UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TECNOLOGIA
PAULO RENATO ARAÚJO DIAS
INSTRUMENTOS, TÉCNICAS E VISÕES DE MUNDO NA
COMUNIDADE QUILOMBOLA DE JOÃO SURÁ: ALTERIDADE
COMO RESERVA DE POSSIBILIDADES.
DISSERTAÇÃO
CURITIBA
2009
PAULO RENATO ARAÚJO DIAS
INSTRUMENTOS, TÉCNICAS E VISÕES DE MUNDO NA
COMUNIDADE QUILOMBOLA DE JOÃO SURÁ: ALTERIDADE
COMO RESERVA DE POSSIBILIDADES.
Dissertação de Mestrado apresentada como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre
em Tecnologia. Programa de Pós-Graduação em
Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR).
Orientador: Prof. Dr. Gilson Leandro Queluz
CURITIBA
2009
“Os mais velhos dos velhos de nossos povos nos falaram palavras que vinham de muito longe, de
quando nossas vidas não eram, de quando nossa voz era calada. E caminhava a verdade nas
palavras dos mais velhos dos velhos de nosso povo. E aprendemos em suas palavras que a longa
noite de dor de nossa gente vinham das mãos e palavras dos poderosos, que nossa miséria era
riqueza para uns quantos, que sobre os ossos e o pó de nossos antepassados e de nossos filhos
se construiu uma casa para os poderosos, e que nessa casa não podia entrar o nosso passo, e
que a abundância de sua mesa se enchia com o vazio de nossos estômagos, e que seus luxos
eram paridos por nossa pobreza, e que a força de seus tetos e paredes se levantava sobre a
fragilidade de nossos corpos, e que a saúde que enchia seus espaços vinha da morte nossa, e que
a sabedoria que ali vivia de nossa ignorância se nutria, que a paz que a cobria era guerra para a
nossa gente”
ENRIQUE DUSSEL
Dor
escrevo num soco
única palavra
tem ela três letras
depois da pancada
e esse grunhido
não faz um poema
é ele o gemido
da minha pena
Liria Porto
AGRADECIMENTOS
São tantos e tão especiais...
A dissertação que agora se apresenta resultou de um trajeto atribulado,
algo do qual fui recebendo o maior apoio e estímulo de muitos. Neste sentido, os
méritos que ela possa ter, devem-se aos contributos das pessoas que durante, a
sua elaboração, me proporcionaram testemunhos de vários géneros. Foram eles
que a tornaram possível, expressando por isso a todos a minha mais profunda
gratidão.
Um agradecimento em especial a Professora Clemilda Santiago Neto
que é historiadora e Especialista em Educação Patrimonial que – entre os anos de
2004 e 2007 – visitou todas as comunidades tradicionais negras e quilombola
existente no meio rural em alguns municípios paranaense, como integrante do
Grupo de Trabalho Clóvisl Moura. Foi graças a seu espírito aguerrido, de colocar o
“pé no barro”, que nos possibilitou conhecer e pesquisar a comunidade João Surá.
Agradeço a Comunidade João Surá em geral que me acolheu de braços
abertos, e me proporcionou uma adaptação incrível, sem esquecer da
aprendizagem e conhecimentos que acumulei, em especial ao Presidente da
Comunidade Antonio Andrade. A todos aqueles que entrevistei, pela confiança em
prestarem seus depoimentos, a doação dos seus tempos. Muito obrigada por
possibilitarem essa experiência e gratificante, da maior importância para meu
crescimento como ser humano e profissional.
Aos Professores de minha banca de qualificação, Prof. Dr. Ricardo Cid
Fernandes (UFPR), a Profa. Marília Gomes de Carvalho (UTFPR) e ao Prof. Dr.
Agostinho Mario Dalla Vechia (UFPEL) pelas excelentes contribuições e
observações construtivas que possibilitaram na sistematização de meu texto final.
È uma alegria muito grande poder rever o Professor Agostinho que ministrou a
disciplina de Sociologia, nos anos 80, no Seminário São Francisco de Paula em
Pelotas-RS, e que na ocasião me fez ampliar o olha e a ver o mundo criticamente.
Passados todos esses anos, seus ensinamentos e testemunho de vida continuam
balisando meus passos na minha formação acadêmica e em minha atuação
profissional como Professor. Se cheguei até aqui é porque suas aulas continuam
ecoando ainda hoje.
Gostaria de destacar o papel desempenhado neste trajeto pelo meu
Orientador, o Prof. Dr. Gilson Queluz. Agradeço ao professor a consideração e
confiança em mim depositada de ter incentivado, quando lhe procurei para
apresentar uma sugestão de pesquisa ao Programa, a trabalhar nessa temática.
Mas devo-lhe mais, e estou-lhe mais reconhecido ainda, pelo alento, força e
paciência durante o meu amadurecimento intelectual durante a elaboração dessa
pesquisa que me conseguiu transmitir, sem os quais, estou seguro, não teria
chegado ao fim.
O meu agradecimento vai, também, para o conjunto de docentes do
Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), o meu obrigado pelos
saberes que me foram transmitidos, mas, sobretudo, pelo tempo a que os
obriguei, em parte involuntariamente, a esperar por esta dissertação.
À incansável secretária do PPGTE, Lindamir Casagrande que com sua
simpatia e atenção, sempre esteve à disposição para sanar qualquer dúvida.
O meu reconhecimento, feito com amizade, vai também para os meus
colegas Julio Vann, Janaina, Jovana, Elaine, Élio (IN MEMÓRIAN) Fernando,
Fabiana, Elaine, Pablo.
Agradeço também, aos intransponíveis apoios, motivação, incentivo,
orações, companheirismo, de quem devo, pelas muitas razões profissionais e
pessoais que os próprios bem conhecem, a Leni de Oliveira, que ao longo desta
minha época especial de vida e de trabalho estava lá para dizer: “não desista”,
“qual é não vai desistir na reta final!”.
À minha família, em especial aos meus irmãos Fabiane e Jorge Luis,
mesmo longe recebia apoio e incentivo.
Ao Gustavo Henrique de Oliveira Dias e Rafael Dias, meus filhos, pelos
sacrifícios e ausências do pai que sei que sentiram, sempre entenderam minhas
dificuldades durante a elaboração desta dissertação e o seu atribulado trajecto a
obrigaram.
Devo agradecer também ao Diretor da Escola Estadual Ottilia Homero da
Silva, na pessoa do João Batista, que durante sua gestão, foi compreensível
quando necessite ausentar-me da escola para realizar pesquisa de campo na
Comunidade João Surá. E a Direção do Centro Estadual de Educação Profissional
Newton Freire Maia na pessoa do Diretor Prof. Eduardo Kardush, da Vice Diretora
a Professora Ana Olímpia, da Coordenadora Maria do Socorro e a Professora
Silvana Hasse Pedagoga, nos momentos finais da dissertação foram tolerantes
das minhas responsabilidades, sem prejuízo das mesmas. E aos meus alunos da
disciplina de História que possibilitaram o amadurecimento da análise sobre o IDH
e as comunidades quilombolas no Paraná.
Quero expressar o meu carinho especial à Liliana Porto, pelas trocas de
pontos de vista, entre os quais os científicos, como só ela sabe fazer e analisar, e
por todas a forças que me deu, nos bons e os maus momentos deste processo.
Nos momentos que este pesquisador mais precisava conversar lá esta você a
caminhante inseparável para ajudar a sistematizar as idéias. Quero expressar o
meu mais profundo agradecimento, pois sei, agora melhor do que nunca, o quanto
foram importantes nossas conversas.
Ao amigo Gustavo Gava que foi fundamental nos momentos em que
“navegar era preciso”.
Para que os bons momentos sempre nos continuem a compensar... as
coisas menos boas devemos escrever onde o vento do esquecimento e o perdão
se encarreguem de passar e apagar a lembrança. Por outro lado, quando nos
acontece algo de grandioso, devemos gravar isso na pedra da memória e no
coração onde vento nenhum em todo o mundo possa apagar (final de uma lenda
árabe).
Para além destas palavras escritas, espero encontrar melhor forma e
melhor momento para dizer a todos o quanto estou agradecido e o quanto sinto
que, a todos, devo um bocadinho deste trabalho.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................
10
1. PRESSUPOSTOS E CATEGORIAS. A ANALÉTICA E SEU POTENCIAL
PARA EFETIVA COMPREENSÃO DA ALTERIDADE .............................. 12
1.1 A CRÍTICA AO EUROCENTRISMO: CONSTRUINDO UMA PRESPECTIVA
LATINOAMERICANA .........................................................................................................
16
1.2 A ANALÉTICA DUSSELIANA COMO MÉTODO ...............................................................
24
1.3 ANALISE DA ANALÉTICA EM DUSSEL ...........................................................................
33
2. COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS: UMA
TENTATIVA DE INSTITUÍ-LAS ..................................................................
44
2.1 A LUTA PELA TERRA .......................................................................................................
54
2.2 A LUTA DOS AFRO-DESCENDENTES POR RECONHECIMENTO E DIREITOS
COLETIVOS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL ..........................................................
66
3. VALE DO RIBEIRA E A PRESENÇA AFRICANA ..................................... 79
3.1 VALE DO RIBEIRA ..........................................................................................
79
3.2 VALE DO RIBEIRA TERRITÓRIO DA CIDADANIA: UM PROCESSO DE INCLUSÃO
SOLIPSISTA .............................................................................
109
4. MODOS ALTERNATIVOS E RESERVA DE POSSIBILIDDES: O CASO
DE ADRIANÓPOLIS – MINERADORA PLUMBUM VERSUS
COMUNIDADE JOÃO SURÁ .....................................................................
124
4.1 INSTRUMENTOS, TECNOLOGIA E RELAÇÕES SOCIAIS – ALGUMAS REFLEXÕES
TEÓRICAS ..........................................................................................................................
124
4.2 ADRIANÓPOLIS: A PRESENÇA DE ALTERNATIVAS DISTINTAS DE PRODUÇÃO E
FORMAS DE VIDA ..............................................................................................................
130
5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................................................................. 161
REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA ....................................................................
162
RESUMO
Este texto tem como objetivo analisar de que maneira a comunidade quilombola
João Surá – Adrianópolis/PR, existente há mais de 200 anos, permite a seus
membros uma reserva de possibilidades frente ao modelo desenvolvimentista
capitalista. Reserva esta, por sua vez, que só se efetiva na medida em que a
comunidade encontra-se aberta e capaz de responder a novos contextos sociais,
bem como interagir de maneira flexível com a sociedade local, regional e nacional.
Conhecer os saberes tecnológicos e a visão de mundo deste grupo, bem como
compreender de que maneira eles se relacionam e organizam o espaço do
trabalho e as relações sociais, se mostra interessante – não só com o objetivo de
análise de um caso específico, mas também tendo em vista a atual configuração
sócio-econômica brasileira e os reflexos do modelo capitalista excludente em
situações que a ele não se subordinam. O exemplo da relação da comunidade
João Surá com a terra e seus instrumentos de trabalho será contrastado com a
presença regional, por cinco décadas, da mineradora Plumbum. O texto a ser
apresentado pretende desenvolver essas análises utilizando algumas categorias
do filósofo Enrique Dussel, especialmente a partir do método analético, bem como
o conceito de instrumentos, a fim de compreender como as comunidades
quilombolas permitem a manutenção da autonomia do grupo frente a seus
processos produtivos e garantem a continuidade do modelo de relações sociais
internamente valorizados. Para tanto, irá considerar de maneira crítica a discussão
em torno da “pobreza” e a produção dos índices oficiais que são utilizados como
base para sua definição (principalmente PIB e IDH). Também, a partir do relato
dos processos de trabalho adotados pelos membros da comunidade, buscará
relacioná-los com as técnicas utilizadas, o modelo de uso da terra, os valores
locais e as relações sociais comunitárias. É neste sentido que propomos pensar a
comunidade como reserva de possibilidades. Ou seja, como alternativa aberta a
seus membros, que podem responder a contextos de produção e consumo mais
amplos, sem ficarem tão vulneráveis quanto trabalhadores assalariados que não
possuem vínculos comunitários.
Palavras
chave:
Possibilidades.
Instrumentos,
Analética,
Pobreza,
Reserva
de
ABSTRACT
The aim of the present paper is to analize the way with wich João Surá, a two
hundred years old quilombola community from Adrianópolis/PR, endows its
members with a sort of economy of possibilities that allows them to face the
capitalistic developmental model. However, this very economy of possibilities may
only work as long as both the quilombola community opens itself to respond to new
social contexts and also interact in a flexible way along with local, regional and
national society. The interest in understanding this community’s worldview and
technological knowing as well as understand the manners they relate to each other
and organize the labour space and their social relations, leans over two points: first,
it constitutes an specific case to be object of analysis. The second point focuses on
the community non-subjection both to the present Brazilian’s economic and social
conditions, and their non-subjection to the reflections of the excluding capitalistic
model in some conditions. The example of João Surá community’s relationship with
the land and its work implements, shall be contrasted with the regional presence, for
five decades, of the miner Plumbum. In order to comprehend how quilombolas
communities allow the maintenance of group autonomy with their own productive
processes and assure the continuity of an internally valued social relationship
model, the text to be presented here shall conduct the analysis taking some
categories used by the philosopher Enrique Dussel, specially the analetic method
and the concept of instruments. To accomplish with the objective, the paper shall
take critically the discussion on “poverty” and the production of official poverty index,
which are used as the fundament to its characterization (mostly PIB and IDH). In
addition, starting from the group’s discourse on the work processes adopted by the
members of the community, the present work shall try to relate them to the utilized
technique, to the model of land usage, to local values and social relationships. It
shall be in this way that we propose to understand the community as a stock of
possibilities, that is to say, as an alternative opened to its own members that are
able to answer to wider context of production and consumption without being as
much vulnerable as any other worker that does not have a link with a community.
INTRODUÇÃO
Quilombo não pertence somente ao passado escravista. Tampouco se
configura como um grupo isolado, no tempo ou no espaço. Em uma das mais
importantes comunidades remanescentes de quilombo do Paraná, denominada
João Surá, seus moradores, apesar de marginalizados, mantêm relações sóciopolíticas e econômicas significativas tanto com seu entorno quanto no contexto
regional mais amplo há mais de 200 anos.
De acordo com O´Dwyer (2000), “essas comunidades não são resíduos
ou
resquício
arqueológicos,
nem
grupos
isolados
de
uma
população
extremamente homogênea” (:14). Para a autora, quilombos surgem novamente ou
são descobertos, contemporaneamente, com uma nova 'resignificação'. Suas
organizações e formações históricas são diversas, como: terras herdadas de
quilombos/escravos fugidos e seus descendentes; doações de senhores ou
ordens religiosas; terras conseguidas do Estado em troca de participação em
guerras; ou ainda inúmeras migrações de não brancos livres e libertos e suas
famílias antes do período da emancipação e pós-emancipação.
Os objetivos de nossa pesquisa resultaram de nossa reflexão do
contexto da comunidade e a fala de seus membros. Nossa perspectiva inicial era
pesquisar, na comunidade João Surá, os saberes tecnológicos e visão de mundo,
mas essa perspectiva sofreu uma ginada quando começamos a refletir sobre o
que a comunidade colocava. Passamos a considerar as alternativas ao modelo
desenvolvimentista a partir de comunidades tradicionais.
Nossa preocupação neste trabalho não está centrada em realizar
uma pesquisa etnográfica, mas sim questionar e repensar as premissas
totalitárias do padrão desenvolvimentista capitalista/exploratório/predatório,
analisando as conseqüências do industrialismo e a visão de progresso embutida
em tal lógica, além de perceber como se constrói o discurso da “carência”,
“pobreza” e do “atraso” no caso da história econômica do Vale do Ribeira e da
comunidade João Surá. Ressaltaremos, portanto, outras possibilidades de
11
compreender a relevância, eficácia e distinção de saberes e organizações
tecnológicas, a partir de padrões alternativos comunitários, e como as
comunidades quilombolas permitem aos seus membros uma reserva de
possibilidades frente ao modelo desenvolvimentista capitalista.
Não que as comunidades sejam fechadas em si mesmas ou isoladas,
idéia corrente no senso comum; ao contrário, elas estão o tempo todo interagindo
com a sociedade local, regional e nacional e o exemplo disso são as migrações:
não se tem nenhuma dessas comunidades que não tenha uma migração intensa
para os grandes centros urbanos, ou para centos urbanos locais. A questão que
nos move é: como essas comunidades permitem aos seus membros a
possibilidade, inclusive, de saída e retorno?
Destacamos a existência de referências etnográficas importantes sobre
a comunidade em questão, tais como o relatório antropológico realizado pelo Prof.
Ricardo Cid Fernandes e equipe (2007), a monografia de Andréia Oliveira Cambuy
(2006) sobre o perfil alimentar do grupo e o segundo fascículo da Nova Cartografia
Social dos Povos e Comunidades Tradicionais – Série Paraná (2009). Acrescentese, ainda, que devido ao lugar central ocupado por João Surá dentro do quadro de
comunidades quilombolas do estado – ela foi “eleita” pelos agentes externos como
uma espécie de “modelo” dos grupos do gênero no Paraná –, tem sido palco de
inúmeras pesquisas, intervenções estatais e de ONGs, o que deve aumentar um
número de trabalhos já existentes em período próximo. Este excesso de
pesquisas levou, inclusive, a comunidade a oferecer resistência à entrada de
qualquer pesquisador. Tanto é verdade, que não foi possível entrevistar o
presidente da associação comunitária local, Sr. Antonio Pereira, apesar de ter sido
ele quem possibilitou o primeiro contato e indicou os entrevistados para a
realização das entrevistas. Devido a essa saturação de pesquisadores, Antônio
Carlos estava ocupado atendendo ao Estado ou demais entidades nos vários
momentos de ida a campo. O contato que tivemos com ele só foi possível quando
da festa dos 200 anos da comunidade, ao final do dia, em sua residência. Só
então, através de conversas informais, obtivemos ricas informações.
12
Para chegar até a comunidade foram(são) necessários a conjugação de
vários fatores. Por exemplo, o tempo bom e a máquina da Prefeitura de
Adrianópolis
ter
passado
para
dar
condições
de
trafegabilidade.
Isto
principalmente no trecho entre Porto Novo e a comunidade – já que na estrada
que liga Adrianópolis ao Bairro Porto Novo, a 30 km da cidade de Adrianópolis,
metade do caminho da sede municipal até João Surá, a patrola passa com
freqüência. Tanto é verdade que quando precisamos chegar até a comunidade
João Surá tomamos o ônibus de “linha” que vai até Porto Novo e depois um táxi
para percorrer mais 30 km de estrada de terra em péssimas condições. Os
moradores da comunidade João Surá, quando têm que se deslocar até
Adrianópolis, ou vão a cavalo ou têm que contar com o serviço de táxi do bairro
vizinho Porto Novo.
Nós constatamos essa realidade as quatro vezes que fomos até a
comunidade. Infelizmente, não foi possível estar na comunidade com a freqüência
desejada, visto que as condições da estrada nos impossibilitaram.
O meu primeiro contato com a comunidade João Surá se deu na festa
de comemoração dos 200 anos da comunidade, que aconteceu no dia 11 de
Outubro de 2007. Nesse dia, estava marcada uma série de atividades, tais como:
a inauguração da unidade de inclusão digital; o Telecentro; a apresentação da
biblioteca rural Arcas das Letras e a apresentação, pelo INCRA e UFPR, do
relatório antropológico, primeira etapa do processo de regularização fundiária da
comunidade João Surá. A festa, a cargo do governo do Estado, não saiu como
planejada. Para o dia da festa, a comunidade João Surá estava contando com a
presença de mais de mil participantes, entre membros de comunidades
quilombolas do lado do Paraná e de São Paulo. Por questões políticas, esse
número não se concretizou.
Fora estes problemas políticos, que diminuíram o número de
participantes a festa transcorreu normalmente. Ficamos uma semana na
comunidade, o que nos possibilitou conhecer um pouco do seu dia-a-dia. Nos dias
17 a 19 de dezembro de 2007 começamos a realizar a primeira etapa das
entrevistas como os moradores da comunidade. Todos eles foram escolhidos por
13
Antônio Carlos. Conforme se desocupavam de suas atividades na comunidade me
procuravam para realizar as entrevistas.
Nome
do
Colaborador
Data
Entrevista
da
Data
de
Nascimento
Antônio Aparecido de Matos
18/12/07
01\01\1956
Clarinda Andrade de Matos
18/12/07
30\07 \1959
Gislene Neves Galvão Pereira
19/12/07
30\12\1998
Carla Fernanda Galvão Pereira
19/12/07
17 anos
Cassiane Aparecida de Matos
19/12/07
25 anos
Joana Andrade Pereira
19/12/07
27\10\1935
Vitor Andrade de Matos
19/12/07
04\19/1948
João Martinho de Andrade Pereira
22/05/08
11/11/1963
Benedita Pereira de Freitas
22/05/08
31/10/1922
As entrevistas com os mais jovens da comunidade se deram através do
convite que fizemos. Foram feitos contatos com outros jovens da comunidade,
mas somente Carla, Gislene e Cassiane aceitaram o convite para a entrevista, o
que possibilitou a percepção da visão de mundo e o modo de organização da
comunidade em relação a um grupo específico, em geral menos considerado.
Como ressaltamos, o objetivo do texto não é, contudo, abordar a
dinâmica interna da comunidade, sua organização social e visão de mundo.
Propomos, isto sim, pensar os processos produtivos da comunidade, a partir de
seu contraste com a atuação da mineradora Plumbum S. A. Para fazer essas
relações utilizaremos algumas categorias do filósofo e teólogo Enrique Dussel,
especialmente a partir do método por ele proposto, a analética, bem como de seu
conceito de instrumentos, a fim de compreender como as comunidades
quilombolas permitem a seus membros uma reserva de possibilidades frente ao
modelo desenvolvimentista capitalista.
Para tanto, ocupou lugar de destaque a reflexão em torno de pesquisa
bibliográfica sobre as temáticas que se apresentarão nos capítulos I, II, III e IV. No
segundo momento, fomos até a comunidade quilombola João Surá, com objetivo
de perceber como a comunidade pensa as questões colocadas pela reflexão; para
isso foi utilizado um modelo de entrevista semi estruturado. O que nos possibilitou
14
compreender como a comunidade produz seus artesanatos e vive da agricultura
de subsistência, bem como, compreender de que maneira eles se relacionam e
organizam o espaço do trabalho e as relações sociais – não só visando à análise
de um caso específico, mas também tendo em vista uma reflexão mais ampla
sobre a atual configuração sócio-econômica brasileira e os reflexos do modelo
capitalista excludente em situações que a ele não se subordinam.
O texto a ser apresentado pretende desenvolver a reflexão em torno da
tecnologia/Instrumentos empregada pelo grupo, seu papel produtivo e sua
influência não somente na garantia da subsistência, mas na reprodução de um
modelo de sociabilidade e relação com o meio ambiente diferenciado. Para tanto,
irá, a partir do relato dos processos de trabalho adotados pelos membros da
comunidade, relacioná-los com as técnicas utilizadas, o modelo de uso da terra,
os valores locais e as relações sociais comunitárias.
Com a intenção de tornar claras as etapas percorridas, esta dissertação
foi estruturada da seguinte maneira. No primeiro capítulo, buscaremos a
configuração de uma abordagem em que se optou pelo ponto de vista do método
da Filosofia da Libertação, para um reconhecimento de um ethos cultural latinoamericano que nos auxiliará na compreensão da comunidade; a totalidade, na
perspectiva eurocêntrica se mostra como âmbito fechado, e negação da alteridade
e a exterioridade, como abertura possível ao outro. Para isso adotamos a
analética de Enrique Dussel, que parte do outro enquanto livre, rompendo com a
relação solipsista.
O segundo capítulo está dedicado, justamente, a uma análise breve
sobre a trajetória da formação dos quilombos no Brasil e na América do Sul, a luta
pela terra e o processo de titulação individual, no passado, responsável, entre
outros fatores, pela expropriação do território, e a luta pelos direitos coletivos.
No terceiro capítulo são examinadas as discussões sobre o
desenvolvimento e a visão de progresso embutida na sua lógica, e como se
constituí o discurso da “carência” e da “pobreza”. Para tanto, exploraremos a
maneira pela qual são produzidos e interpretados os índices que medem o
desenvolvimento (PIB, IDH, Gini), que não levam em consideração a riqueza
15
ambiental da região e os saberes das comunidades tradicionais – dentre elas as
quilombolas.
E, finalmente, o capítulo quatro é dedicado à análise das estratégias de
identificação dos sujeitos-atores envolvidos na situação da pesquisa, de modo a
destacar suas particularidades. Destaca como há uma tendência recorrente a se
pensar o contexto brasileiro e latino-americano através de um discurso que é
construído a partir da perspectiva colonialista dominadora. Neste, aspectos
valorizados por tal perspectiva são tomados como a base de avaliação da situação
contemporânea de grupos e regiões que se destacam exatamente por se
distinguirem do modelo dominante de produção, organização social e visão de
mundo – como é o caso de comunidades rurais tradicionais e, dentre elas, das
comunidades quilombolas. A partir desta crítica, realizada de maneira tão
contundente por Enrique Dussel, propomos, neste capítulo, a inversão de tal
perspectiva, tomando como exemplo a relação da comunidade João Surá com a
terra e seus instrumentos de trabalho, e contrastando-a com a presença regional,
por cinco décadas, da mineradora Plumbum – fechada por seu desrespeito a
normas básicas de preservação ambiental, e que deixou como herança toneladas
de rejeitos contaminados, um patrimônio edificado hoje abandonado e grande
número
de
trabalhadores desempregados.
E por
fim,
analisaremos
os
instrumentos e as técnicas do grupo levando em conta as relações sociais que a
sustentam, sem veiculá-las como atrasadas ou isoladas.
Nas considerações finais buscaremos retomar algumas reflexões aqui
esboçadas e consolidar certas demonstrações feitas ao longo do trabalho.
1.
PRESSUPOSTOS E CATEGORIAS. A ANALÉTICA E SEU
POTENCIAL PARA A EFETIVA COMPREENSÃO DA ALTERIDADE
Nossas vítimas nos conhecem pelas chagas e
pelos ferros: é isso que torna irrefutável o seu
testemunho. Basta que elas nos mostrem o que
fizemos delas para que conhecemos o que
fizemos de nós.(...) Eles são os pioneiros, vocês
os enviaram, além-mar, eles os enriqueceram;
vocês os preveniram: se eles derramassem
sangue demais, vocês os desaprovariam – só
para constar.1
1.1 A CRÍTICA AO EUROCENTRISMO: CONSTRUINDO UMA PERSPECTIVA
LATINOAMERICANA
Eduardo Galeano, escritor uruguaio, ao escrever sua obra intitulada As
veias abertas da América Latina,2 denuncia as mazelas e o subdesenvolvimento
em que estão submetidos diversos países latino-americanos. O livro foi escrito na
turbulência de um período em que as ditaduras militares fundamentadas em
interesses imperialistas norte-americanos se instalavam no poder: Brasil (1964),
Chile e Uruguai (1973) e Argentina (1976).
O livro se inicia com a chegada acidental de Colombo à América no
final do século XV, a partir daí relata a ação predadora dos colonizadores ibéricos,
nas terras recém-descobertas. Segundo o autor, a conquista não se efetuou
somente pelo uso recorrente da violência, mas também por técnicas sutis que
favoreciam o domínio sobre os nativos, “os indígenas foram derrotados também
pelo assombro”. (1991, p. 28)
1
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Trad. Enilce Albergaria Rocha, Lucy Magalhães. Juiz
de Fora: Ed. UFJF, 2005. p 30.
2
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina., Rio de Janeiro. 33ª Edição,
Paz e Terra,
17
A prata extraída de Potosí trouxera a desgraça para os indígenas
através do uso da mita (Os homens eram sorteados, e em geral trabalhavam
quatro meses, recebendo um pagamento. Cumprido o prazo, deveriam retornar à
comunidade, que por sua vez deveria enviar um novo grupo de homens. Segundo
Galeano, a cada dez que iam trabalhar no sistema de mita, é provável que
somente dois retornassem); ostentando uma falsa riqueza hispânica, encheu os
cofres dos vizinhos europeus, proporcionando o acúmulo de capitais que
financiaram o posterior desenvolvimento industrial destes. As minas se esgotaram
e Potosí foi “evacuada”, para trás ficaram “oito milhões de cadáveres de índios”
(Galeano, 1991, p. 40) as igrejas e um legado de miséria que ainda assolava os
bolivianos.
De acordo com Galeano, a herança da colonização transmitida para os
índios foi o trabalho semi-escravo em latifúndios e a desapropriação da terra. Os
crimes contra os índios eram freqüentes,
o contato com o homem branco continua sendo, para os indígenas, o
contato com a morte (...) ocorre que quanto mais ricas são estas terras
virgens mais grave é a ameaça que pende sobre suas vidas; a
generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime
(1991:60)
Segundo Galeano, outro exemplo de ascensão e declínio econômico
ocorreu em Vila Rica no Brasil. A extração aurífera ocasionou desordenado
aglomerado populacional, fantasiou o luxo do Estado português e quitou as
dívidas deste com a Inglaterra, que acumulando o metal em seus cofres arcou
quando necessário com as despesas da Revolução Industrial.
Assim como Potosí, Vila Rica se exauriu, e o esgotamento das minas
trouxe consigo o abandono e a pobreza da região. Restando-lhe vestígios das
igrejas e as obras de Aleijadinho. Por terem enriquecido a Europa à custa de sua
falência, às regiões referidas foram marcos de como “os metais arrebatados aos
novos domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e pode-se até
mesmo dizer que o tornaram possível”. (1991:35)
Para o autor, a base do sistema colonial na América se constituiu
através da escravidão. A própria negociação de carne humana possibilitou
18
ganhos, além de ter sido fundamental para a aquisição de lucros futuros, uma vez
que o cultivo da cana-de-açúcar e algodão se efetivarem a partir do trabalho
escravo.
Ao ciclo da cana procederam outros: a borracha Amazônica, as
plantações de cacau em Salvador-BA, o algodão nordestino e o café sulista, todos
ocorridos em meados do século XIX e no decorrer do século XX, embasados na
exploração dos recursos naturais e da mão-de-obra barata, proporcionando
enormes vantagens para as empresas norte-americanas e européias.
Tal situação não se concretizava somente no Brasil. Em toda a América
Latina a exploração de minerais e produtos agrícolas tornava-se fundamental para
a acumulação de capitais e para o próprio desenvolvimento econômico dos países
estrangeiros, inicialmente dos países europeus (principalmente a Inglaterra) e
depois dos Estados Unidos. A dependência dos países desenvolvidos em relação
aos minerais dos subdesenvolvidos se dava porque a tecnologia existente “não
encontrou maneira de prescindir dos materiais básicos que a natureza, e só ela,
proporciona”, (1991:148) e de forma tão abundante na América Latina.
Além de monopolizar a comercialização dos diversos minerais latinoamericanos, os países desenvolvidos interferiam ativamente na política dos
mesmos. A esse domínio dos produtos primários nos países latino-americanos,
seguiu, posteriormente o incentivo à industrialização. Ou melhor, ocorreu uma
nova forma de se adquirir mais lucros na América Latina, através da instalação de
empresas multinacionais. Em todos os países do continente estas se proliferaram,
arrastando os dólares produzidos (devido à mão-de-obra barata e aos incentivos
governamentais locais) para os centros e poder do sistema capitalista.
A instalação de tais empresas se dava no contexto de um discurso
desenvolvimentista, criando a ilusão de que o crescimento econômico do país
beneficiaria a todos, quando na realidade havia mais “náufragos que navegantes”.
O discurso do livre - cambismo também foi constantemente utilizado pelos
grandes países capitalistas como argumento para o desenvolvimento. Assim, por
exemplo, a Inglaterra pós Revolução Industrial apoiou declaradamente o fim do
pacto colonial sobre as colônias latino-americanas, ao mesmo tempo em que
19
atuou no sentido de evitar que as ex-colônias caíssem sob o domínio dos norteamericanos e dos franceses; ou que, nas lutas pela independência, as idéias
socialistas se propagassem.
O
comércio
livre,
tão
efusivamente
defendido
pelos ingleses,
correspondia, na verdade, à necessidade de novos mercados para o escoamento
da produção de suas indústrias. Ou seja, “a independência abriu às portas à livre
concorrência da indústria já desenvolvida na Europa”, (1991:191) aniquilando as
incipientes indústrias locais que se desenvolviam no Brasil, na Bolívia, no Chile, no
Peru, no Paraguai, etc.
Um aspecto importante ressaltado por Galeano é o de que tanto a
Inglaterra como os Estados Unidos exportavam de livre comércio e de livre
concorrência, porém para o consumo alheio, uma vez que a política interna de
ambos se pautava pelo protecionismo, necessário para a afirmação da economia
nacional.
O contexto mundial pós Segunda Guerra foi marcado pelo aumento de
multinacionais norte-americanas na economia dos países latino-americanos, o que
provocou a desnacionalização industrial nos países em que estas se instalavam,
seja pela falência e fechamento das empresas nacionais que não suportavam a
concorrência, seja pela venda das mesmas às multinacionais que chegavam. Tais
corporações utilizavam os incentivos fiscais dos Estados das regiões em que se
alojavam “para acumular, multiplicar e concentrar capitais” (1991:245). O
crescimento da industrialização, portanto, nos países latino-americanos, não
alterou a desigualdade no mercado mundial, não modificou o quadro da divisão
internacional do trabalho, nem a falta de investimento dos países latinos na
criação de tecnologia própria.
Imbuído desse “mal estar” Frantz Fanon (1925-1961) engaja-se com os
argelinos na luta pela libertação do país que sofria o jugo colonial francês desde
1830. O que ocorreu no ano seguinte de sua morte em 1962. Utilizando os
conceitos de alienação desenvolvidos por Hegel e Marx, Fanon (2005) analisa os
mecanismos de dominação na formação da consciência do povo colonizado,
destacando os dois pólos antagônicos na situação colonial: o colonizador e o
20
colonizado. Escreve: “O colono e o colonizado são velhos conhecidos. E, na
verdade, o colono tem razão quando diz que “os” conhece. Foi o colono que fez e
continua a fazer o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens,
do sistema colonial” (:52).
Este antagonismo é para Fanon um mundo cortado por dois. Escreve:
A zona habitada pelos colonizados não é complementar à zona habitada
pelos colonos. Essas duas zonas se opõem, mas não a serviço de uma
unidade superior. Regidas por uma lógica puramente aristotélica, elas
obedecem ao principio de exclusão recíproca: não há conciliação
possível, um dos termo é demais. A cidade do colono é uma cidade
sólida, onde as latas de lixo transbordam sempre de restos
desconhecidos, nunca visto, nem mesmo sonhados. Os pés do colono
nunca se mostram, exceto talvez no mar, mas nunca se está bastante
próximo deles. Pés protegidos por sapatos fortes, enquanto as ruas da
sua cidade são limpas, lisas, sem buracos, sem pedriscos. A cidade do
colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros.
A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a aldeia
negra, a medina, a reserva é um lugar mal afamado, povoado de
homens mal afamados. Ali, nasce-se em qualquer lugar, de qualquer
maneira. Morre-se em qualquer lugar, de qualquer coisa. (...) a cidade
do colonizado é uma cidade agachada, uma cidade de joelhos, uma
cidade prostrada. O olhar que o colonizado lança sobre a cidade do
colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja. Sonhos de posse (:54).
Ora, essa realidade argenilana se entendeu por toda a América Latina.
Como a periferia sofre a objetivação, a coisificação e a negação do seu ser. E
como o principio da dominação se estabelece na prática. É na prática que o
paciente sofre a ação do agente: fome, dor, frio a inferioridade. A conseqüência da
dominação é a violência. É a visão da totalidade que se impõe à negatividade dos
que estão fora do âmbito do seu ser.
É na violência que presidiu o arranjo do mundo colonial, que ritmou
incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, demoliu sem
restrições os sistemas de referencias da economia. A violência com a qual se
afirmou a supremacia dos valores brancos, a agressividade que impregnou o
confronto vitorioso desses valores com os modos de vida ou de pensamento dos
colonizados fazem, nos dizer de Fanon: “que o colonizado tenha um riso irônico
quando se evocam diante dele esses valores. No contexto colonial, o colono só se
detém em seu trabalho de exaustão do colonizado quando esse reconhece em
alta e inteligível voz a supremacia dos valores brancos” (:60.)
21
Segundo Fanon, a afetividade do colonizado é mantida à flor da pele,
“como uma chaga viva que foge do agente cáustico” (:74). Ela esgota-se no
fenômeno da dança e da possessão. Fanon percebe que é no circulo da dança
que o relaxamento muscular do colonizado, durante a qual a agressividade mais
aguda, a violência mais imediata são canalizadas, transformadas, escamoteadas.
Em horas fixas, em datas fixas, homens e mulheres se encontram em
lugar determinado, e sob o olhar sério da tribo, se lançam numa
pantomima de aparências desordenada, mas na verdade muito
sistematizada, na qual, por múltiplas vias, denegações da cabeça,
curvaturas da coluna, movimento para trás de todo o corpo, decifra-se
facilmente o esforço grandioso de uma coletividade para exorcizar-se,
libertar-se,
expressar-se,
libertar-se,
expressar-se.Tudo
é
permitido...nesse circulo. O montículo a onde se subiu como que para
ficar mais perto da lua, a manter pra onde se deslizou como que para
manifestar a equivalência da dança e da ablução, da lavagem, da
purificação, são lugares sagrados. Tudo é permitido, pois na realidade,
as pessoas só se reúnem para deixar que a libido acumulada, a
agressividade impedida, jovem vulcanicamente. Execuções simbólicas,
cavalgadas figurativas, assassinatos múltiplos imaginários, é preciso que
tudo isso saia. Os maus humores escorrem, ruidosos como correntes de
lava. (..) Essa desagregação da personalidade, esses desdobramentos,
essas dissoluções comprem uma função econômica primordial na
estabilidade do mundo colonizado. Na ida, os homens e as mulheres
estavam impacientes, inquietos, com os nervos à flor da pele. Na volta, a
calma, a paz, a imobilidade voltam à aldeia (:74-75)
À medida que compreende a força que lhes negava o ser explodia em
fúria. Entendia que o trabalho do colono é tornar impossível até seus sonhos de
liberdade. Ele descobre o real, que dá movimento a sua práxis. Fanon mostrou o
caminho, foi porta-voz dos combatentes, reclamou união, a unidade do continente
africano contra todas as discórdias e todos os particularismos. Fanon conduz a
população colonizada na compreensão das artimanhas da colonização. Explica
que entre os métodos empreendidos pelo colono é a alienação colonial que tinha o
objetivo de convencer os indígenas de que o colonialismo devia arrancá-los das
trevas. Para o colonizado o papel do colono era mantê-lo longe da barbárie e da
animalização.
É importante assinalar o papel que assume, nesse fenômeno de
maturação, a história da resistência colonial à conquista. As grandes figuras do
povo colonizado são sempre as que dirigiram a resistência nacional à invasão.
22
Segundo Fanon, o colonizado à medida que compreendia a força que lhes negava
o ser explodia em fúria. Colocou-se como porta voz, mostrou o caminho para a
unidade do continente africano contra todas as discórdias e todos os
particularismos. Fanon conduz a população colonizada na compreensão das
artimanhas da colonização. Explica que entre os métodos empreendidos pelo
colono é a alienação colonial que tinha o objetivo de convencer os indígenas de
que o colonialismo devia arrancá-los das trevas. Para o colonizado o papel do
colono era mantê-lo longe da “barbárie” e da “animalização”. Para Fanon é o
colonizador quem tem feito e continua a fazer o colonizado. O colonizador tira sua
verdade, isto é, seus bens, do sistema colonial. O colonizado introjeta a
dominação vivendo um complexo em que passa a negar-se.
Nossas vítimas nos conhecem pelas chagas e pelos ferros: é isso que
torna irrefutável o seu testemunho. Basta que elas nos mostrem que
fizemos delas para que conheçamos o que fizemos de nós. Isso é útil?
Sim, pois a Europa está em grande perigo de explodir. Mas, dirão vocês
ainda, vivemos na Metrópole e reprovamos os excessos. É verdade:
vocês não são colonos, mas não são melhores que eles. Eles são os
seus pioneiros, vocês os enviaram, além-mar, eles os enriqueceram;
vocês os preveniriam – só para constar. Da mesma forma, um Estado,
qualquer que seja, mantém no estrangeiro uma horda de agitadores, de
provocadores e espiões, que não reconhece quando são pegos. Vocês,
tão liberais, tão humanos, que levam o amor da cultura até o
preciosismo, fingem esquecer que tem colônias e nelas massacra-se em
seu nome. (:30)
Assim como Fano e Eduardo Galeno, Rubim Santos Leão de Aquino
(1981) é um dos co-autores de A história das sociedades: das sociedades
modernas aos dias atuais e História das sociedades americanas. Carioca de 1926
sempre esteve ligado a movimentos políticos e sociais. Durante a ditadura foi
preso e processado. Mais tarde pertenceu ao Comitê brasileiro pela Anistia e ao
grupo Tortura Nunca Mais. Colaborou, também, nos livros Presos políticos e Brasil
uma história dinâmica.
