústrias que falamos anteriormente. Falaremos das transnacionais do agronegócio e do poder que essas têm de definir os rumos do desenvolvimento dentro dos países nos quais se instalam, de acordo com seus interesses. As transnacionais inicialmente eram chamadas de multinacionais para passar a idéia de uma empresa com várias nacionalidades e com isso garantir uma boa imagem perante os olhos das populações dos países em que chegavam. Esse termo se modificou, pois na realidade as transnacionais são corporações industriais, comerciais e de prestação de serviços, que possuem sua matriz e/ou origem em um determinado país, porém, exercem as suas atividades em vários outros. Esses conglomerados surgiram no final do século XIX, no entanto só conseguiram se desenvolver efetivamente a partir de segunda metade do século XX, mais precisamente após a Segunda Guerra Mundial. Inclusive nessa guerra, algumas dessas empresas, pensando exclusivamente no seu crescimento econômico, cometeram atos de violação dos direitos humanos dos mais diversos. Como exemplo, podemos citar a Mitsubishi, empresa japonesa que foi acusada de utilizar trabalho escravo de prisioneiros de guerra “cedidos” pelo exército japonês, para as suas atividades como siderurgia (reportagem da Folha de São Paulo do dia 9 de Dezembro de 1999), e também a Ford, que ao mesmo tempo em que se utilizava do trabalho escravo de prisioneiros dos campos de concentração na Alemanha, era um dos grandes fornecedores de veículos ao exercito alemão (Reportagem da Folha de São Paulo do dia 27 de Fevereiro de 2000). Assim podemos notar que o histórico de crescimento desses grandes grupos, que hoje em dia tomam a cena no mercado global, foi muitas vezes alicerçado sobre a violação dos direitos humanos e a super exploração do trabalho, algo que não nos surpreende uma vez que sabemos que o interesse dessas empresas sempre foi e sempre será um só: o LUCRO. No entanto infelizmente esses fatos hediondos não são simples lembranças do passado, mas continuam a acontecer hoje em dia, em diversos lugares do mundo, onde a lógica do lucro é o que move as empresas. No Brasil, por exemplo, só no ano de 2006, mais de 3,2 mil trabalhadores rurais foram encontrados em situação de escravidão em todo o Brasil, segundo informações do Ministério do Trabalho e Emprego. Para se ter uma idéia do poder dessas empresas no mundo atualmente, vale dizer que das 100 maiores economias mundiais, 51 são de grandes corporações transnacionais. Isso significa que o poder econômico dessas empresas é maior do que a maioria dos países do mundo e que esse dinheiro não é revertido em educação, saúde, emprego e lazer para a maioria da população mundial, mas fica na mão de poucas pessoas, que farão com ele o que bem entenderem. Vale dizer também, que dentre essas transnacionais, a imensa maioria tem sua origem nos países industrializados e desenvolvidos detentores de grande capital acumulado, que estendem suas filiais pelo globo, principalmente para os países do Sul onde encontram as condições propicias para o crescimento do lucro de suas empresas (mão-de-obra barata, subsídios do governo, regulação menos restrita, etc). No entanto existem alguns exemplos de transnacionais dos países ditos “em desenvolvimento” e que não por causa disso são menos exploradoras nos países onde se instalam. Temos que lembrar o caso da Petrobrás na Bolívia, onde as refinarias dessa empresa praticamente controlavam a produção de petróleo do país e que recentemente foram compradas pelo governo de Evo Morales, que com isso afirmou seu discurso de que os recursos naturais de seu país devem ser estatais e devem servir ao povo boliviano. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 27 Nesse contexto, um fato importante de ser analisado é a forte influência que essas empresas exercem no mercado econômico mundial, e também sobre os governos dos países em que se instalam. A fim de atrair ou manter os altos investimentos estrangeiros que as matrizes das transnacionais fazem nas suas filiais em outros países, os governos destes países oferecem uma série de benefícios e incentivos à essas empresas como isenção de tributos, a não participação nos lucros e até o empréstimo de dinheiro publico para o crescimento da empresa (como no caso do BNDES colocado no texto anterior). O que resulta desse fato, é que, cada vez mais os estados perdem a autonomia sobre as decisões dos rumos do desenvolvimento do País, e esses rumos passam a ser modelados segundo a vontade dessas transnacionais e do “Deus” mercado. É por conta desse contexto, por exemplo, que a política de reforma agrária no Brasil não é prioridade desse governo assim como não o era nos governos passados. O que é defendido como a melhor opção do desenvolvimento pro campo, é o agronegócio exportador de commodities, onde os interesses das transnacionais são amplamente garantidos, enquanto os nossos camponeses são deixados de lado assim como a soberania alimentar de nosso país. Segundo a Constituição Brasileira, são consideradas empresas nacionais aquelas que possuem sede administrativa no País, independente de sua origem. Isso traz diversas facilidades a essas empresas, e abre brechas para que cada vez mais os interesses de lucro que elas possuem sejam concretizados. Um exemplo claro disso é a Lei de Gestão de Florestas Públicas, que permite a concessão de nossas florestas apenas para empresas nacionais segundo essa definição da constituição. Ou seja, nossas florestas estão legalmente sendo cedidas para uso de grandes corporações internacionais, que por possuir uma sede administrativa no Brasil, poderão por 30 anos manejar áreas de floresta que nem nós mesmos conhecemos. O interessante é pensar que dentro desse contexto, o Brasil é o quarto dentro do bloco dos países “em desenvolvimento” que no ano de 2007 mais receberam Investimento Direto Estrangeiro (IDE), ou seja, investimento das grandes transnacionais no país, segundo os dados divulgados no Relatório sobre Investimentos no Mundo da UNCTAD (sigla em inglês para Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento). Para entender melhor as implicações que a presença dessas empresas traz para o nosso país vale dizer que, desde 1996 as filiais dessas empresas mandam dólares para fora do país sobre a forma de lucro e dividendos, e não são recolhidos impostos sobre esses valores. A isenção que essas empresas têm do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Liquido (CSLL), significaram uma renuncia fiscal no valor de aproximadamente 6,7 bilhões de dólares (um valor próximo de R$ 14,5 bilhões, segundo a cotação do dólar em 2006) no período de 2002 a 2006. Esse valor equivale, por exemplo, a praticamente todo o orçamento do Ministério da Educação no ano de 2005, ou à construção de mais de 400 mil moradias populares no custo de aproximadamente de R$ 30 mil cada. (dados do Jornal Brasil de Fato ed. 181, de 17 a 23 de agosto de 2006). Então, o caso é esse, essas empresas aqui se instalam, exploram nossos recursos, nos deixam com os danos ambientais e sociais, e não contribuem com impostos que poderiam ser usados para a melhoria da condição de vida dos brasileiros. No entanto, para além dos prejuízos ambientais, sociais e econômicos que essas empresas nos deixam, um fato extremamente relevante, é o controle ideológico que elas se empenham em construir. A imagem de empresas sustentáveis e responsáveis vendida por elas, oculta suas reais ações, e convertem o jogo de forças existente. Assim os movimentos sociais de resistência a esse modelo passam a ser vistos como aqueles que são contra o desenvolvimento e contra a geração de empregos, e passam a ser tratados como criminosos por enfrentar essas empresas e denunciar a verdadeira face que elas tanto ocultam. A forte influência que essas empresas exercem nos principais meios de comunicação da mídia atual, faz com que essa Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 28 imagem deixe de ser apenas o modo que a empresa enxerga a situação, e passa a ser a verdade única e absoluta, defendida agora não só pelas empresas, mas por todos os cidadãos comuns. Desse modo, para além dos fatores já descritos acima, existe mais um detalhe com relação às transnacionais do agronegócio que nos diz muito respeito: a entrada dessas empresas nas universidades do País. Esse tema já foi tratado no primeiro encontro, portanto