CO 01 Negócio de menino com menina CO 02 O menino, de uns dez anos, pés no chão, vinha andando pela estrada de terra da fazenda com a gaiola na mão. Sol forte de uma hora da tarde. A menina, de uns nove anos, ia de carro com o pai, novo dono da fazenda. Gente de cidade grande. Ela viu o passarinho na gaiola e pediu ao pai: NA 03 — Oh pai.... Olha que lindo! Compra pra mim? CO 04 O homem parou bruscamente o carro e chamou: HO 04 — Ô menino. CO 05 O menino voltou, chegou perto, carinha boa. Parou ao lado da janela da menina. HO 06 — Esse passarinho é para vender? NO 07 — Não senhor. CO 08 O pai olhou pra filha com uma cara de deixa pra lá. A filha pediu suave como se o pai tudo pudesse: NA 09 — Oh pai... Fala pra ele vender... fala pai. CO 10 O pai, mais para atendê-la, faz o intermediário com o menino: HO 11 —Ô menino, quanto você quer pelo passarinho? NO 12 — Não tou vendendo não senhor... Não tou vendendo não senhor... Não tou vendendo não senhor... CO 13 A menina ficou decepcionada e segredou: NA 14 — Ah, pai, compra... Ah, pai, compra... Ah, pai, compra... Ah, pai, compra... CO 15 A menina não considerava, ou não aprendera ainda, que negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador. Negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador! Negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador! Negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador! No caso, faltava o vendedor. Mas o pai era um homem de negócios, águia da Bolsa, muito persuasivo e acostumado a encorajar os mais hesitantes ou a virar a cabeça dos mais recalcitrantes HO 16 — Dou dez mil. NO 17 — Não senhor, eu não quero vender não ... não quero vender não ... HO 18 — Vinte mil. NO 19 — Vendo não... eu não quero vender não ... não quero vender não ... CO 20 O homem meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro, mostrou as notas, irritado. HO 21 — Trinta mil. NO 22 — Não tou vendendo, não, senhor. CO 23 O homem resmungou “que menino chato” e falou pra filha: HO 24 — Ele não quer vender. Paciência. CO 25 A filha, baixinho, indiferente às possibilidades da transação: NA 26 — Mas eu queria. Olha que bonitinho. Oh paizinho compra pra mim! CO 27 O homem olhou a menina, a gaiola, a roupa encardida do menino, com um rasgo na manga, o rosto vermelho do sol. HO 27 — Deixa comigo. CO 28 Levantou-se, deu a volta, foi até lá. A menina procurava intimidade com o passarinho, dedinho nas gretas da gaiola. O homem maneiro, estudando o adversário: HO 29 — Qual é o nome deste passarinho? NO 30 — Ainda não botei nome nele, não. Peguei ele agora. CO 31 O homem quase impaciente: [HO 32 — Não perguntei se ele é batizado não, menino. É pintassilgo, é sabiá, o que é essa [...] de passarinho? NO 33 — Aaaah. É bico-de-lacre. CO 34 A menina pela primeira vez, falou com o menino: NA 35 — Ele vai crescer? CO 36 O menino parou os olhos pretos nos azuis. NO 37 — Cresce nada. Ele é assim mesmo, pequenininho. CO 38 O homem: HO 39 — E canta? NO 40 — Canta nada. Só faz chiar assim. HO 41 — Passarinho besta, hein? HO 42 — Não presta pra nada, é só bonito. HO 43 — Você o pegou dentro da fazenda? NO 44 — É foi sim senhor ... Aí no mato. HO 45 — Essa fazenda é minha. Tudo que tem nela é meu. Portanto esse pássaro é meu, tudo que tem aqui é meu. CO 46 O menino segurou com mais força a alça da gaiola, ajudou com a outra mão nas grades. O homem achou que estava na hora e falou já botando a mão na gaiola, dinheiro na outra mão. HO 47 — Dou quarenta mil, pronto. Toma aqui. É pegar ou largar! NO 48 — Não senhor, muito obrigado, eu não quero vender não! CO 49 O homem, meio mandão: HO 50 — Vende isso logo, seu [...] de menino. Não tá vendo que é pra menina? NO 51 — Não, não tou vendendo não. Não quero vender! HO 52 — Cinquenta mil! Toma! - e puxou a gaiola. CO 53 Com cinquenta mil se comprava muitos desses passarinhos e/ou muitas coisas de melhor valor agregado. Sem dúvida uma oferta mega, super, hiper espetaculosa para um simples passarinho mortal com uma raça nem muito conhecida “bico-de-lacre”. CO 54 O menino resistiu, segurando a gaiola, voz trêmula. NO 55 — Quero não senhor. Tou vendendo não. Quero não senhor. Tou vendendo não. Quero não senhor. Tou vendendo não. Quero não senhor. Tou vendendo não. HO 56 — Não vende por quê, menino burro hein? Por quê? Estou pagando muito mais do que vale! CO 57 O menino acuado, tentando explicar: HO 58 — É que eu demorei a manhã todinha pra pegar ele, queria ter ele mais um pouquinho. Mostrar pra mamãe. Brincar com ele um pouquinho e depois soltar no mato. CO 59 O homem voltou para o carro, nervoso. Bateu a porta, culpando a filha pelo aborrecimento. HO 60 — Viu no que dá mexer com essa gente? É tudo ignorante, filha. Vam`bora. CO 61 O menino chegou pertinho da menina e falou baixo, só pra ela ouvir: NO 62 — Amanhã eu dou ele pra você. Você brinca com ele e depois solta no mato. CO 63 Ela sorriu e compreendeu.