ANGELO ANDA SUMIDO
Eu saí de casa antes das nove.
Eu lembro porque a novela tava começando.
Eu não tinha almoçado, tava com muita fome.
Eu lembro também que eu peguei a correspondência,
tinha a conta da luz, um cartão de uma desentupidora que eu não lembro o nome,
e um anúncio de uma loja chamada Siamarrô, tudo junto. Inesquecível.
- Boa noite. / - Boa noite. Calorão, né?
A minha prima passou este fim de semana na praia. Voltou com a pele em carne viva.
É o ozônio do sol que provoca estes furos nas camadas da pele.
O ozônio que eles usam para fazer desodorante, motor de geladeira.
- Eu vi numa reportagem na tevê. Impressionante. / - É verdade. Boa noite.
Onde é que eu tava? Ah, sim... Eu caminhei até o ponto do ônibus... Não! Foi...
- Eu vi uma reportagem na tevê. Impressionante. / - Pois é...
Foi, ele falou alguma coisa da televisão. E...
- Táxi!
Claro, foi isso, peguei um táxi. Eu tava morrendo de fome.
Tou indo pro centro, moço.
O senhor podia baixar um pouco o rádio, por favor?
Eu não via o Ângelo desde a faculdade.
A gente se encontrou uns dias antes e combinou de jantar.
Quer morrer, ô animal?
Viu só? Maloqueiro! Cambada de vagabundo! Só matando, mesmo!
Han... Olha aqui, ó: sabe o que tem que fazer com essa gente, ó?
Tinha que mandar tudo pra Amazônia. Pra pegar na enxada, trabalhar.
Não lembro que caminho o táxi fez.
Ele pode ter dobrado à esquerda, logo depois da praça, e seguido direto até o centro.
Ou ele pode ter feito a volta na praça, e descido até a perimetral, não lembro.
Ou então, sabe fazer o quê? Matar eles tudo, ó!
- Se importa que eu fume? / - Não, não.
Ele me deixou a umas duas quadras da casa do Ângelo, porque a rua dele era contra-mão.
Eu sabia que aquela era a minha chance, eu sabia.
Dessa vez a veia arrebentou, desgraçado, bagaceira.
Eu sabia. Coisa de bagaceira mesmo.
Eu não vou ficar aqui pra sempre. Eu não vou ficar aqui pra sempre.
Eu tinha duas chances: quatrocentos e três ou quatrocentos e dois. Toquei no quatrocentos e três.
Alguém tava ouvindo uma música altíssima.
Pelo que eu me lembrava do Ângelo, podia até ser ele. Toquei também no quatrocentos e dois.
Boa noite. A senhora não se incomodava de abrir a porta aqui pra mim, por favor?
E onde é que o senhor vai?
Eu vou visitar um amigo, que mora lá no quatrocento... o Ângelo!
Ela olhou pra mim de baixo pra cima.
Se eu estivesse de chinelo ou de calção, se as minhas mãos fossem muito fortes,
ou simplesmente se eu fosse negro, não teria a menor chance.
Eu sorri, passando no último teste: todos os dentes.
No Brasil, dente é salvo-conduto. Não saia de casa sem eles.
Obrigado.
- Senhora! Senhora! / - Quê que é, hein?
- A senhora podia abrir aqui para mim, por favor? / - Como é que tu entrou?
- Eu vou visitar um amigo... / - Tu não pode ficar aí, é proibido.
- Eu vou chamar a polícia. / - Ô, senhora!
Ângelo!
Ô, Ângelo!
Eu quero sair daqui! Me tirem daqui!
O quê que tá acontecendo aí, hein?
Não, sabe o quê que é? Me desculpe que eu fiquei preso aqui, mas é que...
Mas que barulho é esse? Tem gente doente no prédio!
Ele tá emaconhado! A polícia já vem vindo.
Mas é que eu vim visitar o meu amigo, o Ângelo, do quatrocentos e dois.
Nã-nã-nã-nã-nã-nã-nã-não! Quem mora no quatrocentos e dois é dona Marilda Picarelli!
Eu não disse que ele tá emaconhado?
Olha a polícia chegando.
Boa noite. Qual é o problema?
- Ele tá emaconhado! / - Ele invadiu o prédio!
- Eu fiquei preso aqui. Eu estava tentando ir na casa do meu amigo Ângelo, do apartamento
quatrocentos e três.
- Antes ele disse que era no quatrocentos e dois. / - Ele tentou quebrar o portão.
Eu estou preso aqui. Eu estou tentando sair.
É só o senhor tocar no apartamento quatrocentos e três e chamar pelo Ângelo.
A senhora poderia fazer o favor de apertar aí no quatrocentos e três? Como é o nome do seu amigo
aí?
- É Ângelo. / - Ângelo do quê?
- Ah, eu não me lembro, Ângelo, Ângelo Chaves... Na faculdade a gente chamava ele de Ângelo.
Por favor...
A gente não tem mais sossego nessa rua.
Eu tou com a mulher lá dentro, na cama. Problema nos rins.
- José! / - Porra, Ângelo!
O porteiro tá estragado. Ele é meu amigo, pode subir.
Eu não lhe disse?
Olha a chave! Não pega que dói a mão!
Muito obrigado. Muito obrigado, muito obrigado. Tudo de bom.
José, a de cima é uma velha, a de baixo é Doberman.
Só lembrei da minha fome quando entrei no elevador.
Minha última refeição quente foi o almoço de ontem:
lombinho de porco daquele bem fininho, arroz, com o molho do lombinho assim por cima,
purê de maçã e uma saladinha de batata.
Você vai ter que abrir. Tá no mesmo chaveiro. É uma Gold.
Achei.
Isso!
Não, não dá, não. Não dá, não passa, não adianta que não passa.
Ai meu Deus!
Abre você. A de cima acho que é Jo, Jorojas, Jó, uma coisa assim. Achei, mas não vira.
Tem um jeitinho. Empurra com o polegar da mão esquerda e gira com a direita ao mesmo tempo.
Deu.
A do meio tá do lado, na mesma argola. Eu acho que é Papaiz.
Ah... Tou morrendo de fome.
- Quer uma bolacha? / - Quero. Qual é a de baixo?
A de baixo é fácil, é uma vermelha.
Deu.
Nã-nã-nã-nã-nã-nã-não. Fecha para eu abrir.
Ah, nem entra, nem entra. A reserva do restaurante é pras dez.
E aí, tudo bem? Tá mais magro.
Ah, é a fome, eu tou morrendo de fome.
- Quer outra bolacha? / - Opa!
- E aí? A gente não se via há um tempão, hein? / - É, faz um tempo mesmo.
- Lembra da Jane? / - Jane?
A Jane. Aquela baixinha, pequenininha, bonitinha.
Namorava aquele cara do segundo ano. Um que tinha uma cinqüentinha,
... namorava todo mundo, a moto fazia mais sucesso que ele.
- Um magrão alto? / - Isso... Como era mesmo o nome dele?
Não lembro. Afinal o quê que houve com ele?
Não sei.
- Mas de quem nós estamos falando então? / - Da Jane.
Jane... Eu não lembro. O quê que houve com ela?
- Ela sumiu. / - Mas por que tu lembrou dela agora?
Talvez você soubesse, ela era amiga da Cris.
- Cris? / - É... Ué? Vocês não eram namorados?
A Cris... A Cris...
Eu encontrei com ela uma vez no supermercado. Nunca mais vi.
Sumiu também.
- Você veio de carro? / - De táxi.
Então vamos pegar um ali na praça Quinze, que passa mais rápido.
A gente vai pela Sete de setembro até a República.
Não dá pra ir sempre pela República. Ali tem umas boates meio barra-pesada.
A gente entra na Dom Pedro e vai até a praça Quinze.
Vamos atravessar que ali na frente tem uma obra onde moram umas pessoas.
Tu põe a minha chave na tua mochila?
- E agora? / - Eu não sabia que tinham fechado isso aqui.
- Será que tem alguma passagem? / - Parece que não.
- E se a gente pulasse? / - Eu acho alto.
- Ah, tem essa ponta aqui que não dá pra gente colocar o pé.
- Boa noite. / - Boa noite.
- Onde é que vão? / - A gente quer passar pro outro lado.
Não pode passar por aqui.
Como não? A rua é pública.
Essa aqui, não. Não é mais. O pessoal aí comprou.
- O senhor tá brincando... / - Mas a gente só quer passar para o outro lado.
Não dá. Vocês vão ter que dar a volta.
- Moço, quem é que vai ficar sabendo? / - Eu. Vocês vão ter que dar a volta.
- Mas isso é um absurdo! / - Moço, a gente tá morrendo de fome.
Aqui não passa táxi. Eu vou passar.
Ao cruzar o limite da guarita o senhor estará cometendo o crime,
definido no artigo cento e cinqüenta do código penal:
Violação de domicílio: entrar ou permanecer,
... clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito,
... em casa alheia ou em suas dependências. Tá?
- Esse cara é louco. / - Louco?
Não, não. Louco é o meu cachorro.
Pega, Louco! Pega!
A casa é o asilo inviolável do indivíduo.
Ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do morador,
... a não ser em caso de crime ou desastre,
... nem durante o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer.
Artigo cento e cinqüenta e três, parágrafo décimo da constituição federal de mil novecentos e
sessenta e cinco!
Essa constituição nem vale mais!
- Ângelo! / - José!
- Onde é que você está? / - Eu tou aqui!
O quê que é isso?
Vamos para casa, pedir uma pizza, eu estou morrendo de fome.
- Cadê a mochila? / - O Louco pegou.
Tudo bem, não tinha nada, a minha conta de luz... eu peço uma segunda via.
As minhas coisas tão aqui, a minha carteira, as minhas chaves...
As minhas chaves...
- Eu não acredito! / - Onde foi?
Lá pra trás. Eu vou buscar. Espera aqui. Fica aí.
Não. Eu vou dar a volta pela outra rua, não quero ficar aqui.
- Fica, fica aí, cara! / - Não, não, não, eu não vou ficar aqui.
Fiz todo o caminho de volta.
Felizmente, nenhum sinal do guarda. Nem do Louco.
Voltei ao lugar onde eu pulei a cerca.
A mochila não estava lá.
Talvez o Louco tenha engolido ou levado pra casa.
Esperei pelo Ângelo. Ele não apareceu.
Esperei uns cinco minutos, talvez mais.
Voltei todo o caminho outra vez.
Chamei por ele.
Talvez seja melhor eu voltar pra casa e esperar que ele me ligue.
Não adianta nada ficar andando por aqui.
Liguei pra casa dele várias vezes, aquela noite, e no dia seguinte.
Fiquei preocupado.
Será que essa salsicha não está fria?
Uns dias depois passei lá, chamei, ninguém respondeu.
Achei melhor não incomodar os vizinhos.
Aí eu viajei, fiquei um tempo fora.
Quando eu voltei, tinha um outro cara morando lá,
me disse que alugou o apartamento numa imobiliária.
Já passou um ano. O Ângelo anda sumido.
Eu também.
??
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ANGELO ANDA SUMIDO Eu saí de casa antes das