No prefácio do livro História das sociedades americanas os autores
deixam claro sua tentativa de fugir à visão tradicional e acrítica imperante em
muitas obras de História da América, cujas páginas volta-se para o culto a
indivíduos heroificados e incensados como se deuses fossem. Aquino, chama a
23
atenção que o essencial, que é a ação das forças sociais e econômicas, tem sido
ignorado em alguns livros de história.
Quando o nome América apareceu, pela primeira vez, no mapa de
Waodseemüller, identificando a parte do globo que viria a ser chamado de Novo
Mundo, configurava uma unidade geográfica sem fronteiras. Um dos fatores de
diferenciação é a diversidade étnica e cultural das sociedades americanas.
Trezentos anos de Colonização desencadearam um processo migratório que se
prolonga até nossos dias (AQUINO:1981).
Para
Aquino,
brancos,
negros
e
índios
distribuem-se
desproporcionalmente de uma região para outra, tanto que se pode falar de uma
América branca, (a Anglo-Saxônica e os países do Prata), uma América índia (os
países andinos), uma América hispano-índia (as áreas centro-americanas e o
Paraguai) e uma América negra (parte das Antilhas), sem esquecer os países de
mestiçagem multicultural, como o Brasil. É nesta parte do mundo que, nos dias
atuais, se desenvolve um processo agudo de lutas populares. O cenário em que
se desenvolvem as lutas de classes na América Latina forjou-se ao longo de três
séculos de exploração colonial e de um período menos longo, porém mais
predatório, de dominação européia e, depois, norte-americana. O latifúndio, a
monocultura de exportação e as formas pré-capitalistas de exploração da mão-deobra ainda constituem considerável parcela da realidade agrária de muitos países
latino-americanos. A industrialização, concentrada em alguns setores de interesse
do capitalismo internacional e realizada tardiamente, em uma época em que a
economia mundial já se encontrava dominada pelo grande capital monopolista,
não permitiu um desenvolvimento autônomo, e tornou os países latino-americanos
extremamente,
dependentes
dos
pólos
econômicos
mundiais,
e,
conseqüentemente, das flutuações e crises do capitalismo internacional (:02)
Sabemos que a discussão do percurso das idéias de um pensamento
hegemônica no Brasil, em muitos casos, foi utilizado para justificar a subjetividade
do povo negro e moldar o racismo. Portanto, para melhor apreensão da realidade
complexa e multifacetada do continente americano, é necessário compreender os
24
conflitos entre exploradores (Europa) e explorados (América Latina) sem a
neutralidade intelectual.
Para isso, na América Latina desponta a figura do filósofo, Enrique
Dussel. Este pensador é considerado um dos principais articuladores da filosofia
da libertação que, a partir da década de sessenta, tem construído junto com outros
filósofos
latino-americanos
a
ressignificação
de
categorias
oriundas
do
pensamento europeu e da tradição judaico-cristã. Sua principal crítica dirige-se às
ideologias que ocultam a situação de pobreza em que vivem milhões de seres
humanos situados na periferia mundial.
Nas últimas décadas, a tarefa dusseliana tem concentrado esforços em
construir uma arquitetura política atraindo a atenção dos pesquisadores sobre
questões angustiantes na esfera pública. O ponto de partida de Dussel tem sido o
esforço pessoal na construção de uma “filosofia política crítica” que de certo modo
possa refletir a situação dos países pobres e periféricos do assim chamado
sistema-mundo (América Latina, Ásia e África).
1.2 A ANALÉTICA DUSSELIANA COMO MÉTODO
Não são poucos os estudos existentes sobre a história do Continente
latino-americano. No entanto, a maioria é especializada em determinados temas:
política, cultura, economia, relatos de vida de povos etc. bem como escritos com a
única preocupação de se contar a história, sem analisá-la em seus detalhes e
relacionando-a com outros fatos e conjunturas. São vários os historiadores, poetas
e pensadores que se propuseram a escrever sobre a trajetória de nosso
continente sem o medo de propor análises para os problemas enfrentados pelo
território: pobreza crônica da população, economia agrária, subdesenvolvimento,
tecnocentrismo, instabilidade social. Destaque-se: Leopoldo Zea, Enrique Dussel,
Salazar Bondy, Arturo Roig, Rodolfo Kursch e tantos outros que elaboraram
filosoficamente sobre temas pertinentes à práxis de libertação.
25
A “filosofia da libertação” da qual Enrique Dussel se constitui expoente,
e quem optamos adotar seu método analético para analisar a comunidade João
Surá, é o resultado de um acúmulo coletivo de reflexões sobre várias questões
sociais, econômicas e culturais a partir de diversos autores situados em diversas
regiões da América Latina:
Mesmo guardando idéias gerais, ainda que elucidativas, Enrique
Dussel, demonstra sensibilidade e iniciativa ao elevar para um palco de
discussões maior um assunto já abordado por Galeano e Fanon: América Latina.
Enrique Domingo Dussel Ambrosini nasceu na Argentina, a 24 de
dezembro de 1934, num pequeno povoado (La Paz) a 150 km de Mendonza.
Estudou filosofia na Universidade Nacional de Cuyo/Mendonza (1953-1957). Um
marco fundamental para se entender o pensamento dusseliano é sua estada em
Israel. Dussel viveu em Nazaré (1959-1961), na comunidade fundada pelo
sacerdote católico francês Paul Gauthier. Trabalhando como carpinteiro na
construção civil, estudou hebraico e árabe. Descobriu na carne a opressão do
pobre, o que provocou em Enrique Dussel uma mudança do horizonte
(ZiMMERMANN, 1987:28).
Dussel volta da Europa definitivamente em 1967. A experiência de dez
anos em solo europeu rendeu para Dussel uma consciência amadurecida do que
é ser latino-americano e, acima de tudo, descobriu-se latino-americano. É difícil
classificar todos os escritos de Enrique Dussel. Todavia, suas maiores produções
encontram-se na área de história, teologia e filosofia. Pensador crítico
principalmente da história, da filosofia e da teologia. Busca uma nova consciência
desde o efetivo ser latino-americano. Esta consciência é o fundamento primeiro de
sua ética da libertação (:29)
Mesmo fora do continente latino-americano, nunca deixou de
acompanhar os acontecimentos marcantes e decisivos da vida latino-americana,
como a Revolução Cubana. Participou de muitas Seminários, Debates e Semanas
de Estudos Latino-Americanos realizados na Europa, sendo que alguns destes
eventos o próprio Dussel ajudou a organizar, como, por exemplo, a Semana Latino
Americana em 1964 (ALVES, 2005:13).
26
Dussel compreende a história em dois lados: o universal e o particular.
A compreensão da história universal, segundo o pensador Argentino, tem a origem
nos povos primeiros às complexas sociedades modernas. Este horizonte histórico
o faz mover-se por toda a história da humanidade em seus principais períodos.
O outro lado de compreensão da história é o particular. História de
povos, tribos, cidades, estados, a trajetória ímpar de cada cultura. Esta
compreensão das histórias particulares articula-se na compreensão da história
universal e vice-versa. Tal forma possibilita localizar a América Latina – particular
– dentro de um horizonte histórico – universal. Assim, também cada um dos
países latino-americanos (particulares)
dentro
de
um horizonte
histórico
(universal).
Dussel descobre o totalitarismo subjacente na filosofia grega européia,
e os males que tal filosofia causa ao mundo. Dussel relê a América Latina com
outros olhos: os olhos do outro, do pobre, da alteridade, da exterioridade. A partir
da leitura de Lévinas, a categoria centro vai estar relacionada com a totalidade, e
a categoria periferia com a alteridade.
Quando
se
fala
na
América
Latina,
na
visão
centro(Sul)
/
periferia(Norte), freqüentemente se pensa em um todo, como um grupo humano
sem cultura aproveitável, nada se podendo aprender desse grupo, povo sem
ciência ou tecnologia, vasta área subdesenvolvida, uma massa involuida de
homens servis, povos atrasados, dependentes, analfabetos, submundo, subcultura, incapazes, selvagens.
Esta forma de compreensão heleno-eurocêntrica impossibilita conceber
um pensamento além destas margens, pois fundamenta-se sempre em si-mesma.
Dussel, desvela as culturas Asiático-afro-mediterrâneo cobertas por um véu de
unidade eurocêntrica.
É
desta
razão
soberba,
ego-centrica-européia,
total,
acabada,
prepotente que surge a modernidade. O ego moderno europeu como centro e fim
da História Universal, como observa Dussel no capítulo três de seu livro: Oito
Ensaios Sobre Cultura Latino-americana e Libertação (2002).
Este povo, o Norte, Europa (para Hegel sobretudo Alemanha e
Inglaterra), tem assim um “direito absoluto” por ser o “portador” do
27
Espírito neste “momento de seu Desenvolvimento”. Diante de cujo povo
todo outro povo “não tem direito”. É a melhor definição não só de
“eurocentrismo”, mas também da própria sacralização do poder imperial
do Norte e do Centro sobre o Sul, a Periferia, o antigo mundo colonial e
dependente (:22)
A tarefa de Dussel consistiu, na elaboração de categorias filosóficas
capazes de permitir aos homens e às mulheres latinoamericanas se autocompreenderem, através da análise dos núcleos centrais das culturas humanas: a
erótica, a pedagógica, a política, a econômica, as ciências e as religiões. O ponto
de partida do método da Filosofia da Libertação é o reconhecimento de um ethos
cultural latinoamericano (sistema de valores pensados e vividos; os valores
presentes nos estilos de vida práticos, nos hábitos e nos costumes), constituído
pôr heranças históricas de elementos das culturas indígenas e negras, das
culturas árabes-semitas, das culturas indoeuropéias e da cultura da cristandade
colonial européia. Trata-se, para Dussel, de filosofar sobre esse ethos, nele e a
partir dele; de ser capaz de, vivendo e conhecendo-o, re-conhecê-lo e nele
reconhecer a possibilidade de formulação de um discurso original3 e crítico (:38)
Ao partir do ethos dos povos latinoamericanos, o filósofo compreende
seus valores e se compromete com o resgate da vida dos oprimidos. A essa
filosofia importa compreender os valores, a religiosidade e a sabedoria dos
distintos povos que tecem nosso ser afrolatinoamericano. Apesar de os europeus
terem dominado esse continente pelas armas e pela imposição dos elementos de
sua cultura, trata-se de reconhecer que esse domínio não se realizou de modo
absoluto. Na América Latina, apesar do predomínio generalizado de elementos da
cultura européia, sobrevive, conservado e sempre reinventando o ethos das
maiorias oprimidas que marcaram a nossa cor e o nosso sangue (:39)
Ante a impossibilidade de expressar-se dentro do sistema categorial
herdado da Europa e dos Estados Unidos, a partir de uma categoria que permita
por em questão o “todo”, ao mesmo tempo, afirmar a peculiaridade, a alteridade, a
realidade distinta latino-americana. Tal categoria é a da “exterioridade”, que
3
Aqui a palavra origem tem o sentido não o novo, mas aquilo que lida com as origens. Ver:
GOMES, Roberto. Critica da razão tupiniquim, 10 ed. São Paulo: FTD, 1990.
28
sempre se joga ao nível da práxis, nível da ação humana ética, “Além” do
horizonte da totalidade do sistema estabelecido, seja ele qual for, existe sempre “o
outro” que pode interpelá-lo desde a exterioridade. De maneira que, contra
Parmênides, sempre nos propusemos a afirmar: o ser (o sistema) é; o não-ser
(além do sistema) não é. A realidade do outro (aqui a comunidade João Surá)
além do sistema de dominação, além do ser, da totalidade vigente, é um intento
buscar os pressupostos que nos auxiliarão na proposição de uma nova categoria,
por isso buscamos a filosofia da libertação, que nos auxiliará na compreensão do
ethos da comunidade. É um olhar que parte do macro para compreender o micro.
As categorias chaves, também aqui, são as da totalidade e a
exterioridade.
Totalidade, segundo Zimmermann (1987) na perspectiva eurocêntrica
se mostra como âmbito fechado, eterna repetição do mesmo, princípio originante e
justificador da dominação, da conquista, da afirmação do ser como absoluto e,
conseqüentemente, como princípio da negação da alteridade. Exterioridade, como
abertura possível ao outro, não absolutização do ser, princípio metafísico da
alteridade. (:61)
O mito da modernidade oficializou somente a Europa como sujeito
histórico nestes 500 anos, a Ásia, África e América Latina não participam da
história, não existem, são o não-ser.
Os países deste continente, segundo Alves (2005), não possuem
economia sólida e estável. Prevalece a liberdade daqueles que possuem o grande
capital. A economia desses países se constrói em torno dos países aos quais
devem sempre tomar dinheiro emprestado. Fundos e grupos financeiros
internacionais ditam como e a quem a economia latino-americana deve favorecer,
como atuar, onde aplicar seus recursos. (des)Organização econômica que gera
uma desconfiguração humana extrema e inaceitável. Os países latino-americanos
ainda não possuem maior estabilidade e independência política. Toda ação por
uma política de fortalecimento interno e regional é prejudicada pelos órgãos
competentes do capitalismo globalizante (FMI, Banco Mundial, Banco Central dos
EUA, Bolsas de Valores, Órgãos diplomáticos etc.). Nos países da América Latina,
29
ainda não há coalizão, coesão política interna, e muita menos externa, que
viabilizasse uma integração continental
A frágil organização político-econômica concorre para a manutenção
dos poderes em torno de interesses privados. As políticas de desenvolvimento
científico-tecnológico, agrário, industrial, urbano, educacional mantêm-se sob
controle das grandes nações inviabilizando seu desenvolvimento e mantendo, com
isso, as veias abertas da América Latina (:07)
Temos na América Latina um modelo de democracia em construção
que ainda não deu conta da questão dos pobres, que permite a destruição do
meio ambiente, dos ecossistemas e o esgotamento dos recursos naturais. Por
certo, uma democracia que beneficia alguns desfavorece a muitos. Milhares de
pobres cada vez feitos pobres e, pouquíssimos ricos, cada vez mais ricos.
Outro aspecto é a troca de tecnologias por matéria-prima privilegia
somente algumas grandes empresas, fragilizando as médias e pequenas para o
mercado internacional. O capital estrangeiro se fixa como fluxo explorador de
riquezas para os países ricos. O produto nacional é barateado e considerado
inapto para a competição internacional, prática culturalmente aceita à mais de 500
anos de colonialismo. Questões intrinsecamente ligadas à constituição do não ser
latino-americano. Ao contrário, ser latino-americano é tornar-se consciente de sua
realidade agredida. Enrique Dussel busca, por meio de seu método, evidenciar a
construção, por parte das grandes nações, de que o continente latino-americano
está fadado a não mais desencilhar-se do eterno retorno do atraso.
As faces que mostram o continente latino-americano não possuem
apenas cunho abstrato e universal, mas atingem concreta e diariamente milhões
de pessoas. Nossos problemas vêm desde o início da colonização, a qual constitui
por si só um problema ético de primeiro grau. América Latina, terra de índios
negros mulheres, idosos e crianças; camponeses, operários e escravos, sobre os
quais se constroem estradas e prédios que afrontam a justiça. Esta descrição não
pode ser apagada de nossa memória (:08)
30
Enrique Dussel rele a história latino-americana preferencialmente pela
senzala, indiscutivelmente daqueles que estão além do sistema. Esta leitura, ao
reverso da história oficial, assume a vitima dando-lhe nome, rosto e voz.
Dentre tantos outros pensadores que trabalharam com ética da
libertação, optamos por Enrique Dussel na elaboração de nossa pesquisa na
Comunidade João Surá. Dentre as obras de Dussel, a que auxiliará em nossa
construção metodológica é a Ética da libertação na idade da globalização e da
exclusão publicada no México em 1998 e traduzida no Brasil, pela editora Vozes,
em 2000, que constitui, em nossa opinião, o mais importante esforço de crítica ao
pensamento da tradição ocidental. É uma obra que propõe um discurso ético mais
abrangente, com a pretensão de fazer a crítica do sistema-mundo globalizado, a
partir do pressuposto de que essa totalidade denominada globalização ao mesmo
tempo em que constrói sua identidade – as revoluções do capital tecnológico e do
mercado financeiro no sentido do predomínio do capital fictício como viam Marx, produz também o seu outro, ou seja, a exclusão material4 da grande maioria da
humanidade, agora denominadas, vitimas do sistema-mundo.
A filosofia da libertação de Dussel possui como ponto de partida a ética
da libertação. O conteúdo material desta ética é a vítima (quilombolas5, faxinais,
caiçaras, posseiros, trabalhadores rurais, indígenas etc.).
O método da Filosofia da Libertação nos oferece instrumentos
reflexivos para a construção da crítica às cadeias que há séculos dominam os
latinoamericanos, travestidas de belas ciências, filosofias profundas e tecnologias
avançadas. Será a denuncia do caráter fetichista e fetichizante dessas sabedorias
elaboradas em outros contextos e a serviço dos projetos de violência colonial, e
opressora, perante as quais a maioria dos latino-americanos é considerada
ignorante. O ponto de partida do método da Filosofia da Libertação é o
4
Em alemão, Material (co “a”) significa “material”, como “contendo (Inhalt)” oposto a “formal”;
enquanto ImateriallI (com “e”) significa “material” de matéria física, oposto, p.ex., a “material” ou
“espiritual”. O “materialismo” de Marx, obviamente, é Material (com “a” ):, já que a sua problemática
é a de ser formal (Habermas) ou material (o segundo principio de Rawls). Nunca o usarei como
momento formal (neste casos usarei válido). Ver: DUSSEL. Enrique. Para uma ética da libertação
latino-americana. Trad. Luiz João Gaio. São Paulo: Loyola / Unimep, 1977. 5º vol. pp. 637-638.
5
Objeto de nossa Pesquisa em especial a Comunidade João Sura – de Adrianópolis/ PR.
31
reconhecimento de um ethos cultural latino-americano (sistema de valores
pensados e vividos; os valores presentes nos estilos de vida práticos, nos hábitos
e nos costumes), constituído pôr heranças históricas de elementos das culturas
indígenas e negras, das culturas árabes-semitas, das culturas indoeuropéias e da
cultura da cristandade colonial européia. Trata-se, para Dussel, de filosofar sobre
esse ethos, nele e a partir dele; de ser capaz de vivendo e conhecendo-o,
reconhecer a possibilidade de formulação de um discurso original e crítico. Ao
partir do ethos dos povos latinoamericanos, o pensador compreende seus valores
e se compromete com o resgate da vida dos oprimidos. A essa filosofia importa
compreender os valores, a religiosidade e a sabedoria dos distintos povos que
tecem nosso ser afro-latino-americano. (1991:29)
Apesar de os europeus terem dominado esse continente pelas armas e
pela imposição dos elementos de sua cultura, “com tiros de arcabuz, golpes de
espada e sopros de peste, avançavam os implacáveis e escassos conquistadores
(...).” (1991:30). Trata-se de reconhecer que esse domínio não se realizou de
modo absoluto. Na América Latina, apesar do predomínio generalizado de
elementos da cultura européia, sobrevive, conservado e sempre reinventado o
ethos das maiorias oprimidas que marcaram a nossa cor e o nosso sangue. Para
cumprir seu projeto, o Método da Filosofia da Libertação deve, então, realizar-se
em duas dimensões críticas importantes e complementares: a ético-antropológica
e a histórica.
Na dimensão ético-antropológica, a Filosofia da Libertação visa resgatar
o ser dos comportamentos assumidos pelos povos latinoamericanos em suas lutas
de resistência e libertação. Os movimentos latino-americanos têm conseguido
deter os piores efeitos das políticas econômicas e sociais aplicadas nos anos
noventa, que geraram crise, pobreza e a privatização e transnacionalização de
nossas sociedades. O fortalecimento que têm registrado nos últimos anos os
movimentos sociais latino-americanos e convergência solidária entre os povos
americanos e europeus dá vários exemplos: os movimentos camponeses e sua
luta pela soberania alimentar; os povos indígenas que defendem o território e os
recursos e os trabalhadores e sua ação por salários dignos e direitos sociais. Luta
32
das mulheres e suas mobilizações contra a impunidade e a luta de emigrantes
latino-americanos que vivem nos Estados Unidos, e exigem o reconhecimento de
seus direitos; combate a criminalização das lutas dos movimentos sociais no
mundo; luta das Centrais Sindicais; as lutas dos índios, quilombolas, movimento
negro urbano, faxinais, caiçaras, posseiros, trabalhadores rurais, indígenas e das
suas organizações de associações comunitárias, rádios comunitárias, movimentos
sociais dos operários e dos lavradores, das mulheres e o MST; “piqueteros” na
Argentina, na América Central os povos originários Quéchuas, aymaras,
mapuches, indígenas de Chiapas, Sonora e Yucatan, no México o Zapatistas,
movimento organizado dos Catadores/as de Materiais Recicláveis, e de todos os
grupos vítimas desse modelo capitalista que, de forma organizada, propõem um
outro modelo de sociedade.
Suas lutas têm nos ensinado importantes lições de fraternidade, de
prática da justiça, de exercício do poder, de cooperação, de educação comunitária
e de sabedoria compartilhada. Esse resgate passa, inicialmente, pela construção
de um discurso crítico dos projetos de conhecimento e de práticas políticoculturais etnocêntricos, que submetem um povo ao outro, um ser humano ao
outro, quando uns vivem às custas da morte dos outros. As teorias das ciências,
das morais, das políticas, das pedagógicas, das econômicas, das eróticas,
principalmente, que dão justificativa ´racional´ a esse projeto de dominação devem
ser desmistificadas teoricamente e combatidas politicamente. Por essa dimensão
que se deve afirmar a eticidade de nosso discurso, e fazer a crítica ética de toda
forma de conhecimento pretensamente ´neutro´. Para tanto, deve construir um
método ou adotar métodos que lhe permitam construir categorias superadoras das
categorias e dos métodos etnocêntricos europeus, principalmente aqueles que até
hoje justificam as relações de dominação amorais, imorais e antiéticas exercidas
sobre os povos da América Latina.
Na dimensão histórica, a Filosofia da Libertação visa resgatar o
profundo sentido das culturas afro-latinoamericanas que se gestaram ao longo de
muitos séculos. Não significa estudar o folclore, reivindicar direitos autorais sobre
eventos hoje culturalmente importantes, mas demonstrar como os negros nos
33
trouxeram uma civilização, valores, religiosidade e sabedorias próprias. Contar a
história do massacre desses povos, a história de suas lutas e resgatar o que
sobrou.
Sabendo
essa
história,
encontraremos
nossas
raízes,
nossa
ancestralidade cultural, que é parte de nossa identidade de hoje, e da daí
tiraremos os motivos da luta que devemos empreender para nos libertar dos novos
colonizadores que hoje nos oprimem com coca-cola, satélites, espionagem e
tecnologias de ponta como alavanca do desenvolvimento mas, que não passa de
controle consentido.
Segundo Enrique Dussel, o Método da Filosofia latinoamericana terá
sua originalidade ao se fundar sobre um projeto ético-antropológico interpretante
do ser do homem latinoamericano. Esse projeto só poderá ser realizado se
constituir sobre novas bases metodológicas e históricas. Será necessário ao
pensamento
latinoamericano
ultrapassar
os
modelos
metodológicos
norteamericanos e europeus que geram a alienação do homem latinoamericano.
Tais métodos são métodos ideológicos alienantes, etnocentricos. Também será
necessário superar a concepção historiográfica européia no sentido crítico, dessa
ruptura com a visão de mundo eurocêntrica.
Eis por que Dussel diz que a Europa, lugar geopolítico e cultural, desde
o século XVI, mantém uma relação de domínio político econômico e de
segregação sócio-cultural sobre a América Latina e a África, impossível de ser
mantida caso esses Continentes compreenda seu próprio ser, seu poder
geopolítico e suas riquezas espiritual e material – ocultas sob a ideologia
conservadora colonialistas.
1.3 ANÁLISE DA ANALÉTICA EM DUSSEL
A articulação das categorias trabalhadas por Dussel (1982), permitiu-lhe
a elaboração do método analético, que tem na negação o princípio da afirmação
ética por excelência. Tal afirmação situa-se na base do empenho do autor de
34
romper com a dialética, caminho que considera insuficiente para promover a Ética
da Libertação. Cabe agora expor os pressupostos, bases e desenvolvimento do
método dusseliano.
A releitura da tradição ocidental e a busca de nova abordagem de
temas filosóficos sem dúvida representam tanto o esforço como os resultados de
Enrique Dussel. No entanto, para além desses aspectos de seu percurso, o
filósofo empenhou-se na elaboração de um método que traduz como sua
contribuição por excelência. “A partir da ‘Alteridade’, surge um novo pensar, não já
dialético, mas analético e, aos poucos, penetramos no desconhecido para a
filosofia moderna (:08).
O ponto de partida do método analético é a análise da dialética na
tradição ocidental. De Aristóteles, passando por Descartes, Kant, Hegel e Marx,
Dussel propõe a analética como ponto de apoio metafísico que supera a dialética
ontológica. Assim, o método da Ética da Libertação dusseliana é analético, e, ao
romper a totalidade ontológica fechada, permite a irrupção da exterioridade, ou
seja, do outro como realidade primeira, anterioridade (de inspiração levinasiana).
A analética desvela e anuncia que a dialética não é suficiente para
responder ao apelo do outro e romper o horizonte fechado da totalidade. No
entanto, não se propõe a levar ao esquecimento a dialética, pelo contrário, busca
assumi-la e completá-la, conferindo-lhe valor. Afinal, a analética, em função de
sua categoria fundamental de exterioridade, não consiste apenas em uma
concepção teórica. Constitui-se como opção ética e práxis histórica concreta, uma
vez que: “A característica do método analético é ser intrinsecamente ético e não
meramente teórico, como o discurso ôntico das ciências ou ontológico da
dialética”(1995:202).
Contra a lógica que não aceita a exterioridade, Dussel propõe a
analética, isto é, tenta organizar um discurso a partir da liberdade do outro; nesta
lógica o outro apresenta-se como alteridade quando irrompe como o estranho, o
diferente, o distinto, o pobre, o oprimido, aquele que está á beira do caminho, fora
do sistema e mostra seu rosto sofredor e grita por justiça. A analética tem origem
35
não na ordem estabelecida da totalidade, mas no outro. É por isso que no aspecto
metodológico, Dussel, partindo de Marx e da tradição semita propõe uma nova
formula metodológica: o Método Ana-dialético.6 Trata-se de uma metodologia
distinta e superadora dos procedimentos e categorias etnocêntricas da
modernidade européia. Ao princípio da identidade (lógico e ontológico) que
milenarmente funda o pensamento europeu. O pressuposto desse método é o
caráter eminentemente ético, para além da dimensão lógica, em outras palavras,
de que antes de ser lógico deva ser justo. A justiça guarda uma relação
fundamental frente ao discurso do outro. Realiza-se numa comunidade de
falantes; é uma ação dialogal. Segundo Dussel (1986), o pensador deve, então,
reconhecer seu ponto de partida e seu fim, não como reflexão solipsista (do latim
"solum, «só, deserto» +ipse, «mesmo» +ismo" é a posição filosófica caracterizada
pela tese de que apenas minha própria experiência é real.), numa pretensa busca
solitária da verdade, mas no ato dialogal comunitário, interpretante da palavra do
outro, a partir do seu acolhimento.
Trata-se agora de um método (ou do domínio explícito das condições de
possibilidade) que parte do outro enquanto livre, como um além do
sistema da totalidade); que parte, então, de sua palavra, da revelação do
outro e que com-fiado em sua palavra, atua, trabalha, serve, cria. O
método analético é a passagem ao justo crescimento da totalidade
desde o outro e para serví-lo criativamente. A verdadeira dia-lética tem
um ponto de apoio Ana-lético (é um movimento Ana-lético). (:196-197)
A história na pele latino-americana convence Enrique Dussel que não
basta uma arqueologia do saber, sendo imprescindível uma epistemologia na qual
o conhecimento contribua decisivamente para a transformação da realidade, e
esta influa diretamente sobre o conhecimento. Esta epistemologia nos conduz à
Filosofia da Libertação, cujo princípio é a ética da libertação. Indaga Dussel
(1997):
A conversão ao pensamento Ana-lético ou meta-físico é exposição a um
penar popular, o dos outros, o dos oprimidos, o do Outro fora do
6
Consultamos o Dicionário de Filosofia, de José Ferrater Mora, a obra homônima de Nicola
Abbagnano e vários dicionários de língua portuguesa, não encontrando referências à analético,
analética, método analético ou termos afins. Entendemos que a não utilização de uma terminologia
clássica seja bastante justa a uma filosofia não clássica, bem como o é a criação de seus próprios
métodos.
36
sistema; é ainda um poder aprender o novo. O filósofo Ana-lético ou
ético deve descer de sua oligarquia cultural acadêmica universitária para
saber-ouvir a voz que vem do além, desde o alto (aná) desde a
exterioridade da dominação (:203).
Dussel (1986) é um dos sistematizadores daquilo que poderíamos
chamar de filosofia latino-americana. O conhecimento da história, da teologia, da
filosofia e de outras ciências possibilitou a Dussel a árdua tarefa de germinar na
América Latina uma filosofia que iluminasse a realidade deste povo. Dussel foi
capaz de desvelar problemas éticos encobertos há mais de 500 anos:
Por sua vez, a filosofia latino-americana agora pode nascer. Só poderá
nascer se o estatuto do homem latino-americano for descoberto como
exterioridade metafísica em relação ao homem do Atlântico Norte
(europeu, russo e americano). A América não é da forma européia como
consciência. Tampouco é da América Latina seja ouvida. A América
Latina é o filho da mãe ameríndia dominada e do pai hispânico
dominador. O filho, o outro, oprimido pela pedagogia dominadora da
totalidade européia, incluído nela como bárbaro, o bon sauvage, o
primitivo ou subdesenvolvido. O filho não respeitado como outro, mas
negado enquanto ente conhecido (cogitatum dos “Institutos para a
América Latiana”). O que a América Latina é vive-o o povo simples
dominado em sua exterioridade do sistema imperante (:210-211.)
O discurso filosófico dusseliano constitui-se de um processo de critica e
desconstrução da filosofia totalitária dos centros de poder sem provocar
antagonismo entre as duas correntes filosóficas, sabendo que uma não vive sem a
outra:
A filosofia latino-americana, que tende a interpretação da voz latinoamericana, é um momento novo e analógico na história da filosofia
humana. Não é nem um novo momento particular do Todo unívoco da
filosofia abstrata universal; também não é um momento equívoco ou
auto-explicativo de si mesma. Desde sua dis-tinção única, cada filósofo
e a filosofia latino-americana, retomam o “semelhante” da filosofia que a
história da filosofia lhe entrega; mas ao entrar no círculo hermenêutico
desde o nada distinto de sua liberdade, o nível de semelhança é
analógico.7
O pensamento filosófico dusseliano da libertação percorre todos os
períodos da história da filosofia, dialogando com os principais filósofos de cada
7
DUSSEL. Enrique. Para uma Ética da libertação latino-americana. Vol II p. 215.
37
tempo. Em sua obra Método para uma filosofia da libertação, Dussel toma a
dialética como eixo central da constituição ocidental:
A dialética, como veremos, é um método (do grego metáhódos) ou um
caminho, um movimento radical e introdutório àquilo que as coisas são.
O método dialético é o próprio início. A questão tem sido posta por todos
os grandes filósofos. Contudo, serão tantas as dialéticas quantos sejam
os sentidos radicais do ser. Distintas são as dialéticas porque distintas
são as épocas em que foram formuladas na história do pensar. De todos
os modos, porém, todas as dialéticas partem de um factum (de um fato),
de um limite ex aquo, ou ponto de partida. A partir desse factum, a
dialética se lançará numa ou outra direção. De acordo com o sentido do
ser (o sentido determina a direção) e por isso bem diferente será o ponto
de chegada, o para-onde (ad quem) do movimento dialético. Em todos
os casos – e importa indicá-lo expressamente -, o ponto de partida é o
mesmo: para uns se denomina “consciência natural” (por exemplo,
Hegel ou Hussel: natürliche Bewusstsein) ou “atitude natural” (a
fenomenologia). Para outros, “opinião transmitida” (ta éndoxa, em
Aristóteles) ou o meramente “opinável” (dóxa platônica); por último,
“compreensão existencial” (o nível ôntico ou existenziell de um
Heidegger), para citar alguns exemplos. (1986:17)
A analética rompe a relação solipsista entre – fundamento, fundamento
– ente:
Trata-se agora de um método (ou do domínio explícito das condições de
possibilidades) que parte do outro enquanto livre, como um além do
sistema da totalidade; que parte, então, de sua palavra, da revelação do
outro e que com-fiado em sua palavra, atua, trabalha, serve, cria. O
método dia-alético é a expansão dominadora da totalidade desde si; a
passagem da potência para o ato de “o mesmo”. O método ana-lético é
a passagem ao justo crescimento da totalidade desde o outro e para
“servi-lo” criativamente. A passagem da totalidade a um novo momento
de si mesma é sempre dia-lética; tinha, porém, razão Feuerbach ao
dizer que “a verdadeira dialética” (há, pois uma falsa) parte do diálogo
do outro e não do “pensar solitário consigo mesmo”. A verdadeira dialética tem um ponto de apoio ana-lético (é um movimento ana-dia-lético);
enquanto a falsa, a dominadora e imoral dialética é simplesmente um
movimento conquistador: dia-lético.8
Dussel acrescenta ao conceito de alteridade levinasiano:
Esta ana-lética não leva em conta somente o rosto sensível do outro (a
noção hebraica de basar, “carne”, indica adequadamente o ser unitário
inteligível-sensível do homem, sem dualismo de corpo-alma)[...] Cada
rosto no face-a-face é igualmente a epifania de uma família, de uma
classe, de um povo, de uma época da humanidade e da própria
humanidade com um todo, e ainda mais, do outro absoluto. O rosto do
8
DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofia da libertação: superação analética da dialética
hegeliana. Trad. Jandir João Zanotelli. São Paulo: Loyola. p. 196.
38
outro é um aná-logos; ele é a “palavra” primeira e suprema, é o dizer em
pessoa, é o gesto significante essencial, é o conteúdo de toda
significação possível em ato. 9
A tarefa da originalidade do pensamento de Dussel (1986) é:
O rosto do pobre índio dominado, do mestiço oprimido, do povo latinoamericano é o “tema” da filosofia latino-americana. Este pensar analético, que parte da revelação do outro e pensa sua palavra, é a filosofia
latino-americana, única e nova, a primeira realmente pós-moderna e
superadora da europeidade. Nem Schellin, nem Feuerbach, nem Marx,
nem Kierkegaard, nem Levinas puderam transcender a Europa. Nós
nascemos fora, e a temos sofrido.10 (:197)
Em sua obra Filosofia da libertação na América Latina, Dussel já
começa a amadurecer sua ética da libertação, desenvolvendo um pensamento
cuja objetividade e centralidade é a América Latina. Faz filosofia a partir da
América Latina, desenvolvendo conceitos desde a realidade concreta.
O método dialético nos conduz à compreensão de um determinado
mundo, que possui sentido e valor para quem dele participa. Porém num
determinado horizonte ontológico ou dialético eu só nomeio o já conhecido “o ser”.
O estranho o “não ser” “não é”. Para Dussel, esta é uma falsa dialética, carente de
uma analética. É o momento da superação da dialética, é radicalmente ético e
material.
A dialética grego-europeu totalizado em si-mesmo, traz para o bojo os
latinos-afro-brasileiros, como o si-mesmo grego-europeu. Esta dialética ou
ontologia não é ética, pois sacrificou o outro (alteridade) que estava mais além
(ana), encobrindo. Porém, o método ana-lético superou a dialética grega-européia
a partir da Ameríndia.
Segundo Zimmermann (1987), o pensamento dusseliano se distingue
por três fazes ontológicas: A fase ontológica, do início (1961) até 1969; A fase
metafísica, de 1968 até 1976; A fase mais concreta, de 1976 até hoje. Nelas
Dussel tenta destruir criticamente todo o pensamento ontológico da filosofia
ocidental desde os gregos até Heidegger. A “fase metafísica” compreende aquela
9
DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofia da libertação: superação analética da dialética
hegeliana. Trad. Jandir João Zanotelli. São Paulo: Loyola. 1986 p. 197.
10
DUSSEL. Op., cit., p. 197.
39
em que Dussel, partindo da categoria de Exterioridade, inspirado por Ricoeur e
Lévinas, descobre a metafísica como a relação veri-ficante do pensar o mundo
(que) se funda, em última análise, no ôntico: a relação de homem a homem,
homem que enfrenta outro homem como um rosto que transcende toda a
contemplação mundana veritativa, como uma liberdade a parir da qual surge,
desde o mistério, uma palavra que revela o imprevisível.
Claudenir Alves (2005), propõe uma quarta fase coincidindo com o
pensamento crítico marcado pela realidade da globalização da exclusão. O nível
de profundidade e de critica é maior, concernente ao terceiro mundo. A razão, tal
como a modernidade a forjou, é insuficiente, pois devemos mergulhar, assinala
Alves, nas situações extremamente desconfiguradas da humanidade nas quais
surge a vítima.
Segundo Alves , o processo de produção de vítima é mais radical.
Assume escalas globais, principalmente a partir da década de 1990. Acentua-se o
abismo entre países ricos e pobres. Assim descreve Alves:
A fome e a miséria tomam maior volume em todo o globo, assim como o
desemprego e a destruição do meio ambiente; configura-se um mercado
internacional, inaugura-se a cultura da comunicação. A quarta fase do
pensamento dusseliano inicia-se após o ciclo dos escritos centrados em
torno dos cincos volumes de Para uma ética da libertação latinoamericana. Nestes, o método analético rompe com a ontologia do
centro. 11
A reflexão filosófica da libertação, iniciada por Dussel, parte das vitimas.
Para reconhecer as vítimas é preciso destotalizar-se do pensamento centro gregoeuropeu e norte-americano. O método ana-lético permite ao pensador colocar em
seu horizonte de sentido um mais além do si mesmo (centro), desvelando o outro
(ameríndio e negro).
Se para os gregos toda a ontologia da totalidade, a guerra, é origem de
tudo, para Dussel e para o pensamento da filosofia da libertação,12 a origem da
guerra é a injustiça é a negação do ser do outro. Dussel em seu método denuncia
a ontologia clássica que abarca tudo na totalidade para que o uno aconteça
11
ALVES, Claudenir Módolo. Dissertação para obtenção de título de Mestre Pela PUC – São
Paulo. Ética da libertação a vítima na perspectiva Dusseliana. 2005.
12
Perspectiva semelhante é adotada por Frantz Fanon 2005.
40
porque o que é diferente, isto é, não idêntico à totalidade, deve ser eliminado,
arrastado para o mesmo, refutado e submetido.
Na trajetória de elaboração do seu livro Ética da libertação na idade da
globalização e da exclusão Dussel não vê mais o pobre e sim a vítima. Dussel
nessa obra, chama de “sujeito negado” a vítima, dominada pelo sistema ou
excluída, a subjetividade humana concreta, empírica, viva, se revela, aparece com
“interpelação” em última instância: é o sujeito que já não-pode-viver e grita de dor.
Assim descreve.
Segundo Dussel esta categoria “vitima” pode ser utilizado nos mais
diversos continentes e situações, pois a vítima é aquela que de uma forma ou de
outra está excluída do “sistema-mundo” (quarta fase do seu esquema). Para ele a
vitima poderá estar localizada nos subúrbios de Paris, nos bairros periféricos de
Nova York ou em paupérrimas regiões da África.
É a vulnerabilidade da corporalidade sofredora – que O pensamento
dusseliano avança no sentido de uma síntese de toda a sua anterior atividade
teórica e prática. Dussel (2002) já não apenas considera a América Latina, mas
olha para a “vitima” em todo o planta Terra, também este vitimado pelo
desequilíbrio ecológico. É aí que sinaliza a substituição da categoria “pobre” pela
categoria “vitima”.
Quando a vítima emite um “juízo de fato crítico” (em última instância, um
enunciado descritivo sobre a vida ou a morte da vítima) diante do
sistema, irrompe inevitavelmente como dissenso um discurso uma
enunciação, uma interpelação como “ato de fala” que se opõe á
consensualidade da validade intersubjetiva da comunidade dominante.
Em geral, esse dissenso não é ouvido; é negado, excluído. (:470).
Dussel percebe os limites que a categoria “outro-pobre” se impõe:
Um “absolutamente Outro” seria, nesta Ética, algo como uma tribo
amazônica que não tivesse tido nenhum contato com a civilização atual,
hoje praticamente inexistente. A liberdade do Outro – seguindo, nesse
aspecto, a Merleau-Ponty – não pode ser uma incondicionalidade
“absoluta”, mas sempre uma quase-incondicionalidade de referida ou
“relativa” a um contexto, a um mundo, á facticidade. Nesta Ética o Outro
não será denominado metafórica e economicamente sob o nome de
“pobre”. Agora, inspirando-nos em W. Benjamin, o denominarei “a
vítima” – noção mais ampla e exata. (:16-17)
41
Dussel chama a atenção que o marco ou contexto último desta ética é o
processo de globalização; infelizmente, porém, e simultaneamente, esse processo
é exclusão das grande maiorias da humanidade: as vítimas do sistema-mundo.