aqui vamos apenas apresentar um exemplo de como essa entrada das transnacionais nas universidades definem em grande medida a nossa formação profissional, os rumos da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico do setor florestal, e com isso estendem seu braço de dominação sobre mais um setor estratégico para garantirem seus interesses. O caso da Sociedade de Investigações Florestais (SIF) do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Viçosa (DEF-UFV) é bem apresentado pelo trabalho de conclusão de curso do companheiro Vladimir Oganauskas Filho. Essa entidade de direito privado, possui hoje cerca de 70 empresas vinculadas entre “associadas” e “co-participantes”. Dentre elas estão os principais grupos econômicos transnacionais como a Vale, V&M, Arcelor-Mittal, Grupo Votorantin, entre outros e também nacionais, a maioria com ficha corrida quanto a passivos ambientais e trabalhistas segundo dados dos documentos da FASE e WRM que constam como texto auxiliar no fim desse texto. O interessante é analisar os gráficos apresentados nesse mesmo trabalho sobre a origem do financiamento de pesquisas no DEF-UFV, e quais foram os beneficiados diretos dessas pesquisas nesse mesmo departamento: Gráfico 2. Recursos investidos em pesquisa por setor (público e privado) por ano e o percentual de cada ano em relação ao volume total no DEF-UFV, jan. 2000 – jul. 2008 Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 29 Gráfico 3. Beneficiado direto dos recursos investidos em pesquisa por ano por setor (público e privado) e o percentual a mais de apropriação das empresas privadas no DEF-UFV, jan. 2000 – jul. 2008. Ao compararmos os gráficos, vemos que a captação de recursos na relação público-privada ocorre em benefício do privado e não do público. Os investimentos dentro do departamento continuam sendo em grande medida provenientes do povo, e, no entanto, os beneficiados direto com as pesquisas são majoritariamente as empresas privadas. Se analisarmos a proporção entre o investimento que as empresas fazem e os benefícios que ganham, notamos o quão desproporcional é essa relação. Desse modo as empresas conseguem definir os rumos que o ensino das ciências florestais deve tomar, e, além disso, colocar a universidade a serviço do capital privado e do mercado, garantindo mais uma vez seus interesses, financiadas pelo dinheiro que deveria estar atendendo os reais interesses do povo brasileiro. Diante dessa situação podemos perceber a imensa força que essas empresas possuem atualmente, uma vez que, dentro da sociedade capitalista, aqueles que detêm o poder econômico, também detêm o poder político. E o pior é perceber que a lógica da sociedade onde o capital é livre enquanto as pessoas são escravas, propicia cada vez mais o aumento desse poder, mesmo que seja à custa da destruição da natureza e da espécie humana. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 30 SUGESTÕES PARA APROFUNDAMENTO: Textos e reportagens: • “Investimento Direto Estrangeiro no Brasil e mundo” Antonio Corrêa de Lacerda • “Ex-escravos processam firmas do Japão”. Folha de São Paulo. 09/12/99. • “Ford e o führer”. Ken Silverstein. Caderno Mais, Folha de São Paulo. 27/02/00. • “Lista do trabalho escravo traz fazendeiros reincidentes e grandes empresas". Agência Brasil de Fato. 17/12/2007. • “Evo Morales afirma que próximo passo é industrializar a Bolívia”. Agência Brasil de Fato. 11/05/2007. Filmes: • “The Corporation” Mark Achbar, Jennifer Abbott e Joel Bakan • “O Mundo Segundo a Monsanto” Marie-Monique Robin Livros e Cartilhas: • “H2O para Celulose X Água para todas as línguas: O conflito ambiental no entorno da Aracruz Celulose S/A”. Federação de órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE). • “Onde as árvores são um deserto: histórias da terra”. Federação de órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE). • “Certificando o não-certificável: certificação pelo FSC de plantações de árvores na Tailândia e no Brasil”. World Rainforest Movement (WRM), 2003. • “As plantações não são florestas”. World Rainforest Movement (WRM), 2003. Monografia: • “A racionalidade privada no departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Viçosa”. Vladimir Oganauskas Filho. Viçosa - MG, 2008. Documentos: • “Lista de empregadores pegos com trabalho escravo”. Ministério do Trabalho e Emprego. www.mte.gov.br Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal 31 Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 5º encontro: “A agroecologia como proposta” "Adotar e amar um pedaço da Mãe Terra é muito mais do que simplesmente criar sistemas para manter vivo o nosso corpo físico: é o resgate profundo da relação do homem com a Natureza, de substituir o tempo de relógio - nossa escravidão - por ritmos. Tempo de caju, tempo de manga. O levantar e pôr do sol. A lua minguando e crescendo... E percebemos que, de fato, precisamos de muito pouco para sentir a felicidade; que a integração com a beleza natural é uma fonte de satisfação mais profunda e serena do que grandes conquistas no mundo urbano". Marsha Hanzi Agroecologia - Um breve histórico O termo agroecologia surge na década de 1970 como campo de produção científica, enquanto ciência multidisciplinar, preocupada com a aplicação direta de seus princípios na agricultura, na organização social e no estabelecimento de novas formas de relação entre sociedade e natureza: Agricultura (Cultivo da terra) + Ecologia (estudo da casa). Contudo sua origem remete a milênios de desenvolvimento humano, em momentos da história em que o bom uso dos ecossistema e suas fontes de recursos eram sobretudo uma questão de sobrevivência. Este desenvolvimento próximo e conjunto entre homem e sua terra, entre o homem e seu ambiente, foi o responsável pelo acumulo de saberes, técnicas e tecnologias adaptadas às condições e necessidades locais, que não geravam, portanto abusos e desequilíbrios ambientais irreversíveis; estavam mais próximos daquilo que entendemos como “sustentabilidade”. Diversos exemplos históricos nos mostram que esses modos de cultivo integravam produtos agrícolas e florestais, para fins alimentícios, medicinais, cosméticos, no vestuário e nas habitações, respeitando o ciclo das estações e dos astros, otimizando assim o potencial produtivo de cada ambiente. É importante ressaltar que além da preservação ecológica de tais técnicas, estes saberes cultivavam as relações sociais, objetivando uma produção coletiva, interdependente nas relações de gênero, resultando assim num somatório cultural, onde através das celebrações e festas as comunidades expressavam o cotidiano de sua vida, a fartura das colheitas, as intempéries da natureza e da vida. Vejamos mais algumas das características desses saberes estudados pela agroecologia: • A seleção e manutenção de sementes com boa adaptação às diversas condições edafoclimáticas, com qualidades nutricionais, com alta produtividade e resistência a pragas e doenças, gerou as sementes crioulas, garantindo assim a perpetuação de alimento para as gerações futuras (ex: milho dos povos da América central e Latina); • A diversificação da produção e integração entre os diferentes cultivos e criações garantia uma dieta equilibrada e minimizava as perdas de nutrientes e de energia dentro destes sistemas complexos; (ex: amido na mandioca, proteína animal advindo da pesca e caça, vitaminas e fibras da coleta das frutas, realizados por índios da América do Sul, ribeirinhos, caiçaras); Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 32 • A coivara era uma prática indígena de produção de alimentos aliada à preservação das florestas, consistia no cultivo itinerante dentro de clareiras no meio da mata, o cultivo era realizado por dois ou três anos consecutivos, em seguida a área era abandonada e a regeneração cuidava da manutenção das suas características físicas, químicas e biológicas. • As trocas de produtos eram, e ainda são, uma prática comum em diversas comunidades tradicionais (indígenas, quilombos, caiçaras, ribeirinhos) e rurais, garantindo assim o aproveitamento das sobras da produção, além de compartilhamento independente da obtenção de retorno, revigorando os valores comunitários já explicitados acima. Tal maneira de saber-viver destas comunidades é que inspiraram as diversas experiências e movimentos de agricultura ecológica, que ressurgem no século XX, buscando integrar este saber ancestral com o conhecimento tecnológico e científico atual, objetivando soluções para os desafios do presente da humanidade. Concepções... Acima de tudo, a agroecologia é uma ciência em construção. Por isso existem diferentes entendimentos e concepções sobre ela, o que faz necessário uma melhor definição e uma diferenciação entre as diversas formas de enxergá-la. Entendemos a agroecologia enquanto uma ferramenta política, que faz um enfrentamento e contraponto ao modo de produção convencional no campo, o do agronegócio e das transnacionais. Esses, por sua vez, são apenas a expressão e a organização do capitalismo no meio rural, que coloca a agricultura à serviço da indústria, do comércio mundial e dos interesses do capital. Manifestam-se também nas monoculturas de eucalipto, pinus, soja, cana-de-açúcar, e mais recentemente, nos agrocombustíveis e nos transgênicos. Através dessas tecnologias, já estão sendo desenvolvidos eucaliptos transgênicos e a produção de etanol a partir da celulose, também de eucalipto. Desta forma, a agroecologia deve ser compreendida dentro de um entendimento mais amplo da sociedade em que vivemos, de maneira a não só buscar solucionar de forma pontual e isolada questões ambientais e de produção agrícola. Deve, portanto, fazer parte de um movimento maior de transformações profundas de nossa sociedade. Essa é a forma que os Movimentos Sociais Populares têm pautado a agroecologia. É importante pontuarmos aqui que as lutas dos movimentos sociais no campo têm demonstrado que a reforma agrária, a garantia das populações ao território - tais como quilombolas, ribeirinhos, indígenas – bem como a garantia de direitos e justiça social, são inseparáveis da proposta agroecológica. A concepção que estamos apresentando vai além de entender a agroecologia como apenas um conjunto de técnicas focadas na minimização dos impactos ambientais e otimização energética na agricultura, maneira que muitas vezes é trabalhada pela academia e no campo científico. É essa maneira de tratar a agroecologia que a torna passível de cooptação e distorções pelo capital. As técnicas, tecnologias, os saberes tradicionais e o conhecimento científico devem estar, ao compor a ciência agroecológica, à serviço da construção de uma sociedade justa, fraterna e igualitária. Só assim a agroecologia que acreditamos será total e profundamente concretizada. Quais são os desafios da agroecologia? Vivemos num momento em que a super-exploração dos ecossistemas e dos povos, o desgaste das relações humanas e do trabalho, o aumento das desigualdades sociais e da fome, traduzidos nesta cartilha quando discutimos o “progresso” e o falso Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 33 desenvolvimento proposto pelas empresas transnacionais, torna urgente a mudança destes males causados pelo modo de produção capitalista. Todavia vimos que a Agroecologia em sua base é uma ciência integrada a um modo de produção cultural, homem-ambiente + relações sociais, o que faz com que tenhamos hoje um desafio muito maior quando pensamos em melhorar as condições ambientais e de cultivo do planeta: tornar viável as relações sociais e econômicas junto ao modo de produção, para que tais técnicas agrícolas e de desenvolvimento rural e urbano sustentáveis, possam florir e se realinhar para um novo presente. Uma ferramenta: a Agroecologia é antes de tudo uma maneira de implementarmos na prática o que chamamos de Utopia. A utopia concreta do amanhã. Onde o povo escolha o que plantar, onde plantar, como plantar, como se organizar, como se relacionar entre si e com a natureza, e é por isso que esta deve estar sincronizada com outras ferramentas de transformação da sociedade, como a Reforma Agrária, que auxilia a produção e economia local, o desinchasso das cidades, a diminuição do êxodo rural; a luta política por benefícios para a agricultura familiar, comunidades tradicionais e incentivos para formas de produção ecológica; uma educação ambiental crítica consciente do funcionamento da sociedade de consumo, capaz de fazer uma leitura a respeito de seus efeitos colaterais, fazendo um paralelo com as relações de exploração do trabalho; incentivos à cultura regional dos povos em detrimento da cultura alienante e de massa, buscando novos valores pra juventude, e enfim envolver toda complexidade da sociedade humana. Precisamos, portanto, nos apropriar de todas estas ferramentas, unindo esforços com todos os agentes da mudança da sociedade, se quisermos enxergar um horizonte mais justo e próspero que garanta com dignidade as condições de vida da sociedade atual e futura. E que horizonte queremos e como podemos implementá-lo? Através da emancipação dos homens e das mulheres e da consolidação do poder popular, que leve cada indivíduo ao posto de sujeito de sua história, podemos fazer da Agroecologia uma ferramenta de embate ao sistema capitalista, unindo o conhecimento da ciência, os saberes populares e tradicionais, com a luta por um novo modelo de sociedade capaz de garantir a inexistência de exploradores e explorados junto de um ambiente equilibrado: Uma nova relação com a natureza, uma nova relação social, uma nova relação econômica, uma nova produção de conhecimento nas universidades bem como uma nova Engenharia Florestal. Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 34 SUGESTÕES PARA APROFUNDAMENTO: Livros e cartilhas: • “Agroecologia militante: contribuições de Enio Guterres”. Editora Expressão Popular. www.expressaopopular.com.br • “Árvores Geneticamente Modificadas”. Chris Lang. Editora Expressão Popular. • “Soberania Alimentar, os Agrocombustíveis e a Soberania Energética”. Cartilha de subsídios para estudo. Via Campesina Brasil. Maio de 2007. • “Os Transgênicos e a CTNBIO”. Caderno de Debates ABEEF e FEAB. Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos. • “Agroecologia: alguns conceitos e princípios” Francisco R. Caporal e José A. Costabeber. Cartilha MDA/SAF, 2004. Sites: • Articulação Nacional de Agroecologia: www.agroecologia.org.br • Associação Brasileira de Agroecologia: www6.ufrgs.br/abaagroeco Documentos e artigos: • “Política Nacional de Ater: primeiros passos de sua implementação e alguns obstáculos e desafios a serem enfrentados”. Francisco R. Caporal. 08/05. • “La agroecología como estrategia metodológica de transformación social”. Eduardo S. Guzmán. • “A agroecologia entre o movimento social e a domesticação pelo mercado”. Jalcione Almeida. 23/09/02. • “Biocombustíveis: os cinco mitos da transição dos agrocombustíveis” Eric Holt-Giménez. Publicado no Instituto de Estudos Socioeconômicos, 09/07. www.inesc.org.br • “Eucalipto no páreo” Bicombustível a partir de celulose. Agência FAPESP. 11/9/2008. www.agencia.fapesp.br Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 35 Da inquietação à AÇÃO! EU ME ORGANIZANDO POSSO DESORGANIZAR, EU DESORGANIZANDO POSSO ME ORGANIZAR! Diante da situação apresentada nesta cartilha, diversos questionamentos surgem em nossas cabeças. Nosso pensamento vai desde “Ah, sempre foi assim e sempre vai ser” até o “Nossa, o que eu posso fazer pra mudar isso?”. No mundo de hoje, somos o tempo todo levados a pensar que tudo sempre foi e sempre será assim, e somado a isso, nos passam o sentimento de incapacidade de mudança da realidade na qual estamos inseridos. No entanto, quando colocamos o desafio no inÍcio dessa cartilha, foi justamente pra despertar em nós essa necessidade de se fazer algo. Não podemos (e nem devemos) nos acomodar em nosso canto e aceitar tudo com naturalidade, pois devemos entender que, enquanto estudantes de Engenharia Florestal, temos um papel importante na mudança dos rumos da sociedade em que vivemos. Não podemos permanecer calados diante de tanta injustiça. Temos que fazer algo e para isso devemos nos organizar. A necessidade de organização vem a partir do momento que percebemos que nossas ações individuais contribuem de maneira muito pequena com a mudança que queremos, uma vez que os problemas que nos cercam são muito grandes e complexos. Nesse contexto, percebemos que existem outras pessoas com as mesmas inquietações que nós e que somando forças conseguimos ter avanços mais concretos. É nesse sentido que a ABEEF construiu sua história. Nossa Associação vem a partir da necessidade de respostas a essa situação apresentada, e como forma de organizar os estudantes de Engenharia Florestal do Brasil que sentem a necessidade de lutar por mudanças. Assim, tendo como palco de nossa atuação a Universidade, a ABEEF veio ao longo de sua história desempenhando um papel fundamental na luta pela “construção de uma sociedade justa, igualitária e que utilize os recursos naturais de forma equilibrada” assim como consta em nosso Estatuto. Desse modo, a nossa Associação tem a compreensão de que a universidade está inserida dentro do modelo de sociedade em que vivemos atualmente (e que foi descrito ao longo dessa cartilha), e que, portanto a luta por mudanças dentro da universidade nos leva a luta pelas mudanças da sociedade como um todo. E ai podemos nos questionar, pensando: será que é papel do estudante de Engenharia Florestal lutar pela mudança da sociedade como um todo??? Esse questionamento nos leva a dois pontos: o primeiro é que precisamos entender onde estamos meio a tudo isso. Devemos nos enxergar para além desse momento em que somos estudantes de Engenharia Florestal (pois essa nossa posição vai acabar assim que nos formarmos), devemos nos enxergar enquanto futuros trabalhadores que irão entrar na lógica do modelo atual de sociedade. Para além disso, devemos, mesmo enquanto estudantes, entender que não somos apenas estudantes, mas que somos juventude que quer se organizar para transformar a realidade. A partir dessa identificação já podemos esboçar a posição que queremos ocupar nesse cenário. O segundo ponto é que esse questionamento nos leva a entender que devemos fazer as nossas lutas em conjunto com outras lutas mais amplas, de Movimentos Sociais parceiros que, assim como nós, acreditam na construção de outro modelo de sociedade. É nesse momento que defendemos e somamos à nossa organização, as pautas de outros movimentos que lutam por terra, trabalho, moradia, passe, etc. A partir do momento em que percebemos que uma verdadeira mudança só vem dessa luta mais ampla, unimos forças com aqueles que seguem no mesmo caminho. Isso Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 36 não significa que devemos abandonar o nosso palco (a universidade), pois devemos sim enxergar ela como um espaço de disputa em que nosso papel é de fundamental importância, mas não devemos cair na ilusão de que apenas lutas pontuais que travamos dentro dela, vão nos conduzir às verdadeiras mudanças que queremos. Com isso, provocamos mais uma vez todos os estudantes para que saiam da acomodação. Não há vitórias sem luta. E é isso que a ABEEF está se propondo a fazer; lutar por aquilo que acreditamos com aqueles que caminham no mesmo sentido que nós! Torcemos para que a inquietação provocada por essa cartilha nos leve a ação!!! Seguiremos em luta... “Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considere a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas [...]” Carlos Drummond de Andrade Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal 37 Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal PARA OS QUE VIRÃO... Como sei pouco, e sou pouco, faço o pouco que me cabe me dando inteiro. Sabendo que não vou ver o homem que quero ser. Já sofri o suficiente para não enganar a ninguém: principalmente aos que sofrem na própria vida, a garra da opressão, e nem sabem. Não tenho o sol escondido no meu bolso de palavras. Sou simplesmente um homem para quem já a primeira e desolada pessoa do singular – foi deixando, devagar, sofridamente de ser, para transformartransformar-se - muito mais sofridamente na primeira e profunda pessoa do plural. Não importa que doa: é tempo de avançar de mão dada com quem vai no mesmo rumo, rumo mesmo que longe ainda esteja de aprender a conjugar o verbo amar. É tempo sobretudo de deixar de ser apenas a solitária vanguarda de nós mesmos. Se trata de ir ao encontro. ( Dura no peito, arde a límpida verdade dos nossos erros). Se trata de abrir o rumo. Os que virão, serão povo, povo e saber serão, lutando. THIAGO DE MELLO Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal Cartilha de Debates – Agronegócio Florestal 38 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS ESTUDANTES DE ENGENHARIA FLORESTAL Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal