Para isso temos duas mãos: para mudar o mundo∗ Roberto Amaral “Tenho apenas duas mãos, e o sentimento do mundo” 1. É a voz do Poeta, nos ensinando o papel de sujeitos da história, responsáveis pelo mundo: o mundo será o que fizermos dele: para isso temos duas mãos e o sentimento da justiça, a consciência da iniqüidade da fome, da exclusão social, do desemprego, das desigualdades de toda ordem. O Poeta nos diz que o céu está morto, que o meu desejo está morto, que há uma guerra. Por isso dizemos, este mundo não nos satisfaz. Mas o Poeta também nos ensina que o dever do homem é mudar o mundo. Ele nos dirá: “Este país não é meu Nem vosso ainda, poetas. Mas ele será um dia O país de todo homem2”. Para isso temos duas mãos. Temos duas mãos, o camponês e o operário, o poeta e os revolucionários. Tenho apenas duas mãos, mas minhas mãos são grandes, são mãos e pés de Portinari, mãos lavradas, mãos sulcadas, mãos-lavouras; mãos operárias. Mãos que se fecham no vazio porque não há mais máquinas para trabalhar. Pernas musculosas, pernas de Aleijadinho, porque caminham pelo mundo do latifúndio, o mundo verde de sua fome secular, cuidando da terra que não é sua, da vida que já não lhe pertence, vivendo a morte que é só sua. Tenho apenas duas mãos, e o sentimento do mundo E eu digo, o mundo que queremos não é este. Para transformá-lo temos duas mãos, e o sentimento da justiça, temos duas mãos e o sentimento da igualdade, temos duas mãos e o sentimento da liberdade. Somos livres porque escolhemos construir o futuro, somos livres porque decidimos mudar o presente, somos livres porque amamos a humanidade e acreditamos no homem. Temos duas mãos e o sentimento do homem. ∗ Discurso pronunciado no dia 21 de dezembro de 1998, ao receber o título de ‘Cidadão de Maceió, que lhe fôra concedido pela Câmara Municipal. .1 Carlos Dummond de Andrade. ‘Sentimento do mundo’ In Poesia e prosa Ed. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1979. p.120. 2 Idem. ‘Cidade prevista’. Idem. P. 221 E este homem se chama Raimundo, Maria, Josefa, Severino, Zé e se chama Severina, porque é filho de Maria e de Severino, sem passado e sem futuro. Este homem ara a terra e morre de fome. Este homem move os moinhos mas morre de sede, morre de seca e de sezão, de morte de ordem vária, esse homem e essa mulher vivem em nossos peitos, gritam em nossas gargantas cortadas, choram em nossos olhos secos e amam a terra, berço esplêndido, onde nasceram (e vão morrer). “Tenho apenas duas mãos”, e o sentimento de nossa história comum: história de sacrifício e de sonhos, de dor e de alegria, mas, acima de tudo, história de fé na capacidade transformadora do homem que nos permite, todo dia, renovar nossa esperança e sonhar, sempre, todo dia, toda noite, porque a felicidade é possível. Temos todas as mãos do mundo, as mãos frágeis e trêmulas da fome de comida e de justiça, as mãos frágeis e trêmulas dos que têm sede, as mãos secas e trêmulas do desempregado, as mãos cruzadas dos que não têm saúde, as mãos paralíticas dos que não sabem escrever. Temos todas as mãos do mundo, a mão que se abre e se estende no gesto de solidariedade, a mão que se ergue e se espalma no gesto de protesto, a mão que se fecha para dizer… Basta! A mão que cerra o punho para dizer: “Vamos à luta!”. A mão que se junta a outra mão para mudar. “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo” , de um mundo que não é o nosso, de um país que ainda não é o nosso, de uma terra que ainda não é nossa. Mas, nos ensinou Drummond: se este país não é, ainda, nem meu nem vosso, se ele não é o país que queríamos, e merecíamos, mas o país que nos traíram, ele será um dia o país de todo homem3. Para isso, temos duas mãos e o sentimento do mundo. Minhas Senhoras, meus senhores. Não sei que títulos tenho, nem sei por quais títulos me tornei merecedor de vossa distinção, pois um só título reivindico, o de militante. Escritor de pouca monta, jornalista sem jornal, advogado sem banca, professor sem aluno, político sem mandato, apaixonado pela política desde os bancos escolares e detestando a política que