Globalização-exclusão quer indicar o duplo movimento no qual se encontra presa
a Periferia mundial: por um lado, segue Dussel, a pretensa modernização dentro
da globalização formal do capital (principalmente em seu nível financeiro – capital
fictício, nos diz Marx); mas por outro lado, a exclusão material e o discurso formal
crescente das vítimas desse pretenso processo civilizador (:17).
Com as inovações provocadas pela globalização, com raízes calcadas
no sistema capitalista: o mercado financeiro comanda e absorve em si tudo o que
é produzido material e culturalmente, estabelecendo sentido e valor; pesquisas
científicas para finalidades tecnológicas indicadas pelo mercado; modos de
produção adquirem feições globais; os meios de comunicação com dimensões
planetárias atropelam as histórias locais provocando massificação. Essa
gigantesca transformação global do novo rearranjo do sistema capitalista, que
ainda não desvelou-se, não intenciona incluir a todos, pois sabemos de sua
natureza excludente. Possui uma ética da morte; é o que analisa Dussel (2002):
Esta é a globalização de um sistema formal performativo (o valor que se
valoriza, o dinheiro que produz dinheiro: D-D, fetichismo do capital) que
se ergue com critério de verdade, validade e factibilidade, e destrói a
vida humana, pisoteia a dignidade de milhões de seres humanos, não
reconhece a igualdade e muito menos se afirma como re-sponsabilidade
da alteridade dos excluídos, e aceita só a hipócrita exigência jurídica a
respeito de cumprir o dever de pagar uma dívida internacional (fictícia)
das nações periféricas pobres, ainda que pereça o povo devedor: fiat
justitia, pereat mundus.É um assassinato em massa; é o começo de um
suicídio coletivo (:573.)
Todos esses problemas mencionados até aqui têm nos constituído
como não-ser latino-americano, vitimas prostradas, inertes. A luz do método
dusseliano buscaremos evidenciar que a tese da não reação, que não ecoa gritos
ensurdecedores; que não reivindica seus direitos arrancados, que no entanto, sua
face é oculta por não serem bem nascidos são jogados a invisibilidade e
convertidos em um instrumento impessoal (o escravo “sem alma” de Aristóteles,
42
ou o operário/agricultor sem direitos que vendem seu trabalho ao capital
impessoal das Sociedades Anônimas internacionais salvacionistas) não passe de
instrumento de dominação por parte das nações desenvolvidas.
São considerados eles nas políticas públicas, no assistencialismo, para
pagar a conta, nos projetos de inclusão, nos pleitos e não fazem parte do nós nos
direitos, na distribuição dos lucros das Bolsas de valores, na participação dos
lucros das empresas, na construção da nação etc. Buscaremos com o método da
filosofia de Dussel, romper com a idéia do imobilismo e da vitimização. Há uma
reação constante ao modelo capitalista a que são submetidos, por meio da
organização dos movimentos sociais a que pertencem. Através da resistência
insurgiram-se conquistando, do sistema capitalista, a abolição da escravatura, que
hoje, século XXI, continuam pela efetivação da verdadeira abolição. Liberdade e
Terra. Porém, na América Latina e no Brasil estamos repletos de exemplos de
resistência ao modelo capitalista, hoje, mundializado através do sistema-mundo.
É nesse contesto que pesquisamos a comunidade João Sura, dentre as
86 comunidades quilombolas do Estado do Paraná,13 como um caso concreto de
200 anos resistindo à opressão dos governos que vêm se alternando no poder, e
estendendo sobre as comunidades negras, hoje comunidades quilombolas, ontem
quilombos, uma cortina que os ocultou da historiografia e cartografia paranaense.
13
Esse número é resultado das pesquisas do (GTCM) Grupo de Trabalho Clóvis Moura. Foi criado
em homenagem ao sociólogo negro – um dos mais importantes intelectuais do país – e com o
objetivo de fazer a ponte entre o Governo do Estado e as comunidades quilombolas.
2. COMUNIDADES REMANESCENTES
TENTATIVA DE INSTITUÍ-LAS.
DE
QUILOMBOS:
UMA
O Movimento Negro tem agora a tarefa de transferir a luta
reivindicatória dos negros nas ruas para dentro do governo.
E toda a estratégia e toda a cultura institucional do estado
brasileiro é eurocêntrica. Participar do estado significa (pelo
menos no momento atual) exercer essa perspectiva
eurocêntrica e, evidentemente, branca. Assim, esta é a
primeira prova da capacidade das lideranças negras de
resistirem à assimilação ao eurocentrismo, ou paralelamente,
ao branqueamento mental-institucional. Até no campo da
gestão e da administração, todo o modelo de relações
interpessoais e de avaliação de desempenho está montado a
partir de padrões práticos de sociologia e psicologia
ocidentais, marcadamente norte-americanos. A pressão
passa a ser maior para o negro, portanto, porque, para
desempenhar-se “bem” na esfera de governo, ele deve
renunciar a certos aspectos e estilos de conduta e de
comunicação aprendidos na sua interação, senão exclusiva,
pelo menos concentrada, com membros da comunidade
negra.1(CARVALHO, 2004:06)
A ausência de estudos sobre a cultura afro-brasileira em formação já
era observado por Silvio Romero (1888, que demonstra o lugar ocupado pela
alteridade negra no pensamento social brasileiro, simultaneamente mão-de-obra e
objeto de estudo, nunca sujeitos , alertava:
É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos
consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e das religiões
africanas. Quando vemos homens, como Bleek, refugiarem-se dezenas
e dezenas de anos nos centros da África somente para estudar uma
língua e coligir uns mitos, nós que temos o material em casa, que temos
a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a
Europa em nossos salões, nada havemos produzido neste sentido! É
uma desgraça. Bem como os portugueses estanciaram dois séculos na
Índia e nada ali descobriram de extraordinário para a ciência, deixando
aos ingleses a glória da revelação do sânscrito e dos livros bramínicos,
tal nós vamos levianamente deixando morrer os nossos negros da Costa
como inúteis, e iremos deixar a outros o estudo de tantos dialetos
africanos, que se falam em nossas senzalas! O negro não é só uma
1
CARVALHO, José Jorge. Bases para uma aliança negro-branco-indígenacontra a discriminação
étnica e racial no Brasil. Série Antropologia 355, Brasília: Universidade de Brasília / Departamento
de Antropologia. 2004 p. 06
44
máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um
objeto de ciência. Apressem-se os especialistas, visto que os pobres
moçambiques, benguelas, monjolos, congoscabindas, caçangas... vão
morrendo. O melhor ensejo, pode-se dizer, está passado com a benéfica
extinção do tráfico. Apressem-se, porém, senão terão de perdê-lo de
todo. (ROMEIRO, 1888:10-11)
O alerta de Sílvio Romero referente à negligência e à prática
discriminatória que se adotavam com o africano e seus descendentes demonstra
que os cientistas não tratavam essas populações com a preocupação teórica
devida, na medida em que não os viam como parte da história oficial da nação.
Romero com sua visão escravista, não os vê como sujeitos: “temos o material em
casa” e “o negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e
malgrado sua ignorância, um objeto de ciência” estabelece o lugar do negro na
sociedade oitocentista “temos a África em nossa cozinha” revela um modelo de
sociedade, “e a Europa em nossos salões”.
Para que essa população continuasse alijada da história oficial, Rui
Barbosa, em dezembro de 1890, após a Proclamação da República, já abolida a
escravidão, na época Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e
presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, em nome do Ministério da Fazenda,
autorizou a queima de todos os papéis,2 livros de matrícula e documentos relativos
à escravidão nas repartições do Ministério, com o objetivo de eliminar os
comprovantes de natureza fiscal que pudessem ser utilizados pelos ex-senhores
para pleitear a indenização junto ao governo da jovem República, já que a Lei de
Maio de 1888 havia declarado extinta a escravidão, sem reconhecer o direito de
propriedade servil. O ato de Rui Barbosa como expressão concreta do
apagamento simbólico a que a analética faz referência.
Esta foi uma medida que gerou satisfação aos setores progressistas e
foi recebida com entusiasmo patriótico pela imprensa brasileira. Não se têm
notícias sobre quantos documentos foram queimados exatamente. É importante
destacar que este ato gerou, no decorrer da história, discussões. Em torno da
ação de Rui Barbosa em mandar queimar os documentos, questionou-se se essa
2
Ver: Fundação Casa de Rui Barbosa seite www.casaruibarbosa.gov.br.
45
ação foi justa ou não. Lacombe e Eduardo Silva (1988) ao escrever em o livro “Rui
Barbosa e a queima dos arquivos” questionam a acusação reiterada a Rui
Barbosa. .(LACOMBE et al.,1988). O fato é que muitos documentos de valor
histórico foram eliminados, acabando com fontes sobre a imigração de africanos
no Brasil.
O continente africano, além de ser o berço da humanidade, é também o
das civilizações (FONSECA, 2004, p. 60), muito embora essa afirmação possa ser
contestada pela definição de civilização e pela situação geográfica dada pela New
Columbia Encyclopedia, isso porque, a história eurocêntrica é essencialmente
uma história relacionada a uma região ( Europa) e um tempo específicosúltimos :
[...] é aquele complexo de elementos culturais que primeiro apareceram
na história humana, entre 8 mil e 6 mil anos passados. Nessa época,
baseada na agricultura, criação de gado e metalurgia, começou a
aparecer a especialização ocupacional extensiva nos vales dos rios do
sudoeste da Ásia (Tigre e Eufrates). Apareceu lá também à escrita, bem
como agregações urbanas bastante densas que acomodavam
administradores, comerciantes e outros especialistas. (NASCIMENTO,
1975: 565)
Ao longo da história, as contribuições das diversas nações africanas
para o desenvolvimento cultural, econômico, político, científico e tecnológico da
humanidade são vastas e complexas, muito embora o reconhecimento desse fato
seja prejudicado pela perspectiva preconceituosa que o Ocidente europeu-norteamericano e sua área de influência cultural e científica nutrem em relação a esse
continente. Essa cultura do norte da África tem sido extremamente importante
para toda a humanidade até os dias de hoje, particularmente pelos conhecimentos
que ainda revela.
Exemplo como o conhecimento dos dogons,3 no Mali,4 em relação à
astronomia é antigo. Há dados que informam que eles conheciam, desde há cinco
3
Um grande mistério cerca a vida dos dogons, povo de ascendência egípcia, ao que se acredita.
Depois de saírem da Líbia, há milênios, fixaram-se na falésia de Bandiagara, no Mali ( áfrica
Ocidental), levando consigo informações sobre o cosmo que remontam ao Egito pré-dinástico,
anterior a 3200 a. C.
4
A República do Mali está localizada no noroeste da África, sua capital é Bamaco. O norte de Mali
fica no deserto do Saara. No centro e sul do País se concentra a maior parte da população. Ver o
site: www. Mulheresnegras.org/africa.html.
46
ou sete séculos antes da Era Cristã, o sistema solar, a Via Láctea com sua
estrutura espiral, as luas de Júpiter e os anéis de Saturno. Já compreendiam que
o universo é habitado por milhões de estrelas e que a Lua era deserta e inabitada,
sendo refletida pelo sol à noite (SOUZA e MOTTA, 2003; NASCIMENTO, 1996).
Somente na década de 1970 o Brasil entra em contato com os estudos
a respeito da África. Isso se dá, novamente, por intermédio da literatura, com a
coleção de autores africanos publicada pela editora Ática, em 1979, que lançava
no Brasil Vida verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira, e Os
flagelados do vento leste, de Manuel Lopes. Essa coleção foi extremamente
importante por trazer elementos da África, contexto do fim da ditadura militar e em
um período em que o movimento negro estava ressurgindo enquanto força política
na sociedade nacional, e ainda porque retratava países, nações e etnias africanas
com sua prosa, seus contos e suas poesias, também inspiradas em nossa
literatura. (SOUZA, 2008:65.)
Em 1982, a editora Ática, com a participação política e financeira da
Unesco, editou a célebre coletânea História Geral da África. Ki-Zerbo (1982),
coordenador do primeiro volume da coletânea, interpreta esse momento histórico:
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie ocultaram
ao mundo a verdadeira história da África. As sociedades africanas eram
vistas como sociedades que não podiam ter história. De fato, havia uma
recusa a considerar o povo africano como criador de culturas originais
que floresceram e se perpetuaram através dos séculos por caminhos
próprios, e que os historiadores são incapazes de apreender a menos
que abandonem certos preconceitos e renovem seus métodos de
abordagem. (:1)
No início do século XX, salvo algumas exceções, os estudos científicos
que tinham o africano como centro da pesquisa eram realizados por brancos com
mentalidade escravista e colonialista, que não levavam em conta nas suas
pesquisas, o continente africano como o berço da humanidade conforme apontado
por Silvio Romero. Encontramos o olhar discriminador de Nina Rodrigues (1975),
que via o africano quase como uma criança, um ser de consciência pré-lógica,
enfim, inferio .Aderiu às teorias social-darwinistas, deterministas raciais e
47
eugenistas européias. Dedicou-se com afinco á investigação do passado e das
culturas das comunidades africanas e afro-brasileiras. Rodrigues deixou evidente
sua visão do quilombo como um projeto restauracionista, no sentido de que os
fugitivos almejavam restaurar a África no Brasil.
De outro lado, Gilberto Freyre, (1933) defendia que na construção de
uma sociedade harmônica, o negro deve permanecer “no seu lugar”, como vimos
em Romero que“ temos a África em nossas cozinhas “, com isso a “Democracia
racial” é possível. Incansável defensor da superioridade racial e cultural do
colonizador, Freyre definiu o passado escravista brasileiro como um quase paraíso
tropical
de
relações
harmoniosas
entre
escravizadores
e
trabalhadores
escravizados (FIABANI, 2005:60).
A história dos africanos e da África, na perspectiva erocentrica que
caracterizou a construção da história nacional, era revestida de grandes silêncios,
lacunas imensas, estando sendo recomposta aos poucos pelos estudos
sociológicos e antropológicos. Porém, a maioria era embasada no legado de Nina
Rodrigues e Gilberto Freyre.
É o que passaremos, a partir daqui, considerar abordagens sobre
quilombo no Brasil.
Edson Carneiro (1944), com o livro o Quilombo dos Palmares, editado
em 1946 no México, já que muitos editores brasileiros não ousaram fazê-lo, tem a
preocupação de contar a história dos africanos e afro-brasileiros,uma vez que o
autor era inimigo declarado do Estado Novo e buscava publicar um livro que
tratava das lutas e da resistência negra no Brasil. Carneiro atribuiu a fuga dos
africanos ao relaxamento da vigilância dos senhores e a atrelou à decadência
econômica. Por sua vez, segundo o autor, no auge da produção de açúcar, café,
ouro, teriam diminuído as fugas e o quilombos. Quanto à ocupação do território,
declarou que o quilombo constituiu, uma lição de aproveitamento da terra, tanto
pela pequena propriedade quanto pela policultura, ambas desconhecidas na
época (FIABANI, 2005:72). Em nosso País, esse livro foi publicado em 1947 por
48
Caio Prado Júnior, dono da Editora Brasiliense. Esse livro abordava a realidade
colonial brasileira, não tratava das questões próprias da África.
Já no regime militar diante do quadro de inexistência das liberdades
civis no país, os intelectuais brasileiros tiveram que procurar caminhos diferentes
para suas produções. As escolhas para lidar com os militares tiveram múltiplas
formas. Nesse período de ditadura, Palmares tornou-se um importante símbolo
social no Brasil. Os autores que analisaram o Quilombo dos Palmares, a partir
deste período, enfatizaram as particularidade próprias, discutindo o caráter
violento da escravidão, e a não-passividade do negro frente à autoridade.
Nesse contexto insere-se o francês Benjamim Péret,5 surrealista
nascido em 1889, um dos primeiros a aderir ao Partido Comunista francês, em
1926. Vindo ao Brasil em 1929, Péret se interessa pelos temas brasileiros, em
particular no que se refere aos cultos afro-brasileiros. Seguia as pegadas do
pensador alemão Walter Benjamin e sua história dos vencidos. Por conta disso,
Palmares foi visto como episódio da luta dos homens por sua liberdade. Péret
colocou a liberdade como o combustível para as fugas dos cativos. Corrigiu a
definição de Carneiro que estabeleceu a fuga como ato negativo. Contrariou a
historiografia que defendeu os feitos dos colonizadores. Para o autor, os
quilombolas parlmarinos eram sujeitos da emancipação.
No que se refere à forma como era explorada a terra, escreveu que “os
primeiros negros instalados nos Palmares devem ter lavrado a terra em comum”.
(FIABANI, 2005:82). Segundo Péret, citado por Fiabani, os recursos do quilombo
inteiros não eram provavelmente todos postos em comum, isso não impedia que
existisse uma grande solidariedade. Para ele, Péret, no mocambo a propriedade
não era individual. E sua produção era coletiva.
Para a época, Péret representava um salto de qualidade entre as
pesquisas feiras até a década de 1950. No tocante à escravidão e ao quilombo
chama a atenção Fiabani, foi o primeiro a identificar claramente a luta dos
5
PÉRET, Benfamin. O quilombo dos Palmares? Edição e introdução: MAESTRI & PONGE,
Roberto. Porto Alegre: EdUFRGS, 2002.
49
quilombolas como uma luta de classes. Colocou a liberdade como o combustível
para as fugas dos cativos.
O historiador Clóvis Moura (1959) nesse período, baseando-se em
documentos contemporâneos ao quilombo pernambucano e nas obras de Edison
Carneiro e Arthur Ramos, pretendia restaurar a verdade histórica e social
desfigurada por inúmeros estudiosos. Para ele, a historiografia anterior teria se
enganado ao não valorizar a luta negra contra a opressão branca, criando um mito
de harmonia social, baseado no mando branco e na obediência do negro.
Enquanto a maioria dos estudiosos da escravidão pertencente à
geração do autor direcionava seus estudos para desvendar o lado etnográfico e
folclórico do problema do negro, Moura dirigiu seus pesquisas para o campo
histórico, a fim de explicar uma série de fatos relacionados com a atual situação
do negro no Brasil. Ele negou a visão culturalista e viu o negro no passado como
trabalhador escravizado e explorado.
Importante chamara a atenção que Moura vai construir o quilombo dos
Palmares como “modelo palmarino” no Brasil e definir Palmares como única forma
fundamental de resistência, como fenômeno inerente à escravidão. De acordo
com suas pesquisas quando o negro passa a resistir e a lutar contra o sistema
opressor, recuperava sua dignidade humana. Deixava de ser um escravo,
propriedade de seu senhor, para tornar-se o negro heróico. O quilombo dos
Palmares, construído por Moura, parece ultrapassar o tempo da sociedade
colonial; torna-se um exemplo de luta a ser seguido no Brasil da ditadura.
Simboliza a liberdade e o fim das explorações das classes sociais. Sua obra
significou um salto epistemológico na compreensão do passado brasileiro.
A historiadora Emília Viotti da Costa 1966 publicou Da senzala à
colônia, um dos mais importantes trabalhos da historiografia brasileira sobre a
escravidão. A obra analisa prioritariamente o cativeiro em São Paulo, indicou a
escravidão como componente essência no processo de produção de riquezas e a
violência como mediadora do conflito entre escravistas e trabalhadores
escravizados (FIABANI, 2005:93).
50
Viotti aponta como um exemplo paulista, um fator importante que fez
com que se impedisse a formação de quilombos numerosos. Segundo a autora
teria sido o avanço das lavouras de café sobre as terras não cultivadas. Dessa
forma, as matas foram diminuindo, dificultando a formação de novos redutos.
Em 1976, Décio Freitas,6 durante o período comandado pelos militares,
foi obrigado a abandonar o país. Em 1964, o historiador marxista deixou o Brasil
para viver no Uruguai, iniciando suas investigações sobre Palmares, em 1965,
durante o exílio. Inspirando-se nas análises de Moura, estuda Palmares a partir
das relações entre base e superestrutura próprias do marxismo. Em obras como
Palmares: A guerra dos escravos, o escravo surge como proletário débil, sem
força por falta de coesão social e organização coletiva e pelo baixo nível de
progresso técnico. Para Freitas, simultaneamente o quilombo se aproximaria da
Ilíada grega, e as lutas dos palmarinos contra os bandeirantes, da Guerra de
Tróia.
Os autores citados apresentam, como traços comuns, a construção do
Quilombo dos Palmares como um espaço de luta pela liberdade dos oprimidos.
Dentro de um contexto histórico marcado pela ditadura militar e pelos movimentos
em defesa dos direitos civis, Palmares configurou-se com símbolo de um mundo
livre. Como observamos anteriormente, há uma forte tendência na historiografia
brasileira, de contruir um “modelo palmarino” que enfoca somente uma resistência
ativa, com base no enfrentamento direto.
No fim da ditadura militar, no processo de criação de novos partidos
políticos e novo vigor dos movimentos sociais, inclusive o negro, aparece em
1987, a edição no Brasil de Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o Golfo de
Benin e a Bahia de Todos os Santos, de Pierre Verger, originariamente publicado
em Paris (França) em 1968, e em Ibadan (Nigéria) em 1976. Após esse momento,
muitos artigos e livros de historiadores e cientistas sociais foram publicados
focalizando a África, revelando o que o Brasil e a América tinham de influências
culturais e sociais da África. Eles, geralmente, demonstraram histórias de
6
FREITAS, Décio. Palmares: A guerra dos escravos Rio de Janeiro: Gaal, 1978.
51
conexões, de continuidades, de permanências, de rupturas e de tradições
permanentemente traduzidas.
Em meio à abertura do século XXI, no exato momento em que o país,
para projetar-se mundialmente, luta pela conquista dos grandes avanços
tecnológicos, a nação brasileira vê-se obrigada a retroceder há pelo menos três
séculos de sua história para reconhecer que a grande herança deixada por Zumbi
está em descompasso com o “progresso”. Dizem os estudiosos, como Edson
Carneiro, que os quilombolas escolhiam as mais belas e exuberantes áreas as
terras mais férteis para o plantio, os espaços mais estratégicos para a defesa.
É fato que a cada dia descobrimos, morando em terras muito
cobiçadas, centenas de filhos enjeitados que, na eminência de perder o pouco que
ainda lhe resta, ou de ganhar a herança que julgavam perdida, se identificam
como herdeiros constituindo assim, outras formas de resistência que não só o
“modelo palmarino”. São os quilombolas que, deixados na contramão do
progresso, surgem como fantasmas do passado para cobrar o que Zumbi sonhara
para seu povo: liberdade, igualdade, direito à diferença e direito à terra entre
outros direitos. Quilombolas, assim, passaram a ser chamados os remanescentes
de quilombos, que, antes da constituição de 1988, eram conhecidos por alguns
antropólogos, como os moradores de mocambos e das terras de pretos (ARRUTI,
2006). Objetos de pesquisas acadêmicas, os quilombolas figuravam como um
grupo de negros que moravam em lugares de difícil acesso e que preservavam as
tradições africanas, consideradas, assim como eles próprios, em extinção.
E
agora,
como
reconhecê-los?
Reconhecer
a
existência
dos
quilombolas é aceitar a história de resistência de um povo, mas ao mesmo tempo
o fracasso do Estado, que respaldado pelo mito da democracia racial e aliado à
ideologia do branqueamento mantinha a expectativa de que, com o passar do
tempo, este grupo esqueceria suas origens. E então, reconhecer os quilombos é
enxergar, do lado avesso do progresso tecnológico, científico e econômico como
uma estratégia variada de resistência., é perceber a “exclusão” como que não
estando abarcado na totalidade eurocentrica, não é visto, por parte desses grupos,
52
Tal questão nos remete ao debate sobre a formação do povo brasileiro,
realizado, de forma contundente, na década de 30, quando a classe dirigente
formada por políticos, educadores e outros grupos influentes idealizaram o perfil
do povo brasileiro. Em 1938, ao rejeitar a obra do escultor Celso Antonio, que
representava o homem brasileiro, “um caboclo, homem das matas, de raça,
mestiça”, o então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, dirigiu aos
antropólogos e intelectuais nacionalistas, a seguinte questão: Como será o corpo
do futuro homem brasileiro, não do homem vulgar ou inferior, mas do melhor
exemplar da raça?
Os cientistas estavam todos de pleno acordo Edgar Roquete Pinto,
diretor do Museu Nacional de Antropologia, desaconselhou a escolha de
quaisquer tipos raciais que, em sua opinião, mais cedo ou mais tarde
desapareceriam. Em vez disso, a figura deveria ser branca, de
expressão mediterrânea, para enfrentar o fenótipo para qual a ‘evolução
morfológica dos outros tipos raciais do Brasil’ tenderia. O Jurista
Francisco Oliveira Viana concordou, replicando que a escultura deveria
refletir:‘não só os tipos brancóides, resultantes da evolução arianizante
dos nossos mestiços, como também representantes de todas as raças
européias aqui afluentes, sejam os colonos aqui fixados, sejam os
descendentes deles’ (D’ Àvila, 2006:49).
A fase do País agrário, sustentado pelo trabalho escravo deveria
desaparecer, cedendo lugar à sociedade urbana e industrializada. Foi dentro desta
perspectiva que os políticos paulistas defenderam, com veemência, a proposta
imigrantista:
“Nós queremos os americanos como paulistas novos, como paulistas
adotivos, homens prestimosos, que acolheram a província como sua
pátria, e queremos alemães como trabalhadores, homens produtivos, e
que venham aqui labutar. Tanto uns como outros, os receberemos com
o mesmo entusiasmo” (AZEVEDO, 1987:145).
O sonho do desaparecimento, se fosse verdade essa afirmação nossa
pesquisa seria inviabilizada porque a comunidade João Surá não estaria mais lá, e
a falta de políticas públicas para a “inserção” desta população negra no processo
de “desenvolvimento” talvez tenha favorecido o complexo estado de preservação
dos espaços quilombolas, porém não sem conflitos. A Comunidade João Surá
permanece no mesmo lugar há mais de 200 anos, apesar dos constantes
movimentos migratórios, pressão de fazendeiros, donos de indústrias, e, às vezes
53
do próprio governo que ocupa as terras quilombolas para construção de parques,
barragens e usinas, a exemplo do que ocorreu com as comunidades do Vale do
Ribeira, no estado de São Paulo, e as do Maranhão, que foram vítimas da
construção da Base de Alcântara. Não raro as áreas quilombolas e indígenas são
transformadas em Áreas de Preservação Ambiental, deixando a população nativa
sem a mínima possibilidade de prover seu sustento.
Os quilombos não são apenas frutos de resistência ao processo de
escravidão. Alguns quilombos, conforme Almeida (2002) se formaram em virtude
da ocupação de áreas abandonadas pelos grandes proprietários de terra, em
razão da queda no mercado internacional de produtos como o algodão e o açúcar.
Outros, por terras doadas ou deixadas por herança. Todavia, a forma de aquisição
de espaço, conquistado ou doado, não altera a raiz histórica e cultural que lhes é
comum: todos os quilombolas são descendentes de africanos trazidos para o
Brasil para trabalharem como escravos.
Essas variadas formas de resistências dos quilombos, antigas terras de
pretos, e dos Movimentos Sociais foi responsável para que na elaboração da
Constituição de 1988, suas histórias e lutas fossem consolidadas.. Em 2003,
segundo a Fundação Cultural Palmares, tínhamos 743 comunidades identificadas.
Hoje a mesma fundação anuncia que estamos perto de 2000
7
. (embora
pesquisadores apontem um número superior)
O reaparecimento das comunidades quilombolas derruba antigas
concepções que restringem aqueles territórios à espaços de negros fugidos.
Lopes (1987) afirma que
quilombo é um conceito próprio dos africanos bantos que vem sendo
modificado através dos séculos. Significa acampamento do guerreiro na
floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão administrativa
Quilombo pode ser caracterizado como um fenômeno encontrado em
todos os lugares das Américas onde houve escravidão. Na América
Espanhola recebeu o nome de palemques ou cumbes, maroons na
América Inglesa e, na francesa, grande marronage (:27-28).
Mas, se para o branco escravizador o quilombo significava fuga, para o
escravizado significava liberdade. Se para o senhor significava desordem, para os
7
Ver site: http://www.palmares.gov.br/ Acessado 12/06/09.
54
escravizados tinha o sentido de nova ordem para quem trabalhava de graça e sob
maus tratos. E se significava negação ao trabalho para os fazendeiros, para os
quilombolas significava resistência. Quando Zumbi idealizou o Quilombo de
Palmares, não pensava apenas em fugir, queria libertar seu povo da escravidão e
transformar o Brasil em uma nação livre Edson Carneiro afirma que: “O Quilombo
de Palmares foi um estado negro à semelhança dos muitos que existiram na
África, no Século 17, um estado baseado na eletividade do chefe ‘mais hábil ou
mais sagaz’, ‘de maior prestígio e felicidade na guerra ou no mando” (CARNEIRO,
1988:32). Portanto, quilombos seriam muito mais que um simples agrupamento de
negros fugidos como quis forjar a historiografia brasileira.
Hoje,
para
muitos,
a
expressão
quilombola
ou
comunidade
remanescente de quilombos significa falsa identidade e apropriação indevida de
terras. Mas para os grupos que permaneceram resistindo ao isolamento que a
sociedade brasileira lhe impôs, pós-abolição, a posse da terra é um direito
legítimo. A identidade dos quilombolas é com a terra, e neste sentido a terra não é
somente uma extensão geográfica, e, sim, um território cultural. Por exemplo, ao
mudar o fator externo as comunidades mudam seu fator identitário. A área é
dinâmica o grupo não troca porque sabe que não vai encontrar outras condições
naturais para eles reproduzirem suas necessidades. O que desmente a visão
dominante que os grupos se movimentam pela necessidade do estomago e se
pagar ou oferecer terras em outra localidade todo mundo larga o que tem e vai
embora. Não tem sido assim.
2.1 A Luta Pela Terra
Desde o Brasil colônia diversas propostas de Reforma Agrária foram
apresentadas por pensadores reformistas, como o padre João Daniel (1770), José
Arouche de Toledo Rendon (1788), Luís dos Santos Vilhena (1798-1802) e José
Antônio Gonçalves chaves (1817). A esses homens que pretendiam transformar a
estrutura fundiária brasileira, entretanto, a Coroa nunca deu ouvidos (JOBIM,
1983:08)
55
Desde Canudos, que acabou em 1897, a agitação pela terra emergiu
tanto no Contestado, em Santa Catarina, de 1912 a 1916, como no Juazeiro do
Padre Cícero, em 1913. movimentos desse tipo, em zonas miseráveis do país
a princípio criam esperança, criam empregos, criam até esmolas, por
isso atraem toda a espécie de gente de áreas extensas do interior, e
acabaram por originar uma coletividade (...). Depois de uma abolição
que foi a última do mundo, não partiu o Brasil para um programa
intensivo, nem de distribuição de cultura, nem de distribuição de terra
(CALLADO, 1976, p. 67)
Toda essa história, escreve Octavio Ianni (1984) fica pela metade, ou
pelo menos incompleta,
...se não descobrimos as idéias que expressam, simbolizam ou amarram
a trama dos interesses, contraponto das forças sociais em jogo. Há uma
argamassa ideológica que cimento os blocos de poder, ajuda a construílos, reconstruí-los, explicar as suas mudanças. Há sempre construções
ideológicas do povo brasileiro (...) para evitar-se uma revolução social
(:255)
Segundo Ianni, a democracia nunca consegiu chegar ao campo, nem
como ensaio, apenas como promessa. O pouco que se fez em 120 anos de
República em favor da democracia no campo, foi e continua a ser, nos dias atuais,
tão-somente o resultado da luta dos trabalhadores rurais sem-terra, do operariado
rural e das chamadas das ocupações de terras.
A violência no campo tem sido contínua e crescente nos últimos anos.
O processo das chamadas ocupações de propriedades rurais tem desencadeado,
por conseguinte, forte repressão do aparelho estatal, constituindo-se em
permanente foco de tensão. Por todos os Estados da Federação, de distintas
formas, surgem conflitos entre, de um lado, grandes empresas nacionais e
multinacionais, grileiros e fazendeiros e, de outro, posseiros, sem terra, pequenos
lavradores, indígenas e agora quilombolas. Violência de toda a ordem se comete
contra esses últimos para expulsá-los da terra. Violência que envolve “Desde
jagunços e pistoleiros profissionais até forças policiais, oficiais de justiça e até
juízes. Não raro observa-se a anomalia gravíssima da composição de forças de
jagunços e policiais para executar sentenças de despejo” (MARTINS, 1982, p. 42).
56
Em nosso país é bastante arraigada a idéia de que o processo histórico
brasileiro ocorreu de forma pacífica, sem rupturas violentas ou graves confrontos
sociais. Esse mito, que identifica a sociedade brasileira com a imagem daquela em
que tudo ocorre de forma não-violenta. Segundo Vita (1989)
Não resiste, porém, a um confronto com o processo histórico real.
Quando analisamos fenômeno sociais como a dominação pessoal, os
movimentos messiânicos, as reações de classes dominantes e do
Estado que suscitaram, e o cangaço, o que se revela é algo oposto: a
violência como um dos marcos distintos do mundo social brasileiro (:85)
Essas imagens baseiam-se em alguns mecanismos ideológicos por
meio dos quais se dá a conservação da mitologia. Marilena Chauí, ao escrever
sobre o mito da não-violência brasileira, chama a atenção para três tipos de
mecanismos em que se constitui o mito.8 Podemos pensar o mito da não-violência
como um tipo de discussão criticado pela analética.
O primeiro mecanismo é o da exclusão: afirma-se que a nação
brasileira é não-violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que
não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo
da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um elesnão-brasileiros-violentos. "Eles" não fazem parte do "nós". O segundo é o da
distinção: distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros
não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero,
passageiro, uma "epidemia" ou um "surto" localizado na superfície de um tempo e
de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência nãoviolenta. O terceiro é jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da
delinqüência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à
propriedade privada (furto, roubo e latrocínio). Esse mecanismo permite, por um
lado, determinar quem são os "agentes violentos" (de modo geral, os pobres e,
entre estes, os negros) e legitimar a ação da polícia contra a população pobre, os
negros, as crianças de rua e os favelados. A ação policial pode ser, às vezes,
8
Ver Portal da Fundação Perseu Abramo – Uma nova cultura política do país. Contra a violência,
por Marilena Chauí. Publicado no dia 31/03/2007 Siet: http://www2.fpa.org.br/portal Acessado dia
5/4/2009
57
considerada violenta, recebendo o nome de "chacina" ou "massacre" quando, de
uma só vez e sem motivo, o número de assassinados é muito elevado. No
restante das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural,
uma vez que se trata da proteger o "nós" contra o "eles". Finalmente, o último
mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem
dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem nãoviolentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção à natural
fragilidade feminina, proteção que inclui a idéia de que as mulheres precisam ser
protegidas de si próprias, pois, como todos sabem, o estupro é um ato feminino de
provocação e sedução; o paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar
a natural inferioridade dos negros, os quais, como todos sabem, são indolentes e
safados; a repressão contra os homossexuais é considerada proteção natural aos
valores sagrados da família e, agora, da saúde e da vida de todo o gênero
humano ameaçado pela Aids, trazida pelos degenerados, etc. Segue a Chaui:
Muitos indagarão como o mito da não-violência brasileira pode persistir
sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que,
nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão
pelos meios de comunicação de massa. Ora, é justamente no modo de
interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se.
Se fixarmos nossa atenção ao vocabulário empregado pelos mass
media, observaremos que os vocábulos se distribuem de maneira
sistemática: fala-se em chacina e massacre para referir-se ao
assassinato em massa de pessoas indefesas, como crianças, favelados,
encarcerados, sem-terra; fala-se em indistinção entre crime e polícia
para referir-se à participação de forças policiais no crime organizado,
particularmente o jogo do bicho, o narcotráfico e os seqüestros; fala-se
em guerra civil tácita para referir-se ao movimento dos sem-terra, aos
embates entre garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aos
homicídios e furtos praticados em pequena e larga escala, mas também
para referir-se ao aumento do contingente de desempregados e
habitantes das ruas, aos assaltos coletivos a supermercados e
mercados, e para falar dos acidentes de trânsito; fala-se em fraqueza da
sociedade civil para referir-se à ausência de entidades e organizações
sociais que articulem demandas, reivindicações, críticas e fiscalização
dos poderes públicos; fala-se em debilidade das instituições políticas
para referir-se à corrupção nos três poderes da república, à lentidão do
poder judiciário, à falta de modernidade política; fala-se, por fim, em
crise ética. Essas imagens têm a função de oferecer uma imagem
unificada da violência. Chacina, massacre, guerra civil tácita e
indistinção entre polícia e crime pretendem ser o lugar onde a violência
se situa e se realiza; fraqueza da sociedade civil, debilidade das
58
instituições e crise ética são apresentadas como impotentes para coibir
a violência. As imagens indicam a divisão entre dois grupos: de um lado,
estão os grupos portadores de violência, e de outro, os grupos
impotentes para combatê-la.
No Brasil a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali
mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática
e toda idéia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e
exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda
desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que isto, a sociedade não
percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega ao
lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira,
que, em sua violência cotidiana, reitera, alimenta e repete o mito da não-violência.
O exemplo da guerra civil tácita vem se reproduzindo ao longo da
história do Brasil. Um exemplo central para a estrutura de exclusão na propriedade
brasileira foi a questão da terra com exemplificação é a falência do sistema
sesmarial. Foi suspensa através da Resolução nº 76, de 1822, determinou que a
única maneira de aquisição do domínio territorial no Brasil passou a ser a posse
por ocupação. Com o advento da Lei de Terras (Lei nº 601, de 18 de setembro de
1850), que extinguiu o princípio da doação e inaugurou o da compra para a
aquisição de terras devolutas, o acesso à terra foi paulatinamente dificultado ao
homem comum. Essa Lei estabelecia, por outro lado, obrigações para o dono de
sesmaria. Se essas obrigações não fossem cumpridas, a doação ficava anulada e
a terra devia ser devolvida, daí o nome devolutas, passando as mesmas a fazer
parte da propriedade dos Estados e da União (AJUP/FASE, 1986:04).
Podemos verificar que esse modelo favoreceu a monopolização da
propriedade da terra por fazendeiros, e latifundiários, a Lei de Terras, em seus 23
artigos, bloqueou a propriedade imobiliária aos imigrantes trabalhadores e aos
escravos alforriados e induziu os trabalhadores rurais a venderem sua força de
trabalho nos engenhos de cana-de-açúcar, nas plantações de café, na criação de
gado e em outras atividades ao longo dos ciclos econômicos que se sucederam
59
A Lei da Terra de 1850, feita para disciplinar o acesso à terra, também
veio para impedir ou dificultar a posse da terra por parte da população pobre e
principalmente dos imigrantes que viriam ao Brasil para atender às exigências do
processo de substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre nas zonas
cafeicultoras do país.
Ellen Woortmann e Klaas Woortmann (1997) no livro intitulado O
Trabalho da Terra, observa que a partir da promulgação da Lei de Terras, que
instituiu a propriedade privada mercantil, intensificaram-se as disputas. Os
sitiantes9 eram posseiros e não proprietários, termo reservado aos fortes, os
antigos criadores e os atuais pecuaristas. Para os sitiantes, os direitos sobre a
terra não passavam pelo cartório, mas derivavam do trabalho. Era a terra de
trabalho, segundo Ellen, expressão essa que encerra um conjunto de significados
morais. Foi a
Ausência de propriedade formal das terras por parte dos camponeses
fez com que se configurasse um processo de expropriação e de
limitação do acesso às soltas. Privatizadas estas últimas pelos
proprietários, os sítios foram reduzidos em tamanho e a utilização, pelos
camponeses, de boa parte das terras passou a ser possível apenas por
meio do arrendamento. (:19).
Ellen observa no estado de Sergipe a reação das autoridades locais
aos novos tempos trazidos pela Lei de Terras. Eles percorreram não o campo para
buscar vestígios de terras devolutas, ou terra de uso comum, mas sim os
cartórios. E assim as terras de ereus (herdeiros), os quinhões em comum foram
deslegitimados. Utilizados, para isso, não só a força dos papéis para a
expropriação, mas a violência direta das armas.
O termo soltas muda de significado, passando a designar terras não
cultivadas – soltas de criar gado – no interior das propriedades pecuaristas. As
terras soltas, de símbolo de liberdade, tornam-se símbolo de subordinação. Ellen
analisa que sitiantes do Nordeste do Brasil, foram obrigados a cercar seus
9
A palavra sítio tem vários significados para os camponeses da região. Em seu sentido mais
abrangente, ela designa um território fundado por um ancestral, ao qual têm direito os
descendentes, segundo critérios de parentesco e desde que nele exerçam o trabalho. em sentido
mais restrito, designa uma parcela de terá da qual se é dono pelo trabalho exercido e onde se
localiza a casa, lugar da família. (WOORTMANN, 1997, p. 19)
60
roçados para protegê-los do gado dos criadores e ainda proibidos de retirar
madeira ou fazer roçado nas imediações das fazendas de criação. As cercas de
madeira, cerca de fracos, eram testemunhas de que o gado dos fortes continuava
ameaçando as roças. Essa prática se estendeu em todos os lugares, pondo fim
nas terras soltas. Equivalentes às largas do Brasil Central e aos faxinais do Sul,
eram de uso comum e nelas podiam-se constituir, pelo trabalho, novos sítios. O
espaço camponês encolhe significativamente, mas as soltas continuam a povoar a
memória, como condição de ser liberto. (:23)
Com o fim do tráfico de trabalhadores escravizados em 1850, os
cafeicultores paulistas temiam pela falta de braços nos cafezais. Fez-se
necessário aprisionar a terra a fim de implementar o trabalho livre. Com efeito, a
existência simultânea de terras livres e trabalhadores libertos ou imigrantes
implicava em um contexto que inviabilizaria o trabalho assalariado, tendo em vista
que este trabalhador teria como estratégia possível a opção pela sobrevivência
como campesinato autônomo. Não se caracterizaria, portanto, pela dupla
liberdade que Marx define como fundamental para que a força de trabalho precise
ser vendida no mercado, qual seja, a liberdade não só para fazê-lo – sendo o
trabalhador liberto de vínculos tradicionais de controle da mão-de-obra – mas
também a liberdade (ou seja, privação de posse) dos meios de produção. O
controle do acesso à terra juntamente com o fim da escravidão se torna, portanto,
uma condição necessária para a manutenção da dominação da elite brasileira.
César Benjamin (1998) identifica na base do processo histórico que deu
origem ao nosso Direito Agrário, a exclusão:
Diversas e novas regiões foram ocupadas pela grande propriedade
muito antes da sua ocupação produtiva, o que gerou padrão social e
econômico excludente a milhares de trabalhadores rurais. Registre-se
ainda que a grande propriedade rural tornou-se também reserva de valor
para empresas industriais e bancárias sem vocação agrícola (...) De um
lado, estão os que utilizam a propriedade como instrumento para
diversas formas de exploração, rentismo, especulação e poder
discricionário, inclusive no que diz respeito ao acesso privilegiado a
recursos públicos. De outro, estão os trabalhadores sem terra, os
pequenos produtores deslocados para áreas marginais ou espremidos
pelo capital comercial e financeiro, os migrantes e os que sobrevivem no
garimpo ou nas periferias urbanas (:82-84)
61
Segundo o autor, nem o rico nem o pobre teriam acesso livre à terra, já
que deveriam pagar por ela. O plano e o espírito que nortearam a elaboração da
Lei de Terras de 1850 eram claríssimos. Mantém-se, portanto, o monopólio do
acesso a ela. Mesmo que o preço fosse irrisório, os camponeses pobres do Brasil
do Oitocentos dificilmente teriam recursos para pagar pela terra e menos ainda
para pagar as despesas legais inerentes ao processo de requerer e legitimar os
terrenos. Se a lei de 1850 dificultava a vida do lavrador pobre, não fazia o mesmo
para os latifundiários. Além destes possuírem o capital necessário à regularização
fundiária, as fraudes eram comuns, muitas vezes com o consentimento oficial. Os
lavradores pobres, de todas as origens, não possuíam os recursos para subornar
autoridades e pagar despesas judiciais.
Fiabani (2005) sublinhou que um expediente usado era o de comprar
terras de supostos posseiros, que muitas vezes não passavam de meros peões
dos fazendeiros.
A Lei de Terras de 1850 (...) permitia a compra de terras de um posseiro
que tivesse ocupado uma área de forma mansa e pacífica antes daquela
data. Caso o posseiro não tivesse feito o registro obrigatório em 1855,
bastava pagar uma multa irrisória e assim garantia a propriedade do
imóvel (:354).
Num país essencialmente agrícola, a privação do acesso à terra de
qualquer segmento da população gera exclusão e condições de vida precárias
como conseqüência direta. Os lavradores nacionais, até a vigência da Lei, eram
auto-suficientes. Com a retirada de seu meio de produção, se constituíram em
grupo fundamental para a transição do trabalho escravizado para o trabalho livre.
Ou seja, exército rural de reserva de produtores despossuídos dos meios de
produção necessários para garantirem sua subsistência.
Mário Maestri (2002) ressalta que a Lei de Terras não implicou,
contudo, no fim do campesinato no Brasil. No interior das fazendas agrícolas e
pastoris, homens livres continuaram a produzir, com a licença dos proprietários.
Esses produtores contribuíam com a força de trabalho nas épocas de pique da
produção mercantil. No restante do ano, produziam produtos de subsistência,
62
entregando parte dessa produção aos proprietários, conforme o acordo que
haviam estabelecido. Sem o amparo legal, suas famílias viviam em isolamento
relativo, nos latifúndios, gozando de um frágil direito de uso da terra que
exploravam.
Vemos, portanto, que o impacto da Lei de Terras não se fez sentir
imediatamente por todo o território nacional. Como caboclos, posseiros, intrusos
etc., esses moradores precários dos latifúndios foram comumente expulsos da
terra que ocuparam no momento do avanço das fronteiras agrícolas mercantis por
suas regiões, bem como pelo desenvolvimento da tecnologia que restringiu a
necessidade da mão-de-obra. Mais comumente, nem chegaram a vislumbrar a
possibilidade da legalização das posses que exploraram, quando assegurada pela
lei de 1850.
Fabiani, no texto já citado, destaca que, em algumas fazendas,
proprietários entregaram, em vida ou por testamento, pedaços de terras para que
fossem cultivados pelos trabalhadores escravizados. Após a abolição, mesmo não
legalizada a propriedade, essas terras transformaram-se em ponto de atração
para outros afro-descendentes. Comumente, a doação de terras aos trabalhadores
escravizados era feita a toda a coletividade. No entanto, a ocupação e o uso da
terra fizeram-se das duas formas: familiar ou coletiva.
Após a abolição, essas comunidades deram origem a um campesinato
negro que tendeu a se fechar sobre si, como já haviam feito os caboclos, em
relação às vilas e aos latifúndios, garantindo-lhes certa estabilidade. Porém com o
avanço da grande propriedade, as terras ocupadas pelos caboclos foram
brutalmente invadidas, e eles, obrigados a abandonarem suas posses. Após a
abolição, ex-escravos, caboclos e índios transformados em posseiros, cativos que
haviam recebido terras, quilombolas que haviam resistido aos escravistas etc.
passaram a ser pressionados pelo avanço da economia mercantil.
O racismo e agora a falta de representação política, a ausência de
conhecimento legal, a baixa renda monetária, a prática de línguas e padrões não
oficiais da língua nacional etc. foram fenômenos que, associados à falta de
experiência histórica com a propriedade da terra e a uma forma de produção que
63
estabelecia frágeis vínculos com ela, dificultaram as possibilidades de legitimação
das terras detidas por essas comunidades, fazendo com que várias delas
desaparecessem.
Infelizmente na realidade brasileira, os representantes das elites
nacionais, destacando-se aqueles diretamente vinculados ao latifúndio ou, mais
contemporaneamente, à agroindústria, trabalharam (e assim seguem) no sentido
de impedir qualquer tentativa de reforma nas leis que envolvessem a grande
propriedade fundiária. Para agravar a situação, os marginalizados não
conseguiram centralizar suas ações num objetivo único. Os índios lutaram pela
demarcação de seus territórios; os sem-terra mobilizaram para serem assentados;
as comunidades negras rurais foram expropriadas da maior parte de seus
territórios e não tiveram suas reivindicações atendidas.
José Maurício Arruti (2007) descreve um processo de expropriação
recente – ocorrido nas décadas de 1960-1970 – que é significativo para a análise
a ser realizada no decorrer do texto. É mais um exemplo de como tais processos
podem ser revestidos por uma legalidade, como ocorreu no pós-1850. Analisa o
caso da Comunidade Quilombola de Cangume, destacando como o processo de
regularização fundiária de suas terras, concluído pelo Governo de São Paulo em
1966, será fundamental na perda do território do grupo – que não é total devido
ao registro de uma gleba de área comum, “o patrimônio”.
Cangume é o nome de um antigo bairro rural do município de Itaoca –
SP, Vale do Ribeira, fronteira com o Paraná, reconhecido oficialmente em 2003,
como comunidade remanescente de quilombo. Segundo o autor na década de
1960, o Cangume tinha o dobro da população atual e 40 vezes o território de hoje:
cerca de 70 famílias em pouco mais de 1.300 hectares. O avanço econômico
sobre o Vale do Ribeira, iniciado na década de 1940 com base na extração de
minério, levou à abertura de estradas e, conseqüentemente, a uma rápida
valorização das terras da região. Chegaram os fazendeiros de gado e começaram
a alterar o padrão de pequenos apossamentos familiares. Processo semelhante
ao descrito pelo autor pode ser também identificado no Paraná, no mesmo
período, afetando inclusive a comunidade João Surá, onde as terras eram
64
trabalhadas de forma coletiva, com base na solidariedade entre famílias extensas
que se revezavam sobre território de uso comum, foram fragmentadas. Arruti
destaca que esse fato provocou a inserção da área em um feroz mercado de
terras. O autor observa que a regularização das terras do Cangume foi o maior
instrumento de sua expropriação territorial em um curto período de anos. Todas as
glebas individuais foram vendidas para criadores de gado vindos de Minas Gerais
e do Paraná. Buscamos este exemplo porque apresenta dinâmica próxima àquela
vivida pela Comunidade João Surá no lado do Paraná, e evidencia como
processos legais, a princípio garantidores de direitos, mas que têm como lógica a
propriedade privada individual, podem ser instrumentos de negação de formas de
apropriação de um território de uso comum e, ao fragmentá-lo, o tornam suscetível
de expropriação por sua inserção no mercado de terras. Assim, no caso de
Cangume, como se evidencia pela análise do relatório que subsidia a atribuição
dos títulos individuais de propriedade aos membros da comunidade, um momento
específico da dinâmica de distribuição dos direitos de posse do grupo é tomado
como definitivo. Este processo tem conseqüências sérias: primeiro, retira da
normatização e controle coletivos a possibilidade de regulamentar o uso das
terras; segundo, inviabiliza os processos de atribuição de novos direitos a
membros da comunidade que mudam sua condição social (como no caso dos
casamentos), bem como fixa uma lógica que funciona a partir da sua flexibilidade;
terceiro, impõe uma nova lógica, mercadológica, à relação com a terra, que
provoca sua perda pelos membros da comunidade em prazo de cerca de uma
década – devido a eles não conseguirem dominar esta nova lógica. Ao sintetizar
seu texto, abordando suas segunda e terceira partes, o autor afirma:
Paradoxalmente, foi possível mostrar de que maneira a fidedignidade da
descrição documental [do processo de regularização fundiária] implicou,
primeiro, em uma falsificação da realidade e, segundo, na sua
destruição. Isto porque, ao dar forma fixa a algo dinâmico, aquela
descrição tornou-se a melhor fonte sobre uma realidade que ela
contribuiu para dissolver exatamente por ajudar a fixar.
Na terceira e última parte, o texto converteu-se em uma crônica: uma
descrição processual de um tempo contínuo e definido. Foi possível,
então, reconstituir a forma pela qual o modelo de uso comum descrito
em termos normativos na primeira parte e detalhado historicamente na
segunda, foi dissolvido e substituído por um novo modelo, o do mercado
de terras. A descrição volta-se, assim, sobre um momento dramático, no
65
qual a regularização fundiária, que deveria ser ferramenta de
reconhecimento dos direitos possessórios dos moradores do bairro, por
não admitir outro modelo de reconhecimento que não o baseado na
propriedade privada, de fato não reconheceu mas, ao contrário,
desrespeitou tais direitos. A excepcionalidade do caso está em duas
características: primeira, este desrespeito não precisou recorrer à
violência e ilegalidade rotineiras às situações de expropriação, ficando
por conta da simples instalação do mercado de terras; segunda, esse
mesmo processo permitiu uma única exceção, na verdade uma
irregularidade que se tornou uma brecha no interior do novo modelo e
que não lhe permitiu chegar às últimas e previsíveis conseqüências, a
titulação de uma das glebas “em comum” (2007:259).
O processo descrito por Arruti nos possibilita fazer uma discussão sobre
os processos de titulação individual, onde ele percebe que todo esse contexto que
vai possibilitar uma expropriação das terras de forma “legítima”, isto é, uma
tentativa de instituí-las. Segundo o autor, quando você dá a terra, você dá a partir
de lotes individuais quando a lógica da comunidade é o uso comum. Na medida
em que eu atribuo os lotes individuais, eu mudo a lógica da distribuição daquele
território. Porque aí os sujeitos individuais passam a ser a instância decisiva do
processo do uso do território e não existe mais a instância do uso coletivo. Arruti
afirma que trinta anos após se titular todos os membros da comunidade, nenhum
deles é mais detentor de seus lotes individuais. As únicas pessoas que
permanecem residem na pequena área de titulação coletiva, o patrimônio.
Documentos indicam que processo semelhante ocorreu no Vale do
Ribeira paranaense, atingindo Adrianópolis e especificamente João Surá. Embora
não seja possível, pelas informações disponíveis, indicar todas as conseqüências
do processo de titulação individual das terras, evidencia-se sua contribuição no
encolhimento territorial da comunidade, bem como na redução dos processos de
trabalho coletivo. E, se em João Surá a titulação não implicou na perda total dos
membros da comunidade de seus lotes individuais – o que reforça a idéia de
resistência do grupo frente ao modelo desenvolvimentista, que discutiremos a
seguir –, é presente na memória a diminuição significativa de seu território nas
últimas décadas (cf. Fernandes, 2007). É necessário ressaltar que as
comunidades quilombolas possuem sua dinâmica, embora muitas vezes ela seja
percebida como lenta, ou mesmo inexistente, por agentes externos que têm como
66
modelo o avanço intenso e irrefletido da modernidade. Os quilombos não são ilhas
de preservação. Essas comunidades quilombolas mantêm a sua tradição de olho
no futuro, e em consonância com o seu presente. Há entre eles um movimento
constante para romper a camisa-de-força imposta por alguns políticos,
antropólogos e outros pesquisadores, que querem simplificar e restringir a
dinâmica e a complexidade da história cultural dessa população, tentando
constituí-las como imersas no passado.
2.2 A Luta dos Afro-Descendentes por Reconhecimento e Direitos Coletivos
na América Latina e no Brasil
Quando falamos em países desenvolvidos e países subdesenvolvidos
nós já estamos sendo um agente divulgador do discurso da competência de uns,
aliado à incompetência de outros. Ninguém pode produzir um discurso, ou falar
qualquer coisa em qualquer tempo, em qualquer lugar, de maneira universal, nem
desconsiderar os contextos históricos em que as falas são produzidas.
Outrossim, eurocentricamente a América Latina é coberta por um véu
de unidade. Dentro desta centralidade o povo latino-americano, na visão
centro/periferia, freqüentemente é pensado como um todo, como um grupo, povo
sem ciência ou tecnologia, vasta área subdesenvolvida, uma massa involuída de
homens servis, atrasados, dependentes, analfabetos, submundo, sub-cultura,
incapazes, selvagens, sendo a expressão máxima deste imaginário a atribuição de
antropofagia. Esta estrita e tradicional visão ideológica imposta à América Latina
ao longo de mais de quinhentos anos de colonização tende a nos fazer crer e
aceitar a idéia de que este espaço se constitui como uma região obscura, que
somos reflexos do outro. Nas palavras de Domingos Magalhães (2008):
Cada povo tem sua história própria, como cada homem seu caráter
particular, cada árvore seu fruto específico, mas esta verdade
incontestável para os primitivos povos, algumas modificações, contudo,
experimenta entre aqueles cuja civilização apenas é um reflexo da
civilização de outro povo. Então, como nas árvores enxertadas, vêm-se
pender dos galhos de um mesmo tronco frutos de diversas espécies. E,
posto que não degenerem muito, os do enxerto brotaram, contudo
algumas qualidades adquirem dependentes da natureza do tronco que
67
lhes dá o nutrimento, as quais os distinguem dos outros frutos da
mesma espécie.
Essa cultura da alienação ao outro tem perpassado as diversas
sociedades latino americanas. O Brasil, como vimos no texto acima, não foi
diferente. A construção da ausência de um povo brasileiro marca diversos setores
nacionais: educação, cultura, política, economia, etc. Pelo olhar da elite há uma
cultura nacional hegemônica consubstanciando o poder. Nesse sentido, Marilena
Chauí (2008) observa que:
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade
brasileira é determinada pelo predomínio do espaço privado (ou os
interesses econômicos) sobre o público e, tendo o centro na hierarquia
familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as
relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação
entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As
diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades,
que reforçam a relação mando-obediência.
Esse olhar contaminado não consegue catalisar a multiplicidade ou a
polifonia social. Segue:
(...) vivemos numa sociedade que transforma toda diferença social em
desigualdade natural, e toda desigualdade social em diferença natural.
Quero dizer: as diferenças sociais são transformadas em desigualdades
naturais e as desigualdades sociais são transformadas em diferenças
naturais (Chauí, 2008).
O discurso eurocêntrico da modernidade fez com que a diferença
específica da América, sua colonialidade, se diluísse tal como formulada pelo
discurso eurocêntrico. Esse discurso não consegue ver a colonialidade que lhe é
constitutiva e, assim, não vê as clivagens, a opressão e a tragédia que lhe são
coetâneas. Deste modo, continua-se oferecendo modernidade para superar as
mazelas da modernização num ciclo vicioso que, mais do que como farsa, se
reproduz ampliadamente como capital por meio de injustiças, devastações e
tragédias nesse sistema-mundo moderno-colonial que nos governa
Para nós, latino-americanos e caribenhos, o encontro das diferenças é,
diferentemente dos discursos pós-modernos, como salientou Marilena Chauí,
tensão,
resistências,
tragédias
e
reinvenção
permanente
da
vida
em
circunstâncias que exigem de cada um de nós agir-pensar a modernidade por
68
quem a sente enquanto exclusão social, sendo uma de suas formas a expulsão
das terras, e, ao mesmo tempo, tem que falar a língua dominante com outro
sentimento porque a modernidade chega com a “mão santa” da chibata ou com o
glifosato
da
Monsanto.
Não
olvidemos
que
o
agronegócio
da
soja,
“reflorestadoras” de pinus e eucalipto e donos de madeireiras de hoje são tão
moderno-coloniais como o foi, ontem, o do açúcar com seus engenhos.
O Estado do Paraná é um exemplo especialmente rico deste processo.
Nele assistimos, nas últimas décadas, a uma violência assustadora no campo –
marcada por assassinatos, incêndios, expulsões criminosas, e que pode ser
evidenciado ainda hoje através do crescimento assustador da ação das milícias
armadas contra várias comunidades quilombolas, que são impedidos de maneira
brutal de permanecer em seus territórios. Embora, como já indicamos antes, haja
estratégias muito mais sutis e “legais” de realizar a expropriação territorial – que,
nem por isso, são menos violentas e geradoras de exclusão social.
Juliet Hooker (2006) publicou artigo onde analisa disparidades por
grupos afro-latinos durante as recentes iniciativas de reformas relacionadas à
cidadania multicultural na América Latina e o alto grau de desigualdade racial e de
discriminação contra populações afro-descendentes e indígenas. A despeito das
medidas constitucionais e estatutárias que proíbem a discriminação racial na
maioria dos países da região.
Segundo a autora, nas décadas de 1980 e 1990, além da proscrição
legal do racismo, vários países latino-americanos implementaram reformas
visando à cidadania multicultural, as quais estabeleceram alguns direitos coletivos
para os grupos indígenas. Mas em relação aos afro-descendentes não ocorreu o
mesmo.
A autora identificou alguns direitos coletivos obtidos com essas
reformas: reconhecimento formal de subgrupos étnicos ou raciais específicos e da
natureza multicultural das sociedades nacionais; reconhecimento do direito
69
consuetudinário10; status oficial para a língua de minorias em regiões em que
estas predominam; e garantia de educação bilíngüe.
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador,
Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela
asseguraram pelo menos um e, em muitos casos, todos esses direitos coletivos no
direito constitucional. Além disso, assinala Hooker, todos esses países ratificaram
a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (1989). O Brasil o fez
em junho de 2002, através do Decreto Legislativo nº 143, assinalado pelo
presidente do Senado Federal. Esta Convenção reconhece como critério
fundamental os elementos de auto-identificação étnica.
Nos termos do art. 2º, tem-se: A consciência de sua identidade indígena
ou tribal deverá ser tida como critério fundamental para determinar os grupos aos
quais se aplicam as disposições desta Convenção.” Para além disso, o art. 14
assevera o seguinte em termos de domínio:
Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de
propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam.”
Sublinhando o direito de retorno às terras de que foram expulsos, o
art.16 aduz que: “sempre que for possível, esses povos deverão ter o
direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir
as causas que motivaram seu translado e reassentamento. (Almeida,
2005: 04)
Dos quinze países latino-americanos que implementaram algum tipo de
reforma visando à cidadania multicultural, somente Brasil, Colômbia, Equador,
Guatemala, Honduras e Nicarágua estenderam alguns direitos coletivos aos afrodescendentes. Mas mesmo nos casos em que obtiveram esses direitos, em quase
nenhum país os afro-descendentes foram contemplados da mesma maneira que
os povos indígenas.
10
Segundo a autora é o direito que surge dos costumes de uma certa sociedade, não passa por
um processo de criação de leis como no Brasil onde os poderes legislativo e executivo criam leis,
emendas constitucionais, medidas provisórias etc. No direito consuetudinário, as leis não
precisam necessariamente estar num papel ou serem sancionadas ou promulgadas. Os costumes
transformam-se nas leis. (como direito público oficial; direitos de propriedade coletiva
especialmente em relação à terra).
70
Conforme a autora, apenas um pequeno subconjunto de afrodescendentes – em geral comunidades rurais que descendem de escravos
foragidos – conquistou direitos coletivos durante as mencionadas reformas.
No Brasil, as comunidades rurais de descendentes de escravos
foragidos, conhecidas como quilombos, têm direitos comunais sobre a
terra. Na Colômbia, as comunidades negras ribeirinhas da costa do
Pacífico e os raizais de língua inglesa (população que ocupa o
arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina, possessão
colombiana situada uns duzentos quilômetros a leste da Nicarágua)
conquistaram direitos coletivos à terra e à preservação de suas culturas
tradicionais com a Lei 70, de 1993, que, em princípio, estendia tais
direitos para além da costa do Pacífico, já que seus artigos fazem
referência a todos os afrocolombianos e garantem os direitos à terra das
comunidades negras que vivem em circunstâncias similares àquelas da
região do Pacífico. A Constituição equatoriana de 1998 reconhece aos
afroequatorianos os seguintes direitos concedidos aos povos indígenas,
“na medida em que sejam aplicáveis”: direito a desenvolver e fortalecer
a identidade espiritual, cultural e as tradições lingüísticas, direito à
propriedade coletiva das terras comunais, direito a opinar sobre a
exploração dos recursos naturais encontrados nessas terras e a
participar dos benefícios derivados da exploração, direito a conservar
suas formas de organização social e governo e à propriedade intelectual
sobre o conhecimento tradicional e à educação bilíngüe. Em Honduras,
Guatemala e Nicarágua, os afro-descendentes têm os mesmos direitos
que os grupos indígenas; em Honduras e na Guatemala, isso significa
direito à propriedade coletiva da terra e à educação bilíngüe e, na
Nicarágua, todos os elementos do modelo multicultural. (:90-91)
Apesar de a grande maioria dos afro-descendentes estar excluída das
recentes reformas que asseguraram direitos coletivos, somente o Brasil e a
Colômbia estão tentando elaborar outros meios legais para combater o racismo,
como a legislação relativa aos direitos civis.
Para Hooker, a literatura sobre política racial na América Latina tende a
enfatizar o reduzido nível de identificação grupal entre os afro-descendentes e o
caráter predominantemente urbano de seus movimentos políticos. Há muito tempo
a América Latina é considerada uma região com níveis relativamente baixos de
identificação racial e étnica entre os afro-descendentes. Uma importante tendência
na literatura sobre o tema enfatizou, assim, a explicação dessa ausência de
identificação racial grupal entre os afro-descendentes da região quando
comparada a outras áreas do mundo com grande população de negros, como os
71
Estados Unidos; enfatizou ainda o papel desempenhado pelas instituições
políticas, incluindo estruturas estatais supostamente apolíticas, como as agências
censitárias, na constituição de padrões de identificação racial entre os afrodescendentes e, portanto, de comportamento político destes. Na concepção da
autora, não se trata de negar que em muitos países da região os movimentos
políticos dos afro-descendentes foram principalmente urbanos ou que tais
movimentos tenderam a não se organizar para obter direitos como a propriedade
coletiva da terra, ao passo que os indígenas têm uma longa história de luta pela
terra. Trata-se, sim, de apontar que, se examinarmos a variedade de movimentos
afro-descendentes em toda a América Latina, veremos que há afro-descendentes
no campo que se mobilizam para conquistar direitos coletivos para suas
comunidades e, assim, é preciso explicar por que eles não foram tão bemsucedidos quanto os indígenas na obtenção de tais direitos.
Em certos países da região, como Brasil, Colômbia, Equador, Honduras
e Nicarágua, populações rurais de afro-descendentes lutaram por direitos à terra
comunal, controle sobre recursos naturais, autonomia territorial ou política e
reconhecimento cultural. De fato, os casos em que essas populações ganharam o
reconhecimento como grupos distintos com direitos coletivos próprios, em
particular os relativos à terra ou à autonomia territorial, foram, em geral, aqueles
em que a existência de comunidades rurais de descendentes de escravos
foragidos e livres possibilitou a articulação das lutas em torno de uma retórica
similar à dos povos indígenas.
Hooker interpretou que o Estado e a opinião pública dos países latinoamericanos foram, assim, mais sensíveis a demandas dos portadores da
identidade indígena do que da afro-descendente, e às reivindicações formuladas
em torno da diferença cultural ou etnicidade (indígena) do que às vinculadas a
raça ou racismo (negritude).
Para a ciência social e o senso comum, a raça se refere a diferenças
fenotípicas entre grupos de pessoas, ao passo que a etnia denota
diferenças culturais. Na maioria dos casos, considera-se que os afrodescendentes carecem de “etnicidade” e que, portanto, não mereceriam
os direitos coletivos; é somente nos casos em que raça e etnicidade
coincidem que eles são capazes de reivindicar direitos coletivos. (: 99)
72
Um importante fator do êxito na conquista de direitos coletivos é,
portanto, a habilidade dos grupos minoritários de formular demandas em termos
adequados à lógica segundo a qual esses direitos são considerados justificados
pelo regime de cidadania multicultural, lógica que implica a posse de uma
identidade cultural distinta. Como muito bem observou José Maurício Arruti, acima
citado.
Hooker aponta, em sua análise, que se o movimento dos indígenas foi
bem sucedido, isto se deveu em parte a certos atributos que o imaginário nacional
associa ao povo e à cultura indígena – mas não aos afro-descendentes. A autora
escreveu: “em relação à Nicarágua, há vários tipos de racismo contra o mestizo e
diferem os modos pelos quais os índios e os negros são representados como
marginais inferiores” (2006: 100). Algo similar nos parece se estender à América
Latina, onde negros e índios foram caracterizados como o outro, localizados em
espaços liminares da nação e inseridos de forma distinta.
Os afro-descendentes permanecem invisíveis em grande parte das
narrativas nacionais de mestizaje latino-americanas e, portanto, seu lugar na
comunidade política nacional é mais ambíguo. Mesmo nos casos em que são
reconhecidas as raízes culturais africanas da cultura nacional, como no Brasil e
em Cuba, é difícil sustentar a especificidade da cultura negra quando ela é
identificada à cultura nacional.
Noutros casos em que os afro-descendentes conquistaram alguns
direitos, como no Brasil e no Equador, esses grupos foram incorporados não à
categoria afro-descendente como um todo, mas à de comunidades negras rurais,
que ocupam uma posição similar à dos índios, já que são vistas como grupos
culturalmente distintos. É assim problemática a distinção nítida entre política racial
e étnica pressuposta em muitos estudos que enfatizam apenas os movimentos
indígenas. Esses estudos presumem que os afro-descendentes podem ser
excluídos da análise da política étnica na América Latina porque constituiriam um
grupo racial enquanto os índios formariam um grupo étnico. O que está sendo
pressuposto, no entender da autora, é que os afro-descendentes se vêem como
73
sujeitos raciais e não reivindicam a posse de identidade étnica ou direitos coletivos
com base nesta.
Segundo a autora, os negros não são vistos como portadores de uma
cultura “tradicional” ou ancestral. Assim, com a introdução das reformas de
cidadania multicultural, o que mudou não foi, necessariamente, o conjunto de
atributos associados ao povo indígena, mas o valor dado a eles: hoje, a posse de
uma cultura ancestral não é mais marca de “atraso”, mas de possibilidade de
preservar essa cultura por meio de direitos coletivos especiais.
Nesse sentido, argumenta Hooker, a maioria das explicações para o
menor êxito dos afro-descendentes em comparação aos índios na conquista de
direitos coletivos tende a enfatizar as supostas diferenças entre os dois grupos,
sem analisar o papel do Estado na criação da disparidade. Negligencia-se, assim,
o fato de que as instituições estatais e as preferências das elites nacionais e da
opinião pública desempenham um papel na determinação da capacidade dos
grupos de conquistar direitos coletivos.
No entender da autora, as conseqüências das disparidades de êxito
entre os grupos podem gerar divisões entre os que conseguem e os que não
conseguem alcançar suas reivindicações. Cabe portanto, uma critica às políticas
de reconhecimento baseadas apenas na diferença cultural. O que pode levar os
grupos afro-descendentes e indígenas, para efeito de mobilização política, ao
tema do reconhecimento cultural, e não da luta contra a discriminação racial.
Para enfrentar essa disparidade entre afro-descendentes e indígenas,
objeto de análise do artigo do Hooker, mas que pode ser estendido ao movimento
social como um todo, pensamos que além das políticas de reconhecimento
cultural, para enfrentar tais injustiças é fundamental a implementação de uma
abordagem forte de direitos civis. É o que começa a ocorrer no Brasil. A saber,
medidas de ação afirmativa para cargos públicos e educação superior (atingindo
essencialmente o ambiente urbano) foram recentemente introduzidas ao lado da
legislação existente que protege os direitos comunais relativos à terra dos povos
indígenas e das comunidades quilombolas (predominantemente rurais), por meio
de debates iniciados na década de 1980 e que culminaram na promulgação da
74
Constituição de 1988. Hooker ressalta ainda como, a partir da Constituição de
1988, ganham espaço as “populações tradicionais”, no caso dos negros
particularmente aquelas a que se refere o “Artigo 68”, conhecidas, desde então,
como “comunidades remanescentes de quilombos”.
Com efeito, no dia 20 de novembro de 2003 (Dia Nacional da
Consciência Negra), o reconhecimento público do número inexpressivo de
titulações realizadas funcionou como justificativa para uma ação governamental
específica. Nesta mesma data, o presidente Lula assinou o Decreto nº 4.887,
regulamentando o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por comunidades remanescentes de
quilombos. Esse ato do Poder Executivo teria correspondido, portanto, à
necessidade de uma intervenção governamental mais acelerada e ágil, condizente
com a gravidade dos conflitos envolvendo as comunidades remanescentes de
quilombos, o que exigia alguma resposta do governo federal.
Nesse mesmo período, entretanto, os interesses contrários ao
reconhecimento e à titulação das comunidades quilombolas tiveram uma atuação
ágil, tanto dentro quanto fora da burocracia governamental.
Pode-se registrar a ação de interesses contrários ao reconhecimento
das comunidades quilombolas em conflito na esfera jurídica ou em casos de
contestação das titulações já efetuadas, com famílias de remanescentes de
quilombos sendo despejadas de suas terras, por força do deferimento de pedidos
de liminares em ações de reintegração de posse movidas por supostos
proprietários.
Tem-se uma Ação Direta de Inconstitucionalidade referida ao Decreto
nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, perpetrada pelo Partido da Frente Liberal
(PFL). O hoje DEM tenta impugnar o uso da desapropriação na efetivação do art.
68, bem como se opõe ao critério de identificação dos remanescentes de
quilombos pela auto-atribuição, com o objetivo de restringir ao máximo o alcance
do dispositivo. Porém, atendendo a reivindicações dos movimentos sociais,
dispositivos infraconstitucionais foram reforçados. A legislação vigente se mostra,
portanto, em consonância com o que estabelece a Convenção 169 da OIT.
75
Da mesma forma, como assinala Hooker, em 1996, a Corte
Constitucional Colombiana:
ampliou o escopo dos direitos coletivos para além das pequenas
populações raizais e ribeirinhas da costa do Pacífico, argumentando
que, embora nem todos os afro-colombianos satisfaçam os critérios da
definição restrita de comunidade negra como uma cultura tradicional
ribeirinha, eles merecem tais direitos por serem vítimas de
“marginalização social” (:107)
A autora, quando em suas considerações, sugere ainda que uma das
conseqüências potencialmente negativas da vinculação dos direitos coletivos à
diferença cultural é que isso pode levar os grupos indígenas e afro-latinos a
privilegiar, como fundamento para a mobilização política, temas relacionados ao
reconhecimento cultural, em detrimento dos temas centrados na discriminação
racial, como a ação afirmativa que é uma exceção na América Latina. Em sua
opinião, é crucial que as lutas dos movimentos sociais latinos americanos sejam
estudadas simultaneamente. Não obstante, analisar as comunidades quilombolas
fora da conjuntura latino-americana traz o risco de não se compreender a ambígua
intersecção de raça e etnicidade, que não são facilmente enquadradas na
categoria “reconhecimento cultural”.
Historicamente, nenhum fator isolado contribuiu mais para esta
desigualdade quanto a distribuição desigual das terras. Apesar da crescente
urbanização e da perda de poder político das elites rurais em muitos países da
região, o problema da distribuição de terras ainda não foi resolvido. Muitos dos
processos de reforma agrária não foram plenamente implementados devido às
sucessivas crises econômicas, políticas e sociais ocorridas na região durante o
século XX.
A maior parte dos países latino-americanos ainda possui altos índices
de concentração territorial, conferindo à região a característica de pior no mundo
em termos de distribuição justa de terras. Este é um fator chave na marginalização
de segmentos vulneráveis da população, tais como os povos indígenas e afrosdescendentes.
76
Em virtude do alto grau de concentração de terras é que foi realizado
um estudo para o Programa sobre Assentamentos Humanos das Nações Unidas –
UM-HABITAT, por Letícia Marques Osório(2009), abrangendo aspectos da
legislação e dos sistemas de posse de terra no Brasil, Colômbia, México e
Nicarágua. Este trabalho apresenta tendências e desafios comuns aos países da
América Latina no que diz respeito à reforma da legislação, à posse da terra, ao
déficit de moradias e à reforma urbana, debatendo algumas das principais
diferenças na região, a partir da perspectiva da legislação e da política.
Ao traçar o perfil de desigualdade do Continente, Osório observa que,
desde a década de 1960, a América Latina se caracteriza por figurar como a
liderança mundial em desigualdade, não somente no que se refere à distribuição
de renda, mas também nos aspectos relativos a educação, saúde, moradia,
serviços públicos, trabalho, tratamento policial e judicial e participação política.
Apesar da ocorrência de uma pequena melhoria entre as décadas de 1960 e
1970, os níveis de desigualdade na região mantiveram-se praticamente estáveis
entre as décadas de 60 e 90.
E nenhum fator contribuiu mais para acentuar esta desigualdade quanto
a distribuição das terras. A autora aponta que muitos dos processos de reforma
agrária não foram plenamente implementados devido às sucessivas crises
econômicas, políticas e sociais ocorridas na região durante o século XX. E a maior
parte dos países latino-americanos confere à região a característica de pior no
mundo em termos de distribuição de terras.
A autora observa que os Códigos Civis da América Latina estabelecem
uma distinção entre propriedade e posse. Na tradição da Lei Civil, a propriedade é
um "direito real" reconhecido especificamente como um direito fundamental e
básico, formando a pedra angular do sistema de reconhecimento legal do direito
sobre a propriedade. A posse, por sua vez, pode ser distinta da propriedade, pode
ser acessada através de diferentes formas e pode portar seus próprios conjuntos
de diferentes direitos. Estão incluídos no Código, entre outros direitos de
77
propriedade, o direito de uso, o direito de ocupação, o direito de passagem e o
usucapião.11
As Constituições nacionais na América Latina não garantem o direito
universal à terra a todas as pessoas assim como garantem a relação ao direito à
propriedade.
Entretanto,
as
Constituições
nacionais
geralmente
provêm
regulamentações específicas quanto ao direito à terra de grupos específicos como
os povos indígenas, comunidades afro-descendentes e aqueles vivendo em
assentamentos informais, urbanos ou rurais.
Ao se referir à equidade étnica, as comunidades afro-descendentes na
América Latina, nos últimos anos, assinala Letícia, apresentaram demandas e
empregaram estratégias para alcançar o direito à terra e aos recursos naturais.
Em consonância com a proposta de Juliet Hooker, previamente
considerada, de abordar as disparidades entre afro-descendentes indo além das
políticas de reconhecimento cultural, mas lutando também pela implementação de
uma abordagem de direitos civis, Letícia igualmente analisou os afrosdescendentes: esses, segundo ela, têm buscado se representar de maneira
semelhante aos indígenas, como povos que mantêm uma identidade única e
tradições culturais na relação com seus territórios. Estas representações têm
servido de base para a demanda não apenas por direitos individuais, mas por
direitos coletivos como sujeitos sociais distintos: direito à preservação cultural e
lingüística e direitos coletivos e comunais sobre a terra e os recursos naturais.
11
Os textos completos dos artigos constitucionais referentes aos Direitos à Moradia podem ser
consultados no Website: http://www.unhabitat.org/unhrp/pub. UN-Habitat/ROLAC O Programa das
Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat) é a agência da ONU responsável
por promover o desenvolvimento social e ambientalmente sustentável dos assentamentos
humanos, tendo como meta principal assegurar moradia adequada para todos e todas.
O UN-Habitat tem como missão coordenar e harmonizar as atividades relativas aos assentamentos
humanos dentro do sistema das Nações Unidas, facilitar a troca de experiências e informações
sobre moradia e desenvolvimento urbano-ambiental em nível mundial, prestar assistência técnica
aos governos nacionais e autoridades locais, bem como assessorá-los no que tange às políticas
públicas de combate à pobreza urbana. O Escritório Regional para América Latina e o Caribe do
UN-Habitat (ROLAC) foi estabelecido no Rio de Janeiro em 1996 para fortalecer os laços de
cooperação com os governos nacionais e subnacionais da região. Na região, o ROLAC está
presente em diversos países, através de seus coordenadores nacionais, atuando em diferentes
áreas programáticas e utilizando seu know-how para apoiar as atividades dos governos locais e
nacionais, por meio de prestação de assistência técnica, gestão do conhecimento, advocacy das
normas para a sustentabilidade urbana e ajudando a construir parcerias estratégicas para o
combate à pobreza urbana. O escritório Regional para América Latina e o Caribe pode ser
acessado no Sites:www.unhabitat-rolac.org
78
Muitas legislações de países latino-americanos têm modelado o
reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais dos afrosdescendentes de acordo com o paradigma indígena dos direitos étnicos e
multiculturais. Entretanto, os afros-descendentes não são reconhecidos como
indígenas, o que muitas vezes lhes colocam em uma posição frágil ou ambígua
para demandar direitos coletivos. A questão da desterritorialização destes grupos
provocada pelo sistema colonial escravista é normalmente vista como uma perda,
na medida em que eles não seriam os “originais” habitantes do território, e esta
desterritorialização implicaria em uma necessária mudança e deslegitimação de
sua luta na perspectiva de alguns segmentos. Estes, motivados por uma visão da
tradição como fixa, vinculada irremediavelmente a um passado e sempre “em vias
de extinção”, realizam como que um segundo processo de violentação destes
grupos, que toma o primeiro processo como justificativa. Cabe, portanto, refletir
sobre os processos de resposta de grupos específicos ao contexto de dominação
e as formas de resistência por eles adotadas – resistências estas que são muitas
vezes silenciosas e não perceptíveis para os dominadores, garantindo assim a
eficácia de suas estratégias. O caso da comunidade quilombola João Surá, a ser
analisado a seguir, é um exemplo importante deste processo.
3. VALE DO RIBEIRA E A PRESENÇA AFRICANA
“Sr. R.1 eu sou só uma criança, mas eu te dou um conselho
que pena que vocês não entenderam, vocês plantam pinus e
quando você terminarem, você só pensam em dinheiro agora
e depois você vão pegar e largar o dinheiro e vão viver de
quê? Só de dinheiro? Não vai ter nada para vocês comerem,
beber porque o pinus estraga nossa água e nossa terra boa
para plantar nossos alimentos pra comer e no mercado não
vai ter mais nada para comer você sabem que lá na fábrica
eles levam para fabricar transformar em papel, você só vão
viver de dinheiro? Vocês vão comer folha de pinus? Vocês
vão comer terra? Vocês não vão viver e nem seus filhos não
vão viver. Eu teria orgulho de vocês deixassem de plantar
pinus, ai sim agente poderia viver bem, tomar a água e a
comida seria muito melhor. Dinheiro não, nós podemos
conseguir com o trabalho, com o pinus se ganha dinheiro sim,
mas não comida, água...”2 (Gislene Neves Galvão Pereira,
entrevista realizada dia 19/12/2007)
3.1
1
Vale do Ribeira
O Sr. R. atua como capataz em uma das fazendas vizinhas da Comunidade; preferimos não
mencionar seu nome, por isso resolvemos chamá-lo de Sr. R.
2
A realização de transcrições é sempre muito delicada. Por um lado, uma transcrição muito literal,
com todas as repetições e pequenas supressões de letras, geram uma exotização do grupo. Em
outras palavras, a dinâmica do discurso oral é distinta do discurso escrito; além disso, o padrão
escrito é tomado como sendo o ideal em nossa sociedade. Assim, transformar o discurso oral em
escrito sem considerar este aspecto traz a citada exotização e, em certa medida, estigmatização
do falante como incapaz de dominar o português “padrão”. Por outro lado, a opção de
transformação da fala do outro em muito próxima à fala tida como “geral”, através de sua
“correção” gramatical e ortográfica, não permite que se perceba que aquilo que está sendo dito
está em outro registro, distinto do “geral”. Tendo em vista que este não é um texto relacionado a
reflexões linguísticas, optou-se por realizar uma transcrição que tente responder aos dois
problemas mencionados, sem “corrigir” a fala do outro, mas também sem manter características
que são comuns à oralidade e que poderiam exotizá-lo e estigmatizá-lo.
80
O objetivo deste capítulo é incluir nesta discussão uma tentativa de se
repensar o desenvolvimento, analisando as conseqüências do industrialismo e a
visão de progresso embutida em tal lógica; percebendo como se constrói o
discurso da “carência’ e da ‘pobreza” no caso da evolução econômica do Vale do
Ribeira. Localizada no sul do estado de São Paulo e norte do estado do Paraná, o
Vale abrange a Bacia Hidrográfica do Rio Ribeira de Iguape e o Complexo
Estuarino Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá. A região possui uma rede
hidrográfica
3
bastante densa que vai em direção ao Oceano Atlântico pelo Rio
Ribeira do Iguape. Esta forma rios encaixados e movimentados, produzindo um
cenário típico da região. Na área próxima ao núcleo urbano da região
metropolitana de Curitiba, encontram-se as nascentes dos principais rios
formadores do Rio Ribeira, como o Capivari e o Rio Açungui. Estas nascentes
estão localizadas nos municípios de Colombo, Campo Magro, Almirante
Tamandaré, Campo Largo e Rio Branco do Sul. Tais rios têm seu uso outorgado
para a produção de energia e abastecimento urbano. Ao mesmo tempo, de acordo
com a legislação Estadual dos Recursos Hidricos, parte desta região está incluída
3
Ver site: http://www.valedoribeira.ufpr.br/vale.htm acessado 27/07/2009.
81
na Bacia Hidrográfica do Alto Iguaçu e Alto Ribeira, para fins de planejamento e de
uma ação integrada.
Mapa do Território do Vale do Ribeira – PR/SP
Sua área de 2.830.666 hectares abriga uma população de 481.224
habitantes (Censo Demográfico 2000) e inclui integralmente a área de 31
municípios (9 paranaenses e 22 paulistas). Existem ainda outros 21 municípios no
Paraná e 18 em São Paulo que estão parcialmente inseridos na bacia do Ribeira.
A Região do Vale do Ribeira no Estado do Paraná é composta pelos
municípios de Adrianópolis, Bocaiúva do Sul, Cerro Azul, Doutor Ulysses,
Itaperuçú, Rio Branco do Sul e Tunas do Paraná, sendo a maior concentração dos
habitantes na área rural (com exceção de Itaperuçú e Rio Branco do Sul, que se
aglomeram na área urbana).
A densidade populacional média da região é relativamente baixa, com
139,89 hab./km². Os municípios da região têm suas economias atreladas à
agricultura familiar e à extração mineral, vegetal e animal, formando assim
aglomerações rurais com perfil comunitário e baseadas em trabalho familiar.
82
A Região do Vale do Ribeira do Estado de São Paulo é composta pelas
seguintes cidades: Apiaí, Barra do Chapéu, Barra do Turvo, Cajati, Cananéia,
Eldorado, Iguapelha, Comprida, Iporanga, Itaóca, Itapirapuã Paulista, Itariri,
Jacupiranga, Juquiá Juquitiba Miracatu, Pariquera-Açu, Pedro de Toledo, Registro,
Ribeira, São Lourenço da Serra, Sete Barras e Tapiraí
Localizado numa faixa que abrange desde municípios próximos à
capital paulista até quase as cercanias de Curitiba, e no litoral desde proximidades
de Peruíbe (ponto mais ao norte) até as proximidades de Paranaguá (ponto mais
ao sul), o Vale do Ribeira comporta uma multiplicidade de tempos e espaços
simultâneos, nas representações dos vários sujeitos que hoje vivem ou atuam lá.
Como bem define Odair Paiva (1993),
Convivem nesta região posseiros, pequenos proprietários, companhias
mineradoras, reflorestadoras, agroindústrias, barragens, reservas
florestais, terras não discriminadas (devolutas), “trabalho escravo”,
comunidades negras (remanescentes de quilombos), entre outras (: 3).
O Vale, nos últimos anos, vem sofrendo grandes problemas quanto à
exploração de suas riquezas, sob pena de degradação ambiental significativa. A
região possui a maior cobertura vegetal do Estado de São Paulo (mais de 60% do
seu território), envolvendo desde a floresta tropical até os mangues. Dos 1,7
milhão hab. De sua área física total, 1,2 milhões são ocupados por uma área
contínua de remanescentes do Ecossistema da Mata Atlântica. A área restante é
apta para o cultivo, com restrições.
O Ribeira possui, ainda, diversas categorias de unidade de Preservação
Ambiental, que englobam cerca de 75% das terras da região. Dos cerca de 17.100
km2, aproximadamente 58% são abrangidos por áreas institucionalmente
protegidas (cf. SANCHEZ, 1984). Além disto, nas áreas restantes é aplicada a
legislação genérica do Brasil, em especial o Código Florestal (Lei 4771/65) e o
Decreto da Mata Atlântica (750/93). Isto implica em restrições ao uso das áreas
consideradas de preservação permanente (topos de morros, faixas marginais de
cursos d´água e nascentes, etc.) e das recobertas por florestas primárias ou
sucessoras (“capoeiras”). Deste modo, na Região do Vale do Ribeira, o meio
83
ambiente interfere diretamente sobre os diversos setores da economia, exigindo a
busca do equilíbrio entre a produção e a conservação dos recursos naturais.
Como conseqüência, entre outros aspectos, da presença significativa
de áreas de preservação ambiental, a região destaca-se por grande diversidade
ecológica. Seus mais de 2,1 milhões de hectares de florestas equivalem a
aproximadamente 21% dos remanescentes de Mata Atlântica existentes no Brasil,
transformando-a na maior área contínua desse importante ecossistema em todo o
País. Nesse conjunto de áreas preservadas são encontradas não apenas
florestas, mas importantes remanescentes de restingas - são 150 mil hectares - e
de manguezais - 17 mil hectares.
Em contraste com este valioso patrimônio ambiental, o Vale do Ribeira,
segundo dados governamentais, tem sido historicamente uma das regiões mais
pobres dos estados de São Paulo e Paraná. Seus municípios possuem índices de
desenvolvimento humano (IDH) inferiores às respectivas médias estaduais, assim
como os graus de escolaridade, emprego e renda de suas populações, entre
outros indicadores, são tradicionalmente menores do que os de outras populações
paulistas e paranaenses. A busca por empregos e oportunidades - na área de
educação, por exemplo, praticamente não existem opções de curso superior –
estimula a migração de parte da população economicamente ativa e jovem para
outras regiões.
A região do Vale do Ribeira foi uma das primeiras zonas a serem
desbravadas no Brasil. Apesar de ter ficado à margem dos principais ciclos
econômicos, ela teve relativa importância nos primórdios da mineração. As
primeiras notas a respeito da ocupação da região datam de 1531, com Martin
Afonso de Souza. Ele havia partido do Rio de Janeiro e ancorou pela primeira vez
em frente à ilha de Cananéia, onde seriam fundadas mais tarde duas
comunidades pioneiras: Cananéia e Iguape. Esses dois portos serviam ao
escoamento de ouro da região da Serra de Paranapiacaba e base de controle da
navegação na região. Era por Iguape, fundada por espanhóis em 1537 e situada
em terras dos índios tupiniquins, que passavam as embarcações que se dirigiam
84
ao continente. Cananéia, vila dos Tupis, foi colonizada por portugueses que se
dedicavam à produção de gêneros alimentícios (cf. BUENO, 1998).
A história da ocupação mostra que a mesma é resultado de uma matriz
comum, com origens nas atividades mineradoras, cujo início se deu nessa região,
onde foi fundada, em 1635, a primeira casa de fundição de ouro do país: a Oficina
Real de Fundição de Ouro (Agência de Desenvolvimento da Mesorregião Vale do
Ribeira-Guaraqueçaba, 2002).
Inicialmente, a ocupação do território se limitou a acompanhar a linha
litorânea, como podemos acompanhar no mapa acima, uma vez que o vale estava
situado nos limites previstos pelo Tratado de Tordesilhas. A economia local,
baseada principalmente na pesca, coleta e lavouras de subsistência, era comum a
toda a capitania. O primeiro impulso verificado na economia ocorreu no século
seguinte ao do início da ocupação com a mineração.
A memória coletiva sobre o tempo da mineração colonial é,
evidentemente, difusa. Existem, entre os membros da comunidade João Surá,
memórias específicas que alimentam narrativas sobre os garimpos e a extração
de ouro, sendo que o próprio nome da comunidade expressa tal associação, como
conta D. Joana:
chama João Surá porque tinha um homem, parece que ele veio de fora,
aí ele saiu a pescar aqui na cachoeirona aqui do Rio Prado e aí
desandou n’água. Alguns contam que ele estava caçando ouro. E que o
nome dele era João Surá. E por causa disso ficou João Surá (Entrevista
realizada 19/12/2007).
Já D. Clarinda, ao contrário, contesta a versão de D. Joana e de tantos
outros na comunidade. Segundo ela:
João Surá antigamente... a gente não sabia as pessoas falavam pra
gente o que era João Surá e quem era João Surá. Antigamente as
pessoas chamavam de Rio Pardo mas depois a gente foi estudando na
escola aí a gente via falar no João Surá, João Surá e ficou uns falam
João Surá e outros João Surra e nós daqui da Comunidade chamamos
de João Surá. João Surá porque um homem que descia o Rio Pardo aí
(ela aponta em direção ao Rio) e a cachoeira logo aqui perto, a água era
bem mais não é igual agora, e o homem foi descer com a canoa ali e ela
afundou com ele e ele morreu ali e não se sabe o que aconteceu com
ele. E daí puseram o nome de cachoeira João Surá. E daí ficou João
Surá e a comunidade João Surá. Tem uma história que um homem deu
uma entrevista falou que esse homem era garimpeiro e que caiu na
85
cachoeira e morreu. Nós não aprovamos essa história (Entrevista
realizada dia 18/12/2007).
Percebemos que a comunidade João Surá surgiu no contexto histórico
da mineração colonial no Alto Vale do Ribeira.
A
ocupação
do
território
começou
a
se
direcionar
ao
sul,
acompanhando a faixa litorânea e chegando a Paranaguá, no sentido sudoeste,
subindo as corredeiras do Ribeira e Açungui até os Campos de Curitiba. O
historiador Romário Martins (1995) informa que, provavelmente, a entrada dos
primeiros homens brancos na porção ocidental da Serra do Mar, chamada então
“Sertão de Paranaguá”, deve ter ocorrido na região meridional do Ribeira, por
onde passava o caminho pré-cabralino de Peabiru. Este caminho ligava São
Vicente ao Rio Paraná, se estendia por cerca de 200 léguas e tinha um ramal para
o sul até o Campo dos Biturunas (Palmas) e para o Tape, no Rio Grande do Sul.
O ciclo do ouro no Vale do Ribeira teve início com a descoberta do
metal na região do médio Ribeira, onde foram encontradas as primeiras jazidas
auríferas do Brasil. A região experimentou um papel econômico relativo nos
séculos XVII e XVIII, com destaque para Iguape – porto de escoamento do metal.
Mais tarde houve um período de estagnação na atividade mineradora, seguido de
uma importante retomada através de mineradores paulistas no alto Ribeira. Na
região de Apiaí o ouro encontrado era o de aluvião, e teve grande importância na
continuidade da ocupação da zona. O escoamento da produção, dessa vez,
passou a ser na direção de Sorocaba, via Itapetininga.
Após a descoberta do ouro, o passo seguinte foi da chegada do fisco.
Em 1647 chegaram os primeiros grupos de povoadores: o de Eleodoro d’Ébano,
com a administração das minas; a seguir o de Balthazar Carrasco dos Reis e
Mateus Martins Leme, em 1661; depois o de Salvador Jorge Velho que, entre
1678 e 1680, movimentou as lavras do Ribeirão e de Nossa Senhora da
Cachoeira na região do Açungui.
Na região compreendida pelo Vale do Açungui teriam se formado, em
meados do século XVII, arraiais mais ou menos estáveis, como Arraial Queimado
86
(Bocaiúva), Borda do Campo (Atuba, Vilinha, Vila dos Cortes), Arraial Grande (São
José dos Pinhais), Barigui e Tidiquera (Araucária) (cf. COMEC, 1999).
A forma de ocupação do território brasileiro ao longo dos séculos foi
constantemente definida em função dos interesses mercantis da Europa. Esse
processo sempre visou o estabelecimento de grandes estruturas e unidades de
produção. As atividades exportadoras continuamente se apresentaram como um
setor privilegiado da economia, e sua dinâmica foi pautada pela produtividade e
rentabilidade. Dessa forma, a economia de subsistência vinculada à atividade
mineradora também sempre foi vista como um setor da economia de exportação.
A formação dos pequenos núcleos populacionais tinha como objetivo a
procura por metais preciosos: ouro e prata. Já o deslocamento rumo ao interior foi
facilitado pela navegabilidade da bacia do Ribeira. Assim, os primeiros povoados
se estabeleceram orientados pelo rio Ribeira e seus afluentes, e nesse sentido os
contatos e as trocas de mercadorias eram realizadas utilizando os rios.
Lentamente, algumas estradas surgiam, mas eram os rios os principais
condutores dessa gente. Cabe aqui um parêntese sobre o Rio Ribeira, devido a
sua fundamental importância para o estabelecimento dos núcleos rurais e urbanos
do Vale e para a configuração socioeconômica e cultural dos povos formadores do
Vale do Ribeira.
À medida que novos povoados se estabeleciam pela região,
multiplicava-se o número de habitantes situados em toda a sua extensão e pelos
seus afluentes, principalmente o rio Juquiá e Jacupiranga, intensificava-se o
movimento comercial e, principalmente, o trânsito pelo Porto da Ribeira. Era nesse
porto que se realizava todo o intercâmbio de mercadorias entre o litoral sul
paulista e a região da “Serra Acima”, compreendidas pelas vilas de Itapetininga,
Itapeva, Faxina, Apiaí, Iporanga e Xiririca (cf. ALMEIDA, 1945). Durante o séc
XVII, as pequenas descobertas de ouro não mudaram de maneira marcante a vida
do Vale do Ribeira. Somente no séc. XVIII foram encontradas minas mais
valiosas, e a mineração dominou a economia local.
A descoberta de novas minas, por sua vez, foi acompanhada por um
crescimento na população negra (cativa, fugida e liberta). Segundo as análises de
87
Arruti (2003), o último quartel do século XVIII e as primeiras décadas do século
XIX registram um aumento na população de famílias escravas. No contexto da
Villa de Apiaí, em 1809 e 1816, os escravos com vínculos familiares
representavam respectivamente 41% e 45,5% da população cativa, sendo de 3,3
a média de filhos para as famílias assim formadas. Segundo o autor, a escravidão
na região contrastava radicalmente com os dados sobre a escravidão no século
XVIII, quando os plantéis eram formados, em sua maioria, por solteiros.
De acordo com Fernandes, a participação da população escrava no
total dos habitantes da região apresenta um pequeno crescimento proporcional em
relação aos valores referentes ao final do século XVIII. O Mappa do Movimento da
População da Villa de Xiririca (1856) apresenta um total de 195 nascimentos, dos
quais 47 (ou 24,1%) eram de escravos.
Além de manter uma participação
expressiva na população regional, muitos escravos no século XIX eram nascidos
na própria região.
Estudos de demografia histórica registram uma elevada proporção de
população negra (cativa ou liberta) na região (cf. VALENTIN, 2006). Mesmo
considerando que tais estudos analisam as dinâmicas populacionais do período
que se iniciava no final do século XVIII, é possível reconhecer as dimensões da
população negra na região do vale do rio Ribeira em períodos anteriores. Com
efeito, Valentin (2006) afirma que em Iguape, no ano de 1798, a população de
cativos totalizava 937 indivíduos, ou 21,8% do total de habitantes.
Mapas elaborados por Leonardo Marques (2006) inventariando o
percentual de população não-branca no Paraná em 1872 (Fig. 3), 1890, 1940 (Fig.
4) e 1950 demonstram como, no final do séc. XIX, a proporção de não-brancos é
significativa – havendo vários municípios em que ultrapassa os 60%, e sendo as
áreas em que esta é inferior a 20% relativamente restritas. Quadro que se
modifica na primeira metade do séc. XX, quando estes percentuais se tornam
reduzidos. A área de número 17 (Arraial Queimado), que engloba o que hoje
corresponde ao município de Adrianópolis, na década de 1870, possuía uma
presença de não brancos maior que 60%.
88
Figura : Percentual de não-brancos no território do atual Paraná em 1872
A relevância populacional, a natividade da população escrava, o relativo
grau de autonomia proporcionado pela atividade mineradora, a diversificação da
produção e o fortalecimento das vias de comunicação que integravam o Caminho
das Tropas e os cursos dos rios Ribeira e Pardo, permitiam certa mobilidade na
inserção destas famílias escravas na economia do Alto Vale do rio Ribeira. (cf.
FERNANDES, 2007).
No século XIX, com o recuo da mineração aurífera como principal
atividade econômica da região, Iguape passa a produzir arroz de maneira
significativa, vivendo um momento de grande prosperidade. As barcaças tornamse o meio mais utilizado para o transporte deste produto, como haviam sido da
população que, nos séculos anteriores, adentrou o interior em busca de ouro.
Outros povoados surgidos em conseqüência da mineração, como Porto dos
Pilões, Ivaporunduva e Sete Barras, vão se integrando à cultura do arroz e
garantindo a produção para abastecimento do mercado regional (além da
subsistência) não só deste produto, mas ainda de milho, feijão, mandioca,
aguardente e rapadura.
89
Na medida em que surgiam novos povoados e intensificava-se a
produção e troca de mercadorias entre eles, aumentava a necessidade de meios
de transporte mais eficientes, pois as canoas e barcaças já não davam conta do
intenso movimento. O rio Ribeira e seus afluentes constituíam-se nos únicos
canais de transporte da população e escoamento da produção, que era levada rio
abaixo em barcos e canoas até um ponto próximo ao Porto da Ribeira, em Iguape,
de onde era transportada em mulas até o porto de Iguape.
Dessa forma, na metade do século XIX (1848-1854), começam a ser
usadas embarcações a vapor, que eram mais rápidas, maiores e mais seguras.
Com um movimento cada vez mais intenso no Porto do Ribeira, principalmente
devido à alta produção de arroz de Iguape, surge, por volta de 1827, o projeto de
abertura de um canal partindo desse porto (Ribeira) chegando ao Porto de Iguape,
com objetivo de eliminar o trajeto feito no lombo de mulas. No início da década de
1890 foi construído o canal, conhecido como Valo Grande, que tinha por objetivo
facilitar o transporte de mercadorias através de canoas, evitando o tráfego de
carroças pela pequena estrada existente. Seu término data do ano de 1860 e foi a
primeira grande obra hidráulica do Estado de São Paulo.
O canal tinha uma abertura inicial de 4 metros e em poucos anos,
devido à erosão, chegou a 300 metros de largura, e vinte de profundidade,
drenando cerca de 2/3 das águas do Rio Ribeira levando à obstrução do Porto de
Iguape. A questão do Valo Grande foi, e ainda é muito importante para a região
porque, se por um lado constituiu um canal de drenagem para uma grande zona,
por outro acabou por inviabilizar o Porto de Iguape, decretando a decadência
econômica de Iguape e da região.
Esse canal, a princípio, tinha apenas quatro metros de largura.
Contudo, acabou sendo incrivelmente alargado pela força e volume das águas do
rio, que terminou por assorear as barras de Icapara, do Ribeira e o próprio porto
de Iguape, impedindo a passagem de barcos maiores. No fim do século XIX, a
produção do então internacionalmente famoso “arroz de Iguape” já sofria
concorrência do arroz de outras regiões e, no início do século XX, havia diminuído
bastante.
90
(...) o Valo Grande foi fechado com terra em 1978, trazendo uma
rápida recuperação ao ecossistema local, mas como toda
barragem, acabou responsabilizada por grandes enchentes na
região. Em 1991, um acordo entre prós e contras decidiu pela
construção de uma barragem formada por uma ponte e comportas
(que seriam abertas na época de chuvas). Acontece que somente
a ponte foi construída e até hoje o Valo permanece aberto e
causando danos ambientais, com prejuízos principalmente para a
pesca.4
Mesmo com a expansão do povoamento, o Vale do Ribeira ainda era a
região mais despovoada, tanto do lado do estado de São Paulo como do Paraná,
no final do séc XIX. Tal fato estimulou a fundação de algumas colônias de
migrantes europeus, no Estado de São Paulo, principalmente austríacos, alemães,
italianos, irlandeses, ingleses, ucranianos e russos. Acabaram se estabelecendo
principalmente em Cananéia, Pariquera-Açu, Juqiá e Jacupiranga. (cf. ÂNGELO &
SAMPAIO, 1995). A imigração de maior vulto deu-se no início do séc XX (em
1912) com os japoneses, e teve grande influência econômica e cultural. Em 1918
a migração passa a ser promovida pela Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha (KKKK)
que lhe dá um caráter organizado. Através de doação de terras, pelo governo do
estado, e pela aquisição de outras, a KKKK as vende na forma de lotes de 10
alqueires (em torno de 24 hectares). O colono japonês cultivava para sua
subsistência os produtos da região, introduzindo modificações nas técnicas de
plantio. Sem dúvida, eles foram responsáveis pelo grande impulso à cultura
comercial do arroz e do chá.
Com a proibição do tráfico de escravos, os grandes fazendeiros de São
Paulo absorveram a mão de obra escrava para o trabalho nos cafezais, com isso
entra em decadência a produção dos alimentos básicos como o feijão, o milho e a
mandioca, gerando uma grande crise de abastecimento. No Paraná, predominava
a extração da erva-mate e o trabalho da pecuária nas fazendas.
O Paraná reivindicou, por sua vez, junto ao governo imperial a criação
de grandes colônias voltadas à produção de alimentos, com o objetivo de resolver
o problema de falta de alimentos. A partir de 1859 ocorreu a criação da colônia
4
Ver site: http://www.socioambiental.org/website/parabolicas/edicao38 - acessado em 18/6/2009)
91
Assunguí, com pequenas propriedades, localizada a 109 quilômetros de Curitiba,
no Vale do Ribeira. A colônia Assunguí era composta de franceses, ingleses,
italianos, alemães, espanhóis e suecos. Seu núcleo corresponde hoje ao
município de Cerro Azul. Sem infra-estrutura para escoar a produção, muitos
imigrantes procuraram trabalho na capital, abandonando o local.
A província do Paraná enfrentou as mesmas inquietações existentes
em todo o império do Brasil: preencher os chamados “vazios” existentes nessas
terras com laboriosos braços estrangeiros, de preferência com braços europeus.
Os meios aplicados para conseguir esses trabalhadores, entretanto, foram muitos
e iam desde mitos perpetrados para legitimar a presença estrangeira em terras
americanas, até a utilização de mecanismo legais propostos pelo governo, como
as leis que incentivavam a imigração. Ao se falar de imigrantes, é válido ressaltar
do que estamos falando. Caio Prado Jr. (1975) destaca que:
(...) pode-se considerar toda a história brasileira como um fenômeno de
imigração. A maioria da população existente no Brasil é de imigrantes,
sejam eles europeus e africanos. Aqui, o ponto que sustenta essa
afirmação é uma questão de cronologia e de contexto histórico. Quando
falamos de imigrantes, estamos nos referindo a um termo específico de
europeus vindos durante o século XIX e começo do século XX, por
motivos totalmente diferentes dos portugueses e africanos que vieram
para o Brasil em períodos anteriores (:233).
Povoar o Brasil Meridional consistiu em tarefa orientada segundo uma
escolha do governo imperial, influenciado pela idéia de que a “imigração” estava
ligada á “civilização” e ao “embranquecimento” do Brasil. No caso da Província do
Paraná, encontramos uma série de chamarizes aos imigrantes que, de uma
maneira geral, foram também uma constante em outras províncias. O sertão – um
espaço construído historicamente e que possui uma série de atribuições
específicas e históricas, o chamado vazio demográfico – foi o atrativo utilizado no
Paraná. A própria idéia de vazio foi mudando e se reconstruindo ao longo do
tempo. Uns acreditavam que este vazio era realmente a inexistência de qualquer
tipo de povoamento; outros consideravam não relevante que essas terras já
fossem ocupadas por índios, faxinalenses, bairros negros etc. Segundo Laura
Antunes Maciel (1997), neste caso o vazio é a ausência de brancos colonizadores.
92
Os índios faziam parte da paisagem local, assim como os animais e as árvores. A
colonização teria o sentido de povoar esses vazios:
(...) a ausência de uma população disciplinada, habituada ao trabalho
ordenado e regular, com moradia fixa, capaz de tomar em suas mãos a
defesa do território contra os interesses dos países vizinhos. A própria
estabilidade das fronteiras nacionais seria mais facilmente conseguida
caso naquelas regiões predominassem a agricultura e a criação de gado
(1997:127).
Uma pergunta sintetiza esta perspectiva: se não havia “ninguém”
ocupando esses espaços e o número de pessoas na província era pouco, por que
não povoá-la com imigrantes?
Conforme Odair Paiva (1993), nas décadas de 1930 e 1940 a política
de colonização acirra os problemas fundiários na região, na medida em que
grande parte das terras consideradas devolutas e destinadas aos novos colonos já
estavam, na verdade, ocupadas por pequenos posseiros, muitos dos quais foram
obrigados a desocupá-las. Nas palavras do autor, “a reordenação fundiária
proposta pela Secretaria na região não possuía qualquer interesse no sentido de
manter naquelas áreas os antigos pequenos produtores” (:179).
Num processo de "grilagem oficial”, apenas pequenos posseiros foram
prejudicados, sendo que os grandes produtores de banana em terras
consideradas devolutas nunca foram desapropriados. Oficialmente, o projeto
visava incentivar o desenvolvimento de pequenas propriedades através do cultivo
de banana. No entanto, o que se pretendia era criar um espaço para absorver uma
preocupante massa de mão-de-obra desempregada na capital paulista, em função
da decadência do café. Essa colonização oficial teve muito poucos resultados. Aos
colonos não foram dadas condições de se manterem na terra, e nos dias de hoje a
colônia não existe mais na memória das pessoas do lugar. No entanto, o Estado
atingiu o objetivo de povoar terras "devolutas" instalando grandes proprietários
inseridos na produção para o mercado. Ainda conforme Paiva,
embora tenha sido efêmera enquanto resultados, a colonização oficial
contribuiu para a perpetuação de uma estrutura que, no plano regional,
manteve a hegemonia dos grandes bananicultores, seja pela
desestruturação - nas áreas onde se instalou - de grande parte de
formas outras de ocupação da terra, e também por não ter contribuído
93
para a fixação e o crescimento dos pequenos produtores ali instalados
(1993: 180).
Geraldo Müller (1980) nos mostra que a intensificação do processo de
incorporação do Vale à produção de mercado ocorre nas décadas de 1940/50 com
a ampliação do cultivo de banana e chá. No caso da banana, devido ao aumento
da demanda pelos trabalhadores da indústria paulistana por causa do baixo preço
da fruta, e também devido à demanda de Montevidéu e Buenos Aires. Esse
processo foi acelerado na década de 1960 com a construção da rodovia BR-102,
atual Régis Bittencourt. O mesmo autor também nos fala da especulação fundiária
deflagrada com o início da construção dessa rodovia e conseqüente valorização
de terras no Vale. Por essa época, inúmeros imóveis foram adquiridos por
empresas paulistas da construção civil, siderúrgicas, metalúrgicas, imobiliárias,
empresas agrícolas e comerciais. Nas palavras de Müller:
a especulação fundiária na Baixada, como em todo o Vale, mostra-se
como mecanismo que permite incorporar terras sem aproveitá-las nem
povoá-las, configurando a mais acabada manifestação de cunho
primitivo do modo como as terras caem sob o domínio do acicate da lei
do valor. (1980: 82).
Os projetos imigratórios não tiveram, contudo, sucesso no aumento
significativo da densidade populacional do Vale. Esta característica, aliada a
outras como seu caráter montanhoso, presença de cavernas e grandes extensões
de Mata Atlântica, levou a que o Vale fosse escolhido, na segunda metade do
século XX, como local de treinamento do grupo de guerrilheiros de Carlos
Lamarca. Habitado por população pobre e que, provavelmente, seria sensível ao
discurso revolucionário, conforme escreve Queiroz (1992), “a região da Juréia foi o
lugar que Lamarca escolheu para se esconder e preparar a revolução” (:73). O
receio de que a região fosse alvo de novos focos guerrilheiros fez o Estado investir
pesado em novos “projetos de desenvolvimento” em fins da década de 1960 e na
década de 1970 (cf. ZAN, 1986; MARTINEZ, 1995). Diversos programas foram
implantados no Vale com o objetivo não só de “desenvolver a região”, mas
também de “livrá-la do atraso e do isolamento”: aumento da produtividade
agrícola,
o
estabelecimento
de
empresas
agropecuárias,
indústrias
de
94
transformação da banana e outras frutas, mineração, implementação da pesca,
cultivo de cacau e de seringueira. Dentre os projetos de desenvolvimento, houve
também a ameaça de instalação de usinas atômicas na área da Juréia.
Maria Cecília Martinez (1995) nos diz que as culturas caipira e caiçara
do Vale foram, nas últimas décadas do século passado, consideradas o motivo do
atraso econômico devido a seus modos de produção e comercialização, que não
se enquadravam nos moldes capitalistas. Portanto, o que se queria era substituir
tanto as pequenas propriedades rurais quanto o latifúndio tradicional improdutivo
por uma classe média rural de tipo empresarial. Havia, para que a região se
tornasse atraente ao capital privado, a necessidade de implementar os setores de
transportes, de comunicações e de energia. Uma série de obras foi realizada para
beneficiar setores privados com o uso de verbas públicas. Com exceção da
banana e do chá, que já estavam implantados desde os anos trinta, nenhum
desses projetos conseguiu de fato industrializar o Vale.
Na década de 50 do séc. XX, a agricultura do Vale entra em sua fase
capitalista, com o cultivo sendo realizado em terras de propriedade privada e com
o uso da mão-de-obra assalariada. Muitos dos colonos japoneses foram
adquirindo terras dos posseiros e os transformando em empregados, diaristas ou
meeiros (cf. ÂNGELO & SAMPAIO, 1995).
Nesse período, a quase total ausência de estradas e a retração da
importância do Rio Ribeira como via de transporte contribuíram para um
isolamento geográfico, econômico e social de região no interior do estado, levando
a que se voltasse sobretudo para a agricultura de subsistência. Conforme José
Roberto Zan (1986),
com a decadência da agricultura comercial, o Vale mergulhou num
período de estagnação econômica que se estendeu pelas
décadas de 10, 20 e 30 do século atual [passado]. (...) O não
empenho dos poderes públicos, no sentido de reaparelhar o
sistema de transportes da Baixada, acabou por inviabilizar a
agricultura comercial. Conseqüentemente, a maior parte da
população refluiu para a economia de subsistência (:26-29).
Foram
várias
as
tentativas
de
implantação
de
“projetos
de
desenvolvimento” no Vale após a decadência da agricultura comercial. Em
95
síntese, os principais ciclos econômicos que se instalaram no Vale do Ribeira ao
longo da história foram: a exploração aurífera, a partir do século XVII, e de outros
minérios até décadas recentes, e as culturas do arroz, do café, do chá e da
banana. Estes ciclos transformaram o Vale do Ribeira em fornecedor de recursos
naturais de baixo custo, explorados sem qualquer respeito ao patrimônio
ambiental e cultural e sem geração de benefícios para a população residente.
As atividades mineradoras no Alto Vale do Rio Ribeira perderam
impulso a partir da segunda metade do século XVIII. A partir desse período
surgem descobertas das jazidas de chumbo no Vale do Ribeira ocorreram no
município de Iporanga em 1832 (cf. LEONARDOS, 1934). Segundo Bauer (apud
DAITX, 1986b), os primeiros indícios já eram conhecidos no Morro do Chumbo no
final do século XVIII, no entanto, somente a partir de 1857 obteve-se o
conhecimento do valor desta jazida além de outras localizadas nas regiões de
Agudos, Agudinho, e Agudos Grandes, e cabeceira do Ribeirão Taquarussu.
Em Adrianópolis, município paranaense localizado na região do Vale do
Ribeira, a empresa Plumbum, pertencente ao grupo Trevo, se instalou no ano de
1937 e passou a desenvolver atividades metalúrgicas na planta da usina em 1945,
sendo responsável, até o ano de 1954, por todo o minério de chumbo produzido
no Brasil. Funcionou no período de 1945 a 1995 5.
No período de atuação das minas e da Plumbum, foram processadas
aproximadamente três milhões de toneladas de minério, gerando cerca de
2.780.000 toneladas de rejeitos. No início os resíduos eram lançados diretamente
no rio Ribeira sem tratamento, mais tarde passaram a ser depositados no entorno
da usina. A emissão atmosférica de material particulado sem tratamento até a
década de 1980, quando foi implantado o uso de filtro manga, propiciou a
deposição de contaminastes em grande extensão, como abordaremos no capítulo
seguinte.
5
GOVERNO DO PARANÁ. Programa de apoio à população carente do Alto Ribeira – Pro-Ribeira –
Diagnóstico e propostas de ação. Curitiba: Secretaria de Estado do Planejamento/Coordenadoria
de Ação Regional-CAR/Fundação Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social IPARDES, 1980.
96
Outro aspecto que contribuiu para a tentativa de “desenvolver” o Vale
do Ribeira foi a construção, na década de 1960, da rodovia BR-102, atual Régis
Bittencourt6. No Brasil, no entender de Pereira, o planejamento governamental
inicia-se no primeiro Governo Vargas, ganha impulso no Governo Juscelino
Kubitschek e nos Governos Militares. Esses são momentos em que o
planejamento estatal atuou de “forma efetiva” com investimentos em infraestrutura de transportes, energia e comunicações, que são fatores importantes na
atração e reprodução de capital pela via da industrialização, que posteriormente
estendeu-se à modernização da agricultura. A relação entre indústria e
modernização da agricultura resulta na urbanização do país. A junção desses três
fatores influenciou a política de transportes, mas no decorrer dessa política ocorre
a evolução, priorização e concentração na estrutura rodoviária.
Diante disso, o autor afirma que o governo de Juscelino Kubistchek
aproveitou a conjuntura da economia internacional e criou bases para a atração do
capital internacional. Além disso, implantou uma legislação cambial favorável à
atração de capital de risco e investiu em infra-estrutura que se tornou suporte para
a implantação do parque industrial do país, apesar do endividamento provocado.
Percebe-se que a aliança entre capital externo, elite nacional e Estado fez
concentrar os investimentos em um único modal de transporte, deixando os outros
modais a mercê da política instaurada por este “projeto desenvolvimentista”.
Como vimos, a implantação dos “projetos de desenvolvimento” exigia
meios de transportes para articulação das redes materiais pelos territórios.
Influenciada pela industria automobilística, a política de transportes brasileira
centralizou seus investimentos na modalidade rodoviário. O Estado e a elite
nacional faziam o discurso de promover a integração interna da economia
brasileira, mas o privilegiamento do modal rodoviário desequilibrou as matrizes de
transportes, elevou os custo econômicos e sociais.
6
Ver artigo de PEREIRA, Luiz Andrei Gonçalves; LESSA, Simone Narciso e CARDOSO, Antônio
Dimas. Planejamento e Transporte Rodoviário no Brasil. Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento
Social
–
PPGDS
/
UNIMONTES.
Disponível
em:
http://www.unimontes.br/coloquiointernacional/arquivos/131luizandreigoncalvespereira.pdf Acesso
em 27 de julho de 2009.
97
O mesmo autor também nos fala da especulação fundiária deflagrada
com o início da construção dessa rodovia e conseqüente valorização de terras no
Vale do Ribeira. Por essa época, inúmeros imóveis foram adquiridos por empresas
paulistas da construção civil, siderúrgicas, metalúrgicas, imobiliárias, empresas
agrícolas e comerciais.
Foi seguindo essa diretriz básica, que Furtado (1972) qualificou de “mito
do desenvolvimento econômico”, que foram implementadas as políticas de
desenvolvimento nos países atrasados, tendo como fio condutor a idéia de
progresso como algo essencialmente tanto positivo quanto inevitável.
Reportando-se aqui especificamente ao caso brasileiro, a experiência
nos mostra que embora a economia tenha crescido a taxas altas no período do
pós-guerra (de 1945 a 1980, o PIB brasileiro cresceu a uma taxa média de 7%
a.a.), o mesmo não pode ser verificado quanto à melhoria das condições de vida
de seus habitantes - pelo menos, a sua maioria - que viu (concomitantemente à
construção de um imenso e até alguns anos relativamente moderno parque
industrial) seu poder de compra ser diluído no decorrer do tempo, a ponto de ver o
Brasil ser considerado, nos anos 90, um dos países mais desiguais do mundo em
termos de distribuição de renda.
Tal constatação, independente da análise dos pormenores e das
condições que conduziram a tal situação, apenas nos salienta o diagnóstico que já
se tornou um lugar-comum: de que desenvolvimento e crescimento econômico
são dois conceitos inteiramente diferentes, assim como são ambos diferentes de
melhores condições de vida da população em geral e de preservação ambiental
responsável.
Vale a pena apresentar parte da “Carta de Curitiba”, elaborada, em
setembro de 1978, durante o 1º Simpósio Nacional de Ecologia, transcrita por
Genebaldo Dias:
Os modelos desenvolvimentistas da atual sociedade de consumo e,
muito especialmente, o modelo brasileiro, são modelos absurdos,
porque insustentáveis, isto é, suicidas. Estes modelos repousam no
esbanjamento orgástico de recursos limitados e insubstituíveis. Eles
significam a destruição sistemática de todos os sistemas de sustentação
da vida na Terra. (2003: 486)
98
É possível perceber que com o passar do tempo a “Carta de Curitiba”,
produzida aqui, caiu no esquecimento; isso porque o Estado do Paraná adotaria o
modelo
único
de
desenvolvimento
criticado
no
Simpósio.
Neste,
José
Lutzenberger (1985), responsável pela palestra de encerramento, chamava a
atenção para que a sociedade observasse outros sistemas que tinham como
paradigma a preservação do ambiente e da condição humana.
Aqui deixo uma sugestão que me parece muito importante: que
politólogos e sociólogos de visão se aprofundem no estudo da Ecologia
e examinem detidamente o funcionamento dos sistemas naturais
intactos, enquanto os houver. Suspeito que acabarão por descobrir
modelos extremamente relevantes para a condição humana. Ali não
existem estruturas de poder central, hegemonias, dominação. O que
existe é constelação de equilíbrios. Progresso, ali, é esmero de equilíbrio
(:102) .
A perspectiva e as preocupações expressas no Simpósio podem ser
vistas como resultado de um contexto internacional. Com efeito, a partir das
décadas de 1960 e 1970, a preocupação com o meio ambiente passa a ser
ventilada na esfera de organismos internacionais. Constatação básica desta linha
de raciocínio é a noção de que industrialização não é sinônimo de
desenvolvimento. Assistimos paralelamente à incidência das altas taxas de
crescimento, um inchaço das grandes metrópoles, um aumento assustador da
criminalidade, da poluição, etc. Em decorrência principalmente da urbanização
rápida e forçada ocorrida no país, em virtude do modelo industrializante.
A questão que se coloca então, basicamente, é: tivemos uma prática de
atividade econômica depredatória (desenvolvimento, crescimento econômico), que
paralelamente ao fato de ter conseguido modernizar as bases da economia, trouxe
consigo uma série de distorções, concentrando renda e gerando, em alguns
casos, exemplos gritantes de retrocesso nas condições de vida de parcelas
significativas da população, e o que é pior, dilapidando seu próprio habitat. Por
outro lado, tal caminho de “desenvolvimento”, que é excludente, que tira o direito
da população local a seguir com seu modo de vida, tem como resultado encurralar
suas atividades de agricultura familiar. Estes agricultores familiares, comunidade
quilombolas e tradicionais que utilizam a terra como terra de trabalho, e não de
99
exploração, precisam reproduzir-se enquanto agricultores repondo a força de
trabalho familiar. Sendo assim, quanto mais o capital expande e domina o campo,
mais difícil se torna a reprodução social na propriedade familiar. Pois com os
constantes endividamentos contraídos, a renda da terra não fica em suas mãos,
mas em mãos de empresas urbanas: bancos, cooperativas, e intermediários; e a
produção de alimentos baratos aumenta o lucro das empresas urbanas, pois a
reprodução da força de trabalho do operário também fica mais barata. Infelizmente
as políticas governamentais impõem um modelo de desenvolvimento que privilegia
a agricultura patronal (excludente), que concentra ainda mais as terras nas mãos
de poucos – aumentando os conflitos por terra –, e colocam cada vez mais a
integração com o capital como única opção para os agricultores familiares. (cf.
FERNANDES, 2001). Então para que os agricultores continuem na terra (terra de
trabalho) a resistência às pressões do capital é imprescindível. Conforme afirma
Martins (1986): “Já não há como separar o que o próprio capitalismo unificou: a
terra e o capital; já não há como fazer para que a luta pela terra não seja uma luta
contra o capital, contra a expropriação e a exploração que estão na sua essência”
(:177).
Nesse sentido, surge a nossa discussão específica sobre o caso do
Vale do Ribeira: como pensar a conjugação de fatores como sua reconhecida
riqueza natural, a presença expressiva de comunidades tradicionais na região e,
simultaneamente,
seu
baixo
nível
de
desenvolvimento,
segundo
dados
governamentais? Uma questão relevante que permeia este trabalho é de que para
a comunidade João Surá – e outras tantas comunidades ali situadas – há
possibilidade de terem seu espaço e visão de mundo como uma alternativa. Um
modelo de produção/reprodução que consiga não dilapidar o meio ambiente, e
que possa gerar uma melhor condição e qualidade de vida para seus habitantes.
O "desenvolvimento" – expansão capitalista em moldes industriais –, no
século XX, parece chegar com mais determinação ao país. Não para o Vale
especificamente, mas ainda assim dá-se nesta fase a abertura de novas vias de
comunicação terrestre. Como vimos, com a abertura da BR-116, nos anos 60, o
Vale passa a ter ligação direta com as capitais dos estados de São Paulo e
100
Paraná, o que apesar de facilitar sobremaneira o escoamento da produção
regional, trouxe também a agudização da luta pela posse da terra e a especulação
imobiliária. O planejamento estatal delineado e executado na região não
conseguiu, ser bem sucedido na implantação do modelo desenvolvimentista
proposto, uma vez que a criação de infra-estrutura para a exploração de seus
recursos naturais (minério, madeira, peixes...), em benefício de alguns grupos
econômicos privados, não alcançou todos os impactos esperados (cf. MULLER,
1980).
Ainda
hoje,
aspectos fundamentais como
saúde,
educação
e
saneamento estão longe de atingirem padrões verificados nas demais áreas do
estado, o que traz consigo primordialmente a existência de uma grande população
de baixa renda, segundo esse modelo desenvolvimentista (embora os índices de
IDH no centro do estado sejam mais baixos que no Vale do Ribeira).
Fonte: http://www.aenoticias.pr.gov.br/modules/news/article.php?storyid=40821
População e índices de desenvolvimento humano – Vale do Ribeira
101
Município/Estado
População (2000)
IDH médio (1991)
IDH médio (2000)
Adrianópolis (PR)
7.007
0,613
0,683
Cerro Azul (PR)
16.352
0,568
0,684
Ribeira (SP)
3.506
0,623
0,678
Iporanga (SP)
4.562
0,632
0,693
Eldorado (SP)
14.134
0,683
0,733
Estado do Paraná
9.563.458
0,711
0,787
Estado de São Paulo
37.032.403
0,778
0,820
(500.000)
0,727
0,799
Vale do Ribeira
Fontes: IBGE e PNUD
Para compreender a discussão a seguir, é necessária uma reflexão
sobre os aspectos a partir dos quais estes índices são produzidos. O IDH-M é
elaborado com base nos indicadores de educação (alfabetização e taxa de
freqüência escolar), longevidade e renda da população.
O que pretendemos colocar aqui é que a eleição de tal índice como
central para avaliar a situação dos municípios brasileiros parece caminhar no
sentido da reedição da lógica industrializante. Os índices que medem o
desenvolvimento (PIB, IDH, Gini, IPEA, FGV) não levam em consideração a
riqueza ambiental da região e os saberes das comunidades tradicionais – dentre
elas as quilombolas. A análise dos fatores educação e renda exemplificam o que
queremos dizer. Em primeiro lugar, tomar a renda como índice implica considerar
somente a produção que é voltada para o mercado, resultando em renda
monetária. Em outras palavras, se desconsidera a produção tradicional, que
muitas vezes é consumida pelo próprio grupo familiar ou comunidade, sem passar
por trocas que envolvam dinheiro. Além disso, só há valorização da educação
formal neste modelo, ignorando os processos não formais de transmissão de
conhecimento característicos das comunidades tradicionais. Só um tipo de saber é
considerado – o saber técnico-científico da sociedade mais ampla –, e os saberes
dos grupos são transformados em um não saber.
Cabe retomar, aqui, a discussão dusseliana em torno do modelo
eurocêntrico de interpretação do real, que não somente molda a maneira pela qual
se dá a construção da história oficial da América Latina – “apagando”
102
acontecimentos e processos significativos na configuração do presente, como tão
bem ilustrado simbolicamente pelo ato de Rui Barbosa de queimar os arquivos da
escravidão –, mas também orienta a perspectiva de futuro considerada legítima. O
cálculo do IDH, os aspectos por ele valorizados como sinais de “riqueza” e
“desenvolvimento”, a imposição de um modelo uniforme de “progresso” – baseado
em formas de produção, consumo e relações sociais que têm por base
características próprias ao modo de produção capitalista industrial – e a tentativa
de, de maneira irrefletida, aumentar tais índices para todos – o que é tomado
como diminuição (claramente positivada) da pobreza – fazem com que também
um projeto de futuro do Estado e das elites seja imposto como “o” único projeto
possível. Como conseqüência, encontramos o discurso que vê a diversidade
sempre sob o risco do desaparecimento, pois que irremediavelmente condenada
pela expansão inevitável e valorizada do “progresso”. Em suma, como já
ressaltava Dussel, a diversidade é negada, e há um esforço sistemático de
arrastar o outro para o mesmo. É a esta perspectiva, como se explicitará no
capítulo seguinte, que a analética se contrapõe como método, a fim de reconhecer
e dar voz a possibilidades distintas e igualmente legítimas de ser e viver – que
têm, inclusive, um potencial de resistência frente ao modelo dominador único.
Nesse sentido, o economista Ladislau Dowbor escreveu um artigo
denominado O debate sobre o PIB: estamos fazendo a conta errada.7 Nele o autor
demonstra que o cálculo do PIB não leva em conta os interesses da população e
os impacto ambientais. No Brasil, a discussão entrou com força recentemente, em
particular a partir do cálculo do IDH e sua valorização na elaboração de políticas
públicas. Dowbor se pergunta: como dizer que a economia vai bem, ainda que o
povo vai mal? Então a economia serve para quê? Qual o sentido de se considerar
a produção sem levar em conta os objetivos e conseqüências de tal produção? As
limitações do PIB são apresentadas por ele através de exemplos:
(...) é que quando o navio petroleiro Exxon Valdez naufragou nas costas
do Alaska, foi necessário contratar inúmeras empresas para limpar as
costas, o que elevou fortemente o PIB da região. Como pode a
7
Todas
as
citações
estão
disponíveis
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30/08/09.
no
Acessado
site:
dia
103
destruição ambiental aumentar o PIB? Simplesmente porque o PIB
calcula o volume de atividades econômicas, e não se são úteis ou
nocivas. O PIB mede o fluxo dos meios, não o atingimento dos fins. Na
metodologia atual, a poluição aparece como sendo ótima para a
economia, e o IBAMA vai aparecer como o vilão que a impede de
avançar. As pessoas que jogam pneus e fogões velhos no rio Tieté,
obrigando o Estado a contratar empresas para o desassoreamento da
calha, contribuem para a produtividade do país. Isto é conta?
O autor amplia sua crítica considerando o fato de o PIB, ao calcular a
riqueza, não considerar que parte dela é “produzida” a partir da redução dos
estoques de bens naturais. Segue:
Mais importante ainda, é o fato do PIB não levar em conta a redução dos
estoques de bens naturais do planeta. Quando um país explora o seu
petróleo, isto é apresentado como eficiência econômica, pois aumenta o
PIB. A expressão “produtores de petróleo” é interessante, pois nunca
ninguém conseguiu produzir petróleo: é um estoque de bens naturais, e
a sua extração, se der lugar a atividades importantes para a
humanidade, é positiva, mas sempre devemos levar em conta que
estamos reduzindo o estoque de bens naturais que entregaremos aos
nossos filhos. A partir de 2003, por exemplo, não na conta do PIB mas
na conta da poupança nacional, o Banco Mundial já não coloca a
extração de petróleo como aumento da riqueza de um país, e sim como
a sua descapitalização. Isto é elementar, e se uma empresa ou um
governo apresentasse a sua contabilidade no fim de ano sem levar em
conta a variação de estoques, veria as suas contas rejeitadas. Não levar
em conta o consumo de bens não renováveis que estamos dilapidando
deforma radicalmente a organização das nossas prioridades. Em termos
técnicos, é uma contabilidade grosseiramente errada.
As reflexões de Dowbor tratam de explicitar um conceito de
desenvolvimento que contemple o padrão de qualidade de vida regional, não
reeditando as passagens de uma lógica, que se consegue melhorias em termos
de taxa de crescimento econômico, traz consigo a dilapidação do meio ambiente e
não leva em consideração a vida do cidadão comum e das comunidades ali
inseridas. A maturação dessa crítica a esse modelo de desenvolvimento, que no
campo é marcado por uma expansão produtiva baseada no tripé veneno-adubotrator, pode permitir o repensar e fortalecer as experiências micro-locais e
fortalecer seus arranjos tradicionais e costumes de uso da terra.
Os dados sócio-econômicos que mostram as regiões, através de
indicadores de renda, precisariam ser compreendidos à luz das especificidades
regionais, pois os dados gerais – como PIB agrícola, renda per capita, taxa de
104
analfabetismo, escolaridade, e conseqüentemente IDH – não são capazes de
revelar uma parte desse rural complexo, escondem outras e tornam necessária a
interpretação da pobreza, bem como repensar os programas de desenvolvimento
homogêneos, que não levam em conta os sistemas de gestão comunitária (que
governa, partilha e conserva recursos, com base no conhecimento do meio, na
espacialidade comum e em acordos familiares, permitindo que, na região, o uso
intenso do solo conviva com a maior cobertura percentual de vegetação nativa
manejada além dos limites da revolução verde).
Mas é um equívoco desconhecer os processos de dominação e
expropriação das comunidades quilombolas e tradicionais em geral, afirmando que
vivem na abundância; seria um engano tão grande quanto supor que estavam no
paradoxo da pobreza. Pobreza é um conceito impreciso para definir sua condição,
porque confunde estas com outras populações – particularmente aquelas que não
dispõem de recursos naturais para reprodução – e elide os mecanismos
específicos que reproduzem a situação de exclusão.
Nesse sentido, o exemplo do ocorrido com o Vale do Jequitinhonha –
que vai sendo constituído como pobre ao longo da segunda metade do século XX,
até atingir a denominação corrente de “Vale da Miséria” – ajuda a pensar o
contexto do Vale do Ribeira, eleito como “Vale da Pobreza” regional. Com efeito,
no Vale do Jequitinhonha, os regimes agrários peculiares e os baixos níveis
relativos dos indicadores sócio-econômicos fizeram com que a região fosse
considerada, pelo poder público, uma das mais pobres do Brasil. Por isso, vários
governos orientaram para lá programas de “desenvolvimento rural”. Mas esses
esforços não produziram bons resultados.
No início do séc. XX, com a abertura de estradas que deslocam as
rotas comerciais do Rio Jequitinhonha (processo muito semelhante ao que ocorreu
no Vale do Ribeira, como vimos), e o desenvolvimento da produção de gêneros
alimentícios no sul da Bahia e outras regiões vizinhas, o Vale passa a enfrentar
um período de retração de seu comércio e de dependência externa. Dependência
esta que irá se agravar com a integração regional ao mercado mais amplo –
responsável tanto pela redução da competitividade dos produtos locais quanto
105
pelo aumento da necessidade de renda monetária por parte da população. Assim
também o Vale do Ribeira durante um longo período foi rota do caminho das
Tropas e é importante saber em que momento ele deixa de ser um eixo
importante, do ponto de vista econômico, para se tornar um local de carência.
Como a idéia de progresso e de desenvolvimento é uma idéia linear, parece que o
Vale do Ribeira não somente nunca foi “desenvolvido”, mas também que outras
regiões vão avançando e ele vai ficando para trás.
É curioso pensar que, em geral, o discurso da carência – e tanto no
caso do Vale do Jequitinhonha quanto do Vale do Ribeira ele ocorre – apaga o
passado regional, bem como antecede a implantação de um modelo capitalista de
produção. Porque aí, ao invés de se reconhecer a diferença entre o modelo que lá
está e o modelo que vai ser implantado, o discurso oficial afirma que o que lá
existe é um “não modelo”, e, portanto, será implantado o grande e redentor
modelo de desenvolvimento uniformizante.
De acordo com Ricardo Ribeiro (1993), os discursos locais sobre a
região hoje designada “Vale do Jequitinhonha” são marcados, no início do séc.
XX, pelo tema da valorização do “orgulho sertanejo” – baseado na idéia de uma
vida saudável, simples, vinculada a valores como dignidade, honra, trabalho e
honestidade. Já com relação aos discursos externos, não há uma identificação da
área pelas autoridades públicas estaduais e nacionais como se destacando nem
por atributos claramente positivos nem excessivamente negativos. Até a década
de 1950, a região é concebida como parte do Norte/Nordeste mineiro (uma
definição muito mais fluida e que não impulsionava qualquer tipo de proposta de
ação governamental ou projeto modernizante específico). É somente após este
período que o Vale passa a ser visto pelo Estado como unificado e distinto das
regiões limítrofes, e ao mesmo tempo definido através da carência – de recursos,
escolarização, emprego, etc. – definição esta que norteará todos os projetos do
Estado para a região, e que servirá de instrumento dos políticos regionais para
conseguir verbas e benefícios externos. Nas palavras de Ribeiro:
Aos poucos, os discursos dos políticos sobre o
Jequitinhonha foram abandonando o orgulho sertanejo, para assumirem
o ponto de vista modernizador, que examina a região a partir de fora, e
106
recomenda a ação do Estado para redimi-la do atraso, da ignorância, da
pobreza, etc. Desta forma, o Estado, que desde meados da década de
1960 vem atuando de forma mais sistematizada na região, tem sido o
principal impulsionador do “progresso” que luta para redimir o Vale de
sua pobreza, que no entanto parece ser-lhe tão inerente como a seca e,
assim, resistir a todas as investidas. O que não é de todo ruim, pois a
pobreza do Jequitinhonha continua a render-lhe novos estudos, planos e
verbas, que certamente irão beneficiar capitais da região ou vindos de
fora e políticos locais, que poderão sempre usar a pobreza como forma
de reafirmação regional, como seus antepassados usavam o vigor
sertanejo (apud PORTO, 2007:62).
No caso do Vale do Ribeira, há algumas distinções, mas o processo de
forma mais ampla é semelhante. Também aqui se vincula o discurso da
necessidade e inevitabilidade do desenvolvimento regional a uma carência
constitutiva do Vale – que, curiosamente, como já indicamos, não se encaixa nem
mesmo na definição de carência do próprio Estado, pois que não possui os índices
mais baixos de IDH do Paraná. O avanço do capitalismo é, então, tomado como
tendo um certo caráter “redentor”, pois que vai retirar o Vale desta situação de
carência a que hoje se encontra “condenado”. Fica, então, mais simples
desconsiderar a população tradicional que o ocupa e a questão ambiental, pois
que o modelo desenvolvimentista único se constrói como auto-evidente.
Nesse sentido é que nos perguntamos quando é que o Vale do Ribeira
se torna o grande problema, mesmo fazendo parte da região Metropolitana. Ao
contrário do Vale do Jequitinhonha, que está lá no sertão, o Vale do Ribeira é local
onde passam uma boa parte dos caminhos fundamentais para o trânsito regional,
uma região povoada desde o início da formação do Paraná. Como isso tudo vai
resultar em um Vale que é tido como da pobreza? Se você tinha o Vale como
passagem de produtos importantes, que geravam desenvolvimento de um
comércio e circulação de dinheiro? Provavelmente, o Vale do Ribeira não era tido
como problemático no início do século XX, quando se inicia a expansão para o
Norte do estado. Naquele momento, provavelmente esse discurso da carência – e
do “vazio” – era atribuído ao Norte. O resultado foi a expansão capitalista para o
norte do Estado. Em algum momento o Vale do Ribeira passa a ser pensado como
lugar de carência, e sem história. O que não é verdadeiro, conforme demonstrado
acima.
107
Novamente
tal
processo é
ilustrado
pelo
caso
do
Vale
do
Jequitinhonha, em que a partir da nova imagem se coloca a necessidade do
Estado (e até mesmo de entidades não governamentais) de agir no sentido de
mitigar as conseqüências da situação de carência absoluta e garantir a
possibilidade de desenvolvimento capitalista da economia regional – a única
alternativa que eliminaria definitivamente os problemas a ela atribuídos. Citando
Moura:
a insistência com que a questão social do Vale do
Jequitinhonha é centralizada na elevação dos níveis de renda
evidencia como uma aliança entre rótulos e números quer imputar
atributos negativos a uma sociedade, tais como ausência de
atividade econômica significativa, fraco dinamismo dos atores
envolvidos, tradicionalismo, de modo que a expansão de
atividades fundadas no lucro capitalista se tornem o remédio par
excellence para o desenvolvimento, trazendo, enfim, vida para
onde supostamente existem apenas um povo moribundo e uma
terra agonizante (MOURA, 1988:5).
Essa citação é importante porque ela é capaz de ilustrar um processo
mais amplo, se aproximando em muito da construção do ideário de “pobreza” e
“carência” imputados ao Vale do Ribeira. Usando os critérios para identificar os
índices de pobreza, do próprio sistema capitalista, entre os municípios da região
Sul com pior IDH,8 estão listado os municípios paranaenses de: Curiúva,
Itaperuçu, São Jerônimo da Serra, Mariluz, Godoy Moreira, Rio Bonito do Iguaçu,
Cândido de Abreu, Ventania, Rosário do Ivaí, Santa Maria do Oeste,
Guaraqueçaba, Laranjal, Reserva, Imbaú, Mato Rico, Doutor Ulysses e Ortigueira.
O IDH dessas 17 cidades varia entre 0,620 e 0,675.
Frisamos que estamos utilizando esses índices apenas para contra
argumentar o discurso do Estado. Mas ninguém rotula essas regiões, onde estão
localizadas essas cidades de “região da pobreza”, porque nelas a expansão do
modelo capitalista é intensa.
8
Ver: Paraná tem as cidade com pior IDH da região
online.com.br/editoria/especiais/news/37383/ acessado dia 24/09/2009.
Sul
http://www.parana-
108
A imagem do Vale Jequitinhonha descrita pode ser comparada com
aquela construída para o Vale do Ribeira e o centro paranaense, que, até então
espaços de produção autárquica, passaram a competir em termos de custos e
produtividade em mercados que se tornaram nacionais. As especificidades
regionais se tornavam redundâncias desnecessárias à medida que mercados se
integravam e autarquias desapareciam, o local ficava subordinado ao nacional e
essas regiões deveriam efetivamente ser classificadas como pobres em termos
relativos e absolutos, porque a partir da comparação ao dinamismo de outras
regiões, sua sociedade rural se tornaria os resquícios de um passado que
persistia. O que justificaria o modelo modernizador e desenvolvimentista. Para
assumirem o ponto de vista modernizador, apontado por Ribeiro, recomenda-se a
ação do Estado, que seria capaz de redimi-las do atraso, da ignorância, da
pobreza, etc.
No caso do Vale do Jequitinhonha, de acordo com Ribeiro, os dados
sócio-econômicos precisariam ser compreendidos à luz das especificidades
regionais, pois dados gerais – como IDH, PIB agrícola, renda per capita, taxa de
analfabetismo, escolaridade – indicam não somente pobreza, mas a existência de
um rural complexo, com forte base comunitária, onde a família extensa domina as
terras de grotas, estabelece áreas privativas e de uso comum e, ao mesmo tempo,
define regras de gestão de terras e recursos. É um rural de comercialização
reduzida, produção diversificada e população relativamente envelhecida, marcado
pela cultura local. Os sistemas produtivos são, basicamente, auto-suficientes:
usam a força da terra e o manejo da vegetação para repor a fertilidade dos solos e
a população rural satisfaz grande parte de suas necessidades alimentares com
produção autônoma – comendo feijão de si mesmo, como definem –, o mercado
nacional de bens agrícolas não determina sua pauta produtiva e os programas
modernizadores esbarram nos costumes, na cultura e nos regimes agrários.
Tanto no Vale do Jequitinhonha como no Vale do Ribeira, para se
rebater esse discurso da carência se constrói, no entanto, um outro discurso que é
o da riqueza “cultural” – como, por exemplo, no Vale do Ribeira com as
comunidade quilombolas ali situadas. São vistas como um museu vivo que podem
109
contar a história da região. Atribui-se valor a elas por situá-las no passado, e não a
partir do reconhecimento de sua contemporaneidade. Ao se falar das
comunidades, sempre se fala de uma forma romantizada: um povo que realiza
suas festas, um povo possuidor de uma cultura rica. Essas visões românticas são
problemáticas, por expressar a diferença como distância temporal segundo as
perspectivas externas da compreensão de mundo dos moradores locais.
Em síntese, para rebater esse discurso da carência, elabora-se um
novo discurso também delicado, pois que não coloca em questão o anterior.
Ressalta-se a idéia de um quilombo romantizado. O que, em geral, se lembra
quando se fala em quilombo é de Palmares – que, além de ser deslocado no
passado, implica em um modelo de resistência marcado pela luta. Os demais
quilombos pensados a partir do modelo palmarino. Além disso, se constrói uma
visão romantizada de grupo coeso e harmônico, que nunca corresponde aos
grupos reais, acabando por fragilizar esses grupos quando querem reivindicar o
direito a distinção. O discurso da tradição é idealizado, e toda mudança é
descaracterização de algo idealizado, não se fala do contexto real anterior ou
atual. Fala-se de uma idealização do passado. Então, constrói-se uma idéia de
que as comunidades estão sempre desaparecendo, porque se nega a agência
desses grupos. E para que elas tenham qualquer conquista política, elas têm que
se adaptar a esse ideal do que supostamente seriam elas no passado.
3.2
Vale do Ribeira Território da Cidadania: um processo de inclusão
solipsista
Como vimos, o combate à “pobreza” não somente impõe um modelo
único de realidade, mas também transforma-se numa questão instrumental, cujo
objetivo é viabilizar reformas econômicas orientadas ao mercado. Caberia ao
Estado o papel de inserir no mercado especificamente aqueles indivíduos que
estão fora dele – os pobres -, interferindo o mínimo possível na livre concorrência.
Várias são as iniciativas governamentais como o SIT – Sistema de
Informações Territoriais – que disponibilizam dados sobre os Territórios Rurais
110
organizados por tema, tais como: Demografia e Aspectos Populacionais,
Economia, Saúde, Educação e outros. A partir daí são estimulados programas, em
parceria com os estados e municípios, apoiado pelo Governo Federal através do
Ministério do Desenvolvimento Social, como estratégia central do Programa Fome
Zero. E um desse programas é o do Consórcio de Segurança Alimentar e
Desenvolvimento Local – CONSAD VALE DO RIBEIRA. Este assim se define no
site oficial:
O CONSAD VALE DO RIBEIRA tem por finalidade executar as
atividades previstas no Acordo de Programa de Segurança Alimentar e
Desenvolvimento Local, e tem como objetivos principais planejar e
executar atividades destinadas a instituir e ampliar as ações de
Segurança Alimentar e Nutricional e de promoção do Desenvolvimento
Local dos municípios que o integram, mediante a prestação de serviços
ou o incentivo às atividades de outras entidades, buscando atuar em
cooperação com os demais entes públicos e privados, mediante a
celebração de parcerias e convênios para:
Estimular a cooperação intermunicipal e a elaboração de estudos e
pesquisas que contribuam para a promoção do desenvolvimento local;
Representar as entidades que o integram perante entes públicos e
privados, nacionais e estrangeiros, visando a formalização de parcerias
e convênios para a obtenção de recursos que serão alocados aos
programas de segurança alimentar e nutricional e de promoção do
desenvolvimento local;
Promover o desenvolvimento econômico e social sustentável e o
combate à pobreza;
Preservar, defender e conservar o nosso meio ambiente, especialmente
a fauna, flora, os recursos hídricos e promover o desenvolvimento
sustentável;
Promover ações para o fortalecimento do cooperativismo, associativismo
e da economia solidária, principalmente das entidades sociais
integrantes do Consad;
Promover a ética, a paz, a cidadania, os direitos humanos, a democracia
e outros valores universais. (http://www.idesc.org.br/consad.asp acessado em 01/11/2009).
A proposta do projeto do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Ministério do Desenvolvimento Social
(MDS)9 busca articular a ação destes ministérios na região do Vale do Ribeira.
Além do MDS que, através do CONSAD, vem liberando recursos para apoio ao
desenvolvimento
9
local.
Programas
como
o
Programa
Nacional
de
É interessante observar que o “desenvolvimento” – que parece um termo óbvio – está presente
na denominação de dois dos três ministérios envolvidos, bem como nos programas específicos por
eles desenvolvidos.
111
Desenvolvimento Territorial, do MDA, têm apoiado a agricultura familiar,
financiando projetos que são “pactuados como prioritários pela comunidade local”
(governos e sociedade civil do território). Por outro lado, o MMA apresenta a
proposta de apoiar a construção de uma importante ferramenta - a AGENDA 21,
aqui denominada de Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável – visando o
“desenvolvimento sustentável” do Vale do Ribeira.
Diante desta realidade o Governo do Estado do Paraná (que tem quatro
de suas regiões apontadas no SIT como fazendo parte de área de abrangência
para atuação do Governo Federal), como estratégia para o “desenvolvimento”, foi
logo – por meio da Secretaria de Estado da Agricultura e do abastecimento
(SEAB), a Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural
(EMATER-PR), Instituto Agrônomo do Paraná (IAPAR), Secretaria de Estado do
Planejamento
e
Coordenação
Geral
(SEPL),
Instituto
Paranaense
de
Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), Conselho de Desenvolvimento
do Território Cantuquiriguaçu (CONDETEC) e a Organización de Lãs Naciones
Unidas para la Agricultura y la Alimentación (FAO) – elaborando documentos com
intuito de apontar “saídas” para essas regiões.
Os municípios apontados pelo SIT são os que, simultaneamente, possuem
os IDHs baixos e uma população tradicional significativa10. A saber, nessas
regiões de atuação do Estado, estão localizados grupos como: quilombolas, sem
terras, faxinalense e indígenas, que ao longo dos anos vêm lutando contra as
ações desenvolvimentistas governamentais, que não levam em conta sua
alteridade. Prova disso são os discursos, os planos de atuação que têm como
objetivo
arrastar
esses
grupos
para
si-mesmo,
homogeneizando-os,
uniformizando-os junto a esse modelo único desenvolvimentista a serem
desenvolvidos nesses territórios.
10
Como já indicamos, e fica claro pela superposição do mapa do estado que indica o IDH dos
municípios e aquele que traz a distribuição das comunidades tradicionais, esta simultaneidade não
resulta de uma coincidência. Ao contrário, a existência de grupos que não estão totalmente
inseridos no modo de produção capitalista – e que, portanto, produzem para o auto-consumo, bem
como transmitem conhecimento de maneira não formal – pressiona o IDH para baixo, tendo em
vista que este é um índice que define o grau de adequação a este modo de produção e o sucesso
adquirido.
112
Como podemos verificar nos mapas abaixo, há uma coincidência, no
Paraná, das regiões com maior concentração de comunidades tradicionais –
indígenas, quilombolas, faxinalenses – e daquelas incluídas nos Territórios da
Cidadania. Novamente, podemos observar o vínculo da construção de um
discurso desenvolvimentista com um processo de eliminação da diversidade. Por
outro lado, evidencia-se também a resistência de tais grupos ao modelo imposto,
pois, como vimos no caso do Vale do Ribeira, apesar dos inúmeros projetos
públicos de “desenvolvimento”, a área não foi, até o momento, incorporada
totalmente ao modelo externo que tenta se impor.
112
113
SIT – Sistema de Informações Territoriais
IDH – “baixos”
Fonte: http://sit.mda.gov.br/mapa.php?menu=imagem&base=2
114
Chama a atenção no documento elaborado para o Território da Cidadania
Cantuquiriguaçu/PR, (2004) e que não é diferente do Vale do Ribeira, é a forma de
como o Estado os aniquila por meio de suas abordagens. É o que lemos logo na
introdução do documento “Território Cantuquiriguaçu –PR. Estratégia para o
Desenvolvimento”, elaborado em cooperação Técnica com a Organización de Lãs
Naciones Unidas para la Agricultura y la Alimentación – FA, que vem trabalhando
desde 2001, no sentido de rever o quadro de “carências socioeconômicas na
região”. Segue o documento:
Para operacionalizar esse processo, concebeu-se um conjunto de
atividades com o intuito de que a própria população pudesse tomar contato
com sua realidade e propor diretrizes e estratégias para promover as
mudanças necessárias no sentido de estabelecer uma nova trajetória para
o Território. (CONDETEC, 2004:03)
Mudanças essas que não levam em conta as formas de vida adotadas por
esses grupos, pois que o que necessitam é de uma nova trajetória – em outras
palavras, um modelo de desenvolvimento que não aquele adotado por essas
comunidades.
Além disso, o outro não tem nada a dizer, pois que reduzido a uma
condição de desfavorecimento. O texto continua, afirmando que o objetivo desse
plano é o de estabelecer diretrizes para a formulação de programas e
projetos estratégicos para os municípios – individualizados ou em conjunto
–, visando criar soluções para os problemas e potencializar as condições
favoráveis que o Território apresenta. Além disso, o plano foi concebido
para ser o instrumento de um processo permanente de leitura de ambiente,
interno e externo ao Território, de tal forma que pudesse orientar a tomada
de decisão dos gestores públicos e privados.
Tais documentos, produzidos pelo Governo Federal (SIT) juntamente com
estados e municípios, mapeando as regiões do Brasil como estratégia de “redução
da pobreza”, tomam como base o calculo do IDH-E (Educação), IDH-L (Longevidade)
e o IDH-R (Renda), definindo como focos aquelas regiões em que tais índices são
considerados baixos (são definidos como baixos aqueles entre 0 e 0,5, médios entre
0,5 e 0,8, e altos entre 0,8 e 1). Se não alcançarem os índices médio ou alto, essas
regiões são “convidadas” a aceitar as políticas públicas para “estimular e
115
potencializar as condições favoráveis que o Território apresenta”, com a criação de
novas “oportunidades” para que esses grupos possam obter renda. Assim, com mais
renda, o indivíduo poderia ultrapassar a “fronteira” da pobreza e, dessa forma, ser
considerado um não-pobre, um não-ser.
Acresce que hoje, no Brasil como um todo, as regiões com baixo IDH
estão, no discurso do Estado, prontas para receber a tomada de decisão dos
gestores públicos e privados. Expressões “politicamente corretas” e de conteúdo
indefinido – como cidadania, sustentabilidade, integração, qualidade de vida – são
utilizadas como estratégias para que o modelo de desenvolvimento proposto não
seja questionado. Tanto é verdade que o documento para o “desenvolvimento” de
Cantuquiriguaçu prossegue nesse sentido, o que se explicita no capítulo que trata
das Diretrizes e programas para o desenvolvimento do Vale do Ribeira. São algumas
delas:
• Resgate da cidadania e garantia de acesso às políticas públicas;
• Geração de postos de trabalho e renda;
• Educação e alfabetização de jovens e adultos;
• Capacitação em todos os níveis e setores;
• Atração e retenção de profissionais das mais diversas áreas;
• Integração intersetorial dentro dos municípios e na região;
• Parcerias e consórcios intermunicipais;
• Parcerias com entes externos à região (Governos Federal, Estadual e
organizações não-governamentais - ONGs);
• Fomento à agroindustrialização;
• Otimização no uso da infra-estrutura e recursos regionais (ferroeste,
usinas, aeroporto, lagos e rodovia BR 277). (CONDETEC, 2004:05)
O programa se diz direcionado às questões relacionadas com a qualidade
de vida e cidadania. Destacando os seguintes temas:
• Cidadania: regularização da situação como cidadão (documentação
pessoal, cadastro na Previdência Social pública, carteira de trabalho, etc.).
Deverão somar-se a esta ação outras que enfatizem e estimulem o
crescimento das pessoas como cidadãs, com informações sobre deveres e
direitos, papel das entidades e formas de participação, acesso a cultura e
lazer e organização comunitária.
• Regularização fundiária: apoio à legalização fundiária e acesso à
documentação das áreas ocupadas (agricultores familiares, indígenas, e
populações afetadas por alagamentos artificiais) e regulamentação do uso
do solo urbano e rural.
116
• Informação e comunicação: apoio à implantação de sistemas de
informação, formação e comunicação (rádios comunitárias, jornais,
telefonia, internet e outros) em todos os níveis e setores.
• Segurança alimentar: conjunto de ações que buscam garantir a oferta e
o acesso aos alimentos em quantidade e qualidade necessária às
populações do Território.
• Saúde: destacam-se projetos de orientação nutricional e de saúde
preventiva para toda a população, de saneamento básico no meio rural e
urbano e ações de promoção de medidas de prevenção, manejo e controle
da qualidade dos alimentos, previstas e enquadradas na legislação
sanitária.
• Educação: projetos de alfabetização de adultos e erradicação do
analfabetismo funcional, inclusão digital, alimentação escolar e valorização
das escolas nas comunidades e núcleos rurais e formação profissional em
todos os níveis.
• Habitação: melhoria das condições habitacionais com construção e
reforma de moradias urbanas e rurais, implantação de sistemas de
abastecimento de água e saneamento básico e projetos de eletrificação e
telefonia.
• Adequação ambiental das propriedades familiares: envolve projetos
que resgatam o equilíbrio ambiental e a qualidade de vida das populações.
Nesse sentido, deve prever sistemas de pagamentos por prestação de
serviços ambientais, em bacias hidrográficas previamente selecionadas,
para agricultores familiares para os quais a implantação de áreas de
preservação ou de reserva legal comprometem a renda familiar,
contribuindo para a manutenção do seustatus de pobreza. (CONDETEC,
2004:06-07)
Termos como “cidadania” e “pobreza” estavam e estão multiplicando-se
com rapidez nos discursos que temos acompanhado e se faz necessário debruçar
sobre eles. A noção de cidadania é um referencial de conquista de humanidade,
através daqueles que sempre lutam por mais direitos, maior liberdade, melhores
garantias individuais e coletivas, e não se conformam frente às dominações. No
discurso corrente de políticos, comunicadores, dirigentes, educadores, e uma série
de outros agentes que, de alguma maneira, se mostram preocupados com os rumos
da sociedade, está presente a palavra cidadania. Notamos uma superexploração de
um vocábulo, que acaba ganhando denotações desviadas do seu sentido.
O problema da cidadania decorre das interpretações usuais que diversos
teóricos utilizam. Nota-se que o conceito é denso de implicações e representações,
nem sempre correspondendo a postulações rigorosas, porquanto ora tem sido
tratado como nacionalidade, ora trazido em si juízos de valor, aparecendo associado
117
ao aspecto positivo da vida social do homem, em contraste com a negatividade da
não-cidadania, isto é, a marginalidade.
Etimologicamente, cidadão é o habitante da cidade, o termo assumiu um
sentido social e político à medida que os habitantes da cidade se emanciparam do
domínio feudal, sob o qual continuavam a viver os servos da gleba à procura de
outras oportunidades de vida e sobrevivência. O direito diz que cidadão é aquele que
goza dos direitos civis e políticos, do qual é considerado no desempenho dos seus
deveres como um membro ativo. Ferreira (1993), por exemplo, conclui que não é
possível visualizar a cidadania como um em “si”, pois ela lhe confere uma
individualidade pela qual revela o ser político do homem obscuro na participação dos
assuntos da pólis.
Sendo assim, a cidadania se reveste de um caráter de provisoriedade e
historicidade, parece, portanto, ser fruto da explicação conceitual da visão de homem
e pólis do pensador que a pensa, assumindo uma conotação individual e subjetiva.
Para Dussel, a definição conceitual de cidadania está diretamente ligada ao sistema
do direito vigente. “Decir que existe um cuerpo de derechos vigentes, es lo mismo
que indicar que son los derechos del grupo en el poder. El poder dominante impone
su derecho como el derecho de la totalidad social” (DUSSEL, 1981:49). Portanto, um
corpo de direitos emerge de um determinado projeto e inclui necessariamente
interesses de um grupo social.
Por outro lado, a noção de cidadania que advém do modelo liberal passa a
ser um dogma universal, negando o ser humano que não possui meios de produção,
que é considerado, portanto, o não-ser. É a questão do outro que não tem sido digno
de conquista da cidadania. Dussel procura superar o Estatuto liberal de cidadania,
cuja origem é burguesa, centrada no sujeito(eu) considerado individualmente por
outro Estatuto, alicerçado na perspectiva da alteridade, como ser distinto. Pensar o
outro não é algo tão fácil, mais difícil é colocar-se sob sua perspectiva.
A modernidade, inaugurando a nova sociedade da democracia burguesa,
vinculou a cidadania aos direitos de liberdade de pensamento, de religião, de
comércio, de produção, de propriedade privada. Individualizando a pessoa,
alienando-a dos outros pares, a burguesia pôde limitar o alcance da cidadania.
118
As idéias acima exposta evidenciam que a cidadania não se dá por
decreto. A cidadania não pode ser visualizada como algo dado. Segundo Ferreira ela
se permite ver, notar, conceituar, quando é vivida, exercida pelo cidadão. Cidadania
significa a luta pela busca da liberdade, da construção diária da liberdade no
encontro com o outro, no embate pelos espaços que permitam a vivência plena da
dignidade humana, como é o caso da comunidade pesquisada. A cidadania exige
que as pessoas não sejam objetos da ação das políticas públicas, mas sim sujeitos
que têm voz e que podem intervir nas ações a eles dirigidas. É preciso estar atento
para que as políticas que vêm sendo adotadas nos “Territórios da Cidadania” não
construam uma totalidade na qual o outro desaparece como algo mais que
apenas objeto.
Como vimos no capítulo I, a totalidade, na perspectiva eurocêntrica, se
mostra como âmbito fechado, eterna repetição do mesmo, princípio originante e
justificador da dominação, da conquista, da afirmação do ser como absoluto e,
conseqüentemente, como princípio da negação da alteridade. Enquanto a
exterioridade, como abertura possível ao outro, não absolutização do ser, princípio
metafísico da alteridade. Isso só é possível através do método analético superador
da europeidade. Ver além, mais alto. Não ver o outro com os olhos do IDH, a partir
de noções como: “carência”, “pobreza”, “adequar” “conjuntos de ação”, “apontar
alternativas”, “capacitar” (os incapacitados), “promover desenvolvimento sustentável”
(como se os saberes tradicionais das comunidades e grupos pertencentes a esses
territórios não importassem). Buscar compreender sua visão de mundo. O discurso
da “carência” é o discurso da dominação, da supressão, uma espécie de véu
superposto ao real.
Por conta de resolver os baixos índices o Governo do Paraná reativa, no
ano de 2005, o Instituto de Terras e Cartografia do Paraná (o hoje conhecido
ITCG),11 extinto em 1991, para promover a “inclusão” fazendo um levantamento
cartográfico do Estado. Segundo o Secretário Estadual do Meio Ambiente e
Recursos Hídricos: “A regularização fundiária no Estado será um grande desafio. Ela
11
Ver site Paraná Online: ITC vai priorizar projetos em municípios de baixo IDH http://www.paranaonline.com.br/editoria/especiais/news/138381/ Acessado dia 15/08/2009.
119
permitirá que possamos fazer a inclusão social, principalmente das famílias que
possuem o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no estado, como
aquelas que habitam o Vale da Ribeira, por exemplo”12.
De acordo com o secretário estadual de Meio Ambiente da época, Luís
Eduardo Cheida, o Paraná tinha cerca de 300 mil hectares de terras sem titulação. E
o problema era mais grave na região do Vale do Ribeira, que possui um dos menores
Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado. "Para estas famílias, não ter
propriedade de terra gera muitos problemas econômicos. Elas não têm acesso a
programas governamentais, não podem receber recursos. Regularizando estas áreas
faremos com que o estado se desenvolva com menos desigualdade social", disse
Cheida.
O que percebemos é como as autoridades governamentais, e não só
elas, vão assimilando o discurso salvacionista proveniente do outro lado do Atlântico.
E segue: ”Além de dar continuidade ao projeto de regularização fundiária no Vale do
Ribeira, o instituto está desenvolvendo o primeiro projeto de apoio a inclusão social e
ao desenvolvimento sustentável no meio rural paranaense, com o apoio do “Banco
Mundial”, (grifo nosso) que contempla cerca de 121 municípios”. Esta fala do
Secretário é importante para entender de que maneira um discurso aparentemente
positivo de garantia de direitos dá sustentação à expropriação das terras de forma
legitima – possibilitando ao Estado, inclusive, se esquivar da questão do direito
coletivo das comunidades tradicionais, como é o caso das quilombolas.
Vejamos o depoimento de D. Joana, da comunidade João Surá, que
exemplifica bem essa realidade ao abordar a questão da produção de rapadura e de
como era feito o escoamento da produção.
Meu pai fazia muita rapadura e era tudo aqui. Cada casa tinha uma
moenda e só vendiam para Barra do Turbo porque aquele tempo era só
estrada de tropa e quando vinha de burrada pra comprar rapadura tudo
mundo fazia um mês inteirinho fazia até trinta cargueiro. Então quando
vinha aquela burrada tudo carregado com cargueiro eles paravam aqui no
terreiro (ela aponta para o pátio como se estivesse avistando as cargas) do
meu genro onde o meu irmão mora ali, que o meu falecido tinha um
mangueirão era onde as burradas ficavam. Eles vinham buscar as rapadura
12
Lembre-se a discussão sobre o caso de Cangume, abordada no capítulo anterior, em que a
regularização fundiária é o grande mecanismo para inserir as terras controladas por comunidades
tradicionais no mercado capitalista de terras.
120
que a gente fazia e levavam para Barra do Turbo. E quando eles paravam
de plantar cana iam plantar arroz, milho na lavoura. Então assim que era
nossa vida. Nós fazia rapadura o dia inteiro e quando era tarde o pai tinha
uma mesa grande e enchia de rapadura. E daí ele ia à roça trazer um cesto
de milho para depois molar o facão bem molado para poder passar
naquelas cabeças do milho, enquanto isso, nós íamos tirando a paia boa
do milho e botando no cesto para empilhar a rapadura e ele amarrava bem
amarrado e depois ele pinchava tudo encima do fogão oitenta maço de
rapadura. Oitenta maço de rapaduras é um cargueiro. E a fumaça do fogão
é que conserva a rapadura e quando os tropeiro vinha buscar a rapadura
tava sequinha, colocava no lombo dos burro e assim era nossa vida e no
outro dia de novo. (Entrevista com D. Joana realizada no dia 19/12/2007).
Mas não foi só a construção de estradas que fez com que o Vale do
Ribeira perdesse seu lugar econômico, devido à mudança na rota para o
escoamento de sua produção; a região perde poder com a comercialização de seus
próprios produtos, pois a concorrência com os produtos industrializados leva a que
os produtos artesanais não tenham preços competitivos. Além disso, aumenta a
necessidade de renda monetária dos moradores locais, pois a inserção no mercado
e o acesso à tecnologia exigem manutenção com dinheiro. Como conseqüência, os
grupos perdem autonomia, na medida em que se necessita de energia elétrica, de
água tratada, de objetos comprados. Uma coisa interessante acontece com as
crianças das escolas quilombolas que precisam assistir aulas fora das comunidades,
em geral nas cidades ou povoados próximos. Porque quando isso ocorre, elas vão
ser colegas de meninos(as) da cidade, e além da discriminação que vão sofrer,
exige-se da comunidade um consumo mais alto. Porque a criança não pode ir mais
descalça para a escola, vai ter que ter sapato, material escolar diferenciado para
poder ter algum tipo possibilidade de convivência e condições mínimas de igualdade
com os seus colegas da cidade.
Em defesa da escola quilombola, o grande argumento que vai ser utilizado
é o de que eles vão ter que se deslocar para uma distância grande, o que exigirá
sacrifício, etc. Mas é importante também ter em mente que, se você joga os alunos
estudar na cidade, aumenta-se o consumo daquelas famílias, aumentando a
necessidade de consumo você aumenta a necessidade de renda monetária (que é
um dos critérios utilizado para construir os índices de IDH), e quando se aumenta a
necessidade de dinheiro, conseqüentemente, cria-se o consumo. Em outras
121
palavras, uma pressão por adequação a um universo externo de consumo vai ter
como conseqüência prática a elevação dos índices de IDH, embora isto não indique
necessariamente a melhoria das condições de vida daquelas crianças (muitas delas
vão enfrentar o preconceito resultante de sua condição diferenciada nas escolas da
cidade). Assim, chega um momento em que a pressão por dinheiro é tão grande que
acaba inviabilizando a manutenção de um padrão que é muito elevado para a
existente produção de subsistência para trocas regionais, que não estão tão
inseridas dentro do mercado. Não se pode esquecer que, ao chegar a luz, chega
também a conta.
O acesso ao mercado e à tecnologia tem um custo monetário para mantêlo. E na medida em que aquele grupo passa a se inserir nesse universo que os
projetos de “inclusão” propõem, ele passa a ter que responder com a geração de
dinheiro, que é muito difícil dentro da lógica de produção existente. Isto pressiona as
pessoas a se adaptarem a outra lógica de produção, voltada para o mercado e com
custo inicial significativo, o que também as impulsiona para recorrerem a linhas de
financiamento.
O que acontece com as linhas de financiamento para o pequeno produtor
do Governo Federal, é que mesmo a baixo custo, elas supõem uma lógica que é a
lógica da produção para a venda. Você financia para possibilitar a pessoa a produzir
e por sua vez ela vai vender sempre com um ganho em relação ao que gastou. O
que está implícito é que ela vai poder honrar seus compromissos bancários. No
entanto, acontece muitas vezes nesses casos que esse dinheiro que seria usado
supostamente pra produzir bens que seriam vendidos acaba sendo utilizado segundo
a lógica da própria comunidade – para possibilitar a produção de subsistência, por
exemplo. E com isto vai gerando uma situação de dívida em que a única forma de
paga-lá é a venda de terra. Dessa forma, o governo desapropria de forma legal e
aparentemente legitima. E o que é mais cruel, a legitimação se dá porque pela
atribuição de incompetência ao outro.
Os grupos que vêm resistindo a esse modelo desenvolvimentista do
Banco Mundial estão em maior quantidade no Centro-Sul do Estado do Paraná
122
Os governos, ao se referirem a esses grupos da resistência,
possuidores da agência do sujeito, os classificam como detentores de IDH baixo.
Isto é, os que necessitam ser “incluídos”, os que necessitam entrar na ciranda
financeira para se constituírem cidadãos. Estão impossibilitados de formular suas
demandas em termos adequados à sua lógica, que implica a posse de uma
identidade cultural distinta. A cultura e tradição desses grupos são vistas por essas
políticas exógenas como marcadas por “atraso” e não são percebidas por meio de
direitos coletivos ancestrais.
Aqui o que se vê é a ação do Estado de localizar esses grupos para
aplicar os indicadores uniformizadores (IDH), sem ter a preocupação de conhecer
sua visão de mundo. Cabe perguntar, no entanto, em que medida estas formas
alternativas de vida e produção podem ser vistas não como símbolo do “atraso” e do
desaparecimento inevitável, mas sim como a possibilidade de inserção no mundo de
uma maneira diferenciada. No caso da comunidade quilombola de João Surá,
propomos que sua existência há mais de 200 anos, conjugada com sua abertura
para o mundo externo dominante e flexibilidade frente a ele, permite que ela seja
vista como uma reserva de possibilidades, que pode ser acionada por seus
membros em momentos distintos, a fim de lhes garantir uma condição diferenciada
frente ao modelo de desenvolvimento capitalista homogeinizador. À análise deste
contexto dedicamos o capítulo seguinte, utilizando a analética dusseliana como
método que possibilita construir a abordagem proposta.
4. MODELOS ALTERNATIVOS E RESERVA DE POSSIBILIDADES: O CASO
DE ADRIANÓPOLIS – MINERADORA PLUMBUM VERSUS COMUNIDADE
JOÃO SURÁ
A essa distância só os escravos podem imaginar o
quanto são fétidos esses navios onde os homens
acorrentados gastam sua vida remando. Eles
entram e saem das esplêndidas cidades de
Herculano e Pompéia, centros de férias para ricos
patrícios. Os férteis vales da Campânia são
cortados pelas estradas, bem calçadas por
grandes pedras, que levam a Cápua e Nola. Olhar
esta paisagem de dentro da cratera é como do
inferno contemplar o paraíso. Mas esse inferno era
um lugar de liberdade e os vales paradisíacos,
quando vistos de perto, revelavam-se o verdadeiro
inferno (Vitor Civita – Grandes Personagens da
História Universal).
4.1
Instrumentos, Tecnologia e Relações Sociais – Algumas Reflexões
Teóricas
Vimos, nos capítulos anteriores, como há uma tendência recorrente a se
pensar o contexto brasileiro e latino-americano através de um discurso que é
construído a partir da perspectiva colonialista dominadora. Neste, aspectos
valorizados por tal perspectiva são tomados como a base de avaliação da situação
contemporânea de grupos e regiões que se destacam exatamente por se
distinguirem do modelo dominante de produção, organização social e visão de
mundo – como é o caso de comunidades rurais tradicionais e, dentre elas, das
comunidades quilombolas. A partir desta crítica, realizada de maneira tão
contundente por Enrique Dussel, propomos, neste capítulo, a inversão de tal
perspectiva, tomando como exemplo a relação da comunidade João Surá com a
terra e seus instrumentos de trabalho, e contrastando-a com a presença regional,
por cinco décadas, da mineradora Plumbum – fechada por seu desrespeito a
normas básicas de preservação ambiental, e que deixou como herança toneladas
de rejeitos contaminados, um patrimônio edificado hoje abandonado e grande
número de trabalhadores desempregados. O contraste com a Plumbum se faz
importante porque, além de estarem na mesma região, vários membros da
124
comunidade a deixaram, temporariamente, para trabalhar na mineradora. No
entanto, quando esta faliu e fechou as portas, não se viram em uma situação de
total vulnerabilidade – como vários de seus demais colegas, que precisaram partir
para destinos desconhecidos a fim de reconstruir suas vidas – por possuírem um
local para onde retornar, a comunidade. É neste sentido que propomos pensar a
comunidade como uma reserva de possibilidades. Ou seja, como alternativa aberta
a seus membros, que podem responder a contextos de produção e consumo mais
amplos, sem ficarem sujeitos ao desamparo que, os chamados por Marx
“trabalhadores livres”, enfrentam quando estes contextos entram em colapso.
A analética dusseliana coloca-se, portanto, como o método que orientará
esta análise. Ao propor que sejam considerados não somente aqueles que se
inserem na totalidade – tomada como dada e inquestionável – mas também os que
estão fora dela, o método de Dussel quebra com concepções marcadas pela
pressuposição de que há um único caminho a seguir, e que os demais sempre
devem ser concebidos como “arrastados” para este caminho único. Em outras
palavras, tal método constrói-se a partir da recusa de que as diferenças precisam
ser pensadas como inseridas no processo de sua dissolução; ao contrário,
considera-as alternativas relevantes tanto para se compreender o mundo quanto
para definir os rumos a serem por ele (ou por grupos dentro dele) seguidos.
A fim de nos esquivarmos das armadilhas que a visão eurocêntrica nos
coloca, retomamos a discussão do termo “instrumentos”, realizada por Dussel, para
refletir sobre os artefatos utilizados pelos membros da comunidade na realização de
suas tarefas. Neste sentido, o que vamos perceber com relação à reserva de
possibilidades representada pela comunidade é que duas coisas a garantem:
primeiro, a posse da terra, que mesmo restrita na atualidade, ainda permite
condições mínimas para produção de subsistência; depois, a presença de uma
técnica – que pode ser descrita como “rudimentar” – baseada em instrumentos
acessíveis (muitas vezes construídos pela própria comunidade, com recursos locais
extraídos do ambiente) e a possibilidade do apoio mútuo e do trabalho coletivo.
Para Dussel (1977), o homem, quando considera as coisas, não as vê
simplesmente como elas são, mas projeta nelas algo que não está nelas e as
transforma em instrumentos. A tal ponto isto é verdade que os paleontólogos sabem
125
que um fóssil é humano quando, junto dele, são encontrados instrumentos. Os
instrumentos, por sua vez, têm algumas características relevantes: eles se
aprimoram ao longo da história; eles são universais – no sentido de que podem ser
manipulados por membros de culturas distintas; eles são parte de um sistema de
instrumentos, um está ligado a outros, amarrado a outros e todos constituem um
sistema. A utilização desses instrumentos se dá
por acumulação, isto é, um homem passa a outro, mas este, por sua vez,
produz algo novo, inventa novos processos que também vão passando de
mão em mão. Isto é, vão-se acumulando, vão crescendo
quantitativamente. Este sistema de instrumentos é então um fator
"objetivo", que rodeia o homem até esmagá-lo, assim como ocorre neste
momento em nossa civilização. Tanto esse lustre como estas paredes ou
uma mesa, por exemplo, são partes do sistema instrumental a que
chamamos de civilização. (DUSSEL, 1977: 71)
É interessante observar, neste trecho, que embora Dussel reconheça
uma acumulação histórica no sistema de instrumentos – que vai sendo modificado
ao longo do tempo, e se torna mais complexo –, o autor também afirma que os
instrumentos, na civilização atual, “rodeia[m] o homem até esmagá-lo”. (1977:71)
Desta maneira, não toma a complexificação e diversificação dos instrumentos como
algo essencialmente positivo, algo que podemos observar nas idéias de
“progresso”, “avanço tecnológico” e outras semelhantes, que estão diretamente
vinculadas ao modelo desenvolvimentista. Para compreender tal afirmação, é
necessário acompanhar Dussel em seu raciocínio, quando afirma que, se os
instrumentos são sistemáticos e acumulativos, também os valores se dão em
sistema. Ou seja, é de algum modo uma visão sistemática, uma visão do mundo.
A acumulação valorativa é, contudo, diferente da que se dá com a
civilização, porque a acumulação dos instrumentos é meramente quantitativa,
enquanto que a acumulação das visões ou de valoração do mundo é qualitativa. Por
sua vez, há uma distinção radical no modo de transmissão. Podemos transmitir os
instrumentos de forma impessoal, enquanto que ao falar de transmitir os valores e
as atitudes, já não se trata propriamente de transmissão, mas de comunicação.
Quer dizer, pode-se aprender a utilizar os instrumentos de um grupo sem
necessariamente fazer parte dele. Porém, é necessário fazer parte dessa
comunidade e identificar-se com seu "modo de vida" (até compreender sua língua e
126
ter afinidade com sua história, etc.), para que se possa realmente viver esses
valores e adotar essas atitudes. De tal modo que, propriamente, os instrumentos
podem ser transmitidos, enquanto que as atitudes e os valores não. Acrescente-se,
ainda, que são estes valores e atitudes que vão definir de que maneira serão
utilizados e qual a importância adquirida pelos instrumentos. Eles, em si, não dizem
do mundo em que se inserem.
No entanto, há uma tendência a se pensar os instrumentos como os
grandes definidores da realidade do mundo – o que podemos atribuir à perspectiva
capitalista de fetichização da mercadoria e de valorização da tecnologia como sinal
de desenvolvimento, ambas estratégias de imposição de um modelo que se
pretende único. A adoção de formas de produção e instrumentos mais rudimentares
não é normalmente interpretada como uma opção, e sim como atraso. Marília
Carvalho (1997), contudo, ressalta o caráter restrito desta perspectiva. Nas palavras
da autora:
Assim, na mesma medida em que não se pode falar em tecnologia sem
considerar as transformações sociais que estão ao mesmo tempo
provocando e favorecendo seu desenvolvimento, também não se pode
analisar a sociedade sem que se leve em consideração as transformações
tecnológicas que estão ocorrendo dentro dela. Ou seja, sociedade e
tecnologia são fenômenos indissociáveis e as transformações que
ocorrem num deles altera, reciprocamente, o outro. [...] A tecnologia
depende, pois da sociedade para a sua existência e o seu
desenvolvimento (:71).
A autora ressalta, portanto, a impossibilidade de se pensar tecnologia
como algo independente, deslocado de seu contexto. Contrariando a ideologia de
um determinismo acerca da necessidade do desenvolvimento tecnológico moderno
para todas as culturas, independente de suas particularidades, Carvalho aponta,
ainda:
A intensidade das transformações mais recentes faz perder de vista o
caminho trilhado pelos antepassados que teve início há mais de 40 mil
anos. [...] O ser humano vive nas modernas sociedades industriais, 0,36%
de toda sua história, enquanto que mudanças tecnológicas mais
significativas que vêm revolucionando a vida sobre a face da Terra não
representam mais do que 0,13% em toda a história da humanidade. É
importante lembrar também que não foi toda a humanidade que se
incorporou a esse último processo de transformações sociais. Existem
povos em diferentes partes do mundo que seguiram outro caminho
127
histórico e que não se encaixam nas características sociais de uma
sociedade industrial moderna, de moldes ocidentais (:73).
No mesmo sentido, Queluz (2000) enfatiza a necessidade de se
compreender as relações da tecnologia com a cultura, a política, a religião, que,
segundo este autor, são esferas decisivas em seu desenvolvimento. A análise
crítica ao ’imperativo tecnológico‘, isto é, à ideologia de que não há
desenvolvimento fora dos padrões estabelecidos pela lógica da cientificidade
moderna e do uso dos aparatos tecnológicos, pressupõe a desvinculação da
evolução histórica e social das invenções técnicas da época e contexto social em
que ocorre. Não são a técnica e seus instrumentos, de forma isolada, que
determinam o grau de complexidade de uma cultura e sua evolução, mas sim um
conjunto de fatores complexos e correlatos, entre os quais também está a técnica.
Propomos, portanto, estender a argumentação de Marília Carvalho não
somente para outras culturas e sociedades, mas também para grupos específicos
dentro da nossa própria sociedade – que se autodenominam como povos e
comunidades tradicionais. Será que o investimento em tecnologia sofisticada seria
sinônimo de transformação social positiva, e sua presença no interior das
comunidades possibilitaria tirá-las do “atraso” e da “pobreza” em geral a elas
atribuído – por mecanismos como os do índice de IDH, discutido no capítulo
anterior? A simples “modernização” de formas de produção, a mudança de padrões
de vida e consumo, seria em si mesma capaz de atender às expectativas dos
membros destas comunidades? Em que medida sua inserção no modo de produção
capitalista representa um ganho, ou uma perda de autonomia e um aumento da
vulnerabilidade de seus membros? Como os membros das comunidades
tradicionais lidam com a sociedade exterior, e qual a flexibilidade delas para este
exterior?
Estamos sugerindo que as comunidades sejam percebidas não como
prisioneiras de um passado estagnado, mas como portadoras de uma historicidade
e compostas por sujeitos que possuem agência e que, orientados por concepções e
visão de mundo específicas, pautam suas ações no presente e resistem ao
processo de mera assimilação a um modelo dominante. As palavras de Ivone Gallo,
128
ao abordar a Guerra do Contestado, são aqui bastante ilustrativas do que
apontamos:
A visão de que as sociedades ditas tradicionais almejam a imutabilidade e
o isolamento apresenta-se como uma hipótese pouco provável e que, de
outro modo, aparece-nos mais como uma justificativa para endossar o
abandono a que o interior é relegado pelas classes dominantes. Na
maioria das vezes, não atentamos para o fato de as populações
sertanejas recusarem, não a tecnologia, pois simplifica a vida e alivia a
carga de trabalho cotidiana, mas o autoritarismo, a exploração do
trabalho, a violência, a miséria (GALLO, 2008:129).
Com efeito, se analisarmos o modelo desenvolvimentista não a partir de
seus próprios critérios, mas a partir de seus impactos para grupos específicos,
observamos que, no mundo rural, os municípios que possuem o IDH alto
(principalmente nos casos em que este crescimento é rápido), na sua grande
maioria, são marcados por um quadro delicado: migração para os grandes centros,
trabalhadores substituídos pelas avançadas máquinas, condições básicas de
sobrevivência comprometidas, produtos desejados de consumo (ou mesmo os que
compõem a cesta básica) com um custo muito acima das condições financeiras de
parte significativa da população.
Antes de passarmos à discussão específica da comunidade João Surá,
faremos, ainda, uma última observação. Se a inserção no mercado capitalista já traz
dificuldades para os membros das comunidades tradicionais em geral – pois que
normalmente cabem a eles os lugares na base da pirâmide social –, esta situação é
mais delicada para quilombolas. Nestes casos, à ausência de domínio dos aspectos
garantidores de ocupação de posições mais favorecidas na sociedade exterior –
como, por exemplo, escolaridade formal –, se somam as desvantagens provocadas
pela discriminação racial em nosso país. Embora não devamos aqui nos prolongar
no tema, citamos as inúmeras desigualdades analisadas no Relatório Anual das
Desigualdades Raciais no Brasil; 2007-2008, organizado por Marcelo Paixão e
Luiz Carvano.(2009). Neste, os autores destacam a condição desfavorecida da
população negra no país com relação a fatores como mortalidade, condições
materiais de vida, acesso a escolaridade e inserção no mercado de trabalho,
acesso a poder institucional e políticas públicas. No caso da população negra rural,
129
portanto, poder recorrer à comunidade como estratégia para enfrentar esta situação
de desfavorecimento – como reserva de possibilidades – é algo fundamental.
4.2
Adrianópolis: a presença de alternativas distintas de produção e
formas de vida
Fonte: SOS Mata Atlântica
O atual município de Adrianópolis era originalmente conhecido como
Epitácio Pessoa. Em 1939 foi elevado à categoria de distrito com o nome de
Paranaí1 e, em 1960, foi desmembrado de Bocaiúva do Sul, recebendo a
denominação atual – resultante da importância do então dono da mineradora
Plumbum, Adriano Seabra da Fonseca. Localiza-se no Nordeste do Estado do
Paraná, na divisa com o Estado de São Paulo, pertence à Região Metropolitana de
Curitiba (distância da capital de 133 km). Articula-se com a Região Metropolitana de
1
A denominação é atribuída ao local do município, divisa entre São Paulo e Paraná. Segundo
dizem, o Sr. Alcides Batista Dias, um dos primeiros desbravadores da região, quando perguntado
sobre onde era o Paraná respondia “aí”. A denominação Paranaí ficou, então, até 1960, quando o
local
recebe
a
denominação
de
Adrianópolis.
Ver
site:
http://www.afolhadeadrianopolis.com.br/curiosidades-sobre-o-municipio/
130
Curitiba por aspectos administrativos e por fluxos econômicos. Mesmo assim, por
estar no limite dos Estados do Paraná e São Paulo, estabelece importantes ligações
com municípios paulistas. A área do município é de 1.349 km2, de acordo com os
dados do IBGE.
Tabela 202 - População residente por sexo e situação do domicílio
Município = Adrianópolis – PR
Sexo = Total
Variável
Situação do domicílio
Total
População residente (Pessoas)
Urbana
Ano
1970
1980
11.540 11.122
2000
8.935
7.007
1.058
1.589
1.613
Rural
10.708 10.064
7.346
5.394
Total
100,00 100,00 100,00 100,00
População residente (Percentual) Urbana
Rural
Fonte: IBGE - Censo Demográfico
832
1991
7,21
9,51
17,78
23,02
92,79
90,49
82,22
76,98
A população total apresentou, segundo os dados dos últimos quatro
Censos Demográficos, retração significativa. Esta, contudo, se deu somente na
zona rural – em que reduziu para a metade no intervalo de 30 anos, enquanto a
população urbana praticamente duplicou. Ainda assim, há um predomínio
significativo de população rural – 76,98% da população em 2000 (este percentual
era de 92,79% em 1970). Desta população, quase a metade é de negros (5,48%
pretos e 41,79% pardos). Estes, por sua vez, apresentam uma proporção de
residentes na zona rural muito maior que os brancos (destes 32,50% são
moradores urbanos, enquanto entre os negros este percentual é de apenas 12,09%
– 11,39% dos pretos e 12,19% dos pardos). Tal quadro é coerente com a presença
significativa de comunidades quilombolas rurais no município. Como se pode
perceber pelo mapa abaixo, elaborado pelo ITCG/PR com base nos trabalhos do
GT Clóvis Moura2, este é dos municípios com maior número de comunidades
quilombolas identificadas no Paraná.
2
O GT Clóvis Moura é um grupo intersecretarial do Governo do Estado do Paraná, fundado em
2004, que teve um papel crucial na identificação das comunidades quilombolas paranaenses
atualmente conhecidas e reconhecidas pelo Estado.
131
Fonte: http://www.itcg.pr.gov.br/arquivos/File/ADRIANOPOLIS.pdf
132
O processo de territorialização negra no Mesoregião do Vale do Ribeira
está articulado, inicialmente, com a expansão das frentes de mineração em
Cananéia, Iguape e Paranaguá, nos séc. XVII-XVIII. Desde meados do XVII até o
descobrimento das jazidas auríferas em Minas, a extração de ouro foi a atividade
predominante desenvolvida pelo empreendimento colonial na região. Para lá se
deslocavam os colonizadores em posse de africanos escravizados. A mineração
abria
espaços
para
a
libertação
de
escravizados
que
garimpavam
clandestinamente e, ao guardar o produto de seu trabalho, reuniam recursos seja
para a compra futura de sua liberdade, seja para garantir condições de fuga.
Com o encerramento das atividades da Casa de Fundição de Iguape,
ocorreu um descenso da mineração e um gradual incremento da agricultura de
subsistência, com o cultivo de cana, mandioca, café, feijão, milho. Posteriormente,
a monocultura do arroz no Alto Vale do Ribeira se instala, havendo o predomínio
da utilização de mão de obra escravizada. A região, contudo, manteve áreas
significativas de agricultura de subsistência – o que possibilitou a criação de
espaços de liberdade tanto pela fuga quanto pela fixação de negros livres e
libertos que ali chegavam, garantindo a territorialização desses sujeitos em
quilombos, estabelecendo-se como campesinato autônomo. Tal processo se
intensificou com a crise do sistema escravista e a abolição em 1888. A partir desta
territorialização
negra,
surgiram comunidades
nas
proximidades
que
se
autodeclaram remanescentes de quilombos no municípios de Adrianópolis (João
Surá, Porto Velho, São João, Córrego das Moças, Córrego do Franco, Três
Canais, Praia do Peixe e Sete Barras).
Segundo Lima (2000, 2002), a migração de não brancos livres e libertos
para regiões de baixas densidade demográfica e ocupação territorial, é um
processo que caracteriza o comportamento desta população no Brasil como um
todo, entre os séculos XVIII e XIX. A tentativa de fugir à estigmatização provocada
pela sinonímia estabelecida no Brasil entre negros e escravos – que não garantia
aos negros, mesmo livres, um tratamento muito distinto daquele dirigido aos
escravos – levava a que optassem pelo estabelecimento, em regiões “marginais”
133
da colônia, em territórios onde pudessem se constituir como campesinato
autônomo. Neste sentido, é importante ressaltar que a constituição de quilombos,
a partir da “resistência à opressão sofrida”, não resulta necessariamente da fuga
de escravos – como a definição de senso comum tende a conceber. Boa parte
desta resistência se dá pela retirada do ambiente discriminatório, como recusa a
ocupar os lugares mais baixos da pirâmide social da época (mesmo que estes
lugares não fossem diretamente definidos pela condição de escravos).
Refugiaram-se, para tanto, no interior de matas, vales, rincões e chapadas.
Durante muitos anos, essas localidades foram se constituindo como uma garantia
para a comunidade negra salvaguardar sua autonomia, sua liberdade, seu modelo
de vida. Invisíveis para o Estado, tiveram nesta invisibilidade uma forma de
proteção.
A invisibilidade pública destas comunidades começa a ser quebrada a
partir da Constituição de 1988, em que o Art. 68 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias afirma:
Art. 68 – Aos remanescentes das comunidades de quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Desde então, as comunidades passam a ser sujeitos coletivos de
direito, e a implementação de tais direitos uma questão estatal. No entanto, se
através deste artigo e de sua regulamentação reconhece-se a especificidade
destas comunidades, tal reconhecimento não se dá acompanhado de uma
valorização da diversidade que a considere importante em si mesma, como capaz
de oferecer caminhos alternativos de pensamento e ação para a sociedade mais
ampla. Ao contrário, muitas vezes o resultado do reconhecimento de tais
comunidades é uma expectativa (e exigência) dos agentes externos de que
permaneçam imutáveis no tempo e no espaço. Como se houvesse um
reconhecimento da historicidade de nossa sociedade, mas não das comunidades
tradicionais. Ou, ainda, em vários casos o reconhecimento estatal vem
acompanhado de uma percepção do grupo como “carente”, como público
prioritário de políticas públicas de mitigação da pobreza – e, conseqüentemente, a
134
diversidade é pensada como expressão desta pobreza (lembramos aqui,
novamente, a discussão sobre IDH elaborada no capítulo anterior).
Das
32
comunidades
paranaenses
certificadas
pela
Fundação
Palmares como remanescentes de quilombo – ou seja, com a chancela estatal de
sua existência –, mas que ainda não apresentam suas terras tituladas, está a
Comunidade Remanescente de Quilombo do Bairro João Surá, que localiza-se no
município de Adrianópolis, nas margens do Rio Pardo – que divide os Estados do
Paraná e São Paulo. A configuração geográfica da região, com suas serras e
vales encaixados e entrecortados por rios sinuosos, dificultava seu acesso e a
tornava espaço propício para a territorialização de escravizados fugidos ou libertos
no século XIX.
Segundo Fernandes (2007), no Relatório Antropológico Comunidade
Remanescente de Quilombo João Surá, esta se localiza a oeste do município, a
60km da sede municipal. Abrigava, no momento da pesquisa, 114 pessoas,
divididas em 38 famílias (69 homens e 45 mulheres). A maior parte é constituída
por maiores de 18 anos (73 pessoas); seguida daqueles entre 07 e 18 anos de
idade (28 pessoas); e menores de 6 anos (13 pessoas). De acordo com relatos da
comunidade, a população era composta, no passado, por cerca de 300 famílias.
O contato com a comunidade João Surá nos permitiu destacar e
compreender alguns dos elementos que contribuem para a gradual evasão dos
seus habitantes, dentre eles: o processo contínuo de expropriação de terras
sofrido pela comunidade desde o século passado; as limitações de uso dos
recursos naturais após a criação do parque das Lauráceas; a atuação da indústria
de “reflorestamento” (plantio de pinus e eucalipto) na região, através da
concentração de terras, conjugada ao uso inapropriado do solo e da água;
ausência do serviços públicos básicos; escolarização uniformizadora voltada para
o espaço urbano; migração para trabalho em outros locais e regiões.
Os moradores da comunidade se dividem em três núcleos habitacionais
– Poço Grande, Guaracuí e João Surá. Concentram-se no terceiro deles, a
“sede”(onde focamos nossa pesquisa), que é constituída em torno da escola de
ensino fundamental, da Igreja, do centro comunitário e do cemitério. A atual área
135
da comunidade é, segundo relatos de moradores locais, muito menor que aquela
controlada pela comunidade no passado. Segundo Fernandes (2007), o processo
de expropriação aproxima-se daquele enfrentado pela comunidade do Cangume,
descrito no capítulo anterior. Também no caso de João Surá e das comunidades
da região, a titulação individual de lotes provocou a quebra da dinâmica territorial
marcada pelo uso comum. O autor afirma que, a princípio, segundo a memória
dos moradores locais, a regularização fundiária realizada pelo INCRA na década
de 1960 teria sido considerada como a segunda liberdade – sendo a primeira a
própria formação da comunidade. No entanto, o processo teve desdobramentos
inesperados pelos quilombolas, principalmente devido ao crescimento do mercado
de terras regional e à utilização de artifícios por pessoas de poder para garantir a
propriedade de áreas de uso dos membros de João Surá. A expropriação foi tão
grave que Fernandes chega a afirmar que talvez, nos duzentos anos de sua
existência, João Surá nunca teve sua sobrevivência tão ameaçada como nas
últimas décadas (FERNADES, 2007).
Um relato do Sr. João Murato, publicado no relatório 2005-2008 do GT
Clóvis Moura (2008), ilustra a maneira como é lembrada a ação do INCRA no
município, e como a retirada de terras dos negros era uma prática. Este senhor, a
pessoa mais idosa da comunidade Porto Velho, afirma que:
“O INCRA, quando veio em 1940 para medir a terra, quis tirar os negros
do local para colocar outras pessoas no lugar e dizia ainda que os
solteiros não podiam ter terras, mas somente os casados (...)” relata
João Murato que conta também que “tinha uma plantação de cana-deaçúcar no seu terreno na época que o INCRA passou a terra para outra
pessoa” e que este exigiu que a cana fosse retirada; “perdi, além do
terreno, toda a plantação da cana”. Conta também que para obter o
título da terra, tinha que, além de pagar ao INCRA, roçar toda a estrada,
caso contrário o terreno que restava seria tomado (:57).
A memória do Sr. João Murato sobre o processo de titulação é
significativa, não somente por refletir o contexto enfrentado também pelos
moradores de João Surá, mas ainda pelos aspectos que mobiliza. Assim,
evidencia-se
a
arbitrariedade
do
órgão
estatal,
bem como
a
posição
desprivilegiada dos negros no processo. E, ainda, como esta ingerência do Estado
136
representou uma perda da autonomia dos membros da comunidade, que vem
junto com a perda do território.
Mas, como apontamos, o processo de regularização também insere
terras que antes eram coletivas no mercado de terras. Ouvimos relatos na
comunidade João Surá, como o de D. Joana que explicita como as terras eram
trabalhadas em comum, e como esta lógica foi quebrada pela ação do INCRA:
De primeiro todos trabalhavam como uma só terra não tinha divisão de
terra. Porque meu pai morava mais aqui por baixo quando nós
queríamos trabalhar meu pai atravessa aqui o outro lado do rio com a
canoa...(o rio em questão é o Rio Pardo) no tempo que eu era criança
menina de uns 14 anos já conhecia serviço não é? Eu e meu irmão e
essa outra irmã minha nos travessa o rio e trabalhava aqui no outro lado
do rio e onde meu pai dizia que ia fazer uma capoeira, fazer uma roça,
não tinha problema. Então era tudo comum. De uns tempo pra cá que o
INCRA entrou, então cada um tinha sua terra. Agora aqui do riberão pra
cá já é outra terra. Então depois que o Antonio Carlo começou a
trabalhar aqui, pra resolver documento da Associação para não
atravessar o rio pra cá. Não é? Então falta o Governo devolver as terras
tomadas.
A partir de então, o trabalho deixou de ser a base para a garantia da
posse do território, e foi necessário resistir às pressões dos fazendeiros, na
tentativa de obrigá-los a venderem suas terras por valores irrisórios. Segundo a
mesma D. Joana, falando da ação de um desses fazendeiros:
se ele quiser passar aqui em casa conversar comigo, mas não pra
negócio de terra e depois que meu véio morreu ele veio umas pá de vez
ai em casa pra compra a terra. Quando foi um dia o Antônio Carlos não
tava, ele chegou em casa e falou: “Olha eu vim aqui falá pra ocê que
suas crianças trocaram o marco da terra lá... e mudaram pro lado do
meu.” Aí eu falei: “Não Seu ....as minhas criança não fazem uma coisa
dessa. A gente não tem precisão de tirar as terra de ninguém”. Aí ele
disse: “Não eu quero o titulo da terra pra eu tirar um número para por no
meu porque eu vou comprar essa terra. Eu falei: “Não senhor, eu não
vou vender a terra, não vou vender a terra porque é uma palavra que
meu véio falou para o Senhor, eu falo que não é pra vender” e aí ele
começou a me atacar e aí eu mandei chama a Cassiana ali que ele
queria tirar o número lá pra passa no dele. Aí a Cassiana pegou lá o
titulo da terra e mostrou pra ele... ele entrou até dentro do quarto meu
(ao falar disso dona Joana aumenta o tom da voz como se estivesse
revivendo aquele dia) pra ele pegar o título pra ele tirar o número e
passar para o dele. Eu falei pra ele: “Pois é como o senhor quer tirar o
número do documento nosso pra passar no seu... mas eu vou dizer pra
senhor que nunca mais venha aqui em casa compra terra... eu não
vendo, eu já falei, eu não vendo e não vendo . Se o senhor quiser vir
aqui em casa conversar e tomar um café com minha família pode vir,
137
mas pra terra não me venha mais aqui em casa.” Nunca mais voltou
aqui em casa. Ele falou pra mim: “Era isso que queria saber.” Ele falou
para mim, não é. E ele saiu porta fora e foi embora. (Entrevista realizada
dia 19/12/2007)
E afirma, ainda:
As pessoas que não venderam as terras, principalmente eu, e mais sete,
não vamos vender nossos 10 alqueires. Nós sete não vendemos as
terras, o resto tudo venderam para o fazendeiro. Eu jurei para o
fazendeiro que não viesse aqui em casa comprar terra que eu não ia
vender (Entrevista dia 19/12/2007)
É a resistência de pessoas como D. Joana que permite que a
comunidade persista – e esta não é uma resistência simples, quando se considera
o tipo de pressão que pessoas em condição de mando podem fazer em contextos
como estes. E que possibilita que a comunidade comemore, como o fez no dia 11
de outubro de 2007, 200 anos. Isto não implica, contudo, que seus habitantes
estejam lá, “relativamente isolados”, desde há dois séculos. Ao contrário, vários
dos atuais habitantes já experimentaram, em algum momento na vida, a migração
para fora – seja para estudar ou, principalmente, trabalhar. Muitas vezes, esta
migração se dá para regiões relativamente distantes e com perfil muito distinto,
como a cidade de São Paulo ou Curitiba. Em outros casos, a migração é mais
restrita, para núcleos urbanos ou áreas rurais da região. A pressão demográfica
interna, a expropriação das terras da comunidade, as dificuldades de acesso a
serviços públicos, como vimos, fazem com que esta migração seja, em muitos
casos, uma necessidade para a sobrevivência da comunidade.
Neste contexto, a existência de uma mineradora no local, a Plumbum,
se mostrava uma alternativa importante para os quilombolas de João Surá (bem
como das outras comunidades da região), pois permitia que a migração se desse
para região próxima de seu território. Como relata Dona Clarinda:
O meu marido e eu vivemos um pouco fora da Comunidade e a gente
viu que a vida lá fora, para gente que não tem estudo, é difícil e
resolvemos ficar aqui no nosso lugar mesmo. A gente foi trabalhar na
Plumbum, lá enquanto tava tocando era mais difícil mas era melhor que
aqui, lá tinha escola para as crianças estudarem também tinha saúde
com médico particular da firma, atendia muito bem. Depois a firma
fechou as portas (...) por conta do meio ambiente ela começou a
degradar demais o rio Ribeira, muita poluição daquela matéria que eles
foram trazendo, como não tinha onde por e daí foi prejudicando a saúde
138
das pessoas com chumbo no sangue. E os operários estavam todos
doentes. A Secretaria da Saúde, na época, foi para cima e fizeram parar.
Quando fechou a gente pensou em ir para Curitiba e achamos melhor
voltar para cá. (entrevista realizada dia 18/12/2007).
Na fala de D. Clarinda, alguns aspectos importantes se destacam. Em
primeiro lugar, a saída para trabalhar na Plumbum resulta de um cálculo em
termos das perdas e benefícios que poderia trazer para o casal. Ou seja, era uma
opção. Mas não uma opção definitiva, como fica claro no decorrer da fala.
Enquanto permanecer lá foi uma estratégia interessante, eles lá ficaram. No
entanto, no momento em que a empresa fecha as portas, D. Clarinda e o marido
pensam em ir para Curitiba, mas decidem retornar para João Surá, onde estão até
hoje. Atualmente, o casal é dono de comércio local, tem um fusca que transporta
as pessoas para a cidade, e D. Clarinda faz comida para os trabalhadores das
plantações de pinus e eucalipto da região. Assim, conseguem sobreviver sem ter
que se submeter novamente à migração, que ela mesma reconhece ser muito
dura para aqueles que “não têm estudo” (e, acrescente-se, provêm da zona rural e
são negros) como eles.
A relação da Plumbum – grande empresa mineradora que exerceu suas
atividades por 50 anos, e cujo dono dá nome à cidade de Adrianópolis, mas que
também deixou como herança desempregados, um resíduo tóxico significativo e
um patrimônio abandonado, e a comunidade João Surá – quilombola, com mais
de dois séculos de existência, que resistiu a todos os processos de expropriação e
dominação a que tentaram submetê-la, mas através de flexibilidade e abertura ao
mundo exterior – é um caso exemplar para pensarmos a questão do modelo único
desenvolvimentista e suas conseqüências, bem como das alternativas que as
comunidades tradicionais representam a seus membros – a reserva de
possibilidades que constituem. Desta maneira, quebramos a lógica colonizadora
de pensamento, tentando perceber as conseqüências da expansão capitalista a
partir daqueles que são vitimados por ela. E como, para estes, não estar
totalmente submetidos ao capitalismo, possuir um espaço de autonomia e
identidade, garante uma condição de vida melhor e mais digna.
139
Iniciamos pela Plumbum Mineração e Metalurgia Ltda. e pelo que
representou no período em que atuou na cidade. Pertencente à multinacional
Penarroya, a mineradora explorou a região de Adrianópolis e extraiu dali fortuna
próxima a US$ 226,8 milhões em ouro, prata e chumbo. No entanto, como ressalta
Ladislau Dowbor em seu artigo sobre o PIB, citado no capítulo anterior, esta
extração não foi pensada como uma dilapidação do patrimônio local, mas sim
como produção de riquezas e geração de empregos para o município. As fotos
abaixo trazem imagens deste período de “glória”, que era marcado não somente
pelo ganho financeiro da própria empresa, mas também pelo ambiente por ela
produzido. Escolas, desfiles, uma vila urbanizada, cantina bem servida, acesso a
saúde, uniformização, todos benefícios (alguns já narrados por D. Clarinda) que se
explicitam nas imagens3:
Foto 1: Vila da Plumbum em seu auge
3
Essas fotos da mineradora Plumbum foram cedidas pelo Ex-Prefeito de Adrianópolis Sr.
José Carlos Santos (Sukita) ao morador Carlos Augusto Costa Santos, de Adrianópolis que
é aluno desse pesquisador no CEEP Newton Freire Maia.
140
Foto 2: Entrega dos primeiros uniformes
Foto 3: Dia de Festa – 04 de Dezembro
141
Foto 4: Escola da Plumbum
Foto 5: Cantina da Plumbum
O funcionamento da empresa conjugava a extração de ouro, prata e
principalmente chumbo com o refino do minério de chumbo produzido nas minas
de Panelas, Canoas e Barrinhas. Segundo José Guilherme Franchi (2004) as
142
condições técnicas em que a atividade mineral se desenvolveu, de 1945 a 1995,
foram quase sempre rudimentares e praticamente sem controle dos impactos
ambientais advindos. O controle só foi exercido nos últimos anos da produção, de
forma parcial e ineficiente, como resultado da pressão de órgãos ambientais. Ao
falir, em 1995, a empresa virou as costas e deixou para trás uma montanha de
347 mil toneladas de lixo tóxico, que ainda contamina o meio ambiente e as
pessoas do lugar. Além disso, ao longo do período em que funcionou, foi lançada
na atmosfera uma grande quantidade de material particulado rico em chumbo, que
se depositou na superfície dos solos adjacentes. Transcorridos mais de dez anos,
ainda permanecem o passivo ambiental que foi deixado para trás e os riscos de
contaminação por chumbo a que estão sujeitas as populações locais.
Não é esta, contudo, a percepção que as imagens e o nome da cidade
passam.
Através
delas podemos
imaginar
um cotidiano
marcado
pela
padronização, planificação do espaço da vila, valorização de atividades cívicas e
de um ideal de urbanidade e modernização. Além disso, seria inimaginável pensar
nas comunidades quilombolas dando nome à cidade, mas Adriano Seabra da
Fonseca o faz. Por outro lado, a empresa consagra, ao fechar, o descompromisso
que possuía com o local – já explicitado pelo sistemático desrespeito à legislação
ambiental. Desrespeito que é fácil ter, quando o lugar em que se realiza a
atividade produtiva não é também local de vida cotidiana e referência de
identidade para aqueles que o definem. Em outras palavras, uma comunidade não
pode se dar ao luxo de explorar seus recursos naturais de forma indiscriminada,
ou desrespeitar regras mínimas de preservação ambiental, ou ainda interromper
seu processo produtivo e deslocar suas atividades para outras regiões. A
comunidade não possui capital, e sim território. Seu objetivo não é o lucro, mas
sua sobrevivência como comunidade – e conseqüentemente de seus membros. O
compromisso coletivo pauta sua lógica (embora seja necessário reconhecer que
conflitos e perspectivas discordantes façam parte desta avaliação dos parâmetros
para o bem comum).
143
Novamente imagens traduzem bem o quadro deixado pela Plumbum,
pois se evidencia o abandono do patrimônio da empresa e o lixo abandonado por
ela:
Foto 6: Visão externa da Plumbum na atualidade
Foto 7: Rejeitos da mineração
144
Foto 8: Crianças brincando na pilha de rejeitos
O chumbo pode ser absorvido por qualquer via, dependendo da forma
de exposição. No organismo, o metal entra na circulação sanguínea e tem sua
carga corpórea determinada pela exposição concomitante dessas distintas vias. O
órgão-alvo mais sensível ao chumbo é o sistema nervoso central. Portanto, o CDC
(Centro para o Controle da Doença) considera como suspeitos de exposição
anormal ao chumbo os casos de sinais de alterações neurológicas em crianças
pequenas.
Para avaliar cientificamente os riscos e as conseqüências deixadas
pelas atividades de mineração, ocorridas durante 50 anos em Adrianópolis,
Gabriela Di Giulio (2006) realizou abrangente pesquisa intitulada Paisagens
Geoquímicas e Ambientais do Vale do Ribeira sobre a exposição humana e
ambiental ao chumbo. Nesta a autora analisa pesquisas realizadas pela UNICAMP
e outras instituições na região, os impactos que estas tiveram na mídia e no dia-adia da população local, além de como a equipe da universidade se relacionou com
os habitantes da região e os informou de seus resultados. O material das
pesquisas da UNICAMP foram coletados em duas comunidades de Adrianópolis –
Vila Mota e Capelinha – situadas nas proximidades da refinaria. A autora afirma,
com base em Lammoglia, que face às concentrações de chumbo em solo, há risco
potencial de efeito adverso à saúde humana, havendo necessidade de ação
145
imediata na área e adoção de medidas visando à minimização das vias de
exposição.
Dados mais recentes (2004-2005) dessa pesquisa, resultantes da
análise de certos alimentos consumidos pelas populações, revelaram que, com
exceção do leite e milho, as concentrações de chumbo em ovos e em várias
espécies de verduras e de legumes, colhidos nas hortas das comunidades
próximas da refinaria, excedem os limites estabelecidos pela legislação brasileira,
contribuindo para a contaminação humana por chumbo. Também foram realizados
estudos na região pela Secretaria de Saúde do Paraná e pelo Instituto Ambiental
do Paraná (IAP).
Com o decorrer das pesquisas realizadas em Adrianópolis, a mídia foi
informada sobre o problema de uma possível contaminação por chumbo.
Literalmente, da noite para o dia, a cidade viu seu nome ser divulgado em todo o
País, já que a primeira matéria sobre a possível contaminação humana por
chumbo em Adrianópolis foi divulgada no Jornal Nacional, da TV Globo. Na noite
de 28 de fevereiro de 2001, o telejornal mostrou a notícia intitulada “Chumbo
contamina moradores de uma cidade do Paraná”.
Relatos de moradores locais coletados por Di Giulio mostraram uma
resistência aos pesquisadores e aos resultados divulgados:
Na época que veio o pessoal da outra universidade não gostei do jeito
que fizeram o trabalho. Fiquei brava mesmo porque colocaram na mídia
uma imagem muito negativa da nossa cidade (...) Elas ficaram quatro
meses aqui, iam todos os dias na Vila Mota dar remédio para as
crianças, elas se empenharam. Mas colocaram na mídia uma coisa
muito doida, não precisava. Naquele momento, não precisávamos”
(Antonia Dalva Sanches Dias, moradora, apud Di Giulio, p. 93)
(A pesquisa) foi importante, porque assim a gente fica sabendo o que
está acontecendo no lugar (...) Eu fiz exame, mas diz que meu sangue
estava normal. Os pesquisadores vieram trazer os resultados,
explicaram, deixaram uma folha, entendi. Eu toparia participar de uma
nova pesquisa, mas estou querendo me mudar para Bocaiúva. Aqui é
ruim porque não tem serviço. Eu faria exame de novo, mas não tem
problema. Eu já fiz exame três vezes depois que parou a firma e não
tenho problema nenhum” (Abraão Cláudio, morador e ex-funcionário
apud Di Giulio, p. 94)
Pode-se perguntar se esta resistência não se relaciona com a quebra
do ideal representado pela Plumbum e consolidado ao longo dos seus cinqüenta
146
anos: a possibilidade de acesso a uma modernidade que não ocorreu, e que
deixou conseqüências nefastas – em termos concretos, pela necessidade de fazer
exames constantes, das crianças consumirem remédios, pelo fim dos postos de
trabalho; mas também simbólicos, na medida em que a cidade passa a ser vista
como local de contaminação. Contaminação também com conseqüências
materiais, pois segundo o vice-prefeito da cidade, a produção de Adrianópolis era
de alimentos. Quando saiu no jornal, os consumidores habituais teriam começado
a recusar a garapa. O leite não teve esse problema porque não tinha uma marca
dizendo que era de Adrianópolis. Também as pessoas que procuravam emprego
em Curitiba não foram aceitas, porque achavam que elas poderiam estar
contaminadas por chumbo.
Outro depoimento importante citado pela autora é de um ex-funcionário
que assim analisa o caso:
Tinha esse mundo de coisa ao lado da estrada, do outro lado a escória
do forno. Tiraram isso. Acho que aquilo era uma coisa feia. Se tivesse
que contaminar, durante o tempo que a firma despejava aquilo ali, já
tinha contaminado tudo. Essa escória e o resíduo do minério, quando
cheguei aqui, iam tudo para o rio Ribeira. Cada tipo de veneno, rapaz do
céu. Aquele veneno era tão desgraçado que fazia virar espuma. Cansei
de ver colocar uma gota daquele veneno numa cobra viva e ela nem se
mexia mais. (apud: DI GIULIO, 2006:108).
Ao exemplo da Plumbum, podemos contrapor a comunidade João Surá.
Partimos da maneira como ela é localmente vista e retratada pelos poderes
municipais locais. Neste caso, há uma ênfase no caráter rudimentar dos
processos produtivos da comunidade, que aparecem como sendo uma expressão
de um “passado” (e não só eles, mas a comunidade como um todo é algo “do
passado” e que corre risco de perder sua identidade devido a uma
“fragmentação”) – opondo-se ao contexto da Plumbum previamente apresentado,
que mesmo quando degrada o meio ambiente é, sem questionamento, algo do
presente. Assim, a página que a descrevia no site da prefeitura, hoje desativada, é
a seguinte:
147
Fonte: FERNANDES, 2007: 08
148
Vale a pena analisar como a comunidade é representada através das
informações que eram veiculadas pela prefeitura. Na primeira imagem aparece o Sr.
Vitor Andrade de Matos, que é um dos artesãos da comunidade, com um cesto de
tipiti, seu nome, contudo, não é mencionado; logo depois são apresentadas
imagens de beiju e farinha de mandioca ao fogo, mas em nenhum momento há
qualquer explicação de que esse é um dos processos de produção da farinha de
mandioca, ou se explicita porque são estas as imagens que são atribuídas à
comunidade Joâo Surá. Subliminarmente, os objetos surgem como uma tentativa de
resgatar uma imagem da comunidade que valorizaria sua cultura, mas em que esta
apareceria como essencialmente rudimentar e idealizada. Seus membros, suas
práticas cotidianas e rituais, sua concepção de mundo, sua territorialidade, nenhum
destes elementos aparecem nesta representação oficial.
O texto fala da comunidade, onde está localizada, diz que a população foi
recentemente reconhecida como remanescentes de quilombolas pela Fundação
Palmares. Segue.
Com este reconhecimento, a comunidade ganha mais visibilidade
perante as políticas públicas, tendo assim mais acesso a projetos.
Além do que esta valorização contribui na reconstrução de uma identidade
que foi fragmentada durante um período histórico e repassa a importância
da cultura negra para as gerações vindouras (GOMES JR, 2008).
Do mesmo modo, o livro “Paraná Negro” (2008) reforça a idéia de atraso
quando, em seu capitulo intitulado Tecnologia, apresenta um serrote. E descreve:
“As comunidades negras tradicionais mantiveram os traços de ancestralidade que
parecem práticas remotas ou tecnicamente atrasadas, mas são a essência do
que possibilitou aos quilombos atravessarem o século 20” (GOMES JR., 2008:81).
Não há, contudo, um questionamento efetivo sobre o que está sendo denominado
como atraso técnico, nem os motivos pelos quais estas práticas aparentemente
remotas seriam a essência do que “possibilitou aos quilombos atravessarem o
século 20”.
149
As tecnologias dos vários grupos são apresentadas como sendo os
objetos desenraizados do contexto, retomando o discurso de recuperar as “riquezas
culturais” – embora sem deixar claro o que se concebe como riqueza cultural, nem
porque aqueles instrumentos em si seriam expressão de tal riqueza. Ao deslocar os
instrumentos das relações sociais e das visões de mundo destas comunidades, eles
adquirem força na afirmação indireta do “atraso”, mesmo que isto não seja dito
explicitamente. O passo para a postura de que esses grupos têm que consumir a
tecnologia sofisticada, de forma pouco crítica, a fim de fazer a assepsia do atraso é
muito pequeno. Aciona-se o discurso do moderno.
A opção a esta postura é geralmente outra que também não permite a
visão da comunidade em seu conjunto. Neste caso, se constrói uma perspectiva em
150
que a tecnologia é sempre uma ameaça para as legitimas características do grupo.
Neste caso, recusa-se sua historicidade, e o tradicional é tomado como permanente
e estático. Sahlins (1997), ao criticar tal perspectiva, a descreve nos seguintes
termos:
Se eles não fazem mais ‘isso’, então não são mais eles mesmos, ao
passo que, se os colonizadores não fazem mais o que faziam há duas
décadas trata-se de um exemplo reconfortante do progresso ocidental.
Em um caso, diversidade e mudança conotam inautenticidade; no outro,
são o selo da verdadeira civilização ocidental” (:68).
Para não retratar a tecnologia como sendo atrasada, optamos fazer as
discussões do atraso a priori, com objetivo de desconstruir a idéia de que a
comunidade é dinâmica e flexível. Não se deve desenvolver uma postura acrítica e
arbitrária frente ao desenvolvimento da tecnologia e suas influências sobre o
cotidiano de João Surá. Pelo contrário, urge o desenvolver da atitude oposta, isto é,
aquela vinculada a um desejo de compreender as dimensões de tal constructo
humano e de suas interferências no modo como é organizado o existir da
comunidade, enquanto seres racionais, sociais e produtores de cultura.
É nesse olhar analético (ver além do dado, do feito, do fato, da totalidade)
que perpassa a relação da dimensão social com a produção tecnológica que se
pode vislumbrar um desenvolvimento científico humanizado e gerador de ações
comunicativas entre os diversos atores sociais.
As relações sociais no interior da Comunidade João Surá e a divisão do
trabalho são marcadas pela sociabilidade coletiva. Neste caso, a utilização de
técnicas que se baseiam em instrumentos simples, possuídos por boa parte dos
membros da comunidade, que também dominam seu uso, é fundamental. Um dos
trabalhos que é bem característico da comunidade é o sistema de “troca de dias”.
Neste caso, alguns membros trabalham para um outro durante um dia, e em um
momento posterior de “precisão” têm seu dia de trabalho retribuído. Este sistema
permite que, nas atividades em que é necessário realizar rápido o trabalho, seja
possível contar com auxílio dos demais sem necessitar, para tanto, despender
recursos financeiros. Acrescente-se que só é possível a troca de dias porque os
151
membros da comunidade compartilham um saber semelhante com relação às
técnicas de produção. D. Clarinda, ao comentar sobre o mutirão, revela:
Antigamente era mais e eu lembro muito o meu vô, meu pai, as vizinhada
tudo aí antigamente que tinha muito mais gente, então eles trabalhavam
na semana no serviço deles e no sábado faziam mutirão e ali reunia as
pessoas e quando era de madrugada levantava, fazia um café, cozinhava
arroz, feijão, carne, aquela comilança e daí juntava as pessoas e ia tudo
para roça e quando era uma carpida, nossa era coisa mais linda era
aquela fila de gente na roça trabalhando. Quando era época de colher
arroz era a coisa mais linda. A gente ia cortando de cachinho assim e aí
fazia aquela pilha era a coisa mais linda de arroz e quando era no outro
sábado ia para o meu pai e no outro era do meu vô, outro era do cunhado
dele e assim ia, era sempre sábado. Era lindo mesmo, eu mesmo tenho
saudade disso (ela expressa um sorriso ao relembrar esse período da
história dos mutirões). Hoje tem, mas não é igual como antigamente,
agora é bem pouco, mas não é igual a antigamente (entrevista realizada
dia 18/12/2007).
Uma outra atividade que era importante e que ocupou um lugar
privilegiado na economia da comunidade foi a fabricação de rapadura. Esta
possibilitava tanto o consumo próprio quanto a comercialização local e regional. Nas
palavras de D. Joana:
cada casa tinha uma moenda e só vendiam para Barra do Turvo porque
aquele tempo era só estrada de tropa e quando vinha de burrada pra
comprar rapadura todo mundo fazia um mês inteirinho fazia até trinta
cargueiro (entrevista realizada 19/12/2007).
Esta produção apresenta as mesmas características da anterior. Com um
investimento relativamente baixo, pois parte dos instrumentos necessários para sua
produção podem, ser confeccionados pela própria comunidade, com matéria-prima
do ambiente, a rapadura possui uma durabilidade alta e um potencial de
comercialização elevado. Além disso, é um alimento também passível de consumo
pela própria família, que também é a mão-de-obra básica da produção.
152
Figuras extraídas de FERNANDES, 2007 :66
D. Joana explica como era feita a embalagem das rapaduras:
Nós fazia rapadura o dia inteiro e quando era tarde o pai tinha uma mesa
grande e enchia de rapadura. E daí ele ia na roça e trazia um cesto de
milho e daí ele molava o facão bem molado e passava naquelas cabeças
de milho e nós tirando a palha do milho e botando no cesto para empaiá a
rapadura e ele amarrava bem amarrado e depois ele pinchava tudo
encima do fogão pra conservar a rapadura para quando os tropeiro
vinham buscar a rapadura estava sequinha, nós colocava no lombo do
burro e assim era nossa vida e no outro dia de novo (entrevista realizada
dia 19/12/2007)
Figura: processo de produção de rapadura (FERNDADES, 2007:67)
Essa organização do espaço-ambiente, que corresponde a um padrão
tradicional camponês de reprodução social e de percepção do ambiente, tende a
uma forma de economia auto-sustentada. Nesses espaços, são constituídos
microespaços de comercialização de produtos locais, que fazem com que se tenha
acesso a recursos financeiros sem a necessidade do assalariamento: a venda das
rapaduras, como podemos verificar, dava e continua a dar uma certa autonomia ao
grupo frente ao sistema dominante. O depoimento da D. Joana, ao falar da venda
de rapadura para o mercado externo, põe em cheque a idéia de isolamento e
invisibilidade. Demonstra como a comunidade é conhecida e reconhecida
localmente, e como é através das diversas relações com o mundo exterior –
153
inclusive por migrações relativamente longas, relações comerciais e de trabalho,
como vimos – que garante suas condições mínimas de reprodução.
À diferença do que ocorre no universo de representações da produção
moderna, o trabalho não pode ser pensado em si. Além do trabalho, devem ser
consideradas as relações das pessoas com os instrumentos. Chama a atenção o
que dizem os Woortmann (1997) sobre a relação com os instrumentos no contexto
do movimento do trabalho. Segundo os autores, não basta falar dos instrumentos
de trabalho em si mesmos, quando se descreve o processo de trabalho, pois eles
não são apenas meios de produção material, mas também meios de produção
simbólica. Se os meios de trabalho, seguem os autores, expressam as forças
produtivas, expressam também as forças ideológicas. A relação com os
instrumentos é a constituição e expressão de saberes do grupo.
D. Joana nos conta que, quando era pequena, seu pai a ensinou a ler na
casca de palmito. “Foi assim, que aos pouquinho que ele sabia e ensinou para os
netos e assim foi indo”. Ela segue:
Porque antigamente as pessoas que não sabia ler e a escrever não se
apertavam. Disserto fazia falta, só que a cabeça da pessoa sabia
administrar as coisa, e então as coisa tudo passava e hoje em dia não. Tá
tudo deferente as coisas. Eu mesma pra mim aprender a ler e a escrever,
agora, por causa de minha idade, eu acho assim difícil, porque as palavra
agora tá tudo deferente do tempo de dante. Não é. Tem coisa que minhas
crianças perguntam pra mim aí eu não sei nem respondê, tem coisa que
eu falo para eles também não sabem responder. Eu acho que a leitura
hoje em dia (ela carrega de expressão ao dizer esta frase) é muito
importante porque as coisas são deferente, a gente de idade é bom
aprender (entrevista realizada no dia 19/12/2007).
A educação dos filhos, como podemos observar, se dava no espaço da
agricultura. A criança realizava suas experiências de produção no local de trabalho,
desenvolvia suas habilidades no manejo dos instrumentos que a tornariam apta, no
futuro, a participar das atividades produtivas, sem pôr em risco a produção do
grupo. Desta maneira se garantia a reprodução do grupo sem a necessidade de
processos formais de ensino-aprendizagem. Com o modelo de ensino que
adotamos na sociedade brasileira, os saberes dos mais velhos são destituídos.
Como diz D. Joana, “tem coisa que minhas crianças perguntam pra mim aí eu não
sei nem responde, tem coisa que eu falo para eles também não sabem responder”.
154
O saber agora está nas escolas. Antigamente o espaço da roça, para os pequenos
e mais jovens, era o espaço do aprendizado. Era assim que se construíam e
transmitiam os saberes e a visão de mundo.
O processo de trabalho consiste, neste universo, em mais que uma
tecnologia. É um modelo de ordenamento do mundo que também ordena as
pessoas. O processo do trabalho, o manejo dos instrumentos produz alimentos (que
são muito valorizados, existe uma diferença significativa entre o alimento próprio e
aquele produzido pelo mundo exterior) e relações sociais. Este saber, contudo, é
sistematicamente desvalorizado pelo modelo desenvolvimentista, através da
denominação
da
comunidade
como
possuidora
de
práticas
remotas
ou
tecnicamente atrasadas. Outra forma é quando se valoriza apenas o conhecimento
formal, dizendo que os novos conhecimentos estão nas escolas técnicas ou
agrícolas. A experiência do grupo como um todo, transmitida de geração a geração,
é transformada de saber coletivo em idiossincrasias.
Outro instrumento que demonstra a racionalidade da opção por técnicas
simples e de baixo custo como forma de manutenção da autonomia do grupo frente
a seus processos produtivos e possibilidade de manutenção do modelo de relações
sociais internamente valorizado, e que é muito utilizado na comunidade, é o burro.
Segundo Sr. João Pereira, o instrumento, usado para prensar massa de mandioca
ralada, é valorizado por não ser necessário ficar em cima apertando, você pode
largar lá e no outro dia a mandioca está sequinha (entrevista realizada no dia
22/05/08)
A matéria-prima utilizada é toda ela local: um tronco de madeira acoplado
a uma árvore, com peso de pedra na extremidade servindo de alavanca para
pressionar a massa no tipiti4.
4
Tipiti significa no Tupi: tipi – espremer, ti - líquido
155
Fotos 9 e 10: Sr. João Pereira preparando o burro.
O tipiti, por sua vez, é um cesto utilizado para prensar a massa da
mandioca depois de ralada, no processo de produção da farinha de mandioca. Após
a mandioca ser manualmente ralada, a massa resultante é colocada no tipiti, levado
para o burro para se realizar a prensa, por cerca de quatro horas, fazendo sair toda
a água da mandioca. Desta água se produz o polvilho, através de sedimentação. A
156
massa seca será utilizada para produção de farinha. Esta é, então, peneirada e
colocada no forno, mexendo até secar. Para se fazer a farinha deve-se torrar esta
massa num tacho em cima do fogão à lenha, fogo brando, por cerca de uma hora e
meia “sem parar de mexer”, utilizando-se uma espécie de “pá de pau”. O
rendimento é: para cada lata da massa de mandioca retirada do burro, se faz a
metade da farinha. (FERNANDES, 2007:86)
Foto 11: Sr. Vítor, artesão, com tipiti fabricado por ele mesmo
Fabricação da mandioca (GOMES JR., 2008: 86)
A fabricação do polvilho também é um processo simples: o líquido
extraído da mandioca permanece por alguns dias ao sereno, fermentando, e produz
157
o denominado polvilho azedo. Posteriormente, a água é escorrida e a massa
secada ao sol. Em seguida, a massa compacta resultante é quebrada com as mãos
e passada na peneira, formando um pó branco que é utilizado na preparação de
vários alimentos. O resíduo da peneira, a goma, é novamente peneirado em uma
peneira de furos grandes, sendo que a parte grossa, que fica na peneira, é
separada para ser torrada e servida como alimento das criações, e a parte fina
utilizada de duas maneiras: na produção da farinha, quando torrada, ou na
produção de beiju, misturado-se a outros ingredientes.
A produção conjunta de farinha de mandioca e polvilho é um processo
importante para a comunidade. Ambos, principalmente a farinha, são muito
consumidos. A primeira, destaca Cambuy (2006), como acompanhamento de feijão
cozido e carne assada, ou como taiada. Também é comercializada por alguns,
porém em pouca quantidade e a um reduzido número de pessoas, normalmente
vizinhos e visitantes. Vemos, portanto, como um processo de produção simples, de
baixo custo, permite aos moradores a produção de um alimento valorizado
localmente, com potencial de comercialização e durabilidade alta. E, o que temos
ressaltado ao longo do texto, garantindo sua autonomia produtiva e auto
sustentabilidade.
A descrição acima das atividades produtivas da Plumbum e dos
membros da comunidade João Surá, e principalmente as imagens apresentadas,
são um exemplo significativo da perspectiva eurocêntrica de compreensão da
realidade – na medida em que os processos produtivos mais simples e que exigem
menos recursos, possibilitando autonomia àqueles que os realizam, são vistos
como “atrasados”, enquanto o “progresso” passa pela complexificação e pelo
controle do processo produtivo por poucos. No entanto, curiosamente, esta
percepção não se sustenta se analisamos em detalhes o caso em questão. Com
efeito, passado aqui é a Plumbum, que, após cinqüenta anos de atividades, deixou
um rastro de poluição ambiental, degradação, desemprego e patrimônio
abandonado. Já a comunidade João Surá continua presente após mais de duzentos
anos de existência, garantindo uma parcela de autonomia – inclusive pela
manutenção de técnicas de produção mais simples e de menor custo – e
158
fornecendo a seus membros alternativa para enfrentar o lugar desprivilegiado a que
normalmente são submetidos quando se inserem no processo capitalista de
produção. É a diversidade como reserva de possibilidades, que, se levada a sério,
permite pensar também novas alternativas para a sociedade como um todo.
Não se pode, contudo, desconsiderar o poder do sistema dominante, e
como, através do discurso desenvolvimentista, ele continua pressionando a
comunidade João Surá a se integrar aos modelos capitalistas de produção. E, como
conseqüência, a se desintegrar. Como destaca Fernandes (2007), atualmente uma
das ameaças à identidade coletiva, à relação com o espaço e à organização
comunitária que trazem coesão aos três núcleos da comunidade João Surá é o
avanço da monocultura do pinus. Este traz consigo degradação ambiental, através
da derrubada e destruição dos biomas locais, bem como do intenso uso de adubos
químicos,
empobrecendo
e
contaminando
o
solo
e
comprometendo
a
disponibilidade regional de água. Agrotóxicos utilizados em seu plantio contaminam
os rios Ribeira e Pardo. O resultado, destaca o autor, é significativa redução de
disponibilidade de terras e água, que comprometem a produção alimentar e
colocam em risco a autonomia – e mesmo continuidade – da comunidade.
D. Clarinda, em mais um trecho de entrevista, ressalta os problemas
causados pela monocultura de pinus – que é vista por alguns como uma espécie de
repetição da história da Plumbum no município – bem como pela presença das
grandes propriedades de criação de gado:
Isso é um negócio bem difícil, é uma coisa que a gente não esperava que
iria acontecer com a gente. Porque tinha uma época que eles vieram e
plantaram eucaliptos, cortaram e deixaram a terra degradada. Onde era
mato acabou com o eucalipto, e como se não bastasse agora vem o
pinus, e ai não sabe o que vai acontecer com a gente. As fontes vão
secando, o rio está secando mesmo, nossas águas, nossos córregos,
nossas fontes e cabeceira d´àgua, tá tudo plantado de pinus e onde não
dá para plantar tem fazenda de boi. Que nem onde eu trabalho lá na roça,
tem uma fonte água boa e gostosa, mas tá acabando nossa água por
causa da fazenda de boi o fazendeiro usa tudo por causa do capim e a
mata vai acabando tudo e a água vai secando. Nós aqui desse lado do
Paraná tem gente já sofrendo em conseqüência, a terra já esta ficando
cansada, você planta já não dá como antigamente que dava bem feijão,
milho, arroz e hoje... Mesmo assim o que a gente sabe para fazer a terra
ficar forte não consegue, dá um sol e torra tudo, planta arroz quando é
meio dia o arroz tá queimado. (...) Nossa terra estava ficando para o
159
fazendeiro. Foram plantando, desmatando tudo, foram acabando com
nossa floresta, com nosso meio de vida. A gente viu que ia virar só boi.
Para passarmos no meio da fazenda era um deus nos acuda, eu enfrento
esse problema até hoje porque ir na minha roça tem que atravessar no
meio da fazenda por entre de duzentos a quatrocentos bois, é bicho feio.
Porque eu moro aqui no João Surá no Paraná, só que minha roça onde eu
trabalho, que era do meu sogro, é no Estado de São Paulo. Tenho, com
isso, de atravessar a fazenda para chegar na comunidade “Praia Grande”,
só que minha mãe tem terra aqui no Paraná também que está cercada lá
no meio da fazenda. Esses tempos atrás era fazenda de boi agora é
pinus, antes era o boi que cercava a gente para ir até a terra nossa e
agora é pinus que está invadindo tudo. (...) a vizinha nossa que o pinus tá
acima da cabeceira da água dela, ela disse que tá sendo água chega
assim no meio do dia, quando passa uns cinco a seis dias já não tem
água nem pra dá pros porco dela que tem que pegar água da torneira pra
dá para a criação dela. O córrego que era utilizado para lavar roupa e
girar o monjolo não dá mais (entrevista realizada 22/05/2007).
É preciso destacar, contudo, que a comunidade não permanece
“fechada” a este novo contexto – como não o fez no contexto anterior da Plumbum.
D. Clarinda mesmo, já indicamos, prepara e vende comida para os trabalhadores
das empresas “reflorestadoras”, e vários jovens de João Surá têm no pinus uma
alternativa de trabalho. Não que esta tenha sido uma escolha do grupo, as
condições que têm que enfrentar são definidas por um contexto de força externa.
Mas, frente a ele, novamente a comunidade vai responder através de opções
possíveis. E, com sua flexibilidade, tentar sobreviver no quadro de ameaças que
precisa cotidianamente enfrentar.
5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ao longo deste texto, buscamos traçar um caminho em que os
processos concretos e cotidianos de uma comunidade quilombola do interior do
Paraná – a comunidade João Surá – e suas relações com o contexto local e
regional, nos possibilitaram pensar questões mais amplas relativas a modelos de
dominação-subordinação-resistência
presentes
na
América
Latina
e
a
possibilidades distintas de inserção em tais modelos. Para tanto, partimos de uma
reflexão sobre o histórico de constituição do continente e de como se dá, ao longo
dele, a tentativa de imposição de um único modelo legítimo, não somente de
produção, mas também de vida e concepção de mundo. Vimos, portanto, como se
deu, por um lado, uma dominação efetiva, através da imposição do modo de
produção colonial-capitalista, submetendo os povos latinoamericanos a uma
subordinação concreta, e provocando o extermínio de grupos e povos. Esta
dominação, contudo, não é somente material: há também uma dominação
simbólica, em que o outro desaparece dos discursos (poderíamos identificar aqui
uma forma diferenciada de extermínio) ou só é lido na lógica do mesmo; em outras
palavras, em que a diversidade é negada como possibilidade, sendo vista ou
como um resquício do passado em vias de extinção, ou como uma inadequação
no presente.
A fim de realizar esta reflexão, a critica de Dussel foi, para nós, um
caminho fundamental. Segundo este autor, faz parte da legitimidade ideológica da
dominação a idéia de arrastar o outro para o mesmo, processo através do qual é
construída a negação e invisibilização da alteridade. A dominação é algo concreto
e que se impõe através de formas diretas de domínio, mas também é suportada
simbolicamente através desse lugar que é atribuído ao outro como não-ser. Fazse necessário, portanto, sistematizar, definir e formular categorias com base em
uma práxis latino-americana, construídas de maneira critica e contraposta a todo o
conteúdo absorvido da filosofia greco-européia. Não se estabelece apenas sobre
um reproduzir pensamentos, mas esquadrinhar e fundamentar as próprias bases
161
do pensamento latino-americano, fundado na vivência cotidiana e assim rompendo
com paradigmas formais e pré-estabelecidos.
O ponto de partida do método da Filosofia da Libertação é o
reconhecimento de um ethos cultural latino-americano, constituído por heranças
históricas de elementos das culturas indígenas e negras. Dussel denuncia que, no
modelo por ele analisado, apenas podemos compreender o que é passado. O que
está classificado, logo o que é. Não compreendemos o que está em movimento.
Sua proposta para sobrepor o movimento dialético totalizante é o Método
analético, que o autor define como sendo a passagem de uma simples
pressuposição da possibilidade única da totalidade para o reconhecimento de uma
diversidade que se encontra além desta totalidade. Nesta lógica, o outro se
apresenta como alteridade quando irrompe como o estranho, o distinto, o pobre, o
oprimido, aquele que está à beira do caminho, fora do sistema.
Cabe retomar, aqui, a discussão dusseliana em torno do modelo
eurocêntrico de interpretação do real, que não somente molda a maneira pela qual
se dá a construção da história oficial da América Latina – “apagando”
acontecimentos e processos significativos na configuração do presente, como tão
bem ilustrado simbolicamente pelo ato de Rui Barbosa de queimar os arquivos da
escravidão –, mas também orienta a perspectiva de futuro considerada legítima.
Como conseqüência, encontramos o discurso que vê a diversidade sempre sob o
risco do desaparecimento, pois que irremediavelmente condenada pela expansão
inevitável e valorizada do “progresso”. Em suma, como já ressaltava Dussel, a
diversidade é negada, e há um esforço sistemático de arrastar o outro para o
mesmo. É a esta perspectiva que a analética se contrapõe como método, a fim de
reconhecer os que estão além da Totalidade ontológica e dar voz a possibilidades
distintas e igualmente legítimas de ser e viver – que têm, inclusive, um potencial
de resistência frente ao modelo dominador único.
Um dos mecanismos atuais de construção deste modelo único,
analisado no Capítulo III, é a elaboração contemporânea das noções relacionadas
de “pobreza” e “carência”, utilizadas de maneira corrente para definir a condição
162
das comunidades quilombolas do Paraná. Em primeiro lugar, o uso destas noções
abarca em um mesmo conjunto populações muito distintas – não somente
comunidades tradicionais, mas também grupos rurais e, principalmente, urbanos
que não dispõem de meios próprios e autonomia relativa em seu processo de
reprodução, sendo dependentes exclusivamente da inserção no mercado
capitalista. Além disso, ao serem utilizados dados sócio-econômicos padronizados
na definição da “pobreza” – como PIB, renda per capita e IDH –, aspectos
importantes destes grupos rurais são desconsiderados (entre outros, processos
próprios de produção e consumo que não passam pelo mercado, bem como de
transmissão de conhecimentos não formalizados no espaço escolar). Novamente
é possível identificar uma tentativa de ocultamento, e mesmo soterramento da
alteridade, provenientes de uma negação das possibilidades que modelos
alternativos, definidos por configurações diferenciadas de produção e organização
social, trazem àqueles que compartilham tais espaços de diversidade. Elabora-se,
em síntese, o discurso coercitivo dominante que, a fim de impedir a emergência
real das reservas de possibilidades das comunidades tradicionais, busca arrastálas a uma única dimensão de “desenvolvidas” (detentoras de IDH alto) ou “se
desenvolvendo” (com IDH baixo). Concentra-se, portanto, a imensa diversidade
dessas comunidades em uma única dimensão chamada “(sub)desenvolvimento”.
No entanto, se consideramos concretamente os processos de
dominação e as possibilidades de inserção desses grupos “marginais” dentro
deles, tais possibilidades marcam sempre um lugar desprivilegiado, se dão em
condições sociais desfavoráveis. Nesse sentido as comunidades quilombolas são
um exemplo importante: caso consideremos as alternativas de inserção de seus
membros no mercado capitalista de mão-de-obra, podemos observar que estes
sempre ocupam posições da base da pirâmide social – definidas pela baixa
escolaridade, ruralidade, caracterização racial, etc. Essa “inserção” ou “inclusão”,
que é construída não só como óbvia, mas também positiva, só se mantém assim
positivada quando pensada a partir do lugar de dominação. Neste sentido, a
inversão do olhar proposta por Dussel nos permite questionar esta evidente
163
positivação. E, ainda, perceber como os processos de resistência a essa
“inserção” são freqüentes, embora muitas vezes sutis.
Tais processos sutis nos fazem repensar a resistência, não mais como
excessivamente ativa (isto é, caracterizada pelo enfrentamento da luta direta,
como o que aconteceu com Palmares e que passou a ser um modelo único de
resistência). As comunidades apontam a existência de outras alternativas que não
só o enfrentamento ativo. Propomos, portanto, a mudança do olhar, tentando,
como aponta Dussel, pensar a partir do lugar exterior à totalidade, da perspectiva
daqueles definidos como não ser. É pensar como esses grupos enfrentam um
sistema que é opressor, assimilativo, excludente, e apesar dessa opressão eles
não são dobrados, e com isso vão constituindo estratégias para debilitar o poder
– ou, pelo menos, para garantir a seus membros uma condição diferenciada de
enfrentamento deste poder.
A comunidade João Surá exemplifica, como vimos, a construção de
estratégias de resistência marcadas pelo não confronto explícito com o entorno,
mas, ao contrário, por uma flexibilidade a ele – através da inserção no modelo
dominante sem que esta dilua a identidade e as particularidades do grupo, bem
como de manutenção, em seu território, de processos de produção que garantam
sua autonomia. Neste sentido, a distinção entre assimilação e inserção nos
permite explicitar melhor o que queremos dizer. Quando nos referimos à
assimilação, estamos comumente abordando processos em que os sujeitos são
diluídos na totalidade, perdendo sua identidade, referências específicas, visão de
mundo particular. Em outras palavras, os assimilados tornam-se o mesmo. Este
não é, contudo, o caso abordado neste texto. A comunidade quilombola João
Surá, apesar dos contatos constantes de seus membros com o exterior, dos
processos migratórios que marcam a trajetória de vida de seus membros, das
pressões sofridas para a perda de seu território e sua forma de vida, não foi,
contudo, assimilada. O que não implica em que não tenha se inserido no contexto
mais amplo, no mercado capitalista de mão-de-obra e consumo. A inserção,
porém, não pressupõe diluição. Não há um “original” sempre em vias de
desaparecimento, mas sim respostas concretas a situações contemporâneas.
164
Estas respostas podem indicar mudanças que sejam consideradas como “perdas”,
mas, na medida em que conseguem manter parâmetros definidores de identidade
e territorialidade para os membros de João Surá, garantem a eles a reserva de
possibilidades de que tratamos longamente no decorrer do texto.
Em síntese, comunidades quilombolas (e tradicionais de maneira geral)
não são grupos isolados, perdidos no passado, sempre em risco de
desaparecimento.
São
comunidades
contemporâneas,
portadoras
de
historicidade, dinâmicas. Apesar de não ser possível desconsiderar os processos
de pressão sofridos por eles, em vários casos conseguem responder a tais
contextos através de sua inserção neles. Inserção, contudo, que não implica em
assimilação, mas sim na garantia do que denominamos sua “reserva de
possibilidades” – diferencial relevante quando se considera o destino daqueles
que, partindo de um universo semelhante ao dos atuais quilombolas, são
meramente assimilados.
Eles estão inseridos? Estão. O processo de dominação não permite a
eles a autonomia total; mas essa inserção se dá numa autonomia relativa, pois é
mantida tanto na esfera concreta do território e do domínio de técnicas de
produção próprias quanto na esfera simbólica da identidade. Mantém-se o espaço
e uma maneira particular de lidar com ele. Por isso a questão da técnica e da terra
é tão relevante. Porque se esses grupos são totalmente desapropriados do
território ou do saber que garante sua reprodução relativamente autônoma, essa
reserva de possibilidade diminui. A garantia de direitos territoriais coletivos se
coloca, assim, como uma conquista necessária à manutenção da diversidade
tanto material quanto simbólica; bem como na manutenção de perspectivas
alternativas para o nosso próprio mundo.
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