se faz em nosso país e em nossos partidos, sou só, e tão-simplesmente, da meninice à maturidade que chega em passos surdos, sou, só e tão-só, um militante. Um militante social. É a só vaidade que me anima. Militante do socialismo desde a adolescência, fiz-me militante da humanidade, pois defender o socialismo, lutar por ele, é fazer-se fiel ao humanismo, que não tolera a exclusão, que abomina as ditaduras, que defenestra o medo, que enfrenta a prepotência e o autoritarismo, que combate a maior das injustiças: a fome. A fome larvar a que são condenados os pobres que vivem numa das províncias mais belas e ricas do planeta, e são cada vez mais pobres para que os senhores da terra e do capital, daqui e de longe, sejam cada vez mais ricos. 3 Idem. Idem. Porque o socialismo é antes de tudo um Humanismo, e o desafio que enfrentamos é restabelecer a primazia dos valores humanos sobre a barbárie da exploração do homem pelo homem. Militante do socialismo, travei o combate possível, perdi com o povo brasileiro, mas, como o povo brasileiro, jamais permiti que nos roubassem nosso maior patrimônio: a fé inquebrantável no homem, na sua capacidade de resistência, na sua capacidade de luta, na sua capacidade de enfrentar a adversidade, na sua capacidade de combater o bom combate. Por isso, perdedor, com toda a minha geração, eu sempre ganhei com o povo brasileiro, pois, se aos poderosos tudo foi permitido, como de quase todos roubar a liberdade e de muitos roubar a vida, não lhes foi dado o poder de roubar nossa fidelidade à utopia. E ela aí está, de novo brilhando como as auroras, de novo colorindo o horizonte para dizer: a justiça é possível, a igualdade é possível, a liberdade é possível, a felicidade é possível e ela está ao nosso alcance, ao alcance de nossas mãos. Não posso esquecer que neste mesmo mês de dezembro a história registra 30 anos do AI-5, que se abateu sobre nós como manto pesado, manto sufocante, o manto de uma noite sem estrelas que parecia eterna, por que maior do que a vida prometida. Quantos sucumbiram de medo e desesperança? E hoje, quem canta o hino da liberdade, quem festeja a luz e abraça o sol, quem saúda o mar, quem sonha e quem crê no futuro, somos nós, o povo brasileiro. Nós os meus conterrâneos de Maceió que começaram em 1992 uma reforma política que vai caminhar, que vai fincar-se no solo do nosso Estado, que vai firmar-se nos corações e nas mentes, na alma e no espírito de nosso povo. Uma transformação política que vai espancar o medo e a violência que só se combate depois que se perde o medo. Uma transformação social, uma reconstrução de valores, uma recuperação da preeminência do interesse público, que vai espancar a apropriação do Estado pelas elites do atraso, que vai espancar o passado para construir, com nossas mãos, o futuro. Essa transformação, que teve início em processo eleitoral ordinário, tem nome e sobrenome, tem dois nomes, ela se chama Ronaldo Lessa e ela se chama Kátia Born. E agora eu entendo o sentido desse ato, pois, na verdade, ele é homenagem à luta de Ronaldo e Kátia, do grupo de militantes que eles souberam construir e sabem liderar. Quero entender que esse título com o qual me distinguis é, na verdade, um tributo à amizade, o segundo título de que me orgulho. À minha amizade a esses dois amigos, vós, a cidade, me compensais fazendo-me vosso irmão. Toda escolha implica distinguir, garimpar, eleger, nomear, manifestar preferência. Agradeço vossa escolha, mas, ela apenas formaliza uma escolha anterior e esta foi minha, de 1986, quando decidi adotar esta terra e sua gente, quando aqui cheguei para ajudar Ronaldo Lessa a organizar o Partido Socialista Brasileiro, e enfrentar, como ele vem enfrentando desde então, todas as forças que se opõem ao progresso, todas as forças que se opõem à vida. Porque nós somos, acima de tudo, a promessa de vida, de vida melhor, de vida em segurança, de vida em paz, vida em harmonia, vida com orgulho, vida com dignidade, vida com apreço. Esta é, portanto, a minha terra de adoção, que saberei cultivar, como já sei amar. (21 de dezembro de 